Como era vista a escravidão no Antigo Testamento


Desde os primórdios históricos do Povo Eleito, quando a Sagrada Escritura nos fala de Abraão, Isaac e Jacó, ou mesmo a partir de Moisés, o termo escravidão nos faz lembrar algo de extraordinário, de servir, de humildade completa. A escravidão pagã sempre foi uma coisa terrível, despersonalizante e ultrajante, mas fazia lembrar que poderia haver uma escravidão, ou mesmo um espírito de escravidão, que fosse conforme o bom espírito, fosse de acordo com os desígnios de Deus. E este espírito de escravidão, ou de servidão legítima, perpassa em vários textos sagrados.


Após o dilúvio universal, Noé fez o cultivo da uva e dela tirou vinho, que, ao bebê-lo pela primeira vez, embriagou-se e tirou a roupa perante os filhos. Como Cam, ao contrário dos outros, riu de sua nudez, Noé amaldiçoou sua descendência, dizendo: "Maldito seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja seu escravo. Dilate Deus a Jafet, e habite Jafet nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo" (Gn 9, 25-27). A escravidão é imposta como uma maldição, trata-se portanto de um castigo por causa do ato indigno que o filho praticara, porém não recai sobre ele, Cam, mas sobre a sua descendência, representada por seu filho Canaã. Tornou-se este, pois, escravo de seus tios. Seria uma espécie de maldição ou condição imposta por Deus ao filho para reparar o erro praticado pelo pai? Será que nós também não temos, muitas vezes, que fazer este tipo de reparação a Deus por causa dos pecados de nossos pais?


A escravidão volta a ser naturalmente comentada pelo que se deduz do texto do Gênesis 12, 5: "Levou consigo Sarai, sua mulher, e Lot, filho de seu irmão, e todos os bens que possuíam, e as pessoas que tinham adquirido em Haran". Que pessoas eram estas que tinham sido adquiridas? Deveriam ser os escravos, pois o texto já fala anteriormente na parentela. Poderiam ser também os empregados, os servos como se dizia antigamente, mas estes não teriam obrigação de acompanhar seus senhores se fossem livres.


Quando Abraão esteve no Egito pela primeira vez (Gn 12, 10), recebeu do Faraó vários presentes, entre os quais “servos e servas”, isto querendo dizer que naquele país se praticava a escravidão, como é fato histórico incontestável. Pode ser também que Abraão os tenha recebido, não como escravos, mas como servos comuns: quando teve que fazer guerra contra os reis inimigos já contava com 318 servos (Gn 14, 14). No entanto, houve entre eles alguns que se tornaram escravos, como é citado em Gênesis 15-3, Eliezer de Damasco, e depois a escrava Agar. "Senhor Deus, que me darás tu? Eu irei sem filhos; e o filho do procurador da minha é este Eliezer de Damasco. E acrescentou Abraão: A mim não me destes filhos; e eis que meu escravo será meu herdeiro" (Gn 15,2-4).


Talvez tenha sido no Egito que Agar tenha sido dada a Sara (que então se chamava Sarai) como escrava (Gn 16, 1). Como Abraão era um Patriarca de Deus e respeitava o livre arbítrio humano, é provável que tenha aceito que Sara ficasse com Agar como um mau menor, talvez a livrando de uma outra escravidão pior que devesse estar submetida no Egito. Os costumes escravocratas eram de tal forma, naquela era remota, que a senhora oferece sua escrava ao seu marido para ter um filho (Gn 16, 3). O mesmo ocorreu posteriormente com uma das esposas do patriarca Jacó, como se sabe. Gerado o filho, mesmo sendo com uma escrava, seria este o herdeiro legítimo do Patriarca. Era outro costume do patriarcalismo, que obrigava-os a ter um herdeiro para dar continuidade à descendência pelo ramo masculino. Agar era uma escrava que se encontrava sob o total domínio de Sara, a ponto de Abraão ter dito: “Eis que a tua escrava está em teu poder, usa dela como te aprouver” (Gn 16, 6).


A forma como Sara passou a tratar sua escrava era muito ruim, dando-lhe maus-tratos. Por isso Agar foge para o deserto. Mas um anjo ordena-lhe que volte para sua senhora: “Volta para a tua senhora, e humilha-te debaixo de sua mão” (Gn 16, 9), indicando com isso que Sara praticava um domínio legítimo sobre sua escrava. Agar não só deveria voltar, mas humilhar-se perante sua senhora. Alguns anos depois, quando Isaac nasceu, Sara pede a Abraão que ordene a expulsão de Agar e Ismael: “Expulsa esta escrava e o seu filho, porque o filho da escrava não há de ser herdeiro com meu filho Isaac”. Abraão relutava, mas Deus lhe responde: “Não te pareça áspero tratar assim o menino e a tua escrava. Atende Sara em tudo o que ela te disser, porque de Isaac sairá a descendência que há de ter o teu nome. Mas também do filho da escrava farei um grande povo, por ser teu sangue” (Gn 21, 8-13). Vê-se no episódio que Deus respeita os direitos de Sara sobre Agar mandando cumprir o que ela determinara. No entanto, Ismael não poderia ficar com Agar naquela localidade, onde o menino teria direitos hereditários sobre Isaac, mas tinham que ir para outro lugar onde não houvesse tal costume.


Deus faz seu povo eleito escravo de um outro


A descendência de Abraão é prometida profeticamente como numerosa, mas que “será reduzida à escravidão” (Gn 15, 13) por mais de 400 anos. Então, Deus desejava que houvesse uma escravidão que fosse exercida sobre todo um povo, e o seu Povo Eleito, como meio de fazê-lo perfeito. Aqui não se trata propriamente de uma maldição, mas algo parecido, pois Deus assim condena a descendência de Abraão, depois que "um horror grande e tenebroso o acometeu": "Sabe, desde agora, que a tua descendência será peregrina numa terra não sua, será reduzida à escravidão, e afligida durante quatrocentos anos". Logo depois, Deus estabelece o prêmio: "Mas eu exercerei os meus juízos sobre o povo ao qual estiverem sujeitos; e sairão depois (desse país) com grandes riquezas" (Gn 15, 13-14).


Que teria ocorrido para que Deus estabelecesse o castigo da escravidão aos descendentes de Abraão? Tudo indica que o Patriarca não cumpriu fielmente a ordem de fazer o sacrifício que Deus ordenara anteriormente. Abraão abriu a vaca, a cabra e o carneiro, dividiu-os ao meio e pôs as partes uma defronte da outra. Mas não fez o mesmo com as aves, a rola e a pomba. É provável, pelo que se depreende do texto, que ele nem sequer tenha matado as aves, pois estas "desciam sobre os cadáveres" e eram enxotadas pelo Patriarca. Como é que elas desciam sobre os cadáveres dos animais se estes estivessem na fogueira do sacrifício? Será que Abraão relutava em fazer o sacrifício ou estava tentando fazer algo próprio, diferente daquilo que Deus ordenara? Deduz-se, pelo fato de ter havido a maldição da escravidão de sua descendência, que o Patriarca não fizera um sacrifício perfeito como Deus ordenara.


Quando Deus dava a Abraão instruções sobre a circuncisão, uma aliança que fazia com seu Patriarca e seu Povo, falou dos escravos como coisa natural e sem censura: “...tanto o escravo (nascido em casa), como o que comprardes, e qualquer que não seja da vossa linhagem, serão circundados” (Gn 17, 12). Então, haviam dois tipos de escravos que moravam com Abraão, os nascidos em casa e alguns que ele havia comprado, ou que alguém os comprara, sem que isto fosse motivo de censura e recriminação por parte de Deus.


A escravidão entre os hebreus


A escravidão proporcionava um espírito, o de servir. Desta forma, todos os bons procuravam imitar aqueles escravos mais fiéis que lhe serviam de forma voluntária e simples. E assim, também os senhores tinham vontade de ser escravos, mas de alguém superior ou do próprio Deus. Quando os três anjos apareceram a Abraão, este os chama de senhor, prostrado em terra: “Senhor, se achei graça diante dos teus olhos, não passes adiante do teu servo” (Gn 18, 3). Neste momento, Abraão presta um preito de vassalagem, chama o anjo de Senhor (ele o vê em figura humana) e se proclama seu servo, ou seu escravo, oferecendo-lhe em seguida comida e hospedagem. De forma diferente ele saudou o anjo que lhe impediu de imolar Isaac no monte: “Aqui estou”, responde simplesmente (Gn 22, 11). Na outra aparição angélica, tal era o gosto que Abraão manifestou em servir, que os anjos aceitaram a comida e a hospedagem que lhes foi oferecida, embora fossem eles espíritos puros e não dependessem de nada material para seu sustento. O objetivo dos anjos era apenas dar uma mensagem, mas só o fizeram depois que “comeram”.


