terça-feira, 25 de abril de 2023

O PODER DE FOGO DA COMPUNÇÃO

 



Eu tenho uma pedra dentro de mim difícil de ser quebrada. As montanhas mais rochosas são estilhaçadas e derretidas pelo fogo do vulcão; essa pedra, porém, resiste aos mais potentes fogos materiais e continua intacta. Não há fogo material que a quebre ou derreta.

Que pedra é essa? De que dureza é sua composição?

Não se pode dizer que ela é de gelo, porque nesse caso o sol a derreteria sem ser preciso quebrar.  Ela tem algo do gelo pela sua frieza, mas tem, entretanto, uma dureza ainda maior.

Ela é impenetrável, pois a água das chuvas (nesse caso, chuvas de graças divinas) nela não penetra, tal é sua compactação e impenetrabilidade. Rija, dura, compacta e indiferente ao tempo e à natureza, ela teima em viver isolada do resto do mundo, não se abre aos que estão ao seu redor.

Que pedra é essa?

É a matéria de que é feito o meu coração, que foi se acumulando ao longo do tempo em seu interior e formando coisa assim tão dura. Toda essa matéria é formada por grãozinhos acumulados dos inúmeros pecados veniais, assim como de lascas rochosas enormes e compactas, equivalentes aos pecados mortais, que resistem ao tempo mais implacável. São tantas que formam uma só massa compacta e dura. Só um vulcão pode derretê-las.

Que vulcão será esse?

Lá pelas profundezas da terra há grande quantidade de fogo ardendo sem parar. Assim também nas camadas mais profundas do nosso coração há fogo semelhante. Que fogo é esse? Posso dizer que é o fogo da compunção, o arrependimento e a dor por haver pecado, que não aflora por si à superfície, mas por influxo da graça divina, pois provém somente do Espírito Santo. E, aflorando à superfície, é alimentado por outro fogo, oriundo do olhar materno da Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus.

Vinde, bendito olhar! Vinde, da profundeza de seu Imaculado Coração e surja na superfície do meu pobre coração como um vulcão que sai do interior da terra, para  assim derreter essa pedra de que é composto ele! Derreta-a, consuma-a inteiramente, se for possível, a fim de que ele possa cumprir finalmente seu destino e sua vocação.

Minha Mãe, do olhar de fogo, desejo ardentemente que esse Vosso olhar se derrame dentro do meu coração e o derreta completamente!

Vós, somente Vós, podeis fazer isso! E se podeis, o farás, assim espero!

 Talvez pensando nisso o Senhor Doutor Plínio fez a seguinte oração:

 

“Minha Mãe,

Vós sois a Rainha de todas as almas, mesmo das mais duras e empedernidas, desejosas contudo de se abrirem à vossa misericórdia.

Peço-Vos, pois, sede Rainha de minha alma, quebrai nela os rochedos de maldade, as resistências abjetas que de Vós me separam. Dissolvei, por um ato de vosso império, as paixões desordenadas, as volições péssimas, os restos dos meus pecados passados que tenham permanecido no meu íntimo. Limpai-me, ó minha Mãe e Rainha, para que eu seja inteiramente vosso. Amém.”


ORAÇÃO Á MINHA MÃE, SENHORA E RAINHA DO MEU CORAÇÃO

 Quando Vos lembrareis de vosso indigno escravo?  Não será para castigar meus inúmeros e horríveis pecados. Vós lembrareis deles, sim, mas apenas para aquilatar, medir, mensurar pra mim mesmo minha grande miséria (somente nisso sou grande) e ter compaixão de minha alma.

Não será para condenar-me por causa das constantes infidelidades, pois lembrar-Vos-eis delas apenas para mandar um Anjo tocar meu coração a fim de lhe amolecer a dureza.

Vos lembrareis de mim todo o instante em que olhardes o Sagrado Coração de vosso Filho e ver nele as dores que tenho Lhe provocado e o tanto de sangue nele derramado. E também ao olhardes para todo o Sagrado Corpo d’Ele e, contemplando-O, e por amor a Ele, fazer-me compreender que tudo Ele sofreu para a salvação de minha alma.

Depois de tudo, Vós não Vos lembrareis deste miserável escravo, socorrendo-o, amparando-o, convertendo-o, não por causa daquilo que ele porventura representa (que não é nada), mas pelo que representa Vosso Filho para mim e todos os demais homens, e por causa da grande vocação que Ele me chamou?

Quando eu rezar “Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria,”, colocai vossa memória no exercício de fazer a minha conhecer e relembrar meu passado miserável, mas apenas para merecer de Vós a misericórdia, o perdão, o auxílio poderoso, que, aliás, nunca falhou.

Se Vós lembrardes algum instante em que este escravo vosso praticou alguma virtude que o faça possuir algum mérito, peço que me faça compreender que nada fiz sem Vós, e que por isso nenhuma de minhas virtudes mereça vossa atenção, nem que sejam lembradas ou premiadas, pois o escravo não tem nada de si, tudo dele pertence à Sua Senhora, inclusive tudo o que é bom. Lembrai-Vos, antes de tudo, de meus vícios e pecados, pois é para eles que Vós possuís o remédio desta quase infinita misericórdia.

Vós sois, pois, minha força e fortaleza, meu sustentáculo, garantia de minha santificação e salvação, proteção segura contra meus inimigos, seiva de meu sangue e energia de meu coração, alma de minha alma, minha protetora e seguro amparo nos perigos, tesoureira das graças de minha constante conversão, refúgio de meus males, ouvidora de meus queixumes, senhora de minha alma e de minha vontade, ordenadora e Senhora de meu Anjo da Guarda e dos demais Santos Anjos, inspiradora dos meus santos desejos, abafadora de meus maus pensamentos, garantia de socorro nas minha mais urgentes necessidades, rica Senhora doadora das minhas riquezas, protetora de minha extrema pobreza, Senhora da minha mesa, fornecedora de meu pão material e espiritual, portadora da minha Verdade e da minha Cruz, dominadora das minhas paixões, exterminadora dos meus vícios, edificadora da minha vida espiritual, meu modelo de virtudes e santidade, guia do meu Paraíso de delícias na eternidade, glória dos Santos Anjos e da Santíssima Trindade, dispensadora de todos os dons e riquezas da ordem universal.

Alívio e consolo de minhas cruzes, exemplo máximo de minha vocação. Vítima expiatória de meus pecados juntamente com Vosso Divino Filho, suprema exorcista dos demônios que me tentam e atormentam, sofredora irmanada de minhas dores a fim que eu possa expiar também não só meus pecados mas os dos outros homens,  pacificadora de meus ímpetos de ira, animadora de minha ira apenas para com o mal e o pecado, inspiradora de minhas meditações que me elevam  a Deus, subjugadora das minhas más inclinações.

Coração ardente de caridade, Rainha do meu coração; sagradas mãos que me abençoam e me amparam; peito que alimenta e acolhe o meu coração sofredor e indigno; sagrados ombros que me carregam quando desfaleço; olhos quase divinos que fazem penetrar no interior do meu coração toda a Santíssima Trindade, ocupando o lugar vazio deixado pelos demônios; sagrada boca que me ensina e admoesta; estrela rutilante que guia meus passos no caminho do céu; proprietária de minha alma por toda e eternidade; minha Mestra na escola divina da ascese; sustentáculo da minha vida mística; bondade suprema que se desvela em atos de afetos para com minha alma:

DERRAMAI O VOSSO OLHAR NO INTERIOR DE MINHA ALMA, pois tal olhar tem o poder do fogo do vulcão para derreter toda a dureza que há em meu coração, exorcizando todas as más inclinações e todos os demônios que por acaso ainda estejam nele produzindo males. Se assim o fizerdes, tenho certeza que aflorará do interior dele um fogo devorador, o fogo vulcânico da compunção e de arrependimento, dando lugar a tantas maravilhas que só o poder do vosso olhar poderá produzir.

