terça-feira, 26 de julho de 2016

O ESTADO DEVE SER INDIFERENTE À RELIGIÃO?


    


      A ciência e o indiferentismo religioso

Plinio Corrêa de Oliveira

Procuraremos evidenciar, no presente artigo, que não se admite cientificamente que o Estado seja agnóstico ou indiferente em matéria religiosa. Sustentaremos que se compreende o Estado ateu, o Estado protestante, ou o Estado judeu, tanto quanto o católico. O que não se compreende é o Estado agnóstico, indiferente, tal qual o fez nossa Constituição de 1891.

Para estudar convenientemente a questão, alinhemos primeiramente os argumentos que temos em nosso favor. São eles os seguintes:

I - é indispensável que o Estado assuma uma atitude qualquer, católica ou não, em face do problema religioso;

II - desta atitude resultam grandes vantagens para o Estado; 

III - também a Igreja Católica tem muito a ganhar com este estado de coisas. E, como ela, todas as demais igrejas.

Uma vez demonstradas estas premissas, chegaremos ipso facto à conclusão que constitui nossa tese.

Abordemos, pois, a defesa do primeiro dos argumentos.

O Estado tem por fim a felicidade geral. É esta uma afirmação científica que não suscita divergências, nem admite contestações.

Ora, se o Estado quiser preencher seu fim, e trabalhar eficazmente para a felicidade coletiva, deve ele procurar a felicidade segundo a entende a coletividade ou ao menos a maioria, dentro dessa coletividade.

Tanto é isto verdade que até, hoje em dia, existe a tendência de sujeitar os destinos das nações aos votos da maioria. Qual a razão de ser desta tendência? É o conceito de que o Estado deve procurar a felicidade geral, segundo o desejo da generalidade, ou da maioria dos indivíduos que o compõem. É este o fundamento do sistema representativo, hoje universalmente adotado.

Ora, é indiscutível que a concepção de felicidade varia segundo a posição que cada indivíduo assume em face da questão religiosa.

Realmente, o católico acha que contribui para a felicidade geral o guardar os Dias Santos e domingos, porquanto, embora diminuam, com isto, seus lucros, terá como a maior das recompensas as bênçãos do Senhor para o seu trabalho. Daí, o entender que o governo deve decretar feriados nos Dias Santos de Guarda.

O acatólico, pelo contrário, entende que apenas se deve guardar o domingo por ser de vantagem um certo repouso. Quanto a não trabalhar em outros dias, representa isto uma diminuição de lucros, absolutamente injustificável diante dos interesses econômicos gerais.

Um pai de família católico entende que a felicidade da nação só será assegurada convenientemente se, a par da instrução científica, os meninos receberem instrução religiosa e, partindo deste conceito, entende que o Estado, em sua tarefa de procurar o bem geral, deve ministrar em suas escolas o ensino religioso.

Já um pai ateu, partindo, por exemplo, das excelências que julga descobrir na moral leiga, deseja uma solução diametralmente oposta.

Em uma palavra, se se estabelece que a vida presente nada é senão uma antecâmara da eternidade, está ipso facto estabelecido que a felicidade presente e transitória se deve subordinar ao supremo interesse da felicidade eterna.

Se se estabelece, porém, que temos uma só vida, a concepção de felicidade sofre radical modificação e, com ela, se altera a orientação geral do Estado.

Ora, vimos que o Estado só preencherá seu fim no dia em que o fizer de acordo com o conceito que a generalidade de seus cidadãos formar sobre a felicidade que ele, Estado, deve promover.

Logo, está demonstrado [ser] inadmissível que o Estado que não se proclame ateu, não oficialize a religião [adotada pela grande maioria de seus] membros, desde que esta maioria seja católica, protestante etc.

De fato, como acabo de salientar, é profunda a diferença que existe entre as concepções de felicidade coletiva dos diversos indivíduos, e esta diferença é quase sempre causada por suas divergências em matéria religiosa.

Assim, o católico é defensor vigilante do direito de propriedade, porque a legitimidade deste direito é defendida por sua Igreja.

Um protestante, que se dota a si próprio da liberdade de interpretar a Bíblia, pode, pelo contrário, entender que certas restrições, ou mesmo a própria eliminação do direito de propriedade são perfeitamente admissíveis. Daí o entender que se deve preparar a nação para uma lenta evolução para o comunismo reclamado pelas massas.

Um ateu, atendendo a que a propriedade, para quem não crê em Deus, pode ser abolida, entende que a propaganda comunista pode ser perfeitamente tolerada pelas leis. Daí o julgar que se devem, por exemplo, reatar as relações comerciais com os soviets, independentemente do perigo de uma infiltração comunista que, para o católico, é mal maior do que qualquer benefício comercial que daí possa advir.

Logo, no homem de Estado que dirige uma nação, fala constantemente o crente ou o descrente. Se o Estado fechar os olhos ao problema religioso, não poderá ele proporcionar a felicidade à maioria, pois que, enquanto o Estado busca um ideal independente de qualquer solução em matéria religiosa, não pode atingir a felicidade ambicionada pela maioria, felicidade esta subordinada, toda ela, a uma concepção religiosa ou irreligiosa qualquer.

Logo, o Estado agnóstico, indiferente, como o Brasil de hoje, não se admite cientificamente.

Admite-se, isto sim, o Estado protestante, judeu ou ateu, tanto quanto o católico. O que não se compreende é o Estado indiferente.

I – O Estado indiferente é impossível de realizar na prática

Aliás, entendo que o Estado indiferente só existe em tese. Na prática, é absolutamente impossível realizá-lo.

Quando o Estado oficialmente agnóstico ou indiferente é governado por protestantes, será protestante, e quando governado por católicos, será católico.

De fato, a pessoa do crente não pode ser separada da pessoa do homem de Estado. Quem tem uma determinada crença, aceita para com esta deveres superiores a outros quaisquer, e não deixará sua Fé para governar contra os princípios os mais caros a seu coração.

Assim, por exemplo, o governador católico será sempre favorável a todas as leis justas, tendentes a defender o país contra o comunismo. Não reatará, em hipótese alguma, relações comerciais com os soviets. Manterá, em qualquer hipótese, uma embaixada junto ao Vaticano. Será sempre contrário ao divórcio a vínculo. Facilitará tudo à Igreja. Agirá, enfim, como crente.