Um dos escravos mais fiéis de Abraão foi sem dúvida Eliezer, portador de uma mensagem aos seus parentes a fim de conseguir uma esposa para o filho Isaac: “O Senhor encheu de bênçãos o meu senhor, o engrandeceu, deu-lhe ovelhas, bois, prata e ouro, criados e criadas, camelos e jumentos. E Sara, mulher do meu senhor, deu à luz na sua velhice um filho ao meu senhor, a quem ele deu tudo o que tinha” (Gn 24, 34-36). Após descrever tudo, Eliezer pede finalmente aos parentes de Abraão uma esposa para Isaac. Quando ouviu a resposta: “Eis Rebeca na tua presença, toma-a, parte, e seja esposa do filho de teu senhor, conforme o Senhor falou”, prostrou-se por terra, adorou o Senhor, e voltou com Rabeca para seu país. Note-se a linguagem: meu senhor, filho do teu senhor, etc., indicando posse e domínio de um sobre o outro.


O procedimento de Lot foi o mesmo. Quando os dois anjos designados para destruir Sodoma, Gomorra e Segor (eram três, e um ficou com Abraão) chegaram, prostrou-se aos seus pés chamando-os de Senhor e procurando servir-lhes. Os anjos para experimentar a bondade de Lot recusaram sua oferta de hospedagem e disseram que iriam ficar na praça, mas o Patriarca insistiu e lhes ofereceu um banquete. Também neste momento os anjos “comeram” (Gn 19, 3). Era tal o respeito que Lot tinha ao sagrado costume de hospedagem que ofereceu suas filhas aos habitantes que queriam “conhecer” os visitantes, dizendo que abusassem delas como quisessem mas deixassem seus hóspedes em paz., “porque se acolheram à sombra do meu teto” (Gn 19, 8).


O costume de manter escravos era mais usado por pessoas de grandes posses, como era o caso de Abraão. Lot, no entanto, parecia ser menos dotado de recursos, e quando deixou Sodoma só levava sua mulher e duas filhas. Não se fala em escravos. Fugiu para Segor, antes denominada Bala, (poupada pelos anjos a seu pedido), uma cidade pequena, onde talvez os clamores dos pecados não tivessem atingido tão alto e lá ficaram a salvo, com exceção de sua mulher, que, olhando para trás, virou estátua de sal.


Eram cinco as cidades circunvizinhas onde morava Lot (Sodoma, Gomorra, Adama, Seboim e Bala), dominadas por Sodoma, comumente chamadas Pentápolis, e onde o espírito de orgulho predominava talvez porque não havia escravidão. Quando Lot caminhava com Abraão em busca da Terra Prometida, em certo lugar seguiram por caminhos diferentes, indo Abraão para Canaã e Lot para uma região em volta do Jordão “toda regada de água, como o paraíso do Senhor” , cujos homens porém eram péssimos e grandes pecadores diante de Deus (Gn 13, 10 e 13). Já há referências a petróleo existente na região, conforme diz a Escritura: “Ora o vale das árvores tinha muitos poços de betume” (Gn 14, 10). Havia portanto muita riqueza, pois o betume já era muito utilizado, e exuberância da terra.


O Profeta Ezequiel, por inspiração divina, diz qual o motivo da perdição de Sodoma: “Eis qual foi a (causa da) iniqüidade de Sodoma, tua irmã: a soberba, a fartura de pão e abundância, a ociosidade dela e das suas filhas, e o não estender a mão para o pobre indigente. Elevaram-se e cometeram abominações diante de mim” (Ez 16, 49-50). Os pecados contra a natureza eram as abominações em seu auge, mas o que gerou tudo foi o orgulho por se encontrar em grande comodidade e fartura, esquecendo-se de Deus e seus justos juízos.


Não foi o mesmo o que ocorreu com os povos que viviam ao redor de Abraão, com uma vida peregrina e difícil. Apesar disto dão-lhe muitos bens, como fez Abimelec, oferecendo-lhe “ovelhas e bois, e escravos e escravas” (Gn 20, 14). Embora fosse habitualmente presenteado com riquezas, Abraão dava o melhor de si a Deus, inclusive quis imolar o próprio filho (Gn 22), Quem considera seu Senhor e de Quem se considerava um servo, um escravo.


Esta disposição de servir, este desejo de se tornar até mesmo escravo de alguém que considere seu superior, de tal forma estava enraizado na família de Abraão, que inspirou os belos episódios futuros em seus descendentes, como foi o caso do Patriarca Jacó.


Nova escravidão como castigo


Quando os hebreus se estabeleceram na Palestina e já progrediam materialmente com sua cultura, tinham um Templo muito rico e uma elite cultural respeitada, Deus os fez tornar-se escravos novamente. Desta vez o castigo foi mais doloroso do que ao tempo de Abraão, pois Nabucodonosor levou não só a elite judaica como sua escrava, mas carregou consigo todas as riquezas do templo sagrado. Desta vez, porém, não foi todo o povo que foi tornado escravo.


A primeira deportação de judeus para o cativeiro da Babilônia deu-se no reinado de Oséias (732-724 a. C.), por causa da grande decadência que havia no reino da Samaria. Nesta época, o povo eleito estava dividido em dois reinos, o da Samaria e o de Judá.


Mas a pior escravidão é a que foi imposta ao reino de Judá, deportado para a Assíria (Babilônia) no reinado de Manassés (693-639 a. C.) e durou setenta anos. Foi esta escravidão que propiciou o surgimento de grandes heróis hebreus, como Ester, Esdras e Neemias, e grandes profetas como Daniel e Jeremias. A respeito desta escravidão, assim falou Neemias: “Eis que nós mesmos hoje somos escravos, como também o é a terra que deste a nossos pais, para lhe comerem o pão e os frutos que ela produzisse, nós mesmos também somos escravos nela. Os seus frutos multiplicam para os reis que tu puseste sobre nós, por causa dos nossos pecados, e eles dominam sobre nossos corpos e sobre nossos animais, como bem lhes apraz, e nós estamos numa grande tribulação”. (Neemias 9, 36-37).


Rabeca e Jacó, prefiguras bíblicas da Sagrada Escravidão


A melhor descrição sobre prefiguras bíblicas da Sagrada Escravidão, encontramos nas vidas de Rebeca e Jacó descritas por São Luís Grignion de Montfort no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem:


“De todas verdades que acabo de descrever em relação à Santíssima Virgem, o Espírito Santo nos apresenta, na Sagrada Escritura (Gn), uma figura admirável na história de Jacó, o qual recebeu a bênção de Isaac, graças à solicitude e engenho de sua mãe Rebeca.


Ei-la tal como a conta o Espírito Santo. Em seguida ajuntarei a explicação.


Rebeca e Jacó – História de Jacó


Esaú vendera a Jacó, seu direito de progenitura. Anos depois, Rebeca, mãe dos dois irmãos, assegurou a Jacó, - que ela amava ternamente – as vantagens daquele privilégio, empregando, para isto, uma astúcia santa e cheia de mistério. Pois Isaac, sentindo-se extremamente velho, quis, antes de morrer, abençoar seus filhos, e, chamando Esaú, o preferido, ordenou-lhe que fosse caçar algo para ele comer. Depois o abençoaria. Rebeca, prontamente, pôs Jacó ao corrente do que se passava, e disse-lhe que fosse buscar dois cabritos no rebanho. Assim que lhos trouxe, ela os preparou de modo que Isaac mais gostava. Em seguida, com as vestes de Esaú, que ela guardava, vestiu Jacó e com as peles dos cabritos envolveu-lhe o pescoço e as mãos, a fim de que Isaac, que não podia ver, acreditasse, tateando-lhe as mãos, que fosse Esaú, embora ouvindo a voz de Jacó. Isaac, com efeito, ficou surpreso ao ouvir a voz que ele reconhecia como a de Jacó, mas, fazendo-o aproximar-se e tateando-lhe os pêlos que cobriam as mãos do filho, murmurou: Em verdade a voz é de Jacó, mas as mãos são de Esaú. E, convencido, comeu. Em seguida, ao beijar Jacó sentiu a fragrância das roupas de Esaú,o que acabou por dissipar-lhe as dúvidas. Abençoou-o, então, e desejou-lhe o orvalho do céu e a fecundidade da terra; estabeleceu-o senhor de todos os seus irmãos, e terminou a bênção com estas palavras: “Aquele que te amaldiçoar seja amaldiçoado, e aquele que te abençoar seja cumulado de bênçãos”.


