sábado, 30 de maio de 2020

PORTUGAL: PASSADO ESPLÊNDIDO, FUTURO AINDA MAIS BELO





Há muito que desejamos tratar em "Catolicismo" um tema para o qual esperávamos ocasião. Este tema é Portugal. A visita do Presidente Café Filho à nossa antiga metrópole teria dado oportunidade a tal. Mas pareceu-nos mais interessante aguardar que o Chefe de Estado luso viesse por sua vez ao Brasil, para que nosso artigo tivesse como fundo de quadro, não só a manifestação dos sentimentos de Portugal para conosco, como também os do Brasil para com Portugal. Com efeito, desejaríamos abordar o assunto Portugal sob um ângulo que não fosse nem exclusivamente histórico, nem meramente afetivo ou cultural. Nosso tema seria outro. De que alcance prático são para o presente e o futuro os vínculos e laços que unem as duas pátrias? Ora, para responder a esta pergunta, seria preciso que os sentimentos de ambos os povos se manifestassem, a fim de se ver em que medida seria viva neles a consciência de suas afinidades
Apagaram-se os últimos fogos das festas com que o Brasil acolheu o General Craveiro Lopes. Temos prazer em registrar que o Itamarati, fiel às suas melhores tradições, conduziu com distinção e dignidade todo o curso da visita presidencial. E que a acolhida dos brasileiros correspondeu às melhores expectativas. Está patente que de um e outro lado do oceano a comunidade de língua luso-brasileira tem consciência de todos os liames que a conservam coesa, e os preza no mais alto grau. Mas... e daí? É a esta pergunta que, à maneira de epílogo de tantas festas, gostaríamos de responder.
A Igreja Católica constitui um imenso firmamento espiritual, todo um riquíssimo e diferenciadíssimo universo de almas, em que as variedades mais profundas se combinam harmoniosamente para compor uma unidade possante e majestosa.
Quem quisesse ver a Igreja compendiada ou espelhada cabalmente no coração de qualquer de seus Santos, Doutores ou Pontífices, erraria. Ela não se deixa conter em nenhuma das múltiplas manifestações de sua fecundidade sobrenatural. Seu espírito não está só no recolhimento dos anacoretas, na sabedoria dos Doutores, na paciência dos mártires, na pureza das virgens, na intrepidez dos cruzados, no ardor dos missionários, ou na suavidade dos que se dedicam aos enfermos. Ele é tudo isto ao mesmo tempo. É só com estas e outras justaposições que se pode ter noção da admirável perfeição da Religião Católica.
Tempo houve em que, a par da sociedade espiritual que é a Igreja de Deus, havia uma sociedade temporal de Príncipes e povos cristãos - conseqüência política lógica e admirável da realidade sobrenatural que é o Corpo Místico de Cristo - à qual se chamou Cristandade.
Dessa vasta e gloriosa família de nações marcadas na fronte pela Cruz do Salvador, também não se pode ter uma visão completa considerando apenas um dos povos que a integraram. Das margens risonhas do Tejo até os últimos confins da grande planície polonesa, da bela Nápoles inundada de luz até as províncias setentrionais da gélida Escandinávia ou da nobre e brumosa Escócia, se estendiam nações profundamente diversas entre si, ufanas dessas diversidades, mas ao mesmo tempo fortemente imbuídas da superior unidade com que todas se encontravam em Jesus Cristo. Uma unidade que era acima de tudo religiosa e mística, e decorria do convívio de todas elas no grêmio da Igreja. Mas uma unidade, também, cultural e psicológica, uma unidade humana - no sentido de uma humanidade batizada - que fazia com que a Europa não fosse inteiramente o que era, se lhe faltasse qualquer dos elementos que a integravam: o francês, cintilante de graça e de coragem, lúcido, gentil e vivo; o alemão, de corpo hercúleo e alma nobre, possante no pensar e no agir, terrível na guerra e cândido e afetivo no convívio da paz; o inglês, síntese original, atraente e algum tanto enigmática das qualidades do povo francês e do alemão, predestinado a povoar de Santos o Céu e estender sua glória pelos rincões mais longínquos da terra; o italiano, cujo gênio como que excessivamente fecundo se multiplicava em incontáveis variantes que faziam de cada pequeno Estado um sol de inteligência e cultura com características próprias; a gente ibérica, cavalheiresca e supremamente grandiosa, borbulhante de fé, calcando constantemente aos pés as riquezas da terra, com os olhos postos apenas no heroísmo, na morte e no reino de glória com Cristo. Enfim, poderíamos multiplicar os exemplos. Mas estes bastam para que se compreenda que a Cristandade, semelhante em tudo à Igreja, sua Mãe, tinha uma glória que lhe vinha toda "ab intus" ( Sl. 44, 14 ), isto é, do espírito nacional dos povos que a compunham, esplendidamente iluminado pela fé. E que ela se adornava com uma cultura e uma civilização que eram como um magnífico "manto de cores variegadas" ( Sl. 44, 10 ).
Mencionamos juntos Portugal e Espanha, nessa enumeração. Foi de propósito. Não se deve falar destas duas nações nos mesmos termos com que se fala de Alemanha e da França, por exemplo. Mas antes como se falaria da Alemanha e da Áustria, ou da Suécia e da Noruega. Os traços fundamentais de ambas são comuns. Diferenciam-nas pormenores numerosos, interessantes, fecundos, mas enfim pormenores.
Quais estes traços comuns? Vemo-los principalmente no idealismo. Ambos os povos mostraram ao mundo assombrado - quer nas guerras contra o mouro, quer na expansão marítima, quer na colonização de três continentes, quer ainda no florescimento literário e artístico de seus séculos de apogeu - que sabem e podem vencer com extraordinário brilho nas lutas e nas fainas da vida terrena. Para isto lhes sobra força, denodo, inteligência e realismo. Insistimos no realismo, porque esta foi uma qualidade que com freqüência se lhes quis negar. Sustentar contra os mouros uma guerra vitoriosa de oito séculos, não é coisa que se consiga quando se tem a alma sonhadora e pusilânime de um idealista oco. Pois o tempo, as adversidades, o cansaço desgastam todos os sonhos. As guerras não se ganham olhando para as nuvens, nem combatendo apenas em campo raso, mas também fazendo emboscadas e descobrindo as do adversário, e mantendo no tabuleiro incerto da política uma ação contínua, muitas vezes tão importante quanto a do momento da batalha. Ora, tudo isto supõe um raro senso da realidade. O mesmo se poderia dizer da epopéia das navegações, das lutas ásperas e terríveis da colonização, e das dificuldades extenuantes, e tantas vezes prosaicas, inseparáveis de toda produção intelectual. Mas a despeito de tudo isto, a gente ibérica tem um indisfarçável desprezo pelo que é terreno. Ou, em termos mais exatos, tem um senso admirável da autenticidade e da preeminência de tudo quanto é extraterreno, espiritual, imortal.