Um protestante, pelo contrário, poderá, usando de seu direito de livre interpretação da Bíblia, não enxergar incompatibilidade alguma entre sua religião e o comunismo. Daí o admitir, em tese, a possibilidade de um reatamento diplomático com os soviets. Entenderá, por outro lado, que o divórcio a vínculo é um bem, e representa um progresso que, a todo o custo, deve ser introduzido em nossa legislação. Facilitará tudo ao protestantismo.

O homem que professa uma opinião religiosa ou irreligiosa, uma vez no poder, continuará a aplicar seus princípios.

Logo, o Estado nunca será leigo. Será protestante, quando governado por protestantes, católico, quando dirigido por católicos, e ateu quando dirigido por ateus.

Logo, é irrealizável o Estado indiferente, leigo.

II - É de vantagem para o Estado oficializar uma igreja?

É indiscutível que a maior parte das religiões exerce uma influência benéfica sobre a moralidade geral. Claro está que a única religião que é moralizadora em toda a extensão da palavra é a católica. Já o reconhecia o próprio Augusto Comte.

No entanto, este mesmo filósofo entendia, com razão, que as outras religiões, embora muito menos moralizadoras, eram sempre um fator de preservação contra o mal.

E isto mesmo o reconhecem todos os inimigos da Igreja Católica, todos os ateus, todos os materialistas.

Logo, o Estado tem vantagem em oficializar e amparar a Igreja da maioria, porque assim defende e desenvolve a moralidade pública.

III - É o sistema de oficialização vantajoso à Igreja Católica?

Conta o Dr. Lacerda de Almeida que Gladstone, o grande estadista inglês, resolveu certa vez transformar a Inglaterra em Estado indiferente.

Para isto, seria necessário despojar o anglicanismo de suas prerrogativas de religião de Estado. Contava, pois, o eminente político, com o apoio dos católicos.

Para poder obter este apoio, foi ele ter com o Cardeal-Arcebispo católico de Londres, cujo auxílio pediu.

O Cardeal, porém, negou-se peremptoriamente a auxiliar o ministro britânico. Dizia ele que mais vantajoso era para o Catolicismo o ter oficializada uma religião inimiga, a ter, prestigiado pelo Estado, o agnosticismo. E isto porque, dizia ele, enquanto o anglicanismo formava protestantes, o agnosticismo formava ateus e materialistas.

Não nos podemos, infelizmente, estender mais sobre o assunto, porque já está muito extenso este artigo. No entanto, julgamos que a palavra do ilustre Cardeal Newman é plenamente suficiente para demonstrar que o agnosticismo é mais prejudicial para o Estado do que qualquer outra forma de relações entre a autoridade civil e o problema religioso.

Demonstramos nossas premissas.

Resta, agora, chegar, não somente à conclusão, que se impõe com evidência incontestável, como também lembrarmo-nos que o Brasil, este país católico, é oficialmente agnóstico!!!

Estamos em um momento de reivindicações católicas. Não percamos de vista a grande conquista católica da Igreja oficializada, não como no tempo do Império, cheia de peias e de embaraços, mas em bases verdadeiramente vantajosas para o sublime Credo que adotamos

O "Legionário" n.º 61, 13 de julho de 1930



segunda-feira, 25 de julho de 2016

A BELEZA DO SANTÍSSIMO NOME DE MARIA




(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA) [1]


A fim de tecermos algumas considerações sobre o nome de Maria Santíssima, creio que devemos analisar, inicialmente, o significado do nome de uma pessoa.
Pela descrição da Sagrada Escritura (Gn 2, 18-20) sabemos que Deus fez desfilar diante de Adão todos os animais criados, e o primeiro homem, após observar cada um, determinou como eles haviam de ser chamados. Deu-lhes, portanto, um nome que era a definição daquela criatura, uma palavra que correspondia ao sentido mais profundo da natureza de cada animal.

Imagens da perfeição de Deus

Ora, perguntar-se-ia, qual é o sentido de um animal?
Este, por menor que seja, é um ser extremamente rico porque vivo, com um grau de vida pelo qual não só existe, mas se move por si mesmo. Além disso, refletem aspectos da perfeição infinita de Deus.
Tomemos, por exemplo, a águia. Ave esplêndida, da qual é próprio ostentar suas garras, suas grandes asas, sua força e seu ímpeto. Porém, mais do que esses atributos, ela simboliza uma certa qualidade de Deus, e tudo quanto há de físico na águia, sua anatomia e fisiologia, concorre para expressar essa característica divina.
Adão, conhecendo e interpretando essa expressão, resumiu no nome que pôs á águia o simbolismo daquela perfeição do Criador. Donde, o nome de cada animal representar, na verdade, a sua essência, o sentido mais profundo desse reflexo de um aspecto de Deus.


Exaltando o nome de Maria damos glória a Deus

Se o nome de um animal possui semelhante expressão, é de se admirar que expressão ainda maior entrou na composição do nome da Virgem Santíssima. Nossa Senhora foi chamada Maria, porque concebida sem pecado original; n’Ela tudo se harmonizava no grau super-excelente próprio àquela que estava destinada a ser a Mãe do Verbo de Deus encarnado. Assim, o nome de Maria, de um modo meio misterioso, significa não apenas um, mas o conjunto dos aspectos infinitamente perfeitos e Deus que Ela representa tão especialmente.
Daí decorre essa verdade: quando glorificamos o nome de Maria, glorificamos esse sentido mais profundo da pessoa d’Ela. E, portanto, glorificamos o próprio Deus de uma forma magnífica, louvando-O na figura de sua Mãe amadíssima.

Nomes perfeitos para Jesus e Maria

Creio ser interessante ressaltar também a relação maravilhosa e insondável entre o nome e a pessoa, no que diz respeito a Nosso Senhor e Nossa Senhora.
Com efeito, de todos os nomes existentes na Terra, haveria um que pudesse ser dado a Nosso Senhor Jesus Cristo igual ao nome Jesus?
Como disse, é uma questão um tanto insondável, mas para nossa ótica Ele só poderia chamar-se Jesus. Imaginemos que Lhe fosse dado um dos nomes consagrados por grandes santos, como Francisco, Antonio, João... Não. Jesus é o nome d’Ele!
O mesmo se pode dizer do santíssimo nome de Maria. Procure-se para Nossa Senhora um nome que pudesse substituir o seu e não se achará. Só podia ser Maria.
Trata-se de nomes, portanto, ligados meio misteriosamente ao sentido profundo da natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe, de tal maneira que constituem um lindo conjunto. Quando, no fim de uma carta, assinamos in Jesu et Maria – “em Jesus e Maria” , percebe-se uma tal afinidade entre os dois nomes que se diria a harmonia entre duas maravilhosas notas musicais.