Apenas Isaac acabara de falar, entrou Esaú, trazendo um guisado da caça que abatera, e o apresentou ao pai, pedindo-lhe que comesse e em seguida o abençoasse. O santo patriarca ficou extremamente surpreendido, ao ficar ciente do engano, mas, longe de retratar o que fizera, confirmou-o, pois reconhecia no fato, evidentemente, o dedo de Deus. Então Esaú, como observa a Sagrada Escritura, gritou com grande clamor, e acusando em altas vozes o embuste do seu irmão, perguntou ao pai se ele não tinha outra bênção. Neste ponto, notam os Santos Padres, ele era a imagem dos que facilmente conciliam Deus com o mundo, querendo gozar ao mesmo tempo as consolações do céu e as da terra. Isaac, comovido pelos gritos de Esaú, abençoou-o, enfim, mas a bênção que lhe deu foi uma bênção terrena, sujeitando-o ao irmão. Por isso Esaú concebeu um ódio tão profundo contra Jacó que, para matá-lo, só esperava a morte do pai. E Jacó não teria podido evitar a morte, se sua extremosa mãe Rebeca não o protegesse com sua habilidade e os bons conselhos que lhe deu e que ele seguiu.


Interpretação da história de Jacó


Antes de explicar esta história tão bela, é preciso notar que, conforme todos os Santos Padres e intérpretes da Sagrada Escritura, Jacó é figura de Jesus Cristo e dos predestinados, enquanto Esaú é figura dos réprobos; basta, apenas, examinar a atitude de um e de outro para verificá-lo.


Esaú, figura dos réprobos


1º - Esaú, o mais velho, era forte e robusto de corpo, destro e habilidoso no manejo do arco e na arte da caça.


2º - Quase não parava em casa, e, confiante em sua força e destreza, só trabalhava fora, ao ar livre.


3º - Pouco se incomodava de agradar a sua mãe Rebeca, e nada fazia por ela.


4º - Era guloso e gostava tanto de satisfazer o paladar, que chegou a vender seu direito de progenitura por um prato de lentilhas.


5º - Estava, como Caim, cheio de inveja de seu irmão Jacó, e o perseguia sem tréguas.


Eis a conduta dos réprobos, todos os dias:


1º - Fiam-se em sua força e indústria nos negócios temporais; são muito fortes, muito hábeis e esclarecidos para as coisas da terra, mas extremamente fracos e ignorantes nas coisas do céu: “In terrenis fortes, in caelestibus debiles”. Por isso:


2º - Não se demoram ou se demoram muito pouco em sua própria casa, quer dizer, no seu interior, que é a casa interior e essencial dada por Deus a cada homem para aí morar, conforme seu exemplo, pois Deus mora sempre em sua casa. Os réprobos não amam o retiro, nem a espiritualidade, nem a devoção interior e chamam de espíritos acanhados, carolas e selvagens aqueles que são espirituais e retirados do mundo, e que trabalham mais no interior do que fora.


3º - Os réprobos não se preocupam de modo algum com a devoção à Santíssima Virgem, a Mãe dos predestinados. É verdade que não a odeiam formalmente, fazem-lhe às vezes um elogio, dizem que a amam, praticam até alguma devoção em sua honra, mas, de resto, não suportariam vê-la amada ternamente, porque não têm para ela as ternuras de Jacó. Acham motivo de censura nas práticas de devoção, a que se entregam os bons filhos e servos da Virgem Santíssima para obter sua afeição, na certeza de que esta devoção lhes é necessária à salvação, e acham mais que, desde que não odeiam formalmente a Santíssima Virgem, e que não desprezam abertamente sua devoção, isso é bastante e já ganharam as boas graças da Santíssima Virgem e são seus servos, ao recitarem ou resmungarem algumas orações em sua honra, sem a menor ternura por ela nem emenda para eles.


4º - Esses réprobos vendem seu direito de progenitura, isto é, os gozos do paraíso, por um prato de lentilhas, os prazeres da terra. Riem, bebem, comem, divertem-se, jogam, dançam, etc..., sem a mínima preocupação, como Esaú, de se tornarem dignos da bênção do Pai celeste. Em três palavras, eles só pensam na terra, só amam a terra, só falam e agem pela terra e pelos prazeres terrenos, vendendo, por um instante de prazer, por uma vã fumaça de honra, e por um pedaço de matéria amarela ou branca, a graça batismal, sua veste de inocência, sua celestial herança.


5º - Os réprobos, finalmente, em segredo ou às claras, odeiam e perseguem diariamente os predestinados. Prejudicam-nos quanto podem, desprezam-nos, roubam-nos, enganam-nos, empobrecem-nos, expulsam-nos, reduzem-nos a pó; enquanto eles mesmos fazem fortuna, gozam seus prazeres, vivem em situação esplêndida, enriquecem, se engrandecem e levam vida folgada.


Jacó, figura dos predestinados


1º - Jacó, o caçula, era de compleição franzina, meigo e sossegado. Permanecia em casa o mais possível, para ganhar as graças de sua Mãe Rebeca, que o amava ternamente. Se saía de casa, não o fazia por vontade própria, nem por confiança em sua própria habilidade, mas para obedecer a sua mãe.


2º - Amava e honrava sua mãe: por isso ficava em casa junto dela. Seu maior entretenimento era vê-la; evitava tudo que pudesse desagradar-lhe e fazia tudo que imaginava agradar-lhe. Tudo isso concorria para aumentar em Rebeca o amor que dedicava ao filho.


3º - Em todas as coisas ele era submisso à sua mãe, obedecia-lhe inteiramente em tudo, com obediência pronta, sem tardanças, e amorosa, sem queixas; ao menor sinal da vontade materna, o pequeno Jacó corria e trabalhava. Acreditava piamente, sem discutir, em tudo que a mãe lhe dizia: por exemplo, quando Rebeca o mandou buscar os dois cabritos, e ele os trouxe a fim de ela os preparar para Isaac, Jacó não replicou nem observou que bastava um para satisfazer o apetite de um só homem, mas, sem discernir, fez exatamente como ela mandou.


4º - Ele depositava uma confiança sem limites em sua querida mãe; como não contava absolutamente com sua própria experiência, apoiava-se unicamente na proteção e nos desvelos maternos. Chamava por ela em todas as suas necessidades e consultava-a em todas as suas dúvidas: por exemplo, quando lhe perguntou se, em vez da bênção, não receberia a maldição de seu pai, creu e confiou na resposta que ela lhe deu de que tomaria sobre si a maldição.


5º - Ele imitava, enfim, na medida de sua capacidade, as virtudes que via em sua mãe; e parece que uma das razões por que ele permanecia em casa, tão sedentário, é que procurava imitar sua virtuosa mãe, e afastar-se de más companhias, que corrompem os costumes. Por tal motivo, tornou-se digno de receber a dupla bênção de seu querido pai.


Eis também a conduta diária dos predestinados:


1º - Vivem em casa, sedentariamente, com sua mãe, quer dizer, amam o recolhimento, são interiores, e se aplicam à oração, mas conforme o exemplo e a companhia de sua Mãe, a Santíssima Virgem, cuja glória está toda no interior e que, durante a vida inteira, tanto amou o retiro e a oração. É verdade que aparecem às vezes fora, no mundo; fazem-no, porém, em obediência à vontade de Deus e de sua querida Mãe, para cumprir os deveres de seu estado. Por grandes coisas que façam no exterior e que apareçam, preferem muito mais as que fazem no interior, em companhia da Santíssima Virgem, porque aí executam a grande obra de sua perfeição, ao lado da qual todas as outras são como brinquedos de criança. Por isso, enquanto que seus irmãos e irmãs trabalham muitas vezes para o exterior com mais entusiasmo, habilidade e sucesso, recebendo os louvores e aprovações do mundo, eles sabem, pela luz do Espírito Santo, que há muito mais glória, bem e prazer em permanecer oculto no reconhecimento com Jesus Cristo, seu modelo, numa submissão inteira e perfeita a sua Mãe, do que em realizar, por si próprio, maravilhas naturais e da graça no mundo, como tantos Esaús e réprobos. “Gloria et divitiae in domo eius” (Sl 111, 3) – a glória para Deus e as riquezas para os homens encontram-se na casa de Maria.