Disto, dá uma prova excelente a atitude de portugueses e espanhóis ante as riquezas que lhes passaram pelas mãos nos tempos de prosperidade. Com elas construíram vivendas esplêndidas, palácios suntuosos, mas sobretudo igrejas e conventos. Com elas desenvolveram admiravelmente a arte, e tudo quanto diz respeito ao decoro e à nobreza da vida. Mas ornaram mais magnificamente as imagens dos seus Santos do que a si próprios. Ao contrário do que tantas vezes tem acontecido a outras nações na história, a quem as riquezas amolecem e as glórias tornam fátuas, Portugal e Espanha não conheceram os excessos degradantes a que se entregam tão facilmente os ricos e os poderosos. E por isto, quando a glória do poder político e as larguezas os abandonaram, a atitude profunda desses povos em face do acontecimento, se teve um tanto de indolência, também exprimiu bem claro a convicção de que não foi para estas coisas que Deus fez o homem, nem consiste nelas a dignidade e a alegria da vida.
Falamos de indolência. Tocamos assim num ponto delicado. É a questão dos séculos de decadência. Em que medida essa decadência reflete um declínio na têmpera dos homens, de sua piedade, de seus costumes? Em que medida exprime, de outro lado, a extenuação de povos que se tinham excedido a si próprios na realização de obras que assombraram o universo, e depois recompunham suas forças num suave letargo, à espera de outras oportunidades para outros feitos? Em que medida, por fim, essa decadência foi das equipes dirigentes, e em que medida foi dos povos? Seria preciso todo um artigo para expor nossas impressões sobre o assunto. E, para começar, haveria a distinguir entre decadência e decadência, pois poucos vocábulos são mais traiçoeiros e cheios de conformes do que este. Muito resumidamente, podemos dizer que a passagem da monarquia orgânica medieval para o absolutismo foi, a nosso ver, um fenômeno de decadência do suco vital de todos os povos europeus, fenômeno este provocado em última análise por causas religiosas e morais profundíssimas. A França e a Inglaterra tiveram nesse período, como também a Prússia, equipes dirigentes de grande valor. De onde os Estados continuaram a se desenvolver. Espanha e Portugal, como também de algum modo a Áustria, não tiveram essas equipes, e o Estado nesses países começou a fenecer. Assim, em fins do século XVIII a desproporção entre as duas monarquias ibéricas e a Inglaterra e a Prússia já é flagrante. Entretanto, tratava-se de uma decadência de povos? Se decadência havia, era menor do que a de quase todo o resto da Europa. Pois não se pode dizer que está em decadência quem recebe Napoleão como ele foi recebido na Península apesar da pavorosa defecção de tantos elementos dirigentes.
Assim, no complexo de fatos espirituais, morais, sociais, políticos e econômicos que caracterizam os séculos ditos de decadência, se discerne um real declínio. Este declínio se exprime por sintomas excessivos em sua aparência, que facilmente nos levariam a subestimar as forças latentes, admiravelmente vivas, que ficaram dormindo nos corações ibéricos, despertadas apenas de quando em quando por algum sobressalto magnífico, e reservadas pela Providência para alguma nova missão histórica a cumprir.
Em linhas muito rápidas, chegamos quase até nossos dias. Esse traço de elevação de espírito, de justa estima do que é realmente superior, e de rejeição de toda concepção exclusiva ou prevalentemente utilitária da vida, Portugal e Espanha o transmitiram às nações que plasmaram na América. Também nós progredimos, também nós organizamos decorosamente nossa existência. Mas como não pusemos nas riquezas todo o nosso coração, nosso progresso foi menos rápido do que o de outros povos e nada teve de inebriante, sensacional, vertiginoso. Somos decadentes? Ninguém o afirma. Somos atrasados? Todos o dizem. Mas este atraso - daqui a pouco o mostraremos - é para nós uma bênção, e nos abre de par em par as portas do futuro.
Essa justa hierarquia de valores, pela qual o espiritual se antepõe ao material, o eterno ao passageiro, o absoluto ao relativo, o celeste ao terrestre, conduz antes de tudo ao heroísmo. Em seguida, a um feitio de espírito em que a teologia é mais do que a filosofia, e esta por sua vez dirige todas as ciências. Este feitio mental gera um feitio de vida em que se procura mais a nobreza do que o luxo, os prazeres sóbrios do comércio dos espíritos e da vida de família, do que os regalos de um conforto escancaradamente físico. No modo de ver as vicissitudes da vida, há uma atração para considerar de frente a dor, a luta, a própria morte, como valores dos mais grandiosos que Deus nos tenha dado para fazer frutificar neste vale de lágrimas para a eternidade. Daí uma naturalidade ante o perigo, uma força na adversidade, uma serenidade no sofrimento, que desnorteia outros povos. Há por exemplo certo otimismo nórdico falso, que procura fechar os olhos à dor e à morte, fazendo silêncio sobre elas, e chega a pintar os cadáveres como se estivessem vivos, para dar até a sepultura a idéia de que a morte não veio... De uma tal trivialidade está longe, bem longe, qualquer coração ibérico ou ibero-americano.
Aí está a razão secreta da fundamental nobreza de alma e do heroísmo profundo da gente ibérica de aquém e além-Oceano. Mas que tonalidades especiais tomam esses predicados, em solo português?
A história espanhola se afigura um desses rios que correm cristalinos e borbulhantes, num leito acidentado, onde as águas se jogam por despenhadeiros e abismos trágicos, brilhando à luz do sol com toda a alvura das grandes cataratas. Pelo contrário, a história lusa parece um curso de águas profundo, impetuoso, mas sempre sereno, que vai em linha reta diante de si mesmo, destruindo os obstáculos, com uma força invencível, mas conservando uma placidez, uma doçura, uma nobre simplicidade, até mesmo quando em sua superfície se espelham os mais belos aspectos do céu e da terra. O espanhol está sempre heroicamente mobilizado para a luta. O português não dá esta impressão. Ele é risonho, singelo, meigo. O espanhol está sempre pronto para enfrentar a tragédia. Dir-se-ia que os lados sublimes da existência não impressionam o português, todo afeito à consideração das doçuras de sua vida de família, na suavidade de seus campos, no encanto de suas vilas, na formosura de suas cidades. Mas se um grande ideal solicita a dedicação da alma portuguesa, se uma grave ofensa lhe faz ferver o senso da dignidade, o luso se levanta como um herói. E luta com toda a rijeza indomável da fibra ibérica, enfrenta o perigo, calca aos pés o risco, e aceita a morte com uma sobranceria que a ninguém foi dado exceder.