 

Juraci Josino Cavalcante

(Seu indigno filho e escravo - 26.04.2023, festa de Nossa Senhor do Bom Conselho de Genazzano)

 

Talvez pensando nisso o Sr. Dr. Plínio compôs a seguinte oração:

 

“Minha Mãe,

Vós sois a Rainha de todas as almas, mesmo das mais duras e empedernidas, desejosas contudo de se abrirem à vossa misericórdia.

Peço-Vos, pois, sede Rainha de minha alma, quebrai nela os rochedos de maldade, as resistências abjetas que de Vós me separam. Dissolvei, por um ato de vosso império, as paixões desordenadas, as volições péssimas, os restos dos meus pecados passados que tenham permanecido no meu íntimo. Limpai-me, ó minha Mãe e Rainha, para que eu seja inteiramente vosso. Amém.”

 






 

 

 

sábado, 15 de abril de 2023

O ESCÂNDALO NA PROPAGAÇÃO DOS PECADOS SOCIAIS

 



“E aquele que receber uma criança como esta por causa do meu nome, recebe a mim. Caso alguém escandalize um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada mó e fosse precipitado nas profundezas do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! É necessário que haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o escândalo vem!” (Mt 18, 5-7)).

Praticamente, toda a doutrina sobre escândalos encontra-se nessa passagem do Evangelho. Nosso Senhor Jesus Cristo mostrou uma criança para que todos vissem ali uma alma inocente que pode ser atingida pelos escândalos feitos pelos pecadores que lhe querem tirar a inocência. Ele frisa também que aquela criança, ou “aqueles pequeninos” são escandalizados porque creem n’Ele, quer dizer, a Fé deve estar com ela e a animar para a prática do Bem. Quanto ao causador de escândalos entre os inocentes, as crianças, os pequeninos, Nosso Senhor não fala que melhor seria lhe colocar uma “pedra de tropeço” ao pescoço, mas uma “pesada mó”, quer dizer, uma grande rocha, pois além de tropeço o causador deste tipo de escândalo fica preso eternamente por algo do qual ele não pode se desvencilhar. No fim, vem a apóstrofe: “ai do homem pelo qual o escândalo vem”, embora seja necessário que haja escândalos. Essa necessidade não é porque eles façam algum bem ás pessoas, mas para advertir os bons sobre as ciladas dos maus, pois o escândalo surge como uma cilada, uma “pedra de tropeço” e serve de advertência para o justo evitar cair nela..

Essa imagem da grande pedra atada ao pescoço significa que o fato do pecador provocar escândalo com seus atos também fica imobilizado sem poder sair de sua perdição, especialmente quando tal escândalo fere a inocência. Isso ocorre porque o escândalo é consequência de um pecado social, tornado assim por causa de sua propagação na sociedade. Aí está também representado o encalhe espiritual de muitos, como fala Dr. Plínio (comentários sobre o livro o poder da oração de Santo Afonso de Ligório) presos a uma pesada mó. Nesse sentido, pode-se dizer que, de algum modo, o pecado social e os escândalos que ele provoca são pecados contra o Espírito Santo, pelos quais a perdição é certa.

Segundo a etimologia da palavra, escândalo é um fato ou acontecimento que contraria e ofende sentimentos ou o pensamento comum, crenças sociais, convenções morais, sociais ou religiosas de um povo. O escândalo é provocado porque o fato causa indignação, perplexidade ou até mesmo sentimento de revolta entre parte ou de toda a sociedade envolvida. Pode também servir de mal exemplo e divulgar um mal costume. 

Vejamos a definição dada pelo Catecismo da Igreja Católica: “O escândalo é a atitude que leva outrem a praticar o mal. Aquele que escandaliza torna-se o tentador do próximo. Atenta contra a virtude e a retidão; pode arrastar seu irmão à morte espiritual. O escândalo constitui uma falta grave se, por ação ou omissão, conduzir deliberadamente o outro a uma falta grave” (tópico 2284). Se é grave conduzir “um outro” a uma falta grave, imaginem se levar toda uma sociedade ou parte dela à prática ou pertinácia no pecado: nesse caso a gravidade do mal é maior ainda.

De modo geral, o termo se origina da expressão “pedra de tropeço”, tanto em hebraico quanto em grego. O termo português se origina do grego “skandalon”, que significa também “pedra de tropeço”, ao qual se associa o verbo “skandalizo”, com o mesmo sentido de fazer alguém tropeçar, ou pecar.  Esta expressão era usada no Antigo Testamento, como em Isaías, quando comparou o próprio Deus como “pedra de tropeço e rocha de escândalo” para ambos os reinos de Israel daquele tempo (Judá e Israel) (Is 8, 14). Isso quer dizer que até mesmo o próprio Deus pode causar escândalo, desde que a sociedade não entenda suas revelações e até se revolte contra elas pelo fato de contrariar certos costumes sociais. Em outra ocasião Isaías se refere aos “tropeços do caminho” que devem ser removidos para a chegada do Messias   (Is 57, 14), semelhante ao que pregou São João Batista pedindo para “preparar os caminhos e endireitar as veredas”(Mt 3, 3), isto é, retirar do caminho aquilo que poderia atrapalhar o Messias, como, por exemplo, os escândalos que dava a sociedade judaica como os pecados de adultério de Herodes..

A Revolução usa escândalos para propagar os pecados sociais

Assim, quando alguém comete um grande pecado que chama a atenção de todos, nem sempre é porque o próprio pecador quis que o fato fosse de conhecimento geral, muitas vezes ocorre fortuitamente de haver tal revelação pública. E qual a causa do escândalo?

Primeiramente, isso ocorre quando a pessoa é tida como virtuosa, mas comete alguns pecados graves às escondidas que são depois revelados, ou então, no dia em que resolveu cometer um deles é descoberta em flagrante por alguém que o revela aos demais. Aqui temos o exemplo do escândalo mais comum, que é a revelação pública de um pecado, ou prática habitual dele, por uma pessoa tida como boa e virtuosa. Por exemplo, uma pessoa tida por todos como bom esposo e pai de família é flagrado num romance amoroso adulterino com outra mulher: não somente sua esposa e família, mas a sociedade em peso fica escandalizada com o ato dele; isso só não ocorreria com todo o corpo social se as pessoas já estivessem vivendo naquele modo de vida pecaminosa como coisa normal.

Em segundo lugar há casos também de escândalos causados por pessoas que os provocam de propósito, isto é, praticando atos imorais e pecados públicos a fim de que todos o saibam e propaguem seu modo de vida. O escândalo ocorre porque as pessoas não aceitam pacificamente aqueles atos como exemplo para a sociedade, daí o escândalo. Faz parte de uma técnica revolucionária de mover a opinião pública através da divulgação de escândalos a fim de que as pessoas se acostumem aos poucos com pecados sociais transformadores dos bons costumes. Quando a primeira mulher usou os reduzidos biquínis numa praia causou grande escândalo na época, mas aos poucos a sociedade foi aceitando aquilo como normal até que hoje tornou-se um hábito corriqueiro como ocorre hoje em dia.

Sobre a natureza do escândalo assim falou São Paulo: “Deixemos, portanto, de nos julgar uns aos outros, cuidai antes de não colocar tropeço ou escândalo diante de vosso irmão”  (Rom 14, 13). Quer dizer, em vez de julgar devemos servir de bom exemplo e nunca causar escândalos.