Razão de ser da festa do nome de Maria

Por tudo isso se compreende que a Igreja tenha instituído uma festa litúrgica para o sacratíssimo nome de Jesus, celebrada em janeiro, e outra para o santíssimo nome de Maria, no dia 12 de setembro. Ou seja, uma comemoração particular para o nome, pois este é uma espécie de símbolo e de definição de quem o possui.
Quando o Verbo Encarnado considera em si a união das duas naturezas numa só pessoa, ou quando o Padre Eterno ou o Divino Espírito Santo consideram no Filho essa união, ocorre-Lhes o nome Jesus. E quando contemplam Nossa Senhora, vem-Lhes o nome de Maria.

(Conferência, em 12/9/1988)





[1] Texto extraído da revista “Dr.Plínio”, n. 126, de setembro de 2008

sábado, 23 de julho de 2016

O ÁPICE DE OURO DA CRIAÇÃO




(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)

Entre o Padre Eterno e a criação existe o Homem-Deus: inteiramente Deus, como as outras Pessoas da Santíssima Trindade e tão homem quanto cada um dos descendentes de Adão.
Resta, contudo, um tal abismo separando Nosso Senhor Jesus Cristo das demais criaturas, que a pergunta se impõe: na ordem das coisas não deveria haver um outro ser que, ao menos de algum modo, preenchesse esse hiato?
Ora, a criatura chamada a completar esse vácuo no conjunto da criação, a criatura excelsa, infinitamente inferior a Deus, mas ao mesmo tempo insondavelmente superior a todos os Anjos e a todos os homens de todas as épocas – é precisamente Nossa Senhora.
A Virgem Santíssima é, para Deus Padre, a mais eleita das criaturas, escolhida por Ele, desde toda a eternidade, para ser a Esposa de Deus Espírito Santo e a Mãe de Deus Filho. Para estar á altura dessa dignidade, Maria havia de ser a ponta de pirâmide de toda a criação, acima dos próprios Anjos, elevada a uma inimaginável plenitude de glória, de perfeição e de santidade.
Compreende-se. Sendo Mãe de Jesus Cristo, Ela foi verdadeiramente Esposa do Divino Espírito Santo. E não poderia corresponder a tão elevada prerrogativa se não fosse maior do que o maior dos Anjos. Assim, Ela, mera criatura humana, é mais perfeita e mais santa do que toda a coorte angélica, e incomparável com qualquer outro ser.

Elo de ouro entre Deus e os homens

Por causa disso, Dante Alighieri, o grande poeta italiano da Renascença, na sua “Divina Comédia” (que alguns dizem ser a Suma Teológica de São Tomás de Aquino posta em verso), registra de modo emocionante o momento em que encontra a Santíssima Virgem no Céu.
Após ter passado pelo Inferno e pelo Purgatório, ele percorre os vários círculos dos bem-aventurados, até chegar no mais alto coro angélico, ou seja, no píncaro da mansão celeste, onde começa a divisar a glória de Deus. É uma luz difusa, que seus olhos não conseguem sustentar. Ele repara então num outro ser que está acima dos Anjos. Nossa Senhora. A Virgem Santíssima lhe sorri, e Dante contempla nos olhos d’Ela o reflexo da luz incriada da Eterna Majestade.
Acabou-se a “Divina Comédia”.
Depois de a pessoa ter posto os olhos nos olhos virginais de Nossa Senhora, não tem mais nada que contemplar, senão a Deus, face a face. Pois o olhar humano fitou o olhar puríssimo, o olhar sacralíssimo, o olhar sumamente régio, o olhar indizivelmente materno de Nossa Senhora. Tudo está consumado: a “Divina Comédia” termina na mais alta das cogitações que pode alcançar um filho de Eva.
Nossa Senhora é o grampo de ouro – ou de um metal ainda mais precioso – que une a Nosso Senhor Jesus Cristo toda a criação, da qual Ela é o ápice e a suprema beleza.

Papel único na salvação das almas

Embora a maternidade divina, por si só, já granjeasse a Nossa Senhora o título de primeira das criaturas, para tanto não deixam de concorrer também as demais prerrogativas, virtudes e dons com que a Santíssima Trindade A enriqueceu, assim como todos os excelentíssimos méritos que Ela obteve em sua vida terrena, pela prática constante e crescente de um indizível amor a Deus, de uma incansável caridade para com o próximo.
Dizem os teólogos que do alto da Cruz, Nosso Senhor, cuja inteligência era infinita, conhecida todos os homens pelos quais Ele estava derramando seu preciosíssimo sangue. E que Ele via a cada um dos pecados que esses homens cometeriam até o fim do mundo, sofria por todos eles e, ao mesmo tempo, imolava sua vida para que os homens se salvassem e atingissem a bem-aventurança eterna.
Ora, unida de modo indissociável a seu Divino Filho, compartilhando com Ele todas as duas dores inenarráveis e, por isso mesmo, Co-Redentora do gênero humano, a Santíssima Virgem também nos conheceu a cada um de nós naquela ocasião. Para que a compaixão d’Ela fosse completa, Ela sofreu por nós com Jesus, e rezou pela remissão de cada um de nós, pedindo ao Redentor pelas almas de todos os seus filhos.
De maneira tal que, naquela hora em que o Verbo Encarnado antevia a multidão de pecados que se desprendia da história ao longo dos séculos, Ela suplicava o perdão para cada homem, e Ele os dia perdoando em atenção aos rogos de sua Mãe amantíssima. Somente Ela, sendo inocente, poderia nos merecer a indulgência que nós, pecadores, não merecemos.
E aí vemos o papel de Maria, ápice de toda a ordem da criação, como nossa Mãe e nossa Advogada.
Mãe de Cristo, Ela é Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça do Filho de Deus.  Mãe d’Ele, tornou-se Mãe dos homens, e Mãe particularmente solícita dos pobres pecadores. Nessa qualidade Ela desempenha um papel que, de algum modo, o próprio Deus não poderia desempenhar. Porque Deus é Juiz e, uma vez ofendido, ultrajado, no rigor de sua justiça infinitamente perfeita, Ele tem de castigar. Porém, Maria é a Mãe, e todos sabemos que as mães não se arrogam o papel de julgar. Antes, são de modo natural as advogadas dos filhos. E por mais miserável que seja um destes, mais imundo, mais asqueroso, mais crápula, até mesmo em relação à própria mãe, ela o perdoa e pede ao pai que o perdoe também. Ela está solidária com o filho, ainda quando o pai o abomine por inteiro.
Assim é Nossa Senhora, a Mãe supremamente boa que reza por todos e cada um de nós. Ela, considerando que aquelas chagas abertas no santíssimo corpo de seu Divino Filho foram feias em parte por meus pecados, suplicou-Lhe: “Meu Deus, meu Filho, pela minha inocência, pela minha virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, rogo-Vos por ele. E essa ferida que sofreis por causa dele, peço-Vos, em nome dessa dor, que tenhais toda a clemência para com ele”.
E dessa forma cada um de nós foi perdoado. Então, por meio de Nossa Senhora Deus veio a nós no seu Nascimento na Gruta de Belém; por meio de Nossa Senhora, nós viemos a Deus no momento da Cruz, na hora da Paixão, nos sofrimentos da Redenção e no alto do Calvário.