Este habitual estado de alma do português, afetivo, sereno, despretensioso, se colore de uma ligeira tinta de melancolia. Uma melancolia muito suave, que tem todas as luzes da resignação cristã, mas uma melancolia que é a nosso ver, o cunho próprio de Portugal. É a melancolia que lhe vem de saber que na terra a alegria perfeita é impossível e estamos nas agruras do exílio. A melancolia de que lhe nasce a poesia, a compaixão e a bondade. A melancolia que dele faz algo de incomensuravelmente superior ao "play-boy" contemporâneo.
Melancolia lusa, doçura lusa, encanto luso... tanto faria dizer-se melancolia brasileira, doçura brasileira, encanto brasileiro. Pois são precisamente estes traços, herdados de nossos maiores portugueses, que constituem, com variantes importantes em nosso solo pátrio, os elementos típicos da alma brasileira.
Não é este o momento de falarmos do brasileiro, nem de o descrevermos com pormenores. Neste país, sobre o qual se despejaram, muitas vezes sem discernimento nem critério, as riquezas étnicas e culturais de correntes imigratórias provenientes do mundo inteiro, é entretanto preciso lembrar alto e bom som que a nota dominante, largamente dominante, foi, é e terá de ser sempre a tradição lusa.
Mais do que ninguém "Catolicismo" tem acentuado o papel da França na vida de alma das nações cristãs. Mais do que ninguém, temos elogiado nestas colunas as grandezas de outros povos. Não somos exclusivistas, e compreendemos bem que temos de conservar o espírito aberto para todas as boas influências culturais. Por isto mesmo, achamos que a contribuição do italiano, do espanhol, do alemão, do africano ou do asiático é susceptível de ser assimilada com vantagem na vida cultural brasileira. Mas essa assimilação tem de ser feita em base de lusitanidade. Pois um Brasil que renunciasse ao que tem de herança lusa deixaria de ser Brasil.
Depois deste longo itinerário de pensamentos e de evocações históricas, chegamos aos tempos atuais. Abram-se as páginas dos jornais. Pouco se fala nelas do mundo ibero-americano. O centro da cena é ocupado por outros povos. Mas o que fazem? Preparam-se para a maior chacina da história. Passam pelas contorções das crises mais horripilantes. E para evitar a chacina e a crise, em cada um deles importantes partidos políticos nos acenam com uma socialização total da vida, que seria pior do que os estragos da bomba de hidrogênio.
Todo edifício que se construir com base na cobiça dos prazeres e dos bens da terra tem de arruinar-se por esta forma. O senso do ideal, do espiritual, do celeste, apagou-se em tantos e tantos povos quase completamente! Sua torre de Babel, que se erguera orgulhosamente ao lado da velha mansão paterna do mundo ibérico, deita chamas por todas as janelas, estremece em todos os alicerces, e de dentro dela partem vozes de discórdia e gritos de dor. Não temos esta riqueza, mas também não temos esta maldição. Construímos menos, e por isto acumulamos menos erros nas áreas de cultura e de terra que nos pertencem. E, em toda esta tragédia universal, o mundo ibérico, no qual Portugal e Brasil ocupam um lugar de importância inexcedida, conserva para o dia de amanhã riquezas imensas, de alma, de cultura, de bens materiais, que ainda estão intocados. Em uma palavra, nosso é o futuro.
Depois do ouro e do incenso, a mirra.
Quer tudo isto dizer que não cometemos, também nós, graves pecados? Infelizmente, não podemos pretender que tenhamos conservado intacto nosso patrimônio espiritual, e que seja perfeito tudo quanto fizemos no campo material.
Muitas vezes, deslumbrados pelo crescimento da Babel moderna, abrimos nossas janelas para o seu lado, deixando que nossas almas se envenenassem pelas harmonias e pelos perfumes que de lá nos vinham. Adaptamos nossa velha mansão, em muitos e muitos pontos, segundo as modas de Babel. Vestimos os trajes de seus habitantes, e nos nutrimos de suas iguarias. Os que entre nós eram os admiradores desta Babel, com demasiada freqüência empunharam o leme, e indolentemente os deixamos fazer. Há em nós mesmos todo um trabalho de restauração a cumprir.
Mas este trabalho, a Providência o deseja e o abençoará. Não tem outro sentido o fato de que a Mãe de Deus tenha querido falar de Fátima ao mundo inteiro. Sua mensagem se dirige a todos os homens. Mas é bem de ver que seu objeto imediato é o povo português, e os que a Portugal são mais próximos pelo sangue e pela história.
Nós, povos ibéricos e ibero-americanos, sofremos, em medida não pequena, do mal de toda a humanidade hodierna. É esta uma verdade que precisa ser proclamada inteiramente, e com toda a coragem. Não nos libertaremos deste mal, nem recuperaremos as virtudes ancestrais, sem um profundo revigoramento religioso. Com efeito, assim como nenhum homem se pode dizer virtuoso no sentido real da palavra sem a graça de Deus, nenhum povo se pode dizer verdadeiramente virtuoso nem verdadeiramente grande sem a graça. Não é nossa natureza a fonte de nossa grandeza moral, senão na medida em que a graça eleva e santifica nossa alma.
Em conseqüência, para que a missão histórica que nos aguarda seja realmente cumprida, é mister uma urgente e completa reação religiosa. A grandeza de Portugal, do Brasil, da Espanha e da América espanhola é uma grandeza cristã. E para que a alcancemos, é necessário que atendamos plenamente à mensagem de Fátima.
Encerrando este artigo, temos um pensamento afetuoso que de Portugal se estende para todas as suas províncias da Ásia e da África, que vivem da mesma tradição, para a mesma missão. Possuem todas elas, em grau maior ou menor, condicionadas por influências locais diversas, as características do mundo luso. Essas características vivem nada menos que em sessenta milhões de brasileiros e em vinte milhões de portugueses da metrópole, da África e da Ásia. Imponente total em que o contributo dos mais variados povos e das mais diversas culturas não rompe uma homogeneidade que o tempo parece acentuar e consolidar a cada instante.
Como se vê, formamos um vasto potencial de fé, cultura e riqueza, que tem por missão fazer sobreviver na terra o ideal de uma civilização voltada para o Céu.
A consciência deste fato, a esperança de que neste mundo em transformação esta comunidade brilhe em formas novas, eis o que a visita dos dois Presidentes veio revigorar, em meio às manifestações de júbilo dos povos irmãos.