Em algumas passagens do Antigo Testamento é usada a expressão “pedra de tropeço” ou simplesmente “tropeço”, como em Ezequiel 14, 3-4, cujo escândalo ou tropeço era a idolatria, quer dizer, um pecado social. Esse mesmo sentido é usado por São Paulo, ou de pedra de tropeço ou de escândalo, advertindo os cristãos para não provocarem escândalos que levam os outros a pecar (Rom. 14, 13 e I Cor 8, 9). Também São João em seu Apocalipse usa a expressão “pedra de tropeço” (Ap 2, 14).

"Escândalo ativo" é realizado por uma pessoa; "escândalo passivo" é a reação de uma pessoa ao escândalo ativo (escândalo fornecido ou em Latim scandalum datum), ou a atos que, por causa da ignorância do espectador, ou sua fraqueza, ou malícia, são considerados como escandalosos (escândalo aceito ou em latim ”scandalum acceptum”).

Escândalo ou “Pedra de Tropeço”?

Ocorre também chamar de escândalo um ato virtuoso, praticado por uma pessoa santa, mas que choca a sociedade porque rompe com alguns maus costumes sociais. São Bento, por exemplo, resolveu deixar a corrupta sociedade romana de seu tempo para viver na solidão, causando certo escândalo em pessoas de sua família ou de seu relacionamento pelo fato de romper completamente com os péssimos costumes sociais. Outros exemplos desta natureza podemos ver entre os antigos mártires, que escandalizavam a sociedade pagã pelo fato de não aceitar a idolatria dos falsos ídolos.

Embora chamem de escândalo, na verdade tais atos podem ser considerados o que na Sagrada Escritura se chama de “pedra de tropeço”, expressão usada em outras ocasiões como, por exemplo, no nascimento de Cristo, quando São Lucas escreveu no Evangelho o que disse Simeão: Ele seria motivo de quedas, mas também de soerguimento de muitos (Lc  2.34). Isso foi explicado depois por São Paulo, citando o Antigo Testamento: “Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço, uma rocha de escândalo, mas quem nela crer não será confundido” (Rom 9, 32-33). São Pedro usou da mesma expressão para se referir aos que rejeitaram a Revelação (I Ped 2, 7-9). Em outra ocasião São Paulo afirma que Cristo crucificado era motivo de escândalo para os judeus e loucura para os gentios (I Cor 1, 23).

Dr. Plínio Corrêa de Oliveira assim comentou sobre isso:

“Quando o Profeta Simeão teve nos braços o Menino Jesus e entoou o seu famoso cântico Nunc dimittis servum tuum, Domine… – Senhor, agora envia em paz o teu servo… –, ele disse que Nosso Senhor foi enviado como pedra de escândalo para a perdição e salvação de muitos, e para que se conhecessem as cogitações ocultas dos corações.

Portanto, Nosso Senhor foi mandado para salvar a todos, mas a perdição daqueles que O recusassem não significava o fracasso d’Ele, e sim um elemento intrínseco à sua Missão, ou seja, criar condições para os justos conhecerem a verdade e se salvarem, para os ímpios manifestarem a sua impiedade e, não se arrependendo, irem para o Inferno.

Christianus alter Christus – o cristão é um outro Cristo. Também nós somos pedra de escândalo posta para a salvação e a perdição de muitos, e para que se revelem as cogitações dos ímpios. A nossa missão é, pois, suscitar nas pessoas a definição, para a salvação dos bons”.[1]

O próprio Dr. Plínio Corrêa de Oliveira foi, em toda a sua vida, uma espécie de “pedra de tropeço”, pois todas as suas atitudes demonstravam as divisões latentes entre bons e maus e, com isso, ao mesmo tempo provocava a fidelidade a Deus dos bons e uma maior prevaricação dos maus. Os verdadeiros escândalos, porém, começaram com a investida dada pelos progressistas apresentando ao público católico reformas litúrgicas ofensivas às leis divinas, como o caso de Taubaté citado na revista Dr. Plínio (edição de março 2023, página 18). De modo que quando Dr. Plínio, em 1943, lançou seu livro “Em Defesa da Ação Católica”, causou uma espécie de escândalo entre alguns católicos, especialmente, nos meios eclesiásticos, mas podemos classificar isso como se fosse uma “pedra de tropeço”. O seu brado de alerta abriu os olhos dos bons, provocando entre os maus uma reação fulminante contra ele, causando-lhe grande ostracismo, pelo que ele mesmo disse que sua atitude foi um ato semelhante aos dos pilotos japoneses “kamikazi”: destrói o inimigo mas também morre...

Em depoimento sobre os episódios que antecederam ao lançamento de seu livro “Em Defesa da Ação Católica”, declarou ele alguns anos depois:

“Eu notava que a corrente oposta ia crescendo cada vez mais, não só em São Paulo, mas no Brasil, e penetrando nos seminários, tomando influência no clero, enfim, entrando como uma torrente em todos os lados.

Percebi, num relance só, o seguinte: se nós demorássemos para ataca-los, acabariam levando para o lado deles todo o mundo, inoculando sua mentalidade. Ou eu denunciava toda a trama para a maioria ingênua que, tomando a sério os esmagaria pela recusa, ou ela se deixaria cominar completamente. Existia um só meio de conter a gangrena: criar um escândalo. Criado esse escândalo, muitos ficariam atemorizados e recuariam. Essa gente não se uniria a nós, mas também não aderiria a eles. Ficaria com uma interrogação na cabeça.

Tornava-se, pois, urgente preparar uma denúncia monumental, que não podia ser feita num artigo de jornal ou de revista, porque tantos eram os fatos a mencionar e os argumentos a dar, que só mesmo redigindo um livro.”  (revista “Dr. Plínio”, março 2023, pág. 19)

Este livro deixou-o em completo isolamento, mas, aos poucos foi se unindo em torno dele um pequeno punhado de seguidores, aumentando gradativamente ao longo dos anos, até que ao final de sua vida constituiu um grandioso movimento católico que se espalhou pelo mundo todo. Então, aquilo que pode ser chamado por alguns de escândalo, ou de “pedra de tropeço”, tornou-se, nada mais nada menos, do que a “pedra angular” de uma grande obra.

Há referências também à chamada “pedra angular” porque esta era a pedra principal das construções antigas, aquela pedra que sustentava as demais numa edificação. Após narrar a parábola dos vinhateiros, Nosso Senhor assim se refere à tal Pedra que Ele representava:  “Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular: pelo Senhor foi feito isso e é maravilha aos nossos olhos? Por isso vos afirmo que o Reino de Deus vos será tirado e confiado a um povo que o fará produzir seus frutos. Aquele que cair sobre esta pedra ficará em pedaços, e aquela sobre quem ela cair, ficará esmagado” (Mt 21. 42  Mc 12, 10, e Lc 20, 17).

Tudo indica que Nosso Senhor está se referindo acima ao que consta no livro de Isaías: “É por esta razão que assim diz o Senhor Javé: Eis que porei em Sião uma pedra, uma pedra de granito, pedra angular e preciosa, uma pedra de alicerce bem firmada: aquele que nela puser a sua confiança não será abalado” (Is 28, 16).