Divina Protetora que jamais nos abandona

Essa compaixão e esse  desvelo de Nossa Senhora, longe de esmorecerem com a morte de Jesus, redobraram e cresceram em intensidade, em desejo de abarcar o coração de todos os seus filhos, de levar a todas as almas os méritos infinitos da imolação regeneradora do Verbo Divino. Por isso, Ela continuou a ser a grande intercessora, a grande intermediária que nunca dos nuncas abandonou nenhuma espécie de homem.
A Santíssima Virgem reúne os Apóstolos depois que Nosso Senhor expirou no madeiro; agrupa-os, ainda, quando o Salvador parte para o Céu; Nossa Senhora está junto deles, no Pentecostes, quando vem o Espírito Santo; Ela acompanha a Igreja nos primeiros passos de sua vida e depois, ao longo de toda a sua existência, Maria é a suprema protetora da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Nossa Senhora esteve sempre presente nas batalhas que os católicos têm travado no volver da história, em defesa dos mais valiosos interesses da Fé. Ela se encontra presente nas lutas incessantes de cada homem contra seus defeitos, de maneira que, noite e dia, enquanto combatemos nossas imperfeições, nossos vícios e mazelas morais, enquanto nos esforçamos para adquirir maiores virtudes, ainda que não nos lembremos de Nossa Senhora, Ela está se lembrando de nós no alto do Céu. E está pedindo por nós, com uma misericórdia que nenhuma forma de pecado pode esgotar.
Com inteira propriedade, Ela é chamada pela Igreja de “Porta do Céu”. É por essa porta que todas as orações e súplicas  dos homens chegam a Deus; e é também por essa porta que todas as graças e favores de Deus baixam do alto para os homens. Tudo vai ao Senhor, e tudo nos vem, por intermédio de nossa Mãe, Rainha e  Medianeira Universal, Maria Santíssima.
Basta nos voltarmos para Ele, que seremos atendidos com uma profusão de bondade e de misericórdia inimagináveis. Nossa Senhora nos atende e nos limpa a alma, nos dá forças para praticarmos a virtude e nos transforma de pecadores em homens justos. Nunca nos faltará ânimo e vigor para praticar a Lei de Deus, desde que, cheios de esperança e filial devoção, o peçamos à Santíssima Virgem. Os que se voltam a Ela, tudo recebem d’Aquela que tudo pode.

(Extraído da revista “Dr. Plínio”, nº 43, outubro de 2001)




terça-feira, 12 de julho de 2016

Uma imagem do "Grand Retour" numa profecia de Ezequiel




Algumas profecias antigas falam de um “grande retorno” da Cristandade, um grandioso milagre que faria com que católicos em massa, e alguns não católicos, voltassem a trilhar os caminhos da Civilização Cristã que até à Idade Média dominava a humanidade.
Não estaria representado este grande retorno ou “grand retour” em algumas das profecias do Antigo Testamento, como esta do Profeta Ezequiel?

“A mão do Senhor veio sobre mim e me tirou para fora em espírito do Senhor, e deixou-me no meio dum campo que estava cheio de ossos, e fez-me dar uma volta em roda deles; eram muito numerosos, estendidos sobre a superfície do campo e todos extremamente secos. Então disse-me: Filho do homem, porventura julgas que estes ossos possam viver? Eu respondi-lhe: Senhor Deus, tu o sabes. Ele me disse: Profetiza acerca destes ossos e dir-lhe-ás: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Isto diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que vou infundir em vós o espírito e vós vivereis. Porei sobre vós nervos, farei crescer carnes sobre vós, sobre vós estenderei pele, dar-vos-ei espírito e vós vivereis, e sabereis que eu sou o Senhor.
Eu, pois, profetizei como o Senhor me tinha mandado, e, enquanto  profetizava, ouviu-se um ruído, depois fez-se um reboliço; os ossos aproximaram-se uns dos outros, pondo-se cada um na sua juntura. Olhei e eis que se formaram sobre eles nervos e carnes para os revestir e a pele se estendeu por cima; mas eles não tinham espírito. Então disse-me o Senhor: Profetiza ao espírito; profetiza, filho do homem, e dize ao espírito: Isto diz o Senhor Deus: Espírito, vem dos quatro ventos, sopra sobre estes mortos, e revivam. Profetizei, pois, como o Senhor me tinha ordenado; o espírito entrou neles, e viveram; levantaram-se sobre seus pés; era um exército numeroso em extremo.
Disse-me o Senhor: Filho do Homem, todos estes ossos são a casa de Israel. Eles dizem: os nossos ossos tornaram-se secos, a nossa esperança perdeu-se e nós somos cortados. Profetiza, pois, e dize-lhes: Isto diz o Senhor Deus: povo meu, eis que vou abrir os vossos túmulos, tirar-vos-eis dos vossos sepulcros  e vos introduzirei na terra de Israel. Vós sabereis, povo meu, que eu sou o Senhor, quando eu tiver aberto os vossos sepulcros, tiver infundido o meu espírito em vós, e vós tiverdes recobrado a vida e vos fizer repousar sobre vossa terra; e vós sabereis que eu, o Senhor, é que falei e o executei, diz o Senhor Deus.
(Ezequiel 37, 1-14)

Comentários:

Vários ensinamentos podem ser deduzidos dessa passagem.
1.           Quando Deus diz ao profeta que “profetize” não está querendo que ele preveja as coisas do futuro, mas que pronuncie uma sentença, uma ordem divina, a ser cumprida somente após a pronúncia de sua profecia. Então, profetizar não é somente prever, mas especialmente fazer cumprir a vontade divina. Na ordem da regência do Universo, o profeta é, pois, um co-regente, juntamente com os Santos Anjos.
2.           Ezequiel é chamado de “Filho do Homem”, que, segundo São Tomás de Aquino, quer dizer juiz dos homens. Foi este o qualificativo com que Nosso Senhor se auto-proclamou várias vezes em sua vida pública: será nessa qualidade que virá no fim do mundo para julgar os vivos e os mortos. Ezequiel O antecedeu no tempo com o mesmo título, dado por ordem divina. Juiz e regente, auxiliará Jesus Cristo no julgamento final.
3.           A ossada era de um “exército numeroso em extremo”, indicando com isso que representava uma multidão de justos que haviam perdido algumas virtudes e jaziam como que mortos para a vida eterna. Com o advento da Revolução é essa a condição dos justos de hoje: estão como que (naturalmente considerando)  mortos para a vida eterna, pois não conseguem ter acesso aos benefícios dos sacramentos e ter parte na vida da graça de uma forma plena. O profeta vai ouvir dizer o que representava esta “morte”: a perca da Esperança. Representava aquela ossada todos os “filhos de Israel”, isto é, aqueles que se diziam verdadeiros filhos de Deus e participavam de sua verdadeira Religião. Estavam, porém, mortos e com os ossos já completamente secos, pois há muitos anos que não praticavam as virtudes cardeais. Estas estão representadas pelos nervos, pelas carnes e pela pele. Após readquiri-las, Deus daria o espírito de volta e tornariam a viver, a fazer parte da vida divina.
4.           É preciso notar que as profecias de Ezequiel, em grande parte, não diziam respeito ao seu tempo. Por exemplo, as imagens e visões que ele teve do Templo de Deus nunca corresponderam aos templos construídos até hoje, mas uma visão do que deveria ser no futuro: eram imagens e pré-figuras da Santa Igreja Católica.  É verdade que os que não lhe queriam ouvir diziam que “profetizava para tempos remotos” (Ez 12, 27), querendo com isso se ver longe dos castigos. No entanto, nem todas as previsões ou profecias ocorreram naqueles tempos, como o terrível castigo que muitos viram como a previsão da destruição de Jerusalém ocorrida muitos séculos depois. São assim as profecias: falam de tempos futuros, até do fim do mundo, mas com casos antecedentes que se assemelham a fim de que todos se preparem com fatos atuais para os casos futuros.
5.           Tudo indica, pois, que a imagem das ossadas que ressuscitam se refere, além do ressurgimento da Fé entre os fiéis, a um fato espantoso que ocorreria no futuro em que os justos já mortos ressuscitariam, tanto espiritual quanto corporalmente. Seria uma realidade material para mostrar aos homens uma outra espiritual; sendo que aquela é menos importante que a última, mas necessária para mostrar o poder de Deus sobre os homens.
6.           Interessante notar que somente após o milagre da ressurreição é que os justos saberão quem é o Senhor: dar-vos-ei espírito e vós vivereis, e sabereis que eu sou o Senhor.  Ora, o Senhor é aquele que possui, que rege, que manda em alguém. Se os justos antes não viam Deus como seu Senhor é porque algo lhes impedia, uma espécie de cegueira espiritual, somente curada com um milagre. Estariam eles, com a perda da Esperança, sob a regência do inimigo? Mesmo sob regência do demônio poderiam ver de alguma forma, vislumbrar, reconhecer quem era seu Senhor; mas, não.  Só vieram a reconhecê-Lo após essa ressurreição, um espantoso milagre, tão extraordinário como nunca houve sobre a terra, feito não sobre uma só pessoa mas sobre um exército inteiro, abrindo os olhos dos justos para a realidade que antes desconheciam.
7.   Estamos prestes a ver este espantoso milagre acontecer, quando Deus vai ordenar a outro profeta que mande tais ossadas ou defuntos sair das sepulturas, quer dizer, do mundo revolucionário moderno em que vivemos, para ressuscitarem e assim conhecerem a seu Senhor.