(Plínio Corrêa de Oliveira - "Catolicismo" Nº 80 - Agosto de 1957)


sexta-feira, 29 de maio de 2020

POVOS HISPANO-AMERICANOS: BONDADE E COMBATIVIDADE





Ao considerar o que discorremos a respeito do Brasil em anterior exposição, alguém poderia levantar a seguinte pergunta: “Doutor Plínio, pelo modo de descrever o Brasil, o senhor indica uma série de características que também existem nos povos ibero-americanos, embora de forma mais tênue. O senhor parece menosprezá-los... Qual o papel deles?

Duas missões necessárias e complementares
Não me agrada velar os problemas. Por isso apresentei a questão com inteira clareza, e passarei a respondê-la.
Imaginem um magnífico pomar. Para conservá-lo e fazer com que suas árvores produzam saborosos e abundantes frutos, é necessário protegê-lo por uma cerca monumental. Assim, tudo quanto existe, por mais que seja dadivoso, comunicativo, precisa de defesa. Porque se perder a identidade consigo mesmo, a própria tarefa que exerce desaparece.
Portanto, é fundamental que haja, ao lado da generosidade, o vigor de quem a defende. Analogamente, ao lado do princípio de conciliação e harmonia próprio ao brasileiro, deve existir o da resistência, proteção, polêmica, representado pelas nações hispano-americanas as quais completam assim a missão do nosso continente. Estas, então, em nível discreto, contribuem para que a grande unidade latino-americana possa influenciar poderosamente o mundo, pela bondade e pela combatividade.
De nenhuma maneira será o domínio pela força, mas sim a amizade banhada pelo azeite. Claro está que o Brasil tem combatividade e a América hispânica, doçura; porém, cada nação ou grupo étnico conserva sua tônica.
Com base nessa visão de conjunto, percebe-se que esse imenso continente vai entrando para a História.
A esse respeito tenho uma peculiar impressão, digamos uma hipótese e não certeza: por mais que a América Latina tenha recebido imigração de outros povos, ela é fundamentalmente constituída por portugueses e espanhóis. Ora, com a Espanha e Portugal aconteceu algo deveras curioso.

Excluídos do banquete do século XIX
Para o festim da civilização promovido no século XIX e grande parte do poluído século XX, todos os povos da Europa foram convidados, exceto duas nações, para as quais restaram apenas as migalhas do banquete: Espanha e Portugal considerados meio-termo entre a América Latina e a Europa.
Tem-se a impressão de que o grande progresso estacou nos Pirineus e depois penetrou naqueles dois países se arrastando, cresceu e dominou pouco. Porque a Revolução – tendo zombado dos Alpes e se encarapitado até no Mont-Blanc – sentiu entretanto que se transpusesse os Pirineus e desse importância a Portugal e Espanha, estes, pelos restos de sua fidelidade à igreja, entrariam na festa com algumas cotas de Contra-Revolução, as quais lhe atrapalhariam. Então foram postos de castigo num quarto escuro enquanto a Revolução dançava ciranda com os outros povos europeus.
Creio que esta fidelidade terá seu prêmio. E não poderá consistir apenas no florescimento da América Ibérica, pois quando esta atingir seu apogeu, Espanha e Portugal se incorporarão a ela, formando um só todo. Não serão, portanto, como vitrines de museu, mas unidades vivas, cheias de tradição e glorificadas porque não comeram ou pouco se serviram do banquete da Revolução. E por terem sido desprezadas, serão recebidas com amor na mesa dos filhos de Nossa Senhora.

A Santa Igreja adornada pela riqueza de cada povo
Uma das glórias desse conjunto acima descrito é ser o mais parecido possível com a Igreja. Esta foi entrando, penetrando nas mais variadas das nações e se “apropriou” de tudo quanto era aproveitável com uma naturalidade assombrosa.
Por exemplo, a mitra e o báculo usados pelos bispos. Não se imagina a formidável ginástica histórica que tais símbolos representam. A mitra era um chapéu outrora utilizado pelos homens da Síria. A igreja, através do “jeitinho”, o adaptou e o aperfeiçoou para ser o ornato da cabeça desses prelados.
Quanto ao báculo, a Igreja se inspirou no cajado de que se vale o pastor de ovelhas para elaborar esse distintivo do bispo, pastor das almas. E é toda a civilização pastoril dos tempos bíblicos que revive nas mãos dos incontáveis guias do rebanho de Deus espalhado pelas vastidões do mundo.
E assim a Igreja foi escolhendo as coisas com naturalidade e se adornando como senhora da alma de todos os povos, imergindo no que eles têm de mais interno. Tornando-se católica, cada nação permanece ela própria, e a Igreja realiza o papel de um azeite sagrado, abençoado, que se espraia pelos povos.

O inimaginável esplendor do Reino de Maria
Por fim, um ponto interessante.
Haverá missão mais parecida com a obra da Igreja no campo espiritual, do que a do Brasil? E povo mais feito para o pleno desabrochar da Esposa de Cristo do que o brasileiro?
A Igreja pacificou contendas, mas também lutou contra erros, teve de dizer “não”, e a epopéia da cavalaria marcou as páginas da sua história. Compreende-se, então, ser preciso o sangue espanhol para dar ao povo brasileiro um complemento sem o qual nem neste País nem na América Ibérica o todo estaria harmônico.
Tudo isso é magnífico, mas seria como a calçada que conduz a uma catedral, pois se refere ao aspecto temporal. O suco é a graça, que defluirá da Sagrada Eucaristia, através de Nossa Senhora, para os fiéis que rezarem seriamente. E Deus agirá de forma especial em cada um, constituindo avenidas novas de santidade, pelas quais há de trilhar gloriosamente a Igreja.
O piso externo do templo foi possível prever. Como será seu interior?
Se imaginássemos uma calçada feita de safiras e rubis poderíamos formar uma idéia do esplendor da catedral. Passeamos pelo pavimento. Peçamos a Nossa Senhora que nos conserve e desenvolva para sermos construtores da catedral. E que ainda nesta Terra possamos louvar o templo ara cuja edificação tivemos a imerecida honra de sermos instrumentos. Será o Reino de Maria!