O mesmo sentido é utilizado nos Atos dos Apóstolos: “É Ele a pedra desprezada por vós, os construtores, mas que se tornou a pedra angular” (At 4, 11). A mesma pedra pode ser motivo de escândalo, sendo por isso desprezada, mas também ser alicerce e sustentação para os que a aceitam, por isso chamada de angular, conforme explica detalhadamente São Pedro: “Com efeito, nas Escrituras se lê: Eis que ponho em Sião uma pedra angular, escolhida e preciosa; quem nela crê não será confundido. Isto é, para vós, que credes, ela será um tesouro precioso, mas para os que não creem, a pedra que os edificadores rejeitaram, essa tornou-se a pedra angular, uma pedra de tropeço e uma rocha que faz cair. Eles tropeçam porque não creem na Palavra, para os que também foram destinados”  (I Ped 2, 6-8)

O Juízo Final – Revelação e eliminação de todos os escândalos de uma só vez e de forma universal

Nosso Senhor disse: “O Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha ardente”  (Mt 14, 41). “De maneira que, assim como é colhida a cizânia e queimada no fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os seus anjos, e tirarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade, e lançá-los-ão na fornalha de fogo. Ali haverá choro e ranger de dentes. Então, resplandecerão os justos como o sol no reino de seu Pai”.   (Mt 13, 40-43).

São Crisóstomo comentando a correspondente passagem de S. Mateus, escreveu alguns comentários sobre o Juízo Final, assim concluindo: “Oh, pecador miserável, colhido por todos os lados! Por onde poderás escapar? Conseguirás ocultar-te? Não; isso é impossível; visível permanecerás ainda que isso te resulte intolerável”.

Todos os delitos e iniquidades dos réprobos ficarão postos de manifesto no juízo de que falamos, como disse Jeremias: “Chegará o dia em que nossas obras ficarão tão patentes como se as houvéssemos pintado num quadro”. O veredito, finalmente, se executará sem demora, naquele mesmo instante, com a rapidez de um abrir e fechar de olhos”.[2]

Segundo Santo Agostinho “com suma diligência nos recordará as palavras de nossa profissão e frente a elas fará desfilar tudo o que temos obrado, o lugar e a hora em que pecamos e o que deveríamos ter feito em vez do que realmente fizemos

O pecador verá que todos seus males praticados em vida ficarão expostos, como afirma o Livro da Sabedoria no capítulo 4: “Tremerão ao recordar suas culpas; suas iniqüidades se voltarão contra eles, acusando-os”. “Todas suas obras”, comenta São Bernardo, “falarão ao mesmo tempo e dirão ao pecador: Tu nos tens feito; coisa tua somos; não te abandonaremos; permaneceremos sempre junto a ti; contigo estaremos quando fores julgado”.   Essas obras acusarão ao pecador de muitos e de diversas más ações.

Até mesmo o mundo em que viveu acusará o pecador. “Se perguntas”, escreve São Gregório, “quem te acusará, responder-te-ei; todo o mundo;  porque quem ofende ao Criador, ao mundo em sua totalidade ofende”.  Como os escândalos foram pecados sociais, estes afetaram o mundo em que o pecador viveu, sendo este um dos acusadores no referido Juízo. Sobre isso diz São Crisóstomo: “Nada teremos que responder naquele dia, quando o céu, a água, o sol, a lua, os dias, as noite e todo o universo levante sua vós contra nós denunciando ante Deus nossos delitos; porém mesmo que todas as coisas calassem, não calarão ante o Senhor contra nós e darão testemunho de nossos pecados”.

O olhar de Jesus no Juízo Universal

Podemos apenas imaginar, ter uma pálida ideia, de como o olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo refletiu o Seu bondoso coração. Já antes de nascer, os místicos dizem que Ele se privou da luz de seus olhos no seio virginal de Maria Santíssima como um verdadeiro martírio, prevendo já os piores momentos que iria passar ao final de Sua vida. Ao nascer, derramou todo seu inocente olhar dentro dos olhos de Sua Mãe Santíssima, com a qual teve colóquios e olhares amorosos durante toda a vida terrena.

Em Sua Paixão e Morte, os olhares de Nosso Senhor percorriam a multidão à procura de um coração piedoso que tivesse compaixão d’Ele. Até que os ímpios lhe vendaram os olhos para que não tocasse tão bondosamente os olhares das pessoas que estavam ali e os convertesse, como o fez a Madalena.

Na Cruz, Nosso Senhor pronunciou o “Consumatum est” referente à Sua Missão na primeira vinda à terra; no Juízo Final, repetirá a frase, mas desta forma como sinal da consumação de sua Obra e do fim dos tempos: após o sétimo anjo derramar a sua taça pelo ar, saiu uma grande voz do templo (vindo) do trono, que dizia: está feito ou então, estão consumados os tempos. (Ap 16, 18).

Finalmente, no Juízo Final teremos o último olhar de Jesus Cristo, que será terrível para os ímpios e cheio de bondade para os justos. Naquele momento ninguém terá poder suficiente para lhe colocar uma venda como o fizeram na sua Paixão. Santa Catarina de Sena diz como será aquele olhar final: Aos olhos do condenado, sem embargo, ele aparecerá com aquele olhar terrível e tenebroso, que tem o mesmo condenado em si mesmo”. Completa Santa Catarina dizendo que isto não quer dizer que Jesus Cristo, a Bondade suma e infinita, tenha um “olhar temível e tenebroso”, mas sim que será esta a forma com que o condenado O verá por “ter o mesmo olhar dentro de si mesmo”... Este olhar será bastante forte e poderoso para destruir todos os escândalos produzidos pelos pecados dos homens naquele Juízo Universal.

Santa Teresa de Jesus manifesta também grande temor daquele olhar terrível: “Nunca tive tanto medo dos tormentos do inferno que não fosse menos que nada em comparação do que tinha quando me lembrava que os condenados haviam de ver irados estes olhos tão formosos e mansos e benignos do Senhor...”[3]

“Seu olhar”, escreve o Papa São Leão, é impressionante.  Ante ele, o compacto se torna transparente; o oculto, manifesto; o luminoso obscuro e os mudos se tornam loquazes; em sua presença até o silêncio fala e a mente, sem necessidade de vocábulos, declara seus pensamentos. Sendo, pois, tal sua sabedoria e tanta, de nada valerão frente a ela nem os discursos dos advogados nem os sofismas dos filósofos nem a brilhante eloquência dos oradores nem a habilidade dos mais astutos e sagazes”.

Da vida de São Metódio relata-se o fato de ter pintado um quadro representando o Juízo Final. São Metódio converteu à fé cristã a Bulgária no século IX. Um dia ele foi chamado pelo rei dos búlgaros, de nome Bógoris, o qual lhe pediu que pintasse um quadro para colocar em seu palácio. Queria que ao olhar no quadro todas as pessoas sentissem terrível medo. O santo, então, recomendando-se a Deus, pintou o Juízo universal. No meio do quadro via-se Jesus Cristo em sua tremenda majestade entre as nuvens e num trono de glória, rodeado pelos anjos; à direita uma fila de pessoas com os rostos esplendorosos de luz (os justos); à esquerda uma multidão de pessoas monstruosas com caras horríveis, cheias de pavor e de desesperada angústia (os pecadores). Em baixo afinal se via um abismo cheio de figuras horrendas de demônios, e desse abismo saíam chamas ameaçadoras e foscas.

 Quando o rei viu esse quadro, ficou impressionado e perguntou: “Que espetáculo é esse tão magnífico e pavoroso?” Após narrar a explicação do significado do Juízo Final que São Metódio deu ao rei pagão, conclui o Autor no texto que ora citamos que, apenas mediante o olhar de Jesus como supremo Juiz de todos houve um “exame de consciência” geral dos pecadores. Em seguida o Autor narra um exemplo de como um simples olhar pode revelar a consciência pecaminosa. 

