segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Auto-Retrato filosófico de Plínio Corrêa de Oliveira (II)

Os princípios de 1789: tendência para a liberdade e igualdade completas
A tese igualitária exprimiu-se na Declaração dos Direitos do Homem -- magna carta da Revolução Francesa e da era histórica por esta inaugurada—em toda a sua nudez: ”Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” . É claro que este princípio é suscetível de uma boa interpretação. Fundamentalmente, isto é, considerados em sua natureza, os homens realmente são iguais. É apenas pelos acidentes que são desiguais. Por outro lado, sendo dotados de uma alma espiritual, e portanto de inteligência e vontade, são eles fundamentalmente livres. Os limites dessa liberdade estão apenas na lei natural e divina e no poder das diversas autoridades espirituais e temporais às quais os homens devem sujeitar-se.
Que em todos os tempos tenha havido autoridades que violaram a fundamental igualdade e a fundamental liberdade do homem, ninguém o pode negar. Que ao longo da História se notaram, em contrapartida, sucessivos movimentos de defesa em face dos excessos da autoridade, procurando contê-la em seus justos limites, é evidente. Que tais movimentos, enquanto circunscritos a esse objetivo, só merecem aplauso, também é inquestionável. A igualdade e a liberdade—retamente entendidas—podiam ser lembradas utilmente no século XVIII, como em qualquer outra época.
É bem certo que em 1789, entre os revolucionários das primeiras horas, havia pessoas que não desejavam senão uma justa contenção do Poder Público, e entendiam a igualdade e a liberdade promulgadas pela Declaração dos Direitos do Homem no seu sentido mais favorável.
Mas o texto da famosa Declaração era por demais genérico: afirmava a igualdade e a liberdade sem lhes mencionar qualquer restrição. Isso propiciava uma interpretação lata e desfavorável: uma igualdade e uma liberdade absolutas e onímodas.
Bem entendido, esta interpretação é a que correspondia ao espírito da Revolução nascente. Ao longo do seu curso, foi ela alijando todos aqueles de seus partidários que não comungavam nesse espírito. A caça aos nobres e aos clérigos foi seguida pela caça aos burgueses. Só o trabalhador manual devia subsistir.
Caído o Terror, a burguesia, desejosa de eliminar por toda a Europa as antigas classes privilegiadas, continuou a afirmar os imortais princípios de 1789. Ela o fazia de modo ambíguo e imprudente, não duvidando em suscitar nas massas populares a tendência para a igualdade e a liberdade completas, a fim de obter o apoio delas na luta contra a realeza, a aristocracia e o clero. Esta imprudência facilitou em larga medida a eclosão do próprio movimento que haveria de pôr em xeque o poder da burguesia.
Se todos os homens são livres e iguais, com que direito existem os ricos? Com que direito os filhos herdam, sem trabalhar, os bens de seus pais?

O comunismo utópico proclamou que, desacompanhada da igualdade social e econômica, a igualdade política burguesa seria uma burla
Já antes de que a industrialização formasse as grandes concentrações de proletários subnutridos, o comunismo utópico denunciava como uma burla a mera igualdade política instituída pela burguesia e exigia a igualdade social e econômica absolutas. O anarquismo, que sonhava com uma sociedade sem autoridade, se propagava. Esses princípios radicais, que na fase do comunismo utópico tiveram um número restrito de militantes, não obstante alcançaram mais tarde, no Ocidente, uma prodigiosa difusão. Eles minaram aos poucos a mentalidade de numerosos monarcas, como também de potentados e notabilidades civis e eclesiásticas. E instilaram assim, em larguíssimas camadas de beneficiários da ordem então vigente, certa simpatia pela generosidade dos ideais libertários e igualitários, bem como uma má consciência quanto à legitimidade dos poderes de que se encontravam investidos.
A grande realização de Karl Marx não foi, a meu ver, a elaboração do comunismo dito científico, doutrina confusa e indigesta que poucos conhecem. O marxismo é tão ignorado pelas bases comunistas e pela opinião pública de nossos dias quanto as elucubrações de Plotino ou Averróis. Marx conseguiu, isto sim, desencadear a ofensiva comunista mundial coligando os adeptos de uma tendência radicalmente igualitária e anárquica, toda ela inspirada no comunismo utópico.
Em outros termos, se os líderes marxistas, em medida maior ou menor, estão imbuídos de Marx, os soldados rasos que eles comandam são em geral incapazes de lhe conhecer a doutrina. O que os move a se aglutinarem em torno dos seus chefes são vagas idéias de igualdade e justiça, inspiradas no socialismo utópico. E se os quadros marxistas encontram fora de si mesmos, em certas zonas da opinião pública, uma aura de simpatia, devem-no ainda à irradiação quase universal dos princípios igualitários da Revolução Francesa e do sentimentalismo romântico inerente ao socialismo utópico.