sábado, 9 de julho de 2016

A HEROICIDADE DE SANTA PERPÉTUA E SANTA FELICIDADE






No ano 256 se iniciou terrível perseguição aos cristãos, comandando-a o sanguinário Valeriano. Entre os vários cristãos aprisionados por se recusarem a adorar os ídolos pagãos, estavam Santa Perpétua e Santa Felicidade, ambas casadas. Quando o pai de Perpétua soube que a filha estava encarcerada por ser cristã, foi vê-la na prisão e disse:
- Filha minha, que estás fazendo? Como podes desonrar desta forma nossa família? Jamais membro algum de nossa linhagem passou pela vergonha de ver-se encarcerado.
Ao contestá-lo a jovem disse que se estava em semelhante lugar era por ser Cristã. Seu pai, num arroubo de ira, lançou-se sobre ela para agredi-la, mas foi impedido pelos guardas. Saiu dali, aos gritos,  proferindo imprecações contra a filha.
Juntamente com Perpétua estava no cárcere uma jovem chamada Felicidade. O juiz mandou chamar as duas cristãs para serem interrogadas. Primeiro, dirigiu-se á Felicidade:
- És casada?
- Sim, sou casada.
- És muito jovem. Se queres viver, olha por ti. Deves fazê-lo com tanto maior motivo quanto vejo que estás grávida.
- Não percas tempo. Te advirto que não conseguirás submeter-me à tua vontade;  de modo que já podes ditar a tua sentença.
Neste momento entraram no recinto os pais de Perpétua, trazendo com eles o marido e um filho dela, tão pequeno este último que ainda mamava. É a própria Santa Perpétua que conta o que ocorreu, num relato escrito no cárcere sob o título de "la  Passio de Perpetua et Felicidade":
"Dali a alguns dias correu o rumor de que iríamos ser interrogadas. Veio também da cidade o meu pai, consumido de pena, e se aproximou de mim com intenção de derrubar-me, e me disse: "Compadece-te, minha filha, de minha velhice; compadece-te de teu pai, se é que mereço ser chamado por ti com o nome de pai. Se com estas mãos te trouxe até esta flor da idade, se te tenho preferido aos outros teus irmãos, não me entregues ao opróbrio dos homens. Veja seus irmãos; vede tua mãe e a tua tia materna; olha o teu filhinho, que não há de poder sobreviver-te. Depõe teus ânimos, não nos aniquile a todos, pois nenhum de nós poderá falar livremente se a ti te passa algo".  Assim falava como pai, levado de sua piedade, ao tempo que me beijava as mãos e se lançava aos meus pés e me chamava, entre lágrimas, não já de filha, senão sua senhora.  E eu não estava transida de dor por o caso de meu pai, pois era o único em toda minha família que não havia de alegrar-se com meu martírio.  E tratei de anunciar-lhe, dizendo: "Ali na arena sucederá o que Deus quiser;  pois tens de saber que não estamos postos em nosso poder, senão no de Deus”. E retirou-se cheio de tristeza. Outro dia, enquanto estávamos comendo, nos levaram subitamente para sermos interrogados, e chegamos ao foro da praça pública.  Imediatamente se correu a voz pelos arredores da praça, e se congregou imensa multidão.  Subimos no estrado. Interrogados, todos confessaram sua fé. Por fim, chegou minha vez. E logo surgiu meu pai com meu filhinho nos braços e me tirou do estrado, suplicando: "Compadece-te do menino pequeno". E o procurador Hilariano, que havia recebido na ocasião o "ius gladii", o poder de vida e morte, em lugar do defunto procônsul Minucio Timiniano: "Tem consideração  - disse - pelos cabelos brancos  de teu pai; tem consideração à tenra idade de teu filho. Sacrifica pela saúde dos imperadores".  E eu respondi: "Não sacrifico". Hilariano: "logo, és cristã?", disse.  E eu respondi: "Sim, sou cristã". E como meu pai se mantinha firme na intenção de derrubar-me, Hilariano deu ordem de que se afastasse dali, e ainda lhe deram de paus. Eu senti os golpes em meu pai como se fossem em mim mesma. Assim me doí também pela sua infortunada velhice. Então Hilariano pronuncia sentença contra todos nós, condenando-nos às feras. E voltamos jubilosos ao cárcere".[1]  
Após o interrogatório, mandaram-nas de volta à prisão. Antes, porém, as duas sofreram atrozes açoites. Os quatro companheiros de Felicidade na prisão, vendo-a tão sofrida por causa dos sofrimentos, e sabendo que apesar dela estar grávida já no oitavo mês, se encheram de compaixão e de pena e começaram a rezar por ela. Enquanto rezavam, ela começou a sentir as dores do parto e logo a criança nasceu.   Enquanto paria, um dos carcereiros lhe dirige indagações para atribulá-la mais ainda:
- Que pensas fazer quando o juiz te chamar de novo? Porque tudo quanto agora estás sofrendo não é nada em comparação com o que há de vir.
- As dores que nestes momentos padeço são minhas; a mim me corresponde padecê-las; em troca, estas outras torturas que estão me reservando para mais tarde, Deus as padecerá por mim.
As prisioneiras foram tiradas do cárcere, juntamente com os demais cristãos, e, desnudos, fizeram-nos desfilar pela cidade, após o que foram jogados às feras. Foram martirizados neste dia Saturnino, Perpétua, Felicidade e outros quatro companheiros.