Senhor Jesus, quão amáveis são vossos tabernáculos! O pardal encontrou uma casa para se alojar, e a rola, um ninho, onde abrigar seus filhotes. Oh! como é feliz o homem que mora na casa de Maria, na qual fizeste, primeiro, a vossa morada! É nesta casa de predestinados que ele de vós somente recebe socorro, e em seu coração dispôs subidas e degraus de todas as virtudes, para elevar-se à perfeição neste vale de lágrimas. “Quam dilecta tabernacula...” (Sl 83, 2).


2º - Eles amam ternamente e honram em verdade a Santíssima Virgem, como sua boa Mãe e Senhora. Amam-na não só com a boca, mas verdadeiramente; honram-na não só no exterior, mas no fundo do coração; evitam, como Jacó, tudo que pode desagradar-lhe, e praticam com fervor tudo que crêem poder adquirir-lhes sua benevolência. Trazem-lhe e lhe entregam não só dois cabritos como Jacó e Rebeca, mas seu corpo e sua alma, com tudo que do corpo e da alma depende, de que são figura os dois cabritos de Jacó, 1º para que Ela os receba como um dom que lhe pertence; 2º para que os sacrifique e faça morrer ao pecado e a si próprios, escorchando-os e despojando-os da própria pele de seu amor-próprio, e para agradar , por este meio a Jesus, seu Filho, que não quer para amigos e discípulos, senão aqueles que estiverem mortos a si mesmos; 3º para que os prepare ao gosto do Pai celeste, e para servir à sua maior glória, que ela conhece melhor que nenhuma outra criatura; 4º para que, por seus cuidados e intercessões, este corpo e esta alma, purificados de toda mancha, bem mortos, bem despojados e bem preparados, sejam um manjar delicado, digno do paladar e da bênção do Pai celeste. Não é o que farão as pessoas predestinadas, que apreciarão e praticarão a consagração perfeita a Jesus Cristo pelas mãos de Maria, como lhes ensinamos, para testemunhar a Jesus e Maria um amor efetivo e corajoso?


Os réprobos dizem que amam a Jesus, que honram Maria, mas não com sua substância, com os seus haveres, ao ponto de lhes sacrificar seu corpo com os sentidos, sua alma com todas as paixões, como fazem os predestinados.


3º - Eles são submissos e obedientes à Santíssima Virgem, como a sua boa Mãe, a exemplo de Jesus Cristo, que, dos trinta e três anos que viveu sobre a terra, dedicou trinta a glorificar a Deus seu Pai, por uma perfeita e inteira submissão a sua Mãe Santíssima. A Ela obedeceu, seguindo com exatidão os seus conselhos, como o pequeno Jacó seguia os de sua mãe, que lhe diz: “Acquiesce consilliis meis” (Gn 27, 8) – Meu filho, segue meus conselhos; ou como os criados nas bodas de Caná, aos quais a Santíssima Virgem diz: “Quodcumque dixerit vobis facite” – Fazei tudo o que Ele vos disser (Jo 2, 5). Por ter obedecido a sua mãe, Jacó recebeu a bênção, como por milagre, embora por direito natural não devesse recebê-la; porque os servos nas bodas de Caná seguiram o conselho da Santíssima Virgem, foram honrados com o primeiro milagre de Jesus Cristo, que nessa ocasião. a pedido de sua Mãe, converteu a água em vinho. Assim, todos aqueles que até ao fim dos séculos receberem a bênção do Pai celeste, e forem honrados com as maravilhas de Deus, só receberão estas graças em conseqüência de sua perfeita obediência a Maria; os Esaús, ao contrário, perderão sua bênção, por falta de submissão à Santíssima Virgem.


4º - Os predestinados têm uma grande confiança na bondade e no poder da Santíssima Virgem; reclamam sem cessar seu socorro; olham-na como a estrela polar guiando-os a seguro porto; comunicam-lhe, com o coração aberto, suas penas e suas necessidades; acolhem-se à sua misericórdia e doçura para, por sua intercessão, alcançar o perdão de seus pecados, ou para gozar de seus maternais carinhos em suas aflições e contrariedades. Atiram-se até, escondem-se e se perdem dum modo admirável em seu regaço amoroso e virginal, para aí ficarem abrasados de amor, para aí se purificarem das menores manchas, e para aí encontrarem plenamente a Jesus, que aí reside como no mais glorioso dos tronos. Oh! que felicidade! “Não creiais, diz o abade Guerrico, que seja maior felicidade habitar o seio de Abraão que o seio de Maria, pois neste colocou o Senhor o seu trono: Ne credideris maioris esse felicitatis habitare in sinu Abrahae quam in sinu Mariae, cum in eo Dominus posuerit thronum suum”.


Os réprobos, ao contrário, põem toda a confiança em si próprios, só comem, como o filho pródigo, o que comem os porcos; como os vermes, só se alimentam da terra; e porque amam somente as coisas visíveis e passageiras, como os mundanos, não apreciam as doçuras e suavidades do seio de Maria. Não sentem aquele apoio e aquela confiança que os predestinados sentem pela Santíssima Virgem, sua boa Mãe. Amam miseravelmente sua fome exterior, como diz São Gregório, porque não querem provar a suavidade que está preparada ao próprio íntimo deles e no íntimo de Jesus e de Maria.


5º - Finalmente, os predestinados mantêm-se nos caminhos da Santíssima Virgem, isto é, imitam-na, e nisto eles são verdadeiramente felizes e devotos, trazendo assim o sinal infalível de sua predestinação. Esta boa Mãe lhes diz: “Beati qui custodiunt vias meas” (Prov 8, 32). – Bem-Aventurados os que praticam minhas virtudes, e caminham sobre as pegadas de minha vida, com o socorro da divina graça. Eles são felizes neste mundo, durante sua vida, devido à abundância de graças e de doçuras que eu lhes comunico de minha plenitude e com muito mais abundância que aos outros que não me imitam tão esforçadamente; eles são felizes em sua morte, que é doce e tranqüila, e na qual eu os assisto, para os conduzir às alegrias da eternidade; serão, finalmente, felizes na eternidade, porque jamais se perdeu algum dos meus servos, que durante a vida tenha imitado fielmente as minhas virtudes.


Os réprobos, ao contrário, são infelizes durante a vida, em sua morte e na eternidade, porque não imitam a Santíssima Virgem em suas virtudes, contentando-se com pertencer a alguma de suas confrarias, com recitar uma ou outra oração em sua honra ou fazer qualquer devoção exterior.


Ó Virgem Santíssima, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles – eu o repito com transportes de coração – quão felizes são aqueles que, sem se deixar seduzir por uma falsa devoção, guardam fielmente vossos caminhos, vossos conselhos e vossas ordens! Quão infelizes, porém, e malditos, aqueles que, abusando de vossa devoção, não guardam os mandamentos de vosso Filho! “Maledicti omnes qui declinant a mandatis tuis” – Malditos os que se afastam de teus mandamentos (Sl 118, 21).

(“Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” – São Luís Grigênion de Montfort – Editora Vozes – págs. 177/192).


Havia uma dependência de vassalagem entre Esaú e Jacó


São Luís Grignion não esmiúça o caso de Esaú e Jacó inteiramente, detendo-se apenas no essencial e fazendo a comparação naquilo que os dois prefiguram: os predestinados e os réprobos. No entanto, a Sagrada Escritura nos fornece mais detalhes a respeito do espírito de escravidão que vigorava então.


Quando Isaac deu a segunda bênção (meramente terrena) a Esaú, atendendo seu insistente pedido, afirmou que constituiu Jacó como Senhor de Esaú: “Eu o constituí teu senhor, e sujeitei à sua servidão todos os seus irmãos; estabeleci-o na posse do trigo e do vinho; depois disto, meu filho, que te posso eu fazer?” (Gn 27, 37). Em seguida Isaac o abençoa “na abundância da terra , e no orvalho do alto do céu” e que, doravante, Esaú viveria da espada e “servirá a teu irmão”. Quer dizer, ao mesmo tempo que Esaú era servo de seu irmão deveria também servi-lo com sua espada, com seu poder, com sua força, com suas riquezas, etc. Veremos de que forma Esaú cumpriu ou não esta bênção.


Já Jacó entendeu a coisa de forma diferente. Como a bênção foi dada por engano, Isaac pensando que era Esaú que estava ali presente, para todos os efeitos era como se tivesse sido dado a Esaú o senhorio sobre o irmão e não a Jacó sobre Esaú. Talvez seja por haver entendido a coisa assim, e também por ser mais servil do que o irmão, que Jacó mais adiante considere Esaú como seu senhor, como veremos mais abaixo.