Um substrato igualitário e anárquico continua a influenciar a fundo a opinião pública
De todas estas considerações ressalta com clareza o principal fator do caos em que o Ocidente vai afundando, e para o qual vai levando o resto do mundo. Esse fator é a aceitação muito generalizada das tendências e doutrinas de substrato igualitário e anárquico, as quais, inteiramente démodées nos círculos propriamente intelectuais, continuam no entanto a influenciar a fundo a opinião pública. E assim servem de isca aos comunistas para arrastarem atrás de si, em determinadas conjunturas políticas passadas e presentes, as turbas com que pretendem arrasar os últimos resquícios de sacralidade e hierarquia da civilização cristã ainda existentes.
Tudo isso não importa em afirmar que o pensamento de Proudhon e de seus congêneres constitua a grande alavanca ideológica dos acontecimentos contemporâneos. Os utopistas estão mortos, e quase ninguém deles cogita em nossos dias. Eles não foram senão uma etapa na grande trajetória aberta com os movimentos ideológicos e culturais do século XVI. Eles contribuíram para dar universalidade às aspirações de nivelamento econômico-social que a Revolução Francesa continha apenas em germe. Tais aspirações de total igualdade econômico-social, de que os utopistas foram apenas os porta-vozes, alcançaram um eco difuso por todo o mundo. Esse eco continua ao longo da História, muito depois de terem eles e suas obras caído no olvido.
Se queremos pois deter os passos à nova catástrofe que nos espreita, cumpre principalmente desfazer o trágico erro doutrinário que identifica a igualdade absoluta com a justiça absoluta, e a liberdade verdadeira—à qual a Verdade e o Bem fazem jus—com o livre curso e até com o favorecimento de todos os erros e de todos os desregramentos.
Isto nos leva a pensar na Contra-Revolução.

A Contra-Revolução deve apontar os erros metafísicos fundamentais da Revolução
Ao longo dos últimos séculos, muitos movimentos se têm erguido contra o processo revolucionário. Mas o êxito concreto por eles alcançado foi transitório, e às vezes nulo. Não que a esses movimentos faltasse o apoio de talentos brilhantes, de pessoas altamente colocadas e até de largos setores populares. Mas esses movimentos o mais das vezes se limitaram a combater a Revolução em uma ou outra de suas expressões religiosas, políticas, sociais ou econômicas. Se bem que, de quando em quando, fizessem aceno aos erros revolucionários mais profundos e de porte metafísico, eles não insistiam suficientemente neste ponto. Daí o fato de a Revolução continuar incólume o seu curso.
Outros julgaram mais hábil, para detê-la, usar a sua linguagem e as suas técnicas, e investir contra alguns dos abusos inegáveis que a própria Revolução denunciava. Procuraram assim tirar-lhe os pretextos . Ora, combater abusos é sempre meritório; mas quanta ingenuidade havia em imaginar que a força da Revolução estava sobretudo na indignação causada por certos abusos contra os quais ela bradava! A História provou a falência dessa tática. Certos abusos existentes ainda há algumas décadas foram de tal modo corrigidos na Europa, que Pio XII pôde dizer ao “Katholikentag” de Viena: ”Diante do olhar da Igreja se apresenta hoje em dia a primeira época das lutas sociais contemporâneas. Em seu âmago dominava a questão operária: a miséria do proletariado e o dever de elevar esta classe de homens, entregue sem defesa às incertezas da conjuntura econômica, até a dignidade das outras classes da cidade, dotadas de direitos precisos. Este problema pode ser hoje em dia considerado como resolvido, ao menos nas suas partes essenciais, e o mundo católico contribuiu para esta solução de modo leal e eficaz” [1]. Entretanto, a Revolução continua a rugir, mais ameaçadora do que nunca.
Assim, sem negar o caráter meritório de tantos movimentos de sentido contra-revolucionário no passado ou no presente, sem negar também o que há de benemérito na luta contra injustiças que a atual ordem de coisas apresenta, parece-me que a grande necessidade de nossos dias é assinalar os erros metafísicos fundamentais da Revolução e a coesão íntima existente entre esses três vagalhões que se jogaram sucessivamente contra a Cristandade ocidental: numa primeira etapa, o Humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante (primeira Revolução); mais tarde, a Revolução Francesa (segunda Revolução); e, por fim, o Comunismo (terceira Revolução).