Os santos Macabeus, prefiguras dos mártires cristãos
O maior sofrimento que havia para as mulheres mártires era para aquelas que eram mães. Principalmente se elas tinham seus filhos como cristãos, portanto fortes candidatos ao martírio juntamente com elas. No tempo dos Macabeus, que, embora não houvesse chegado o Cristianismo, o espírito cristão já predominava naquela família, o rei Antíoco determinou que o seu deus, Júpiter Olímpico, fosse também adorado entre os hebreus de Jerusalém. Havia na cidade vários templos e altares consagrados aos deuses pagãos, mandados construir por Antíaco, e a família dos Macabeus era a última resistência dos hebreus contra esta investida idolátrica.
Como se fosse uma prefigura dos mártires cristãos, ocorreu o martírio dos sete irmãos macabeus, assim narrados pela Sagrada Escritura:
"Aconteceu também que, tendo sido presos sete irmãos com sua mãe, o rei os queria obrigar a comer carne de porco contra a lei, atormentando-os para isso com açoites que lhes davam com azorragues e nervos de boi.
Um deles, em nome de todos, falou assim: Que pretendes, que queres saber de nós ? Estamos prontos antes a morrer que violar as leis de nossos pais.  O rei, irritado, mandou pôr ao fogo frigideiras e caldeirões.  Logo que ficaram em brasa, ordenou que se cortasse a língua ao que tinha falado primeiro, e que, arrancado da cabeça o couro cabeludo, lhe cortassem também as extremidades, à vista dos outros seus irmãos e de sua mãe. Depois de estar assim mutilado, mandou que o chegassem ao fogo e o torrassem na frigideira, quando ainda respirava. Enquanto se difundia largamente o vapor da frigideira, os outros (irmãos) exortavam-se mutuamente com sua mãe, a morrerem corajosamente, dizendo: O Senhor Deus vê e consola-se em nós, conforme o declarou Moisés no seu cântico de protesto (contra Israel), por estas palavras: Ele será consolado nos seus servos.
Morto deste modo o primeiro, levaram o segundo ao suplício. Arrancado da cabeça o couro cabeludo, perguntaram-lhe se queria comer (das carnes que lhe apresentavam) antes que ser atormentado em cada um dos membros do seu corpo. Respondendo na língua de seus pais, disse:  Não! Pelo que também esse padeceu os mesmos tormentos que o primeiro. Estando já para dar o último suspiro, disse desta maneira: Tu, ó malvado, fazes-nos perder a vida presente, mas (Deus) o Rei do universo, nos ressuscitará para a vida eterna, a nós  que morremos, por fidelidade ás suas leis.
Depois deste, torturaram também o terceiro. Tendo-lhe sido pedida a língua, ele a apresentou logo, assim como estendeu as mãos corajosamente, e disse afoito: Do céu recebi estes membros, mas agora os desprezo pela defesa das suas leis, esperando que ele nos tornará a dar um dia. O próprio rei e os que o acompanhavam admiraram o valor deste jovem, que reputava por nada os tormentos.
Morto este, atormentaram da mesma forma o quarto. Quando ele estava já para expirar, disse: Felizes os que são entregues á morte pelos homens, esperando em Deus que hão de ser por Ele ressuscitados; porém, quanto a ti (ó rei),a tua ressurreição não será para a vida.
Em seguida, pegaram no quinto e atormentaram-no. Mas ele, olhando para o rei disse-lhe: Tu fazes o que queres, porque recebeste o poder entre os homens, ainda que mortal entre eles; todavia não cuides que Deus desamparou a nossa nação;  espera e verás quão grande é o seu poder e como ele te atormentará a ti e a á tua raça.
Após este, levaram (ao suplício)  o sexto, que, quando estava perto de morrer, disse: Não te iludas;  se padecemos isto, é porque o merecemos pelos pecados contra o nosso Deus, pelos quais vêm sobre nós tão espantosos flagelos. Mas não imagines que hás de ficar sem castigo, depois de teres empreendido combater contra Deus".
A Sagrada Escritura detalha o suplício dos sete irmãos, até o sexto, sem falar que a mãe os assistia. Mas é de se imaginar. Se ela estava presente, vendo seus filhos serem martirizados, e da forma mais horrorosa conforme descrita, que sofrimentos indescritíveis não estaria também passando. Cada filho que ia para o sacrifício era uma tremenda dor para seu coração de mãe. Certamente, tanto os maus conselhos das pessoas que a acompanhavam como em seu interior, devem ter surgido várias tentações para ceder; e, cedendo, poderia ganhar talvez não a vida de seus filhos, mas a sua.
Mas a Sagrada Escritura não se esqueceu de mãe tão heróica,  e relata como ela enfrentou tamanho martírio:
"Entretanto a mãe deles, sobremaneira admirável e digna de memória, vendo morrer os seus sete filhos em um só dia, suportou heroicamente a sua morte, pela esperança que tinha no Senhor. Cheia de nobres sentimentos, exortava, na língua de seus pais, a cada um deles em particular, dando firmeza, com ânimo varonil, à sua ternura de mulher. Dizia-lhes: Não sei como fostes formados no meu ventre; não fui eu que vos dei o espírito e a vida, ou que formei os membros do vosso corpo. O Criador do mundo, que formou o homem no seu nascimento e deu origem a todas as coisas, vos tornará a dar o espírito e a vida, por sua misericórdia, em recompensa do quanto agora vos desprezais a vós mesmos, por amor das suas leis".
A estas alturas, o tirano que desta forma martirizava toda uma família, filhos e mãe, estava desesperado porque chegando ao sexto filho nada conseguia. Só restava o filho mais novo e a mãe, ambos agora mais unidos ainda em torno de seus princípios religiosos e mais amparados por Deus.  Que fazer?  Faltava usar de lisonja e fingida amizade. Continuemos o relato pela Sagrada Escritura:
"Ora, Antíaco, considerando-se desprezado e julgando que aquelas palavras (dos mártires)  eram um insulto para ele, como falasse ainda o mais novo, não somente o exortava, mas ainda lhe assegurava com juramento que o faria rico e ditoso, que o teria na classe dos seus amigos e  lhe confiaria altos cargos se abandonasse as leis dos seus pais. Como o jovem de nenhum modo consentisse em tais coisas, o rei chamou a sua mãe, e aconselhou-a a que fizesse àquele jovem recomendações para salvar a vida. Depois de a ter exortado com muitas razões, ela lhe prometeu que procuraria persuadir seu filho. Tendo-se, pois, inclinado para lhe falar, zombando deste cruel tirano, disse-lhe na língua pátria: Meu filho, tem compaixão de mim, que te trouxe nove meses no meu ventre, que te amamentei durante três anos, que te nutri e eduquei até esta idade. Suplico-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que Deus os criou do nada, assim como a todos os homens. Não temas este algoz, mas sê digno de teus irmãos, aceita a morte, para que eu te encontre com eles no dia da misericórdia".
As últimas palavras desta mãe revelam bem o grau heróico de virtudes que ela praticava neste momento. Provavelmente ela estava assistida por vários anjos, e sua alma era fortalecida por graças extraordinárias dadas por Deus, pois naturalmente nenhuma pessoa seria capaz de resistir a tantos tormentos e depois desejar a morte de seu último filho, após perder seis, um após outro, pelo mesmo motivo, resistir impavidamente abraçando os princípios religiosos que herdara de seus pais e que julgava em seu interior serem inspirados pelo Deus verdadeiro.  Que outra mãe, em outro período histórico, sendo crente de outra religião, teria assim resistido às investidas contra seus princípios dando a própria vida e a de seus sete filhos? Não, não há registro histórico de caso semelhante.
E continuemos com o relato da Bíblia, com todo o seu sabor sobrenatural:
"Quando ela ainda estava falando, o jovem disse: Que esperais vós de mim? Eu não obedeço ao mandado real, mas às prescrições da lei que foi dada a Moisés a nossos pais. Quanto a ti, autor de todos os males que oprimem os hebreus, às mãos de Deus não escaparás. Quanto a nós, por causa de nossos pecados é que padecemos; e se o Senhor nosso Deus se irou um pouco contra nós para nos castigar e corrigir, tornar-se-á a reconciliar outra vez com os seus servos. Tu, porém, ó malvado e o mais perverso de todos os homens, não te ensoberbeças loucamente erguido em vãs esperanças, quando levantas a mão  contra os servos de Deus, porque ainda não escapaste ao juízo de Deus onipotente, que tudo vê.  Meus irmãos, depois de terem suportado agora uma dor transitória, entraram já na aliança da vida eterna;  tu, porém, tens de sofrer, pelo juízo de Deus, a pena justamente devida á tua soberba. Eu como meus irmãos, entrego o meu corpo e a minha vida em defesa das leis de meus pais, rogando a Deus que, quanto antes, se mostre propício à nossa nação e te constranja, por meio de tormentos e de flagelos, a confessar que ele é o único Deus.  Oxalá que na minha morte e na de meus irmãos se detenha a ira do Todo-Poderoso, que justamente caiu sobre todo o nosso povo. Então o rei, abrasado em ira, embraveceu-se  contra este mais cruelmente que contra os outros, não suportando sofrer ver-se assim escarnecido. Morreu este jovem sem se contaminar, confiando inteiramente no Senhor.  A mãe foi a última a morrer, depois de seus filhos" (II Mac 7, 1-41).
Realmente, é muito melancólico e frio o final do relato tirado da Sagrada Escritura.  De tudo o que sofreu aquela mãe, de todo o seu valor heróico, se diz pouco, a não ser que "foi a última a morrer depois de seus filhos".  Mas é que a simples morte diz pouco sobre o martírio. O epílogo foi a morte, mas o principal estava no sofrimento que ela teve ao ver seus sete filhos serem barbaramente assassinados, de uma forma desumana e cruel, antes dela mesma.