De imediato o que tomou conta do coração de Esaú foi uma grande inveja e um profundo ódio contra seu irmão. E tal foi o ódio que planejava matá-lo. Veja-se nesse ódio invejoso o mesmo que Caim teve contra Abel. A história estava se repetindo: dois irmãos se odeiam, um por seguir o caminho do Bem e o outro o do Mal. A única diferença é que Jacó se livrou de haver sido morto pelo irmão por causa da intervenção materna. Virtude que certamente faltou à Eva para salvar Abel das mãos de Caim. Mais uma vez, sobressai-se a bondade e o espírito materno de proteção que tinha Rebeca: sabendo de tudo, chama Jacó e o avisa dos propósitos de Esaú e aconselha-o a fugir: “Agora, pois, meu filho, ouve a minha voz, e foge ligeiro para junto de Labão, meu irmão, em Haran; habitarás com ele algum tempo, até que se aplaque o furor de teu irmão, cesse a sua indignação, e se esqueça do que lhe fizeste; depois mandarei (lá alguém) e te farei conduzir de lá para aqui” (Gn 27, 41-45).


Era tamanha a benquerença entre mãe e filho, que Rabeca usa de uma linguagem toda cativante e afável: “ouve, pois, meu filho, a minha voz”, quer dizer, mais uma vez me seja obediente, ouça meus conselhos; “e foge ligeiro”, quer dizer, não deves se prevalecer de tua força e ir enfrentar com orgulho teu irmão, mas foge, e foge ligeiro, pois ele procura matá-lo. Completando a sua preocupação bondosa para com o filho, promete depois mandar buscá-lo, pois julgava que não teria condições de vir sozinho. Talvez pensasse ela que Jacó, deserdado dos bens terrenos, pois tinha recebido apenas a bênção celeste, viveria lá em situação de penúria e não teria condições de retornar por si mesmo à sua casa. Realmente, era esta a situação de Jacó, pois ainda a caminho, depois da visão celeste que teve, dizia: “Se Deus for comigo, e me proteger na viagem que empreendi, e me der pão para comer e vestido para me cobrir, e eu voltar felizmente à casa de meu pai, o Senhor será meu Deus” (Gn 28, 20-21). Quando retornava, já rico, para sua terra dizia: atravessei o Jordão somente com meu bastão e agora volto cheio de riquezas, etc. E foi por isto que Rebeca promete-lhe que mandará alguém ir buscá-lo.


A História registra que tudo ocorreu diferente. Jacó realmente fugiu para a casa de seus tios. Sua mãe, preocupada havia pedido a Isaac que mandasse o filho lá para conseguir uma noiva e se casar. E foi com este propósito que Isaac autorizou a viagem do filho. Enquanto Jacó foge para não ser morto e conseguir uma esposa proba e honesta para se casar, Esaú faz o contrário. Tendo escutado o pai dizer a Jacó que não se casasse com mulher de Canaã, povo decadente, Esaú faz exatamente o contrário e “além das que já tinha, tomou por mulher a Maelet...” causando grande desgosto a Isaac.


Quanto a Jacó, teve em país estranho uma vida muito abençoada. Por causa de sua obediência, recebeu copiosas graças de Deus. Ainda a caminho da casa dos tios, teve a famosa visão da Igreja, representada por uma grande escada que ia da terra até tocar no céu, e os anjos descendo e subindo por ela. E Deus, no alto da escada, dava-lhe uma bênção, dizendo: “Eu sou o Senhor Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaac; darei a ti e à tua descendência a terra em que dormes. A tua posteridade será como o pó da terra; dilatar-te-ás para o ocidente, para o oriente, para o setentrião e para o meio-dia; serão abençoadas em ti e na tua geração todas as tribos da terra. Eu serei o teu protetor para onde quer que fores, reconduzir-te-ei a esta terra, e não te abandonarei sem cumprir tudo o que disse” (Gn 28, 13-16).


Depois que consagrou aquele lugar, chamando-o de Betel, Jacó continua sua viagem até chegar a Haran. Envolvido por artifícios criados pelo seu tio e suas mulheres, Jacó termina se casando com as duas filhas de Labão, Lia e Raquel, e ainda tendo filhos de suas escravas, chamadas Bala e Zelfa. Os primeiros filhos, Rubem, Simeão, Levi e Judá, nasceram de Lia; o quinto e sexto filhos, Dan e Neftali, nasceram da escrava Bala; o sétimo e oitavo filhos, Gad e Aser, nasceram de Zelfa; o nono e décimo filhos, Issacar e Zabulão, vieram novamente de Lia, e ainda uma filha chamada Dina; finalmente, Raquel consegue ter dois filhos, José e Benjamin, completando os doze varões que formaram as tribos judaicas.


De tal forma Deus cumulou Jacó de bênçãos que ao retornar para a casa de seus pais, possuía além de numerosa prole grande fortuna. Da mesma forma, foi beneficiado por visões angélicas, num lugar chamado Maanaim ou “acampamento de Deus” (Gn 32, 2), tal era a quantidade de anjos que foram ao seu encontro. Mais adiante, ainda a caminho, manteve encontro com um anjo que resultou numa luta: “e eis que um homem lutou com ele até pela manhã. O qual, vendo que o não podia vencer, tocou o nervo da sua coxa, e logo este se secou. E disse-lhe: larga-me, porque já vem vindo a aurora. (Jacó) respondeu: Não te largarei, se não me abençoares. Disse-lhe, pois (aquele homem): Qual é o teu nome? Respondeu: Jacó. Porém ele disse: De nenhuma sorte te chamarás Jacó, mas Israel; porque, se contra Deus foste forte, quanto mais o serás contra os homens. Perguntou-lhe Jacó: Dize-me, como te chamas? Respondeu: Por que me perguntas o meu nome? E abençoou-o no mesmo lugar. Jacó pôs àquele lugar o nome de Famuel, dizendo: Eu vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva. Logo o sol lhe nasceu, depois que ultrapassou Famuel; ele, porém, coxeava de um pé. Por esta razão os filhos de Israel até ao dia de hoje não comem o nervo que se secou na coxa de Jacó, porque (aquele homem) tocou o nervo da sua coxa, e ficou entorpecido” (Gn 32, 24-32).


Espírito de escravidão e vassalagem entre irmãos


Veremos como Jacó se comporta com relação a seu irmão. Partindo do pressuposto de que a bênção de Isaac tinha constituído Esaú como seu senhor (assim ele o entendeu), passa a considerá-lo como tal. Quando se dirigia à casa de seus pais, para onde retornava com suas esposas e filhos, Jacó manda avisar a seu irmão Esaú, dizendo aos mensageiros: “Falai assim a Esaú, meu senhor..” Primeiramente, Jacó dá a entender a Esaú que reconhece-lhe a servidão e o chama de senhor, pois parece-lhe que foi este o desejo de Isaac na hora de sua bênção. Em seguida, manda o mensageiro dizer a Esaú que ele estava retornando muito rico, cheio de gado e de posses: ”Tenho bois, jumentos, ovelhas, servos e servas, e mando agora um embaixada ao meu senhor, para achar graça diante dele”. Dizer que tinha muitos animais não era suficiente para comprovar sua riqueza, era necessário que tivesse também “servos e servas”, quer dizer, escravos, a seu serviço, e ainda por cima um embaixador para levar sua mensagem. Em seguida, o chama novamente de “senhor” e lhe pede graças, pede o seu beneplácito, como que autorização para entrar em seus domínios.


Trata-se evidentemente de um preito de vassalagem. Jacó se considera servo de Esaú e o chama o tempo todo de senhor. O termo “servo” pode muito bem ser entendido como “escravo”, pois naqueles tempos eram termos correlatos. A Sagrada Escritura refere-se a escravos com o termo servos.


Ao receber a mensagem, Esaú saiu a toda pressa para encontrar-se com o irmão acompanhado de quatrocentos homens. Jacó temia que ele viesse com más intenções e por isso usou de um estratagema. Dividiu o povo que estava com ele, assim como seu rebanho, em duas partes, dizendo: “Se vier Esaú a uma partida, e a desbaratar, a outra partida, que resta, se salvará”. Para ressaltar que havia enriquecido pelo poder de Deus, assim se expressou: “Passei o Jordão só com o meu bastão; e agora volto com duas partidas. Livra-me das mãos de meu irmão Esaú, porque o temo muito”. Em seguida separou os presentes que iria dar a seu irmão: duzentas cabras, vinte bodes, duzentas ovelhas e vinte carneiros, trinta camelos com suas crias, quarenta vacas e vinte touros, vinte jumentas e dez das suas crias. Finalmente, ordenou que seus servos conduzissem os rebanhos separadamente, com intervalos entre um rebanho e outro, com a seguinte estratégia: “Se te encontrares com meu irmão Esaú, e ele te perguntar: De quem és? ou, para onde vais? ou, de quem são estes animais que conduzes? Responderás: são de teu servo Jacó, ele os mandou de presente a meu senhor Esaú; ele mesmo vem atrás de nós”. As mesmas ordens foram dadas a todos os que conduziam os rebanhos, sempre insistindo que chamassem Jacó de servo e Esaú de senhor.