(Plínio Corrêa de Oliveira - Extraído da revista “Dr. Plínio”, nº 89, agosto de 2005, pp. 18/21).



quinta-feira, 28 de maio de 2020

PRINCÍPIO DE CONTRADIÇÃO, DESCONHECIDO PELO POVO BRASILEIRO








“APPARUIT BENIGNAS ET HUMANITAS SALVATORIS NOSTRI DEI”

Há verdades que aos homens impressionam como o ouro. Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o incenso.
Quanto à mirra, é mais modesta. A raiz etimológica dessa palavra se relaciona com o vocábulo "mur", que em árabe quer dizer "amargo". Os especialistas descrevem a mirra como uma resina gomosa, em forma de lágrima, dotada de gosto amargo, aromática, vermelha, semitransparente, frágil e brilhante. Seu odor é agradável, mas um pouco penetrante. Como se vê, tem ela a beleza discreta, austera, forte, do sangue. E seu perfume é o da disciplina e da sobriedade.
Diríamos que no campo ideológico a grande verdade representada pela mirra é o princípio de contradição, pelo qual o sim é sim e o não é não Todas as outras são ouro e incenso, mas só valem se apreciadas num ambiente perfumado pela mirra. E é desta mirra que larga, muito, muito largamente necessita o Brasil.
Não se confunda o princípio de contradição, que é quinta-essência da lógica, da coerência, da objetividade, com o espírito de contradição. Este é um vício que resulta do prazer jactancioso de contrariar o próximo: é volúvel, e faz do sim, não e do não sim, conforme convenha à posição arbitrariamente tomada de momento.
Somos um povo que tem o defeito de suas qualidades. Propensos habitualmente a tudo que é bom, infelizmente não somos ao mesmo tempo infensos a tudo quanto é mau. Em geral, os outros povos, quando amam uma verdade, odeiam o erro que lhe é contrário. E reciprocamente, quando amam o erro detestam a verdade que a ele se contrapõe. Em última análise, é pelo jogo desse princípio que se explicam as grandes fidelidades, como as grandes apostasias. Na psicologia do brasileiro, o ódio explícito e declarado à verdade e ao bem é raro. Neste sentido somos um dos melhores povos da terra. Mas quando se trata, para nós, de deduzir do amor à verdade e ao bem uma atitude militante contra o erro e o mal, o caso é outro. E no fundo isto se dá porque o princípio de contradição é antipático à pacateza brasileira. Uma expressão muito conhecida exprime em linguagem popular o princípio de contradição: "pão, pão; queijo, queijo". Mas em inúmeros casos confundimos pão com queijo.
Esta tendência de espírito se reflete em muitos aspectos da nossa mentalidade. O Brasil é uma República. Entretanto, em nenhum lugar o monarca destronado e a monarquia deixaram mais saudades. Separamo-nos de Portugal numa atmosfera borrascosa. Entretanto, no tratado em que a antiga Metrópole reconhecia nossa independência asseguramos a D. João VI até o fim de seus dias o título de Imperador do Brasil. O quadro corrente, e por assim dizer oficial do Marechal Deodoro, proclamador da República, apresenta-o com o peito constelado com as insígnias do Império que derrubou. Expulsamos em 1930 o Presidente Washington Luiz. Restaurado o regime constitucional regressou ele ao Brasil num ambiente de respeito e de simpatia tão gerais, que com exceção de D. Pedro II nenhum homem público reuniu em torno de si unanimidade maior. Porque então foi destituído? Dessas pitorescas contradições, poder-se-ia fazer uma longa lista. E o assunto Getúlio Vargas - ainda quente demais para ser abordado num artigo desta índole - forneceria a este respeito farta documentação.
Talvez, à vista destas reflexões, algum leitor sorria, como quem está em presença de um amável desfeito. Pois não deixa de ter algo de simpático e tranqüilizador um tal cúmulo de bonomia.
Mas estudemos este assunto no terreno da moral. Trata-se de analisar esta tendência psicológica, para ver se é conforme à Lei de Deus. E não é com meros sorrisos, mas com muita seriedade que se resolvem os problemas morais.
Aquele que veio ao mundo para pregar as Bem-aventuranças, nos deixou por preceito que fossemos fiéis ao princípio de contradição: "seja vossa linguagem sim, sim; não, não" ( Mt. 5, 37 ). E se tal deve ser nossa linguagem, tal deve ser nosso pensamento. Em matéria de moral, mais do que em qualquer outra, todo excesso é um mal, ainda que seja de qualidades tão simpáticas quanto a bonomia, e a suavidade de trato. E um mal que conforme o caso pode tornar-se muito grave.
Exemplifiquemos. No terreno religioso, não é bem verdade que o amortecimento do princípio de contradição nos conduz com muita freqüência a atitudes lamentáveis? Quantos são os católicos que se julgam no direito de discordar da Igreja em algum ou em muitos pontos? Com isto, embora se ufanem de católicos, pecam contra a fé. Porque? Simplesmente porque imaginam possível um "tertium genus" entre ser católico e não ser. O mesmo se diga da naturalidade com que se admite entre nós uma categoria de católicos "não praticantes"! Claro que os há no mundo inteiro. Mas parece-nos que em nenhum país eles têm tão pouca consciência do que seu estado apresenta de cacofonico, de antitético, em uma palavra, de contraditório. Por fim, mais um exemplo. Quantas famílias temos, modelarmente constituídas! Porque progridem tanto as modas imorais? É que essas famílias, que prezam tanto a virtude, são por vezes pouco enérgicas no combate ao vício. Em todos estes casos o que nos falta? Viveza no princípio de contradição lapidarmente definido por Nosso Senhor, quando mostrou a incompatibilidade entre o "sim" e o "não".
Este artigo se vai alongando. Não resisto entretanto ao desejo de indicar outro exemplo. Todos se queixam da anemia de nossa vida partidária, de nossa atonia em matéria de ideologia política, e do predomínio das questões pessoais em nossa vida pública. Uma das causas deste fato está na carência do princípio de contradição. Pois se em face de uma idéia que temos por certa não nos arregimentamos para a defender resolutamente contra as que lhe são opostas, como pode haver partidos de verdadeiro conteúdo ideológico?
O amortecimento do princípio de contradição gera o gosto, a mania das soluções intermediárias, eu quase diria a servidão às soluções intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do meio, o que não é carne nem peixe: é no que se cifra para muita gente toda a sabedoria. Ora, se rejeitar por princípio as soluções intermediárias é um erro, erro também é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a Sabedoria as condena formalmente: "Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno, nem frio nem quente, começarei a vomitar-te de minha boca" ( Apoc. 3,15 ).
A pessoa viciada nas soluções intermediárias é a vitima ideal de todos os velhacos. Pois a habilidade do velhaco consiste precisamente em fazer com que o ingênuo aceite, com algum disfarce, aquilo que, a nu e sem maquilagem, ele repudiaria. Os hereges são useiros e vezeiros em velhacarias desta natureza. Rejeitado o pelagianismo, obtiveram eles a adesão de inúmeros ingênuos por meio do semi-pelagianismo. Condenado o arianismo, puseram eles em circulação o semi-arianismo. Fulminado o protestantismo, inventaram o baianismo e o jansenismo. Condenados o comunismo e o socialismo fabricam um "socialismo mitigado", que em última análise não é senão comunismo velado. E assim por diante.
Que essa tática é particularmente desenvolvida em nosso tempo, nada mais notório. Estamos no século da 5ª coluna. E que uma das formas mais hábeis de solapar os meios católicos é esta, as mais altas Autoridades Eclesiásticas de nossos dias já o disseram. Disse-o Sua Eminência o Cardeal Saliège, Arcebispo de Toulouse, quando afirmou em declaração mundialmente famosa, que tudo se passa como se houvesse uma ação articulada para "preparar no seio do Catolicismo um movimento de acolhida ao comunismo" ( cf. CATOLICISMO, nº 37, de janeiro de 1954, pág. 8 ).
E assim nada mais perigoso para o Brasil, nesta hora, do que o amortecimento do princípio de contradição. E nada mais necessário do que trabalhar para que, em nosso país, este princípio tome mais força, mais cor, mais eficiência em toda a vida mental.
Não sei se um leitor não brasileiro compreenderá bem toda esta problemática. Duvido bastante. Mas para um brasileiro isto é bem mais inteligível. E é inteligível sobretudo para Vós, Senhor Jesus, que, deitado num berço rústico, sondais entretanto até o fundo as almas e os corações. Para Vós que, sendo a Sabedoria incriada, e tendo nascido d'Aquela que é a Sede da Sabedoria, conheceis totalmente a índole de cada povo, a todos amais, a todos quereis santificar. Para Vós que desde toda a eternidade tão particularmente amastes o povo brasileiro, e o predestinastes a uma grandeza que encherá a história de amanhã.
Nossa obra é principalmente de mirra. Jornal feito para católicos militantes e praticantes, queremos que eles Vos amem sem mescla de qualquer outro amor. Que só sirvam a um Senhor. Que sejam cada qual em seu coração uma cidade sem divisão, contra a qual nada pode o Inimigo. Que não olhem para trás, ao empunhar o arado, e que no afã de semear não se esqueçam de arrancar a erva daninha.
De certo modo, os católicos militantes e praticantes são, também eles, sal da terra e luz do mundo. Em parte depende da cooperação deles que o mundo não se corrompa, nem caia nas trevas. Queremos que eles sejam um sal muito e muito salgado, uma luz posta no mais alto da montanha, e muito brilhante. Neste sentido, Senhor, é nossa cooperação. Este o presente de Natal que acumulamos durante o ano inteiro, para Vos oferecer. Outros Vos darão o incenso de suas inúmeras obras, capazes de um bem inapreciável. Nós nos inserimos nessa grande obra queimando em abundância, no solo bem amado do Brasil, a mirra austera mas odorífera do "sim, sim; não, não".
Que Maria Santíssima aceite essa mirra em suas mãos indizivelmente santas e Vo-las ofereça. Ela terá para Vós então o encanto do ouro, e do incenso, com alguma coisa a mais: e isto lhe virá do suor, do sangue de alma, e das lágrimas de um apostolado que tem suas horas muito amargas... Mas na Cruz está a luz. E neste amargor o melhor da alegria e da beleza de nosso apostolado.