O rei Frederico II da Prússia (1756), durante a guerra dos 7 anos, após uma batalha vitoriosa, invernava na Saxônia. Ali um copeiro de nome Glasau deliberou matá-lo, e lhe apresentou num copo uma bebida envenenada. O rei, que havia notado qualquer coisa estranha na atitude de seu servo, fixou-o profundamente no rosto. Ante este olhar o servo começou a tremer tão forte, que lhe cai da mão o copo. Aí confessou ao rei o assassínio que havia meditado. – Eis como só o olhar penetrante de um rei bastou para fazer tremer e aniquilar um malvado.

Ora, como deverão tremer os pecadores quando os fulminar o olhar de Deus que tudo conhece e que de tudo pedirá pormenorizadíssimas contas.

E tudo o que está oculto surgirá, e ninguém ficará impune.”[4]

 

Os escândalos do mundo moderno que difundem pecados sociais

Quatro vícios e crimes predominam hoje em toda a sociedade humana, em todo o orbe terrestre: o homicídio, a sodomia, a opressão dos pobres e viúvas e a defraudação do salário do trabalhador. Com estas quatro espécies de vícios e torpes crimes todos os outros se difundem na sociedade. Alguns anos atrás tais pecados sociais, ou crimes, causavam grande escândalo na sociedade. Mas, hoje, por tornarem-se prática comum vão aos poucos deixando de causar escândalos. No entanto, são pecados que por si mesmo pedem a Deus por vingança, pois se não causam escândalos entre os homens o promovem entre os Santos Anjos, os Bem-Aventurados e a Santíssima Trindade.

Tudo começou, mais ou menos na Renascença, após a decadência da Idade Média. E os escândalos a partir dessa época começavam sempre nas cortes e na nobreza, que deveriam ser modelo de pureza e castidade. Havia sempre um “caso” amoroso de um rei ou de um príncipe ou princesa que causava escândalo à sociedade da época. Até culminar com os escândalos mais audazes no período que antecedeu à Revolução Francesa, geralmente girando em torno do adultério e pecados da carne. A moda, a forma de propagar costumes de vestir, surgiu nessa época já escandalizando o público com vestidos decotados. No âmbito civil e religioso os escândalos ficavam por conta das heresias como o protestantismo, preparando o terreno para o surgimento das filosofias agnósticas e ateias que vieram depois. Com o passar dos anos a sociedade ocidental e cristã foi se acostumando com tais escândalos e começou a achar normal o adultério, a poligamia, a vida conjugal irregular, ou concubinato, como se fosse um casamento normal. Hoje, é tão comum tais uniões malformadas como os adultérios que já não causam mais escândalos como antigamente. O que poderia causar escândalo na atualidade seria o casamento monogâmico e indissolúvel como prescreve as leis divinas.

Outros pecados sociais foram se disseminando na sociedade através de escândalos. A assombrosa liberdade sexual do mundo atual começou com os filmes eróticos de Hollywood da década de 50 em diante. No começo as atrizes apenas ficavam despidas e gravavam cenas de amor lúbrico escandaloso. Com o passar do tempo foram sempre avançando e gravando cenas mais escandalosas, chegando aos filmes abertamente eróticos dos dias atuais, sem qualquer censura, divulgados em todos os recursos de imagens e vídeos da internet. Não se admira que haja tantos tarados sexuais agindo e promovendo horrendos crimes até mesmo contra crianças, pois seus baixos instintos são cotidianamente estimulados por tais filmes.

Os pecados sociais citados acima são no âmbito da moral e da castidade. No entanto, outros escândalos foram amortecendo na população os sadios convívios sociais em torno de direitos familiares e individuais, ocorrendo por causa da investida das idéias socialistas no mundo. De tal forma que em muitos ambientes o ato de roubar o próximo já não causa estranheza e até é tido como um “bem social” em favor dos “menos favorecidos”.

 

Escândalos para todos, mas “blindagem” de donos de jornais e TV

Um dos meios com que a mídia propaga os males sociais, os pecados mais horrendos, é através da divulgação de escândalos. Não podem pregar abertamente a violência urbana, mas divulgam incansavelmente reportagens sobre os crimes mais hediondos, dando grande destaque aos mais escandalosos e impactantes na opinião pública. O amor livre, o adultério, o liberalismo exacerbado, o relativismo, principalmente moral e religioso, são temas em que eles são especialistas, mas não os pregam abertamente, apenas dão destaque espalhafatoso aos crimes que servem para espalhar tais pecados na sociedade. Um exemplo: o aborto não é defendido abertamente pela mídia, isto é, não dão grande ênfase aos que propagam tal crime; no entanto, fazem reportagens escandalosas onde mostram mulheres que morreram por ocasião de um aborto clandestino, dando destaque à idéia de que se fossem feitos oficialmente pelo governo não causariam tais mortes.

De modo geral, todas as redes de TV e emissoras de rádio possuem programas de crimes policiais de grande alcance no público e expostos em horários de grande audiência. Tais empresas da mídia gastam fortunas no aparelhamento de tais reportagens, usando até helicópteros e equipamentos caríssimos, tudo com o objetivo de pregar e banalizar a criminalidade. E o que eles dão muito destaque são os escândalos causados por políticos ou empresários de grande porte, pois precisam expor à execração pública os dirigentes da nação e suas elites. .

No entanto, qual a razão de os donos de empresas jornalísticas nunca serem  envolvidos em escândalos políticos ou financeiros? Há fatos que podem até ser vazados mas não são divulgados, ou esquecidos após a primeira notícia. Não se sabe quantos porque a falta de divulgação nos impede de sabê-lo. No entanto, é muito estranho que riquíssimos proprietários de empresar jornalísticas, muitos deles sócios de outras envolvidas em escândalos públicos, não tenham seus nomes incluídos quando são divulgados pela mídia. Protegidos pelo silêncio cumplicioso de seus empregados, tais cidadãos vivem incólume da degradação pública. Um exemplo foi o famoso Roberto Marinho, proprietário da maior rede de jornais e TVs do Brasil, homem que enriqueceu ás custas de golpes e tramas financeiras, mas que nunca teve seu nome ventilado pela mídia sobre tais aspectos negativos de sua atividade. Quando falavam dele era para homenageá-lo por alguma medalha de “honra ao mérito” recebida por alguma instituição que lhe devia alguma coisa. E passado tanto tempo depois de sua morte, até hoje seus escândalos continuam encobertos. O mesmo ocorre com os demais proprietários de grandes empresas jornalísticas: trata-se de uma elite que é “blindada” (protegida) por seus veículos de publicidade, sempre concordes umas com as outras.

 



[1] Plínio Corrêa de Oliveira - Extraído de conferência de 31/1/1966

[2]              Legenda Dourada”, versão espanhola, Editora Alianza Forma, páginas 25/29, volume 2

[3] Obras Completas de Santa Teresa de Jesus – Carmelo do Porto, Portugal – pág. 801

[4] Extraído com adaptações de  “A Palavra de Deus em Exemplos” – G. Morotarino J. C. – Ed.Paulinas, 1961 – págs. 68/75.


terça-feira, 11 de abril de 2023

MORTE DE SANTA GEMMA GALGANI

 




 

Nos estertores da morte, supremo combate contra o inferno

 

Sobre os momentos difíceis que se passa no momento da morte vejamos o que ocorreu com Santa Gemma Galgani, conforme seu biógrafo, Pe. Germano de Santo Estanislau, que assim se expressou comparando-a conosco: Que exemplo admirável de resignação e que motivo de salutar receio para nós, que não temos os méritos de Gemma,na hora terrível da morte! É bom lembrar que, embora o exemplo abaixo tenha se dado com uma santa, nada impede que algo disso, ou até mais, possa acontecer com qualquer cristão, desde que Deus o permita para sua santificação final:

“Diz-nos o Espírito Santo que Satanás, nos últimos momentos de nossa vida, sabendo que tem pouco tempo para fazer mal, nos assalta com pérfidas tentações, como um leão que vê a presa prestes a escapar-lhe.
Que supremos e furiosos ataques não devia dirigir contra a angélica donzela,
quem toda a vida tinha perseguido com ódio mortal, e procurado vencer, ou a menos desanimar com uma guerra sem tréguas.