A estratégia deu certo. Com isto, Jacó conseguiu aplacar o ódio de Esaú, que via agora em seu irmão um homem poderoso a seu serviço. Foi neste meio tempo que Jacó teve o encontro com um anjo e lutou com ele. Logo em seguida houve o tão esperado encontro dos irmãos. Dir-se-ia que haveria luta, mas Deus abençoou tudo de tal forma que Esaú recebeu bem a seu irmão.


Mesmo no momento de encontrar-se, Jacó não confiou inteiramente em Esaú. Colocou na frente as escravas Bala e Zelfa com seus filhos, e logo atrás as esposas Lia e Raquel com os delas também. O momento do encontro foi muito cerimonioso e respeitoso da parte de Jacó: “E ele, adiantando-se, prostrou-se sete vezes por terra, até seu irmão se aproximar” . Da mesma forma inclinaram-se profundamente as esposas, filhos e escravas. Isto não pareceu a Esaú um sinal de fraqueza ou de humilhação, a tal ponto que o mesmo correu imediatamente ao encontro do irmão e o abraçou e beijou chorando. Após perguntar quem eram as mulheres e os filhos de Jacó, Esaú perguntou sobre os rebanhos, tendo Jacó respondido: enviei-os para achar graça perante meu senhor. Jacó sempre repetindo o título de vassalagem, o poder que lhe parecia que Isaac tinha dado de seu irmão sobre ele, de ser seu senhor.


Esaú recusa as ofertas, alegando que possuía muitos bens. Jacó então responde humildemente: “sê-me propício, aceita a bênção que te trouxe e que Deus me deu, o qual dá todas as coisas”. Quer dizer, aquilo que ele possuía não era fruto da esperteza, da força, somente do trabalho, mas sim de Deus “que dá todas as coisas”. Esaú convida para juntos caminharem, mas sempre desconfiando Jacó responde: “Tu vês, meu senhor, que tenho comigo meninos tenros, ovelhas e vacas prenhes; e, se eu as cansar fazendo-as andar mais, morrerão num dia todos os rebanhos. Vá o meu senhor adiante do seu servo; eu seguirei pouco a pouco os seus passos...”. Diante de tudo o que aconteceu, Jacó dá agora um testemunho de lealdade completa, de vassalagem inteira, pois diz até que irá seguindo "os seus passos", querendo indiciar que o seu irmão é quem o guiará no caminho. Esaú pede que pelo menos o siga os acompanhantes de Jacó, mas isto também é-lhe negado: voltou pois Esaú para Seir pelo caminha por onde tinha vindo.


Da mesma forma, Jacó se recusou a residir na mesma cidade de Esaú, indo estabelecer-se em Socot. Tudo indica que esta localidade é a mesma para onde Moisés se dirigiu ao começar a caminhada com o povo hebreu saindo do Egito (Ex 12, 37)


O espírito de escravidão entre o povo eleito quando fugia do Egito


Ao nascer Moisés, os filhos de Israel já eram mais de dois milhões, segregados dos egípcios, praticando rituais diferentes (como a circuncisão e a imolação de animais), crendo no Deus verdadeiro, não se miscigenando nem se acostumando completamente aos costumes pagãos. E assim progrediram formando um povo, embora vivendo numa espécie de gueto e debaixo do poder de um outro. É curioso que Deus tenha formado o seu povo sob o jugo de outro: por que não deixou que Jacó permanecesse com seus filhos em Canaã, lá formando o povo eleito, em vez de formá-lo no Egito e depois fazê-lo voltar à Terra Prometida? Uma das razões talvez fosse de que a escravidão alimentava neles a expectativa de um Libertador, de um Messias; daí o termo “expectação da nações” usada por Jacó. De outro lado, Deus sabia o quanto este povo seria de cerviz dura, e assim quis que ele se formasse humilhado por um outro. Tornaram-nos escravos, mas mesmo assim Deus os abençoava e os fazia crescer.


Moisés e Arão foram à presença do Faraó para pedir que libertasse o povo judeu e obtiveram como resposta que o povo precisava trabalhar mais e foi dado ordens aos chefes das obras: “Não mais dareis palhas, como antes, ao povo, a fim de fazer tijolos, mas eles mesmos juntarão a palha. E os obrigareis à mesma quantidade de tijolos que antes, sem lhes diminuir nada; porque estão ociosos, etc” E depois mandava açoitar o povo para que produzisse sempre a mesma quantidade de tijolos. Eram mais de dois milhões de pessoas, grande parte condenada aos trabalhos forçados! Que obra monumental necessitava de tanta gente? A Sagrada Escritura menciona as cidades de Fíton e Ramessés (Ex 1,11) construídas pelo trabalho escravo dos hebreus, mas não fala de outras talvez por considerar que eram obras humanas e destinadas a satisfazer a vaidade pessoal de algum rei. Hoje, descobre-se monumentos fantásticos construídos pelos Faraós, que causam pasmo e admiração ao homem moderno.


Quando Moisés conduzia o povo pelos desertos foi obrigado a criar leis específicas a respeito da escravidão, como esta:


“Se comprares um escravo hebreu, ele te servirá seis anos; ao sétimo, sairá forro de graça. Com o mesmo vestido com que entrar, com tal sairá; se tiver mulher, também a mulher sairá juntamente com ele. Mas, se o senhor lhe tiver dado mulher, e ela tiver dado à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do seu senhor, e ele sairá com seu vestido. Porém, se o escravo disser: Eu tenho amor ao meu senhor, à minha mulher e aos meus filhos, não quero sair forro, então o senhor o fará comparecer diante de Deus, fa-lo-á encostar à porta e às ombreiras e lhe furará a orelha com uma sovela; e ele ficará seu escravo para sempre. Se alguém vender sua filha para ser serva, esta não sairá como costumam sair as escravas. Se ela desagradar aos olhos de seu senhor, a quem tinha sido entregue, despedi-la-á; porém não terá direito de a vender a um povo estrangeiro, se a rejeitar. Se, porém, a casar com seu filho, trata-la-á como de ordinário se tratam as filhas. Mas se ele dá outra esposa a seu filho, proverá a serva de outras núpcias e vestidos, e não lhe negará o preço da sua virgindade. Se ele não fizer estas três coisas, ela sairá gratuitamente sem (pagar nenhum) dinheiro”. (Ex 21, 1-11).


No entanto, era preciso evitar que se fizessem escravos entre os hebreus, preferindo-se os estrangeiros:


“Se obrigado pela pobreza, o teu irmão se vender a ti, não o oprimirás com a servidão de escravo, mas (em tua casa) será como um jornaleiro e um colono; trabalhará em tua casa até o ano do jubileu, depois sairá com seus filhos e voltará para a sua família e para a herança de seus pais. Porque eles são meus servos, e eu tirei-os da terra do Egito; não sejam vendidos na condição dos escravos. Não o aflijas com o teu poder, mas teme o teu Deus. Os escravos e escravas que tiverdes, sejam das nações que vos cercam. E dos estrangeiros que vivem entre vós ou que destes nasceram na vossa terra: a estes tereis por escravos; e por direito de herança os deixareis aos vossos filhos, e os possuireis para sempre; mas quanto aos vossos irmãos, os filhos de Israel, não os oprimais com o vosso poder...” (Levítico, 25, 35-46).


Quer dizer, Moisés legisla sobre a escravidão como a coisa mais normal do mundo, dando a entender que era costume se manter escravos entre eles. A escravidão, em si, não é condenada, mas tão somente se escravizar a um irmão, a um filho de Israel. No Livro Deuteronômio (15, 12-18), Moisés volta a repetir a mesma lei que havia consignado no Êxodo 21, 1-11 acima descrita.


E desta forma o espírito de escravidão foi aos poucos se tornando uma coisa comum e até procurada pelos bons hebreus, uma forma como a Divina Providência alimentava neles o Ideal do ponto mais alto da Bondade.