(Plínio Corrêa de Oliveira -  “Catolicismo” Nº 60 - Dezembro de 1955)




quarta-feira, 27 de maio de 2020

SENSO DE JUSTIÇA AOS TRÊS ANOS DE IDADE






Segundo Jean Piaget, a criança consegue formar o seu “juízo moral” até os 12 anos de idade. Aquele educador chama de “juízo moral” ao conhecimento que o homem adquire das normas, das regras sociais, e sua aplicação nos atos cotidianos de sua vida. Os passos são, a) a “anomia”, que é a fase em que a criança é completamente conduzida pelos outros (mais ou menos até os 3 anos); b) a hegemonia, quando ele aprende a se conduzir conforme os demais, mas dando algo de si; c) a autonomia,quando a criança, por si mesmo, pratica os atos morais que considera corretos sem necessidade de ser dirigida para tal fim.[1]
Em qualquer criança, este é o caminho normal para se atingir a maturidade, ou o juízo moral conforme o define tal estudo. No entanto, por fatores superiores, como a graça divina, algumas crianças podem encurtar e até suprimir de vez estes 3 passos, como ocorreu, por exemplo, com São João Batista, que já nasceu com o juízo moral formado. Podemos acreditar que Dr,. Plínio Corrêa de Oliveira  pode ter tido a graça de ter sido pelo menos abreviado nele tais passos e ter adquirido o completo juízo moral em idade inferior ao comum das pessoas. O senso de justiça, por exemplo, já o tinha aos 3 anos de idade, conforme o relato a seguir extraído de suas Notas Autobiográficas:
  