De outros santos se lê que no fim de seus dias tiveram que suportar assaltos do demônio mais ou menos violentos e terríveis, mas passageiros.

Gemma, porém, suportou um ataque contínuo de sete meses, apenas interrompido por curtos intervalos de trégua. O fato é aterrador, mas absolutamente certo, porque é unanimemente atestado por todas as pessoas que acompanharam a angélica jovem durante sua última doença.
O espírito das trevas perturbava-lhe a imaginação com mil fantasmas próprios
para encher o seu coração de tristeza, de ansiedades, de temor. O seu fim era levá-la ao desespero. Representava-lhe, sob os mais tétricos aspectos, os quadros da sua vida tão cheia de angústias, as desgraças da sua família, as privações de toda a ordem. Fazia-lhe passar diante dos olhos os agentes da força pública indo, depois da morte de seu pai, acompanhados pelos credores, seqüestrar os bens da sua casa, e depois exclamava: “Aí tens o resultado de todas as tuas fadigas no serviço de Deus”.

Explorando o estado de extrema aridez espiritual em que, durante a maior parte do tempo, o Senhor a deixava para mais purificar a sua alma, o anjo das trevas empregava todos os artifícios para a persuadir de que estava irremediavelmente abandonada de Deus e que não havia meio de escapar à condenação. O tentador astucioso insinuava-lhe que as suas heróicas virtudes e até os mais insignes favores divinos eram apenas ilusão e hipocrisia.

Esta prova, a mais terrível e duradoura de todas, lançou a pobre donzela numa insuportável aflição. Sem cair no desespero, resolveu remediar, tanto quanto possível, oseu passado com uma confissão geral: tomou a pena e, nessa agitação de espírito e confusão de idéias, escreveu toda a história da sua vida, em que se declarava digna de mil infernos, por ter, com malícia diabólica, enganado os confessores, os diretores e a si própria.

Passando em seguida uma revista minuciosa aos mandamentos da lei de Deus e da Igreja, pecados capitais e deveres de estado, confessava-se culpada dos maiores crimes.

Estas páginas, febrilmente escritas, foram lidas a princípio por uma pessoa autorizada, depois levadas a um santo sacerdote, designado pela doente, com o pedido devir dar-lhe a absolvição de todos aqueles pecados. Veio, confessou-a e restituiu-lhe a serenidade, mas nem assim o inimigo se deu por vencido. Procurou uma vez mais insultar o pudor virginal da angélica menina. Sabia muito bem o tentador com que amor e cuidado a santa donzela tinha guardado, toda a vida, o inestimável tesouro da sua pureza, com que heroísmo tinha já sustentado, neste campo, lutas terríveis, sempre coroadas de triunfo. Mas que, se não alcançar uma vitória que julgava impossível, ao menos vingar-se das suas derrotas por meio de tentações, que sabia serem as mais próprias para amargurar os últimos dias da inocente menina.

O quarto da enferma pareceu converter-se então num prostíbulo do inferno. Não eram já pensamentos, imaginações, atitudes lascivas, às quais não podia ser sensível uma alma daquela têmpera. Eram aparições reais sob formas sempre novas duma lascívia cínica e brutal. “Padre. Padre, escrevia-me ela do seu leito de dor, este sofrimento é muito intenso para mim. Pedi a Jesus que o troque por outro qualquer. Enviai, mesmo de longe, maldições e conjuras para afastar o velhaco do demônio, ou ordenai ao vosso Anjo da Guarda que venha afastá-lo para longe daqui”.

Vencido em todos os campos, terminou por afligi-la com cruéis vexações exteriores. A enfermeira da angélica mártir escrevia-me por várias vezes: “Esta besta hedionda acaba-nos com a querida Gemma. – Saio sempre de junto dela a chorar: este horrível demônio  consome-a, e não vejo nenhum remédio a opor. – São pancadas ensurdecedoras, figuras espantosas de animais ferozes; mata-a com certeza. Corremos em seu auxílio, lançando água benta no quarto, o barulho cessa, mas para recomeçar depois com mais raiva”.

Ninguém imagina até onde chegou a crueldade do invisível inimigo para com a inocente vítima! Gemma sentiu algumas melhoras quanto à dificuldade de ingerir os alimentos.

Satanás, porém, estava de atalaia; logo que a comida era apresentada à doente, aparecia-lhe coberta de insetos repugnantes, de tudo quanto possa imaginar de nojento. Perante a repugnância do estômago, era forçoso retirar tudo. Bichos repelentes, reais ou imaginários, invadiam-lhe o leito, e torturavam-lhe o corpo de mil maneiras, sem que pudesse ver-se livre deles. Dizia muitas vezes à Irmã enfermeira com um tom de terror, que sentia uma serpente a envolvê-la da cabeça até aos pés e tentando sufocá-la. Muitas vezes pediu exorcismos, mas como não se desse importância aos seus pedidos, ela mesmo, voltando-se para o inimigo com o rosto inflamado, exclamou resolutamente: “Espíritos perversos, ordeno-vos que entreis no lugar que vos está destinado, aliás, desgraçados de vós! Acuso-vos ao meu Deus”. Depois, voltada para a Mãe celeste, começou a dizer: “Minha Mãe, encontro-me em poder do demônio que me fere, me flagela, trabalha por me arrancar das mãos de Jesus. Não, não, Jesus, não me abandoneis, ser-vos-ei fiel. Ó minha Mãe, pedi a Jesus por mim. De noite estou só, cheia de terror, oprimida e como que ligada em todas as potências da alma e em todos os sentidos do corpo, sem me poder mexer. Viva Jesus!

O divino Mestre vinha, de tempos a tempos, reanimar-lhe a coragem e sossegá-la, fazendo-lhe sentir a sua doce presença e dizendo-lhe algumas palavras. “Minha filha, porque é que, em vez de entristeceres com as perseguições do inimigo, não aumentas a tua esperança em mim? Humilha-te sob a minha poderosa mão, não te deixes abater pelas tentações. Resiste sempre, sem desânimo, e, se a tentação perseverar, persevera também na resistência; a luta levar-te-á à vitória”.

Outras vezes era o Anjo da Guarda que vinha confortá-la. Mas pouco duravam estes felizes momentos. Em breve a sua alma recaía nas trevas e o tentador aparecia de novo, mais furioso que nunca. Deste modo se passavam, para a pobre donzela, os dias, as semanas, os meses. Que exemplo admirável de resignação e que motivo de salutar receio para nós, que não temos os méritos de Gemma, na hora terrível da morte!

Na maior parte dos doentes, com o corpo extenuado pelo sofrimento e com o espírito esmagado pela consciência do próprio estado, o rosto manifesta tristeza e abatimento. Gemma, porém, conservava sempre o seu aspecto alegre e um angélico sorriso.

Nenhum abatimento moral se refletia nela, nunca lhe saíram do peito esses suspiros, esses gemidos que a força da dor arranca até aos mais corajosos. Nunca pedia alívio, nem mesmo uma simples mudança de posição no leito, embora fosse incômoda a posição em que estava. Nunca se queixou por causa dos cuidados que o seu estado exigia, ainda que, por algum equívoco, a deixassem só noites inteiras, quando mais necessidade tinha de ser assistida por alguém.