Outro exemplo de espírito de escravidão


Primeiras referências bíblicas ao Monte Carmelo, onde Davi se encontra com a que seria uma de suas esposas, Abigail, exemplo de prefigura da servidão voluntária. Este espírito de servidão ou escravidão voluntária, comum entre bons israelitas, ocasionou episódios muito admiráveis, como por exemplo o de Abigail, citado em Samuel I 25, 23-35. Davi mandara pedir ajuda a Nabal, riquíssimo fazendeiro que tosquiava ovelhas ao pé do Monte Carmelo. Em resposta o avarento judeu diz: Quem é Davi? E quem é o filho de Isaí? Hoje são numerosos os servos que fogem aos seus senhores. Pegarei eu portanto no meu pão, na minha água e na carne dos animais que matei para os que tosquiam minhas ovelhas, e dá-lo-ei a homens que não sei donde são? Esta resposta era um insulto a Davi, pois o mesmo protegera aquele homem na guerra, Nabal devia portanto a Davi pelo menos reconhecimento pelo que bem que lhe fizera. Irado, Davi se aprestava para ir com seus homens matar Nabal com todos os viventes que com ele estavam, quando se encontra com Abigail, mulher de Nabal:


“Mas Abigail, tendo visto Davi, apressou-se, desceu do jumento, prostrou-se diante de Davi, sobre o seu rosto, fez-lhe uma profunda reverência, lançou-se a seus pés e disse: Sobre mim caia, meu senhor, esta iniqüidade; peço-te que permitas à tua escrava falar aos teus ouvidos, e ouve as palavras da tua serva.” Davi havia sido ungido por Samuel, mas ainda não reinava, pois Saul ainda era vivo. Abigail, que morava no Monte Carmelo, sabia no entanto que Davi havia sido ungido. Continuando: “Não faças caso, meu senhor e meu rei, da injustiça de Nabal, porque, como o denota o seu próprio nome, é um insensato, e a loucura está com ele; mas eu, tua escrava, não vi os criados que tu, meu senhor, enviaste”. Continuando seu discurso, Abigal chama Davi de “meu senhor” e se declara sua escrava várias vezes, oferecendo-lhe dádivas para seus homens que trazia em seus jumentos: 200 pães, dois odres de vinho, 5 carneiros cozidos, 5 medidas de farinha, 100 cachos de uvas passas, 200 pastas de figo seco, etc. Logo depois, acrescenta ela profeticamente: “Perdoa à tua escrava a iniqüidade, porque certissimamente o Senhor estabelecerá em ti, meu senhor, uma casa estável, porque tu, meu senhor, combates pelo Senhor; não se encontre, pois, culpa em ti durante todos os dias da tua vida”. E mais adiante: “Quando, pois, o Senhor te tiver feito, meu senhor, todos os bens que ele predisse de ti, e te tiver constituído general sobre Israel, não terás no coração este pesar, nem este remorso, meu senhor, de ter derramado sangue inocente, ou de te teres vingado por ti mesmo:. Profetizando que se tornaria, após a viuvez, esposa de Davi, declara: “e, quando o Senhor tiver feito bem ao meu senhor, lembrar-te-ás da tua escrava”.


Em resposta, Davi diz a Abigail: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que te enviou hoje ao meu encontro, bendita a tua palavra, e bendita és tu, que me impediste hoje de derramar sangue, e vingar-me pela minha mão. Doutro modo juro pelo Senhor, Deus de Israel, que me impediu que te não fizesse mal: Se tu não viesses logo ao meu encontro, não teria ficado nada com vida desde hoje até amanhã em casa de Nabal, nem mesmo um dos que urinam à parede. Davi, pois, aceitou da sua mão tudo o que lhe tinha trazido e disse-lhe: Vai em paz para tua casa; eis que ouvi a tua voz e honrei a tua presença”.


Nossa Senhora teria Se consagrado como Escrava do Senhor


Quando o Anjo São Gabriel fez a Anunciação do Salvador, a revelação divina mais importante da História, Nossa Senhora termina, finalmente, por fazer uma afirmação que demonstra quem Ela era realmente:


“Eis aqui a Escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Vossa vontade” (ou “segundo a vossa palavra). Ao pronunciar a frase “eis aqui a Escrava do Senhor”, Nossa Senhora não estava fazendo uma consagração naquele instante, mas proclamando um título, declarando uma condição preexistente: Ela já havia Se consagrado anteriormente como Escrava do Senhor. Naquele momento, apenas estava confirmando Sua consagração, uma condição que Ela julgava necessária para alguém ter que cumprir a grandiosa missão de Mãe do Salvador.


O “fiat mihi” é, de outro lado, uma afirmação superior ao “praesto sum” do Profeta Samuel, pois o deixar que Se lhe faça o que quiser é mais do que dizer que está pronto, do que está preparado. Estava implícito que, ao dizer “eis aqui a Escrava do Senhor”, em seu íntimo dizia também “praesto sum”. O “fiat mihi”, no caso, é a completa submissão de uma Escrava aos desígnios da vontade divina de quem estava preparada para tanto. É a confirmação da mais completa escravidão, de Quem não tem mais vontade própria, mas depende exclusivamente de Seu Senhor.


Depois disso, o Seu Senhor poderia fazer dEla e nEla tudo o que determinara Seus planos divinos, que Ela mesma definiu assim: “Secundum verbam tuum”. Isto envolvia, inclusive, a disposição para o martírio, a que todo escravo deve finalmente aceitar para ser completamente fiel a seus propósitos.

Que é mais importante: ser filho ou escravo?


Pelas palavras do Apóstolo São Paulo pareceria que seria desnecessária a sagrada escravidão ou qualquer tipo de servidão para que o homem cumpra sua vocação e se salve: “E, porque vós sois filhos, Deus mandou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai. Portanto, já nenhum de vós é servo, mas filho; e, se é filho, também é herdeiro de Deus” (Gal. 4, 6-7). É bem verdade que o geral das pessoas pode se salvar sem por em prática a Sagrada Escravidão. Não é o caso, no entanto, daquelas pessoas escolhidas especialmente para uma vocação superior, sublime, histórica e contra-revolucionária, para estar ao lado de Nossa Senhora no cumprimento de seu Reino aqui na terra.


A condição de filho, afirmada por São Paulo, é um atributo hereditário dado por Deus a todos os cristãos, porque, enquanto Pai, Ele nos legou este titulo através de Seu Filho Jesus Cristo. Como é natural, os servos ou escravos não herdam, mas somente os filhos, daí São Paulo ter afirmado que não somos mais servos ou escravos mas filhos de Deus, quer dizer, herdeiros naturais dEle por causa de um favor de sua vontade. Foi esta a intenção do Apóstolo: ressaltar que só os filhos herdam, e não os escravos.


Mais adiante, na mesma Epístola, o Apóstolo ressalta: “Com efeito, está escrito que Abraão teve dois filhos: um da escrava e outro da livre. Mas o da escrava nasceu segundo a carne, e o da livre, em virtude da promessa. Estas coisas foram ditas por alegoria, porque estas (duas mães) são os dois testamentos. Um do monte Sinai, que gera para escravidão: Agar, porque o Sinai é um monte da Arábia, o qual corresponde à Jerusalém daqui debaixo, a qual é escrava com seus filhos. Mas aquela Jerusalém, que é de cima, é livre e é nossa mãe” (Gal 4, 22-26). Trata-se, portanto, de uma alegoria para retratar dois estados de espíritos de quem quer tornar-se perfeito: enquanto a escravidão nos torna reféns da lei, a condição de filho nos liberta para a Jerusalém celeste.


Na Anunciação do Anjo, São Gabriel ressalta os atributos hereditários com os quais nasceria Nosso Senhor: “Este será grande; será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; reinará sobre a casa de Jacó eternamente, e o seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33).. São três títulos hereditários: do Altíssimo, da família real de Davi e do patriarcado de Jacó (possuidor de bênçãos celestes). Nossa Senhora não manifesta a mínima dúvida sobre tais direitos hereditários, mas somente sobre Sua castidade. Faz-nos supor que Ela julgava tais títulos a coisa mais natural do mundo. E o Anjo anunciou estes títulos porque os direitos patriarcais e hereditários eram tidos como a coisa mais importante ao nascer uma criança judia. Tais direitos hereditários faziam de Nosso Senhor o possuidor do trono de Davi, Ele nascia Rei; Patriarca de todo o povo judeu e, principalmente, herdeiro exclusivo do Trono celeste de Deus Pai.