No terreno da ação
Este empenho deu sentido à minha atuação como parlamentar, professor, escritor e jornalista.
Refiro-me aqui apenas de passagem à minha atuação como deputado pela Liga Eleitoral Católica na Assembléia Constituinte Federal de 1934. Ela não interessa diretamente à Enciclopédia para a qual me foi pedido escrever. [4]
Em minha longa atuação no magistério—quer como professor de História da Civilização no Colégio Universitário, seção anexa à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; quer como professor da mesma disciplina no Colégio Roosevelt de São Paulo; quer como Catedrático de História Moderna e Contemporânea na Faculdade de Filosofia de São Bento e na Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae , ambas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo—as considerações que acabo de fazer nunca estiveram ausentes de meu espírito.
Atuando como diretor do conhecido semanário católico “Legionário”, órgão oficioso da Arquidiocese de São Paulo; como um dos fundadores e secretário da Junta Estadual da Liga Eleitoral Católica do Estado de São Paulo; como Presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica; e também como secretário da Federação das Congregações Marianas de São Paulo, marquei meu apostolado pela preocupação de lutar sempre contra a Revolução. Revolução que eu não via apenas encarnada em movimentos de esquerda, mas também em tendências incubadas freqüentemente em movimentos do centro, e mesmo em outros que se rotulavam de extrema-direita. Contra estes últimos, especialmente, conduzi campanhas enérgicas, revidadas aliás com violência. As páginas do “Legionário” estão cheias da polêmica que mantive contra as várias formas de fascismo e nazismo, ao tempo em que esses movimentos pareciam atingir o zênite.
A Contra-Revolução é também o que dá sentido a minha atividade como escritor.

Em defesa da Ação Católica : brado de alarma contra germes de laicismo, liberalismo e igualitarismo nos meios católicos
Meu primeiro livro foi publicado em 1943, e se intitula Em defesa da Ação Católica (Editora Ave Maria, São Paulo). Era ele um brado de alarma contra germes de laicismo, liberalismo e igualitarismo que começavam a invadir a Ação Católica Na qualidade de Presidente do ramo paulista dessa entidade, cabia-me abrir a luta contra aqueles erros. O livro despertou controvérsias apaixonadas. Estas não cessaram sequer quando, em 1949, recebi a propósito do livro uma carta de louvor calorosa, enviada, em nome do Papa Pio XII, por Mons. João Batista Montini, então substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé, e depois Papa Paulo VI.
Em defesa da Ação Católica foi aplaudido em boa parte dos setores católicos. Entretanto, em alguns ambientes continuaram a se expandir os germes de progressismo, culminando na onda de erros que hoje notoriamente se estende por todo o País. Os que de futuro escreverem com imparcialidade a História da Igreja no Brasil do século XX reconhecerão, creio eu, que a considerável resistência que o progressismo vem enfrentando entre nós se deve, em larga medida, ao brado de alarma de Em defesa da Ação Católica . Pois esse livro alertou, contra o vírus incipiente do progressismo brasileiro, muitas mentalidades que não tinham começado ainda a sofrer a ação sedutora das idéias novas.
Como se vê, meu primeiro livro, embora de caráter doutrinário, foi escrito em função de um importante problema concreto, já muito atual naqueles tempos.
Não se pode dizer o mesmo de Revolução e Contra-Revolução . Pelo resumo que dele fiz acima, é fácil perceber que seu tema não se relacionava de perto com qualquer assunto brasileiro de atualidade em 1959, ano no qual foi publicado. O principal objetivo da nova obra foi explicitar, aos olhos do público, o sentido doutrinário profundo do prestigioso mensário de cultura Catolicismo , naquela época editado em Campos (RJ) sob os auspícios do então Bispo daquela Diocese, Dom Antonio de Castro Mayer.
No Brasil, Revolução e Contra-Revolução teve quatro edições. A publicação inicial (1959) foi feita no número 100 de Catolicismo (duas tiragens). As edições se sucederam no mundo hispânico, nos Estados Unidos, no Canadá e na Itália.
O mais destacado efeito de Revolução e Contra-Revolução foi ter inspirado, no Brasil, a constituição da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade—TFP, e fora do País, a fundação de organizações congêneres e autônomas, que hoje vicejam em quase todas as grandes nações do Ocidente e estendem seus ramos pelos outros continentes. Bureaux de representação das TFPs também existem em vários países, projetando desse modo os princípios doutrinários e os ideais de Revolução e Contra-Revolução por 26 países dos cinco continentes.
Essas entidades constituem uma grande família de almas formada em torno de Revolução e Contra-Revolução .