Para evitar este inconveniente, recorreu-se às religiosas enfermeiras, chamadas Barbantinas, que, movidas da sua bem conhecida caridade, se encarregavam de cuidar de Gemma até ao fim. Uma delas, maravilhada com a heróica paciência desta mártir, fez o seguinte depoimento:

“Durante todo o tempo que tive a consolação de assistir à querida Gemma nunca a ouvi queixar-se. Só no princípio a ouvia algumas vezes dizer: Meu Jesus, não posso mais! Mas quando lhe lembrei que tudo é possível com a graça de Deus, não repetiu mais aquelas palavras; e, quando alguma das pessoas presentes, movida pela piedade, dizia: Pobre menina, na verdade não pode mais, Gemma respondia imediatamente: Sim, sim, ainda posso um poucochinho. E, no entanto, continua a Irmã, vi-a suportar tais sofrimentos que me parece não os haver mais terríveis no Purgatório”

No meio de tantas dores, de tantas perseguições diabólicas, a virtuosa donzela não sentia a menor dificuldade em conversar familiarmente com o seu Deus, e com a mesma calma e suavidade de espírito que tinha no tempo das maiores consolações. Gemma não tinha mais que um sopro de vida. Todo o seu corpo é vítima do sofrimento e o rosto cobre-o já a palidez da morte. Jaz imóvel sobre o leito, numa atitude impressionante que recorda o Salvador expirando na cruz.

Quatro ou cinco dias antes de morrer tornou-se tão pesada que três pessoas robustas com dificuldade a podiam levantar. E no entanto a sua pequena estatura e extrema magreza deviam permitir que uma simples criança a movesse. “Temos tratado de tantos doentes, diziam as religiosas enfermeiras, e nunca vimos coisa igual”.

Aos que lhe notavam este fenômeno, Gemma respondia: “Não sou eu, estais certos, que peso assim”. E na verdade podemos crer que fosse uma intervenção divina, com o fim de aumentar os tormentos da pobre vítima, porque logo depois da morte, o corpo voltou ao peso normal”.[1]

Que bela coisa é morrer numa solenidade

Aos 25 anos, no Sábado Santo de 1903 (a 11 de abril, dia de sua festa), Gemma entregou sua alma ao Criador, devorada pelos sofrimentos, mas pedindo - até o último momento - mais dor. Revestida do hábito passionista - que lhe fora negado em vida por não ter condições de saúde compatíveis com os rigores do convívio comunitário - Gemma teve seu corpo velado por familiares e amigos. Sepultado no dia seguinte, o corpo foi exumado quinze dias após a morte, procedendo-se à retirada de seu coração (que não exibia sinais de decomposição). Foi ele posto em um relicário, sendo atualmente venerado no seu Santuário em Madrid, na Espanha.

Extraímos de uma hagiógrafa da Santa, Sóror Gesualda del Espíritu Santo, o relato de seus últimos momentos:

“Morrer num êxtase de luz e de amor não teria sido digno coroamento à vida de dor e de martírio constante levada por Gemma.  Jesus, à hora de morrer, sobre o Gólgota entregou sua alma nas mãos do Pai Eterno, banhada num mar de amarguras. Encontrava-se suspenso como criminoso, entre o céu e a terra, abandonado por Deus, desprezado pelos homens...

Com Gemma havia de suceder da mesma forma.

Numa ocasião havia dito à sua tia: “Tenho rogado a Jesus que me faça morrer numa grande solenidade. Que bela coisa é morrer numa solenidade!”  E morreu, efetivamente, solenemente. Porém, numa solenidade dolorosa.

A Igreja comemora a morte de Jesus e relaciona este fato com o terremoto que sacudiu a terra e rasgou o véu do templo de Jerusalém. E, ante a dor que que embarga os peitos cristãos por sua morte, faz emudecer todo instrumento músico e cessa o tangido das campainhas.

Jesus, ao ser deposto da Cruz, havia sido colocado num sepulcro novo, e precisamente o dia do repouso eterno de Cristo foi escolhido por Deus para tirar a cruz dos ombros de sua fiel amante Gemma, unindo-a consigo indissoluvelmente na glória da ressurreição.

A Eucaristia, que havia constituído sempre a verdadeira vida para nossa Santa, pode dizer-se que foi no leito de dor o único lenitivo de suas dores e abandonos.

Provocava lágrimas entre os circunstantes só o vê-la arrastar-se, com os joelhos vacilantes, sustentada nos braços de sua querida Eufemia, para a Igreja das Rosas. Os familiares não o teriam permitido. Porém, monsenhor Volpi dizia: “Deixai-a; deixai-a que faça a Comunhão. É o consolo que lhe fica já na terra”.

Quando, por seu estado, tornou-se-lhe impossível ir à igreja para receber a sagrada Comunhão, inclinou sua cabeça á vontade de Deus. Porém Monsenhor Volpi procurava que satisfizesse com certa frequência suas ânsias de comungar, mesmo estando acamada. Do contrário, como poderia suportar tantos sofrimentos sem possuir Jesus em seu coração?

No Sábado Santo, Sábado da Ressurreição, depois que seus membros virginais receberam a última purificação com o santo óleo, sua alma se abriu ao Amor, com o que, transcorridos alguns instantes, devia eternizar-se numa glória sem nome.

Já na Quarta-Feira Santa Deus Nosso Senhor Se havia dignado descobrir uma pequena parte do véu que ocultava seus esplendores. Santa Gemma foi arrebatada em êxtase. Ao tornar a si, a Irmã que a assistia perguntou-lhe o que havia visto: “Ah, irmã – respondeu -, se você pudesse ver um tantinho, nada mais que uma partezinha do que Jesus me há feito ver a mim, quanto gozo experimentaria!”

Em seguida recebeu por Viático o Corpo de Nosso Senhor. Voltou a comungar no dia seguinte, permanecendo para isso em jejum toda a noite.

“Tinha o aspecto de uma santa”, assegura uma testemunha. Deitada em seu leito, quanto tempo demorou estirada e rígida, com as mãos juntas, os olhos baixos e modestos, o rosto radiante, mostrando a todo momento os lábios sorridentes, apesar do grau de dor que a consumia.

No recolhimento extático que seguiu à Comunhão da Quinta-Feira Santa pela manhã, pareceu-lhe ver uma coroa de espinhos com esta inscrição: “Antes que termina tua carreira mortal ainda te resta que sofrer!”

Era o final do drama, e, pela forma em que este ia se desenrolando, o desenlace seria também doloroso. Na sexta-feira pela manhã, lá pelas dez horas, a senhora Cecília demonstrou desejos de sair, alegando que se encontrava arriada de cansaço e de insônia. Gemma disse-lhe: “Não me deixe de forma que não me veja cravada na cruz. Vou ser crucificada com Jesus. Jesus disse-me que seus filhos devem morrer crucificados”.

Pouco depois, entrando em profundo êxtase, Santa Gemma estende lentamente os braços em forma de cruz, postura que conserva até às doze e meia. Como sobre um límpido espelho, vão se refletindo sobre seu rosto os afetos e sentimentos mais diversos: de amor, de dor, de desolação e de calma. Gemma guarda um respeitoso silêncio. Porem sua atitude dizia suficientemente que se achava na agonia com seu doce Jesus.

Os olhos dos assistentes estão fixos nela, acreditando-se que de um momento para outro passaria os umbrais da eternidade. Porem o fato se prolonga. Ao cessar a agonia continua durante todo o dia, a noite e a manhã seguinte sofrendo muito. Tira forças da fraqueza para responder por sua própria boca às formosas orações que acompanham a cerimônia da Extrema-unção.