Os sete irmãos, filhos de Santa Felícitas
Fato análogo se deu entre os primeiros mártires cristãos.  Foram martirizados antes de sua mãe, Santa Felicitas, seus sete filhos, Jenaro, Félix, Felipe, Silvano, Alexandre, Vidal e Marcial.  O prefeito Publio, seguindo ordens do imperador Antonio, mandou comparecer perante ele a mãe e seus sete filhos, procurando fazer o que era comum naquele tempo: tratando-se de cristãos, convencê-los a adorar os ídolos, que era como se fosse a "moda" daquela época.
A mãe cristã, ao ser chamada desta forma à presença da autoridade, disse:
- Não me comovem tuas lisonjas nem me assustam tuas ameaças. O Espírito Santo está comigo, e estou segura que com sua ajuda não me vencerás enquanto viva; se me matas, minha morte constituirá uma grande vitória sobre ti.
Em seguida, a mãe cristã, cheia de fé, dirige-se a seus filhos:
- Filhos meus queridíssimos, levantai vossos olhos e olhai o céu onde está Cristo esperando-nos. Lutai valentemente por Ele e demonstrai o amor que tendes mantido fiéis a seu nome.
O indigno prefeito, ao ouvir isto, mandou a seus prosélitos que esbofeteassem a Felicitas, e em seguida, tanto ela como seus sete filhos fossem martirizados se continuassem firmes na fé cristã. Esta valorosa mulher, longe de fraquejar, não cessou em nenhum momento de exortar veementemente a seus filhos que permanecessem firmes na fé. Todos os sete irmãos foram martirizados, um a um, na presença da própria mãe.  Repetia-se martírio semelhante ao dos macabeus.
Finalmente, a própria mãe foi também martirizada e voou sua alma para a glória celeste para fazer companhia a seus sete filhos.





[1]           "Patrologia"- BAC- vol.1 -págs. 183/184

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A AÇÃO ANGÉLICA EM PROL DE UM REI SANTO

 

“Prossegue, que vencerás!”

São Fernando comandava o cerco de Sevilha (século XIII), que já durava meses sem resultados favoráveis aos cristãos. A situação chegou a tal ponto que São Fernando não conseguia nem conversar direito com sua esposa, pois logo os pensamentos ruins e as tentações lhe acorriam na mente. Certo dia, após cear com ela, disse:
- Não me espere, D. Joana, pois terei que ir na capela onde tenho muito que rezar
- Santa Maria vos valha, meu senhor!
 São Fernando foi até sua capela, entrou e fechou-se à chave por dentro, indo ajoelhar-se aos pés da Virgem dos Reis. Sentia forte aflição e passou a rezar em voz alta:
- Valei-me, Senhora, valei-me com o teu Filho!
Chamava valei-me e socorrei-me repetidamente. Em certo momento, levantou-se para olhar de mais perto o semblante da imagem. Naquela doce penumbra ela lhe parecia mais carinhosa e maternal. Continuou a clamar em voz alta:
- Sempre, Senhora, fostes a minha protetora e me tirastes de todos os trabalhos que por Vós tenho me empenhado. Por que agora assim me deixas penar?  Lembrai-vos, Senhora, de Córdoba, de Jaén, e de todas as minhas conquistas que com o teu favor se fizeram. É verdade que por causa dos meus pecados muito tenho merecido estas penas, mas comigo as sofrem os meus vassalos... Rainha e Mãe de misericórdia, valei-me!
De repente, pareceu ao rei que o sorriso da Senhora Santa Maria se acentuava. Seria ilusão? Seus lábios se moviam como se fosse de uma pessoa viva. O rei a olhava estático, quando ouviu chamar por seu nome:
- Fernando!
Sem estranhar-se disto, respondeu:
- Que queres de mim, Senhora?
- Na minha imagem, “a Antiga”, que está em Sevilha e tu tanto amas, encontrarás muito bom auxílio.
E envolvendo-o com um inefável olhar, com acento persuasivo e suavíssimo lhe diz:
- Prossegue, que vencerás!
São Fernando estava fora de si, mais no céu do que na terra, o lugar de onde vinha claramente o sol que dissipava suas trevas. Imediatamente veio-lhe à mente a imagem de que falou a Virgem, “a Antiga”, que há muitos séculos se encontrava oculta na maometana Sevilha. E pensou como seria da maior glória de Deus conquistá-la para novamente ser entregue à  veneração dos cristãos.
Sem pensar em mais nada saiu da capela, deixando-a aberta, atravessou todo o acampamento e saiu. Caminhava absorto por sua idéia sem pensar no tremendo perigo que estava se expondo. Estava já bem perto das portas de Sevilha moura quando apareceu de repente ao seu lado um formosíssimo jovem segurando um archote na mão para iluminar o caminho. São Fernando o acompanhou sem dizer palavra, pois logo percebeu que era um anjo.  Foram caminhando, passando por lugares estranhos, seguindo para a entrada da cidade, onde a porta se abriu milagrosamente e dirigindo-se em seguida até o centro de Sevilha mourisca. De repente, São Fernando se encontrou no complicado labirinto das revoltas ruazinhas de Sevilha. Sempre atrás do anjo, seguiu aquelas ruelas durante certo tempo até que chegados num ponto pararam em frente a uma mesquita, a maior que havia naquela cidade. Abriu a porta e mandou o anjo que São Fernando entrasse ali.
Lá dentro da mesquita, o anjo apontou para um local onde havia um lenço na parede, ocasião em que São Fernando caiu de joelhos pois sabia que ali se encontrava a imagem de Nossa Senhora, chamada “a Antiga”. A parede se fez transparente e o rei pôde ver a imagem da mesma forma como a haviam pintado séculos atrás. Estava coberta com um véu e sustinha Seu Filho nos braços. São Fernando demorou-se ali muito tempo, rezando à Senhora “a Antiga” para que ele A pudesse resgatar de seu cativeiro, conquistando aquela cidade aos mouros inimigos. Chegada a hora de voltar, o anjo lhe toca no ombro e São Fernando lhe obedece imediatamente. Talvez algum mouro sanhudo tenha se encontrado com ele no caminho, sem imaginar quem seria aquele homem com o rosto escondido num capuz, mas mesmo que descobrisse o anjo certamente o protegeria. E quem sabe se o seu anjo da guarda não cegou algum mouro que o tenha visto na entrada ou saída da cidade?
Quando ambos chegaram no campo cristão, o anjo da guarda desapareceu misteriosamente. Tropeçando em algo que havia no chão, São Fernando se acorda do êxtase em que estava. Notou que agora estava só.
Ao longe, Sevilha lhe parecia uma cidade morta, sem uma voz humana, nem um galo que cante ou mesmo algum latido de cão. São Fernando compreendeu naquele instante a grandiosa mercê que a Mãe de Misericórdia acabava de fazer-lhe. Havia pedido a Ela alento e luz que dissipasse todas as dúvidas com que lhe tentava o demônio, e logo depois de haver lhe dito Ela mesma