Esta filiação divina, como fala São Paulo, é exclusiva dos cristãos. A propósito, transcrevemos aqui o texto do Pe. Antonio Royo Marin: “Em uma palavra: como diz expressamente o evangelista São João, a graça santificante não nos dá apenas o direito de nos chamarmos “filhos de Deus”, senão que nos faz tais em realidade: “Vede que amor nos mostrou o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus, e o sejamos de verdade” (I Jo 3, 1). Inefável Maravilha que pareceria inacreditável se não constasse expressamente na divina revelação” (apud “Arautos do Evangelho”, n. 29, maio de 2004, pág. 48).


Tivemos, então, na Anunciação a proclamação feita pelo Anjo Gabriel dos títulos hereditários, títulos de filiação divina de Nosso Senhor. Em seguida, Nossa Senhora manifesta sua condição de Escrava do Senhor, a qual julga importantíssima para cumprir sua Missão. Ela poderia ter dito: “Eis aqui a Filha do Senhor”, porque era o título anterior com o qual Ela nascera; mas, não: disse “eis aqui a escrava do Senhor...”. Pois, embora Filha por natureza e pela graça, necessitava entregar-Se totalmente aos desígnios divinos por sua própria vontade, e a forma mais completa, mais perfeita era a escravidão...


Santo Agostinho disse: “Qui creavit te sine te, non salvabit te sine te” – Aquele que te criou sem ti, não te salvará sem a tua colaboração. O que significa que todos nós nascemos com o título de filhos de Deus nos dois sentidos: por termos sidos criados por Ele e pelo fato de havermos nascidos para Deus pela graça do batismo. Este título nos foi dado sem que fosse necessário o nosso consentimento. No entanto, Deus quer que colaboremos com Ele na nossa salvação, não só se prevalecendo do título de filho, mas doando-se como escravo de sua santíssima vontade. Este último ato só se completa com o consentimento de nossa vontade, porque senão Deus “non salvabit nos sine nobis”.


Portanto, o título de Filho é mais importante quanto à nossa natureza, mas o título de escravo é superior quanto ao cumprimento mais perfeito da vontade divina sobre nossa alma e nossa vocação.


Devoção que nos põe inteiramente a serviço de Deus


Somos, pois, filhos de Deus por vários motivos, mas dificilmente cumpriremos nossa vocação e seremos fiel a Ele somente como tais. Precisamos nos dedicar mais a Ele. E o caminho é a Sagrada Escravidão, conforme ensina São Luís Grignion de Montfort em seu “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”. Ali ele expõe com clareza no que consiste a escravidão por amor a Maria Santíssima. Argumenta aquele Santo Profeta:


“Desde que não se pode conceber sobre a terra emprego mais relevante que o serviço de Deus; se o menor servidor de Deus é mais rico, mais poderoso e mais nobre que todos os reis e imperadores da terra que não sejam também servidores de Deus, quais não serão as riquezas, o poder e a dignidade do fiel e perfeito servidor que se tiver devotado ao serviço divino, tão inteiramente e sem reserva quanto for capaz? Assim será um fiel e amoroso escravo de Jesus e Maria, que, pelas mãos de Maria Santíssima, se entregar inteiramente ao serviço deste Rei dos reis, e que não reservar nada para si: nem todo o ouro da terra e as belezas do céu o podem pagar”


Dentre outros argumentos, São Luís nos ensina que esta devoção nos leva a imitar o exemplo dado por Jesus Cristo, e a praticar a humildade. Nos proporciona as boas graças da Santíssima Virgem, pois Ela se dá a quem é seu escravo por amor, purifica nossas boas obras, embeleza-as e torna-as aceitáveis a Deus. Esta devoção (a Sagrada Escravidão) é, além do mais, um meio excelente de promover a maior glória de Deus e nos conduz à união com Nosso Senhor.


A prática desta Devoção produz, por outro lado, grandiosos efeitos na alma que lhe é fiel. Nos leva ao conhecimento e desprezo de si mesmo; nos faz participar da fé de Maria; nos traz graças do puro amor; nos inculca grande confiança em Deus e em Maria; nos comunica a alma e o espírito de Maria; transforma as almas em Maria à imagem de Jesus Cristo e dá maior glórias a Ele.


Não há, pois, meio mais seguro e mais preciso para a prática das perfeições cristãs. Nada se compara esta prática na busca da perfeição e da verdadeira bondade.


O oposto da “Sagrada Escravidão” – escravidão ao demônio


Não há saída para o homem: ou se torna escravo de Deus por intermédio de Sua Santa Lei ou, se a recusa, torna-se escravo do demônio. Esta doutrina foi também esplanada sucintamente por Dr. Plínio:


“Não obstante, pelo pecado mortal, o homem remido rompe com Deus e volta à escravidão do demônio – “volta o cão a seu vômito”, escreve São Pedro (2 Ped 2, 22) – na qual fica durante todo o tempo em que se conservar em tal estado. E assim, mesmo depois da Redenção, o demônio tem escravos entre os homens, e estes terão mais culpa se forem cristãos, máxime se católicos. Quanto maior é a altura de que se cai, maior a queda.


“Chamamos a essa escravidão “natural”, porque ela se explica quase inteiramente pela maldade natural do homem depois do pecado.


“Mas há outra forma de maldade, que degrada o homem abaixo desse nível. É a que vem da ação preternatural do demônio na alma. Quando o homem se entrega a essa ação, torna-se escravo do príncipe das trevas a título muito especial.


“Embora decaído de sua glória celeste, o demônio não perdeu a natureza angélica e na abjeção do inferno conserva toda a lucidez, pondo suas capacidades a serviço de seu ódio contra Deus.


“Mas o inferno é um cárcere e o demônio,um condenado. Infinitamente inferior a Deus como inteligência e poder, só estende sua ação fora do inferno na medida em que a Providência o permite. E Ela o permite habitualmente”


Após considerar os casos em que Deus permite a ação diabólica para tentar os justos, como ocorreu com Jó, continua Dr. Plínio:


“Entretanto, muitos homens não lhe resistem e se entregam ao pecado.


“Note-se bem que, no caso aqui considerado, o pecado não tem por causa exclusiva as paixões humanas desregradas. Conquanto o demônio não possa obrigar o homem a pecar, pode ter, por permissão de Deus, uma ação por vezes muito grande sobre a imaginação, de sorte que por esse meio pode aliciar vigorosamente o homem para o pecado. Sobre os que, no exercício de seu livre arbítrio, não lhe resistem, o demônio pode adquirir, por punição divina, o poder cada vez maior de exercer sua ação. E, a correrem as coisas segundo seu desenvolvimento lógico, esse poder pode chegar a ser uma tirania à qual o homem só pode resistir com recursos excepcionais da graça e um esforço heróico da vontade.


“Essa servidão, que pode existir em modos e graus incontáveis, é preternatural, distinta da servidão natural, considerada no item anterior.


“Preternatural”, é um termo utilizado pela linguagem da Igreja para designar aquilo que é superior à natureza humana, mas é distinto da ordem sobrenatural, relativa a Deus e, portanto, superior a todas as criaturas. A ação que a graça de Deus exerce sobre o homem é sobrenatural. A ação do demônio é preternatural”

(In revista “Dr. Plínio”, n. 59, fevereiro de 2003, págs. 23/24) 


Atingiremos a perfeição sem o holocausto?


Praticando a Sagrada Escravidão, o fiel estará inteiramente a serviço de Nosso Senhor, de Nossa Senhora, principalmente naquilo que diz respeito ao seu progresso espiritual e no cumprimento de sua vocação cristã. Deveremos ser mais preciso, pois a palavra praticar significa ir até às últimas conseqüências. O verdadeiro escravo é aquele que se entrega espontaneamente a seu senhor, prestando-lhe serviços e lhe sendo útil em tudo. Mas terá levado a sua entrega até às últimas conseqüências se ele não só entregar seus esforços, sua liberdade, seu suor e seu trabalho, mas se entregar também sua vida e sua alma.


Quer dizer, o verdadeiro escravo deve também se oferecer em holocausto para sofrer por seu senhor, padecer tudo o que aquele senhor lhe propor para realizar sua Obra, e terminar seus dias morrendo como vítima de amor por seu amo. É aqui que entra o principal ponto de nossa temática: nós só conseguiremos cumprir inteiramente nossa missão como Escravos de Maria no dia em que nos entregarmos a Ela em holocausto, como vítimas expiatórias pelos pecados cometidos por todos os homens e repararmos as ofensas praticadas contra os Corações Sagrados de Jesus e de Maria. Estaríamos assim cumprindo as duas condições de nossa existência: filhos e escravos por amor.

JURACI JOSINO CAVALCANTE - juracuca@hotmail.com