O sacerdote ministrante retirou-se em seguida e não voltou para a recomendação da alma. O que foi feito pelo que administrou o Viático. Entretanto, o confessor extraordinário, chamado por ela, a confessou num abrir e fechar dos olhos. Sua solidão era, pois, patente.

Desejava ter ao seu lado Monsenhor Volpi com o objetivo de que dirigisse exorcismos da Igreja contra o Demônio, que se lhe aparecia sob a forma de um horrível cão ameaçador. Porém Monsenhor encontrava-se ocupado nas largas funções próprias do dia, e não foi possível atender até à primeira hora da tarde.

“À sua chegada – disse a senhora Cecília – retirei-me da habitação que ocupava a enferma... Gemma disse que desejava os exorcismos. Monsenhor, dando-lhe a bênção, acrescentou: “Estás contente?”. Gemma insistiu que desejava na verdade receber os exorcismos da Igreja. A isto respondeu Monsenhor: “Vou dar a Páscoa ao excelentíssimo senhor Arcebispo, e logo voltarei para ver-te”. Porém já não voltou. Gemma expirava em pouco tempo.

Ouçamos a impressão de Monsenhor: “Quando a visitei pela última vez a encontrei em grave estado, atribulada de dores não somente físicos, mas também morais. A tudo estava muito resignada. Dei-lhe a santa absolvição, deixando-a em estado bastante penoso, mas com perfeita quietude de espírito.

Por sua vez, disse a senhora Cecília: “Quando, pela manhã, avisei a Monsenhor que Gemmao  esperava, respondeu-me: “Se é para confessá-la, irei; mas se é para assisti-la, me é absolutamente impossível. Para isso há curas”.

Há que se ter presente que naqueles dias para Monsenhor, como bispo auxiliar, eram de excepcionais ocupações, em razão das funções que tinham lugar na Catedral.

“Quando lhe transmiti as palavras de Monsenhor – segue falando a senhora Cecília -,Gemma tomou o santo Crucifixo em suas mãos, e pondo-o à altura de seus olhos, falou-lhe nestes termos: “Vês, oh Jesus? Verdadeiramente, já não posso mais... Se é vossa vontade, leva-me...”

Em seguida, levantou seus olhos para um quadro da Virgem que se achava dependurado na parede, e acrescentou: “Minha Mãe, a Vós recomendo minha alma... Diga a Jesus que tenha misericórdia de mim”.

Beijou o santo Crucifixo e o pôs sobre o coração, e tendo as mãos sobre ele, fechou os olhos, permanecendo esta postura, imóvel. À chegada de Monsenhor os abriu e falou como se há dito. Ao despedir-se de Monsenhor, tomou novamente a postura anterior.

A senhora Cecília mandou chamar a toda pressa o senhor Pároco, Abade Angeli, dos Canônicos Lateranenses, o qual chegou à casa estando a família à mesa. Ao ver a enferma, exclamou: “Gemma se nos vai; se morre...” A estas palavras, todos os circunstantes, até os pequeninos, levantaram-se rapidamente e correram para a habitação de Gemma.

A senhora Justina a levantou um pouco, pondo seu braço sobre as almofadas, de sorte que a cabeça de Gemma descansasse apoiada nela. Eufemia, ajoelhada a um lado do leito, sustentava entre suas mãos a direita da moribunda, descansando-a sobre sua fronte. Ao redor de ambas encontravam-se a senhora Cecília e os restantes da casa, de sorte que a habitação parecia cheia.

O Abade Angeli, que lia a recomendação da alma, interrompeu várias vezes a leitura para perguntar aos circunstantes: “Morreu?” De fato, ao pronunciar o sacerdote estas palavras, estava morta; porem, ninguém se havia apercebido disso.

Com referência a seu falecimento, acrescenta o Abade Angeli: “Tenho assistido a muitos moribundos... Não me tem ocorrido, sem embargo, presenciar uma morte desta natureza: sem sinal algum que a denunciasse, sem lágrimas nem assomo de respiração ofegante... Morreu desenhando um débil sorriso, e ficou com o sorriso suspendido nos lábios, tanto, que eu não podia persuadir-me de que houvesse falecido”.

O Padre Germán, seu diretor, não pôde assistir á agonia de Gemma. Apenas o mal começou a tomar sinais de gravidade, a senhora Cecília disse a Gemma: “Será conveniente telegrafar ao Padre Germán para que venha”.  Porém a enferma, havendo compreendido em seu coração que Jesus queria dela também este sacrifício, não fez indicação nenhuma neste sentido. A quem lhe falasse disso, respondia com doce resignação: “Tenho feito a Deus o sacrifício de tudo e de todos. Não peço nada. O Padre Germán chegará depois da Páscoa”.

E, efetivamente, chegou passadas as Páscoas.

Gemma havia suplicado ao Senhor a graça de morrer abandonada e sem consolo, por imitação de sua morte na Cruz. “Um sacerdote... um cristão... me bastam”, havia Lhe dito.

As últimas notas do duplo poema de dor e de amor que constituíam sua vida foram de um grande sofrimento e de grande abandono.

O santo Evangelho disse de Cristo: “Et inclinato capite, tradiditspiritum”. Ou seja, que inclinada a cabeça, entregou seu espírito.

Para que a semelhança fosse completa, Gemma dobrou silenciosamente a cabeça e expirou.

Logo vieram os preparativos de seu enterro. Vestiram-lhe o hábito passionista,  puseram-lhe o Rosário ao pescoço. Sobre o peito, a insígnia da Paixão, ou seja, o escudo distintivo dos Passionistas, e sobre a cabeça uma grinalda de flores. Juntaram suas mãos como as costumava ter nos êxtases. E asseguram as testemunhas oculares que não parecia morta, mas docemente adormecida ou submersa num êxtase de amor. Logo que a notícia se e espalhou, começou a afluir o público em grande quantidade. Homens e mulheres, sacerdotes e seculares, rodeavam com emoção o cadáver daquela jovenzinha, cuja vida transcorreu por inteiro na obscuridade, e possuídos desse secreto atrativo que a virtude engendra em nossos corações, ajoelhavam-se, beijavam suas mãos, tocavam-lhe com rosários e medalhas, a invocavam como santa, pediam relíquias dela...

Entre outros, chegou o santo sacerdote ao qual Gemma havia entregue por escrito sua confissão geral quando se viu tão  terrivelmente acossada pelo demônio. Caindo de joelhos, pela reverência que lhe inspirava aquele cadáver: “Gemma -exclamou -, a teus pés está um grande pecador. Roga a Jesus por mim”.

Ao cair da tarde do dia de Páscoa, os irmãos da Associação chamada “La Rosa” abriam passagem para o cortejo revestidos com seus hábitos amarelos. Dois destes irmãos e dois membros da família Giannini, que se reputaram felizes de prestar este último obséquio à que tanto tempo foi como o anjo tutelar de sua casa, levavam o féretro sobre suas costas.

Os sinos da cidade repicavam em festa, enquanto os anjos da Paixão e da Ressurreição, revoluteando ao redor do féretro, entoavam hosanas e aleluias àquela que, havendo seguido tão fielmente a Jesus desde o Getsêmani até o Calvário, seguia associada ao Esposo no triunfo da Ressurreição.”[2]




https://www.youtube.com/watch?v=oEiBan17eSw




[1]“Santa Gemma Galgani” – Pe. Germano de Santo Estanislau – Livraria Apostolado da Imprensa, Porto,
Portugal, págs. 439/451

[2]Traduzido do espanhol, da obra “Santa Gemma Galgani” – Sor Gesualda del Espiritu Santo – Tercera Edición – Ediciones Paulinas S.A – Mexico, 1964 – páginas. 342/349