“Aos dois ou três anos, eu já possuía certas noções de direito, de elevação e de sublimidade. São graças que uma criança pode receber muito prematuramente, e foi assim que a intercessão de Nossa Senhora me favoreceu. Por exemplo, eu tinha um senso de justiça muito definido: embora fosse de um gênio muito afetivo, violada a justiça, eu entrava em luta.
Nesse sentido, mamãe costumava contar um fato ocorrido comigo em São Vicente, pequena cidade do litoral paulista. É um lugar de muito remanso, com mar grandioso e tranquilo. E as famílias da “São Paulinho” daquele tempo, quando queriam descansar, tomavam lugar em alguma boa pensão, pois ali não havia hotéis, e passavam uma temporada.
Eu tive um enorme retardamento no andar. Foi preciso fazer até tratamentos... e  comecei a caminhar aos três anos de idade, o que preocupava minha família. A medicina do tempo recomendou, com ou sem razão, alguns banhos de mar, os quais me obrigariam a fazer o esforço a que eu me recusava, e venceriam esse inconveniente. Então, no meio do ano, mamãe decidiu passar alguns dias com minha irmã e comigo junto a um bonito panorama, numa pequena pensão, muito boa e conceituada, cujo proprietário era um alemão chamado Herr Kinker.
Lá estava eu, lutando contra as ondas de manhã e espairecendo à tarde... Meu pai vinha de trem ao término de seu trabalho para passar a noite com a família, e na manhã seguinte voltava a São Paulo.
Eu via o Herr Kinker como um homem trovejante e olímpico, especialmente quando bebia... Parece que era bom dono de pensão, gostando do chope segundo a boa tradição alemã, mas passando da conta com frequência...  Às vezes se embriagava literalmente e, nessas  horas, mamãe ficava com certo medo, pois meu pai estava ausente. Mas ela se impunha muito. Eu, entretanto, não me incomodava com o alemão.
Certo dia, mamãe foi descansar depois do almoço, deixando seus dois filhos dormindo também. Mas em determinado momento ela acordou, percebeu que estava chovendo torrencialmente e viu que eu não estava na cama. Então ela se levantou imediatamente, muito preocupada, pois uma criança à beira-mar de repente faz alguma estripulia... Deixou minha irmã Rosée, foi me procurar por toda a casa e, não me encontrando, perguntou:
- Herr Kinker, onde está o Plínio?
- Não vi!
Ele parecia muito agitado... Mamãe notou que estava bêbado e pensou: “Ele fez alguma coisa com o Plínio”. Começou, então, a indagar com mais insistência e Herr Kinker deu uma resposta atravessada, pela qual ela julgou que o alemão se desagradara com alguma atitude minha. Possivelmente eu fizera com ele alguma impertinência de criança.
Depois de procurar por todo lado, mamãe foi ao terraço para olhar o jardim e encontrou-me afinal: eu estava sentado no meio do gramado sem se mover, enquanto chovia a cântaros sobre mim;  chorava sem revolta nem furor, mas obstinado e raciocinando em voz alta:
- Por que estou aqui? Esse homem não tem razão e está agindo contra o meu direito; não podia trazer-me aqui, pois não fiz mal para ninguém!
Enquanto minha mãe descansava, o Kinker havia tomado uma respeitável dose de cerveja e fez um absurdo comigo: por punição, levou-me para fora e pôs-me no meio do jardim. E eu, soluçando, dava os meus argumentos e interpelava o alemão em nome da justiça... com três anos de idade! Era o encontro da candura com a embriaguez. Eu não entrava em casa, mas continuava sentado, e dardejando um argumento no meio do choro. Entretanto,  não me queixava por estar na chuva nem pedia para falar com mamãe – o que seria natural! – mas analisava a retidão ou não-retidão daquilo que o bêbado fizera comigo e, como cheguei à conclusão de que não estava certo, queixava-me por ver um princípio violado.
Sendo o Herr Kinker pessoa de certa idade, julguei que ele presumivelmente agia por ordem de minha mãe. Portanto, deveria obedecer-lhe, mesmo se chovesse e ainda que fosse um absurdo. Para uma criança de três anos, isso reflete senso da obediência e do respeito ao principio de autoridade. Eu permanecia ali protestando sem desobedecer, mas afirmando meus direitos. Além do mais, tinha medo de que o alemão me batesse e, por isso, não fugia da chuva, mas falava alto e o enfrentava, desejando ser ouvido por ele e repetindo a queixa até mamãe vir me buscar.
Ela, naturalmente, não entrou nesses arrazoados, mas foi correndo e tirou-me da chuva, pois naquele tempo havia pânico de que as crianças se molhassem e, em consequência, ficassem resfriadas. Levou-me para o quarto, secou-me bem e colocou-me em condições convenientes. Depois me perguntou:
- Agora, meu filho, diga-me: o que você foi fazer lá e por que diz não ter praticado nada de mal?
- Esse alemão feio me pegou e deixou-me ali, dizendo que tinha obrigação de permanecer sentado no canteiro até ele me chamar. Eu respondi que não tinha feito nada para merecer isso e não estava de acordo. Mas ele mandou ficar, então fiquei. Isso é uma injustiça!
Não preciso nem dizer qual foi a inconformidade dela com a atitude do Herr Kinker. Logo que papai chegou trataram de mudar de pensão.

Mamãe  compreendia que esse “fatinho” indicava o primeiro passo na manifestação de um modo de ser e uma mentalidade”. 

(“Notas Autobiográficas – Plínio Corrêa de Oliveira – Editora Retornarei – Vol. I, págs. 73/75 e 78)





[1] Vide “O Juízo Moral na Criança” – de Jean Piaget  - Sumus Editorial, São Paulo

terça-feira, 26 de maio de 2020

O ESPÍRITO DO MUNDO E A MENTALIDADE DAS NAÇÕES








Na primeira parte de sua preparação para a Consagração, São Luís Maria Grignion de Montfort deseja que as pessoas façam uma operação de esvaziamento do espírito do mundo.
Para esvaziar-se do espírito do mundo, devemos começar por saber como ele é.
O mundo é a sociedade temporal na qual o indivíduo vive. Em todo país católico, como o Brasil, existem duas sociedades: a espiritual e a temporal. Num certo sentido, a sociedade temporal vive na espiritual e, em certo outro sentido, a espiritual vive na temporal.
Habitualmente, o mundo tem um determinado modo de pensar, de agir e de viver, que todos os seus habitantes – ou pelo menos uma boa parte deles – reputa verdadeiro, exato, conforme a suas tradições, a seus costumes, a seu modo de ser, a sua cultura, etc., e querem conservá-lo.
O mundo considerado assim, ou é definidamente católico, e neste caso é um colaborador da Igreja, ou não é inteiramente católico mas, em parte ou no todo de sua mentalidade, é considerado de um modo oposto ao que a Igreja ensina e, neste segundo caso, é adversário da Igreja.
Isso supõe o princípio de que cada sociedade temporal tem uma mentalidade, ou seja, um conjunto de princípios, de modos de viver e de sentir, uma cultura, uns costumes, uma tradição, esperanças, preferências, etc., e esse conjunto representa as aspirações de todos os seus integrantes.
O indivíduo que tem a mentalidade do mundo vive muito bem nesse ambiente no qual ele tem o consenso geral, pois ele está de acordo com esse consenso. Acontece que se esse consenso não é inteiramente católico, o homem que vive nesse ambiente sofre uma solicitação contínua para deixar a mentalidade da Igreja e tomar a do mundo. E, nesse sentido, o mundo, então, é o grande inimigo da alma.
Nesse caso, a Igreja adverte seus filhos: ”Não tomem a mentalidade do mundo, que é má!”

Ter uma idéia bem clara do espírito do mundo
Nossa defesa contra o espírito do mundo, então, em de ser termos uma idéia bem clara do que é esse espírito, como ele se estrutura, qual é a sua força e como se pode produzir a sua derrota.
Alguém dirá: “Isso é impossível”.
Eu lhe perguntaria: “Você examinou? Você tem sequer idéia de qual é o adversário que estamos combatendo? Como é que você diz ser impossível uma coisa que você não conhece?”
É claro que todas as coisas que não conhecemos podem nos parecer impossíveis. Mas, na realidade, são francamente possíveis se as conhecermos bem.
Derrotar o espírito do mundo é possível em duas dimensões: individual e coletiva. Individualmente, apontando a um indivíduo bem precisamente o que é o espírito do mundo, para ele o combater em si. Pois se ele não sabe o que é, não poderá combatê-lo; no máximo, fará uns combates esporádicos contra um aspecto ou outro, mas não arrancará o monstro inteiro de dentro de si.