Uma transformação interna anunciada pelos próprios teóricos marxistas: a derrocada do Estado e o surgimento da sociedade cooperativista
Em 1976, acrescentei a Revolução e Contra-Revolução uma terceira parte. Trata-se de uma mise au point do panorama internacional transformado pela Revolução nos cerca de vinte anos decorridos desde o lançamento da obra, com vistas a que o leitor relacionasse facilmente o seu conteúdo com a nova realidade de então.
O domínio da III Revolução—a comunista—chegara a um estado paradoxal de apogeu e crise. Apogeu pela extensa área que o comunismo efetivamente veio a dominar, e pela influência que exerceu no Ocidente através da imensa coligação de partidos comunistas, criptocomunistas, paracomunistas, além do magma ilimitado dos inocentes-úteis. A par de apogeu, crise. Com efeito, o comunismo entrara pari passu em declínio, junto à opinião pública. O poder persuasório dele e sua capacidade de liderança revolucionária minguavam dentro e fora dos limites da União Soviética. Comprometido assim o avanço do comunismo pelo insucesso dos seus costumeiros métodos de ação e proselitismo, optaria este, daí em diante, pela aventura?
O fato é que, no auge de seu poder, a III Revolução deixou de ameaçar e agredir, e passou a sorrir e pedir. Ela abandonou o caminho reto—sempre o mais curto—e escolheu um ziguezague, no decurso do qual não faltavam as incertezas.
Colocou ela então o melhor de suas esperanças na guerra psicológica revolucionária, que usa o sorriso tão-somente como arma de agressão e de guerra, e transfere seu impacto conquistador, de violência (isto é, do físico e palpável), para o campo das atuações psicológicas (isto é, para o campo impalpável). Seu objetivo: alcançar, no interior das almas, por etapas e invisivelmente, a vitória que certas circunstâncias lhe estavam impedindo conquistar de modo drástico e visível, segundo os métodos clássicos.
Bem entendido, esses métodos nada têm de comum com a mera novela jornalística correntemente denominada de conquistas das mentes , lavagem cerebral , etc. Não se tratava de efetuar, no campo do intelecto, algumas operações esparsas e esporádicas. Tratava-se, pelo contrário, de uma verdadeira guerra de conquista—psicológica, sim, mas total—visando o homem todo, e todos os homens em todos os países.
Não seria possível descrever esta guerra psicológica revolucionária sem tratar acuradamente do seu desenrolar naquilo que é a própria alma do Ocidente, ou seja, o Cristianismo, e mais precisamente a Religião Católica, que é o Cristianismo em sua plenitude absoluta e em sua autenticidade única.
Dentro da perspectiva de Revolução e Contra-Revolução , o êxito dos êxitos alcançado pelo comunismo pós-staliniano sorridente foi o silêncio enigmático, desconcertante e espantoso, apocalipticamente trágico, do Concílio Vaticano II a respeito do comunismo.
A evidência dos fatos aponta, pois, o Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja. Depois dele penetrou na Igreja, em proporções impensáveis, a ”fumaça de Satanás” [2], que se vai dilatando dia a dia, com a terrível força da expansão dos gases. Para escândalo de incontáveis almas, o Corpo Místico de Cristo entrou no sinistro processo de ”autodemolição” , do qual falou Paulo VI[3].
Ficava assim delineada a situação da III Revolução, como ela se apresentava pouco antes do 20° aniversário da publicação de Revolução e Contra-Revolução .
Entretanto, esse panorama não seria completo se se negligenciasse uma transformação interna na III Revolução: é a IV Revolução que dela vai nascendo.
Como é bem sabido, nem Marx nem a generalidade de seus mais notórios sequazes viram na ditadura do proletariado a etapa terminal do processo revolucionário. Na mitologia evolucionista inerente ao pensamento de Marx e de seus seguidores, assim como a evolução se desenvolverá ao infinito no suceder dos séculos, assim também a Revolução não terá termo. Da Iÿ20Revolução já nasceram duas outras. A terceira, por sua vez, gerará mais uma. E daí por diante...
Não é impossível prever, por ora, dentro da perspectiva marxista, como será a IV Revolução . Ela deverá consistir, segundo os próprios teóricos marxistas, na derrocada da ditadura do proletariado em conseqüência de uma nova crise, por força da qual o Estado hipertrofiado será vítima de sua própria hipertrofia. E desaparecerá, dando origem a um estado de coisas cientificista e cooperativista, no qual—dizem os comunistas—o homem terá alcançado um grau de liberdade, igualdade e fraternidade até aqui insuspeitável.
Como? -- É impossível não perguntar se a sociedade tribal sonhada pelas correntes estruturalistas não dá uma resposta a esta indagação. O estruturalismo vê na vida tribal uma síntese ilusória entre o auge da liberdade individual e do coletivismo consentido, na qual este último acaba por devorar a liberdade. Em tal coletivismo, os vários eus ou as pessoas individuais, com o seu pensamento, sua vontade e seus modos de ser, característicos e conflitantes, se fundem e se dissolvem—segundo eles—na personalidade coletiva da tribo geradora de um pensar, de um querer, de um estilo de ser densamente comuns.
A Parte III de Revolução e Contra-Revolução termina com considerações sobre essa IV Revolução nascente.

Metamorfose do comunismo rumo à sociedade autogestionária
A década seguinte, dos anos 80, não se encerraria sem que os prognósticos feitos na Parte III de Revolução e Contra-Revolução recebessem uma extraordinária confirmação nos fatos.
Não conseguindo esconder mais seu estrondejante fracasso econômico, bem como o desumano cerceamento de liberdades legítimas, a Rússia soviética optou por admitir o fato desinibidamente diante do mundo. E assim, depois das convulsões geopolíticas espetaculares que se seguiram aos programas liberalizantes da glasnost (1985) e da perestroika (1986) desencadeados por Gorbachev, o regime soviético se esboroou (1989-1991) e parece desde então evoluir para um modelo menos distante do que vigora no Ocidente.
Essa transformação coloca um problema estratégico novo para os não comunistas, pois parece conter um apelo: assim como se dissolveu a estrutura granítica do comunismo, torne-se também o Ocidente menos rígido em sua aplicação dos princípios da propriedade privada e da livre iniciativa, aceitando dar passos decisivos na direção do socialismo. Desse modo, Ocidente e Oriente convergirão para um ponto intermédio—não necessariamente a meio caminho, e possivelmente bem mais próximo do comunismo que do capitalismo—e estará encontrada uma solução definitiva para a paz mundial.
Quantos no Ocidente não se têm deixado seduzir por esta perspectiva! Quantos não são propensos a dizer: é melhor aceitarmos um regime mais igualitário, com menos liberdade civil e econômica, a fim de evitarmos que a situação na Rússia retroceda, os comunistas retomem o poder e volte a nos importunar o terrível espectro do holocausto nuclear, do qual milagrosamente nos livramos!
A essa ponderação cabe responder que as guerras são castigos pelos pecados dos homens. A aceitação de um regime antinatural e contrário à Lei de Deus, como é o comunismo, ainda que algum tanto mitigado, constitui enorme pecado que, desdobrando inevitavelmente seus efeitos maléficos, só pode acarretar a ruína e a infelicidade dos homens.
Assim, face ao esfacelamento do império soviético, no Ocidente os espíritos mais argutos se perguntam o que isso tudo tem de autêntico, de consistente, de irrefragável, que autorize esperanças solidamente fundadas. E embora não faltem otimistas pressurosos de abrir os braços de par em par para tais perspectivas enganadoramente alvissareiras, a prudência recomenda muita circunspecção diante da enigmática retração do comunismo, que muito bem pode não ser mais do que uma metamorfose para atingir a meta última deste, que é a sociedade autogestionária.
Advertiu-o honestamente o próprio Gorbachev, em seu ensaio propagandístico “Perestroika—Novas idéias para o meu país e o mundo”: ”A finalidade desta reforma é garantir .... a transição de um sistema de direção excessivamente centralizado e dependente de ordens superiores para um sistema democrático baseado na combinação de centralismo democrático e autogestão”. Autogestão esta que, de mais a mais, era ”o objetivo supremo do Estado soviético” , segundo estabelecia a própria Constituição da ex-URSS em seu Preâmbulo.
Todas estas considerações encontram-se mais amplamente explanadas na edição atualizada de Revolução e Contra-Revolução publicada em 1992 .

Se o Brasil não conheceu a desgraça da pulverização agrária, deve-o a RA-QC
É o momento de mencionar algumas realizações contra-revolucionárias de envergadura, levadas a cabo pelas TFPs nos respectivos países.
Em 1960, fervilhava no Brasil uma agitação agrária... quase toda ela urbana! Uma propaganda sabiamente orquestrada nas grandes cidades procurava fazer crer que todo o nosso mundo rural estava a ponto de explodir em virtude do descontentamento da classe dos trabalhadores manuais. Segundo se dizia, para desarmar a efervescência das massas rurais—prevenindo assim uma hecatombe—impunha-se fazer uma Reforma Agrária. Esta consistiria fundamentalmente em que o Poder Público expropriasse a preço vil os latifúndios improdutivos, em vista de distribuir terra aos pequenos agricultores. O próprio dinamismo do espírito igualitário que animava os agro-reformistas levá-los-ia entretanto a eliminar progressivamente todas as grandes e médias propriedades, transformando nossa estrutura rural numa imensa contextura de pequenas propriedades de dimensão familiar. Foi quando veio a lume o livro Reforma Agrária—Questão de Consciência . Obra de grande porte, exigia um trabalho de equipe. Foi assim que redigi a primeira parte do livro, submetendo-a depois à consideração de dois ilustres prelados, Dom Antonio de Castro Mayer, então Bispo de Campos, e Dom Geraldo de Proença Sigaud, então Bispo de Jacarezinho, depois Arcebispo de Diamantina, para que fizessem a revisão do texto, sob o ponto de vista especificamente teológico. A segunda parte, de natureza técnica, ficou a cargo do economista Luiz Mendonça de Freitas.
A obra teve uma acolhida muito favorável nos meios rurais e foi objeto de manifestações de aplauso da parte de governadores, deputados estaduais e federais, senadores, centenas de prefeitos, câmaras municipais e entidades de classe.
Os mesmos autores publicamos em 1964 a Declaração do Morro Alto , programa positivo de Reforma Agrária.
No seu conjunto, essas obras constituíram ao mesmo tempo uma franca e enérgica defesa do princípio da propriedade privada, negado mais ou menos veladamente pelo agro-reformismo socialista e expropriatório, bem como uma afirmação da função social do referido princípio, para a correção de abusos e falhas existentes em nossa situação rural.
Reforma Agrária—Questão de Consciência deu origem a polêmicas que alertaram a opinião pública para os verdadeiros objetivos das reformas de estrutura então preconizadas pelas correntes de esquerda, e desse modo contribuiu para a formação do clima ideológico e psicológico que cortou o passo à instalação da república sindicalista então desejada pelo Presidente João Goulart.
Inegavelmente, se nosso País não conheceu a desgraça da pulverização de sua estrutura agrária num número incontável de minifúndios de baixa produção, deve-o em muito larga medida a esse livro.

[1] Pio XII, Radiomensagem de 14 de setembro de 1952, Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII , Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. XIV, p. 313.
[2] Cfr. alocução de 7 de dezembro de 1968.
[3] Cfr. alocução de Paulo VI de 29 de junho de 1972.

[4] O assunto é tratado por Massimo Introvigne em artigo publicado pelo CESNUR http://www.cesnur.org/default.htm sobre o centenário do nascimento de Plínio Corrêa de Oliveira

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