No início, a Igreja tinha diante de si “mundos” diferentes
Se tomarmos a História da Igreja nos primeiros séculos – em face dos povos do Mediterrâneo, onde ela se desenvolveu inicialmente, e do Oriente Próximo – veremos que ela encontrava mundos diferentes, porque as estradas eram muito pouco transitáveis, as comunicações eram difíceis, e por isso cada país tinha sua mentalidade, sua cultura, e formava um “mundo” próprio. Ora podia um determinado “mundo” – neste sentido da palavra – estar muito próximo da Igreja, ora podia estar mais longínquo dela.
Por exemplo, os romanos eram muito primitivos quando a Grécia estava no seu apogeu. Por sua vez, quando Roma chegou a seu apogeu, a Grécia era um conjunto de decadentes, mas a cultura grega tinha sido inteiramente assimilada pelos romanos, os quais passaram a viver segundo a mentalidade dos gregos.
A cultura grega tinha-se espalhado por um “mundo” que abrangia, além da Grécia propriamente dita, parte da Península Balcânica, Bizâncio, e parte da Península Itálica, inclusive Roma. Mas uma parte desse mundo era bárbara ainda.
Do outro lado do Mediterrâneo estava o Egito, com uma cultura sensivelmente diferente da cultura grega.
Em cada país a Igreja tinha uma posição diferente perante o mundo.

Como e mentalidade gera o estilo
Antigamente via-se como uma nação era diferente da outra considerando os monumentos, a literatura, e tudo o que havia sido legado pela tradição. Isso foi assim desde o antigo Egito até a Revolução Francesa e as grandes invenções. Até o século XIX, as nações eram muito diferenciadas umas das outras; cada uma com sua mentalidade, com seu modo de ser, com sua filosofia, constituía um mundo à parte.
Por exemplo, o estilo arquitetônico clássico grego, superconhecido, superlouvado, como é que se formou? Houve um tempo em que os gregos viviam em choupanas. Em certo momento, eles começam a construir, e começam a aparecer obras monumentais, extraordinárias, não pelo tamanho, mas pelo gosto, pela harmonia, pela simetria.
Como se chegou da barraca de um povo de pescadores mais ou menos ignorantes ao Parthenon de Atenas, por exemplo?
Alguém dirá: “Dr. Plínio, é muito simples. Um belo dia, apareceu um homem com talento, e havia outro homem que queria construir um templo e lhe deu o dinheiro necessário. Aquele, então, o construiu. Pronto”.
Não é assim.O estilo clássico grego, quando apareceu, encontrou o apoio entusiástico de toda a população, porque um estilo apresenta sempre a imagem de uma mentalidade. Era preciso, pois, que essa mentalidade já estivesse meio incubada nos atenienses para que, quando aparecesse o estilo, eles exclamassem “É isto!” Quer dizer, houve, em primeiro lugar, uma elaboração do estilo no subconsciente dos atenienses.
Não é que eles estivessem o tempo inteiro à sua procura, pois há certas coisas que o homem só encontra  quando não pensa muito nelas.
O conjunto dos habitantes de Atenas tinha uma espécie de avidez daquele estilo.  Quando apareceu um homem especialmente capaz de sentir em si – por ser um ateniense muito típico – aquela avidez coletiva, e dotado dos meios artísticos para dar expressão arquitetônica a esses sentimentos, ele fez o Parthenon. Mas quando o fez, ele agiu como um porta-voz de todos os moradores da cidade, de tal maneira que houve uma aclamação geral por sua obra.
Estilo, aqui, não é só o estilo arquitetônico. No caso grego, é toda uma mentalidade ateniense, todo um espírito que, em alguma medida – sem exagerar nada – os filósofos de Atenas e seus grandes intelectuais exprimiram.

Duas mentalidades refletidas num pequeno episódio
Por exemplo. Conta uma lenda que houve um concurso de escultura em Atenas, para o qual se admitiu toda espécie de escultores que quisessem concorrer. E as duas estátuas mais avaliadas foram uma deusa esculpida por um grego e uma rainha esculpida por um persa.
O escultor persa talhou sua estátua com um vestido riquíssimo, à maneira dos potentados persas. A Pérsia, sendo um rico império, tinha todo o luxo, todo o esplendor da corte imperial. Por isso, aparecia neles a preocupação de apresentar nas suas esculturas o esplendor da corte, como um elemento integrante da mentalidade nacional.
Por sua vez, os gregos em Atenas constituíam uma república que se tornou célebre. O fato concreto é que o grego esculpiu uma deusa muito bonita, mas vestida de uma túnica simplicíssima.
O júri, constituído por gregos, fez uma apreciação entre as duas obras de arte e deu a vitória à estátua grega. O escultor persa, naturalmente, ficou indignado – é clássica a oposição entre os dois povos – e protestou:
- Por que é que minha escultura não ganhou? Ela está tão ricamente adornada!
Os membros do júri lhe responderam:
- Tu a esculpistes rica porque não a soubestes esculpir bela.
Os senhores estão vendo que, num pequeno episódio, são duas filosofias e duas mentalidades que se deixam ver.

A consonância atrai, a dissonância repele
Numa cidade antiga havia bairros, havia estrangeiros, havia tudo o que há nas cidades de hoje. Nas cidades, hoje como antigamente, os vários bairros entram numa espécie de contato mudo uns com os outros, muito mais pelo olhar e pela convivência do que pela conversa. E o modo pelo qual um bairro influencia outro, cria nele uma mentalidade de conjunto que é propriamente a sua “filosofia”.
Desta maneira, cada bairro tem sua filosofiazinha própria e acaba tendo um certo contato – mais próximo ou mais remoto – com outro bairro. Forma-se, assim, uma espécie de “bolsa de filosofias”.  Essas filosofias são afins, por causa da vizinhança. E, postas numa mesma bolsa, engendram uma “filosofia comum”, a qual é uma filosofia ampla, abrangendo todos os aspectos da vida, e constituem uma mentalidade total.
Em geral, quando um indivíduo é político e quer ser esperto, ele percebe que quanto mais suas opiniões forem características de um certo ambiente, mais ele atrairá esse ambiente em torno de si. E que quanto mais, em vez de características, suas opiniões forem dissonantes, mais ele repelirá o ambiente que o rodeia.
Qual é o resultado disso?
É que o ser humano, desde menino, vai instintivamente procurando ficar parecido com os outros e tomar a mentalidade dos outros, para ter um convívio agradável com eles. Percebe, às vezes, as dissonâncias de um modo muito vivo, e aceita algumas coisas, mas recusa outras. A maior parte das pessoas aceita tudo, e forma esse “bolo” que, no seu conjunto, se chama “opinião pública”.
Portanto, se alguém quiser ter um rumo na vida, precisa perceber que efeito está causando e julgá-lo: se for um efeito razoável, aceitar; se for de acordo com a fé, aceitar; se for bom, aceitar ainda muito mais. Se for contrario em algo ao espírito, sobretudo, à doutrina da Igreja, recusar. E fazê-lo a qualquer preço. Se a pessoa assim não proceder, se ela não exercer uma vigilância contínua sobre si mesmo nesse ponto, acabará se tornando peteca nas mãos dos circunstantes.

(Plínio Corrêa de Oliveira – extraído da revista “Dr. Plínio”, nº 63, junho de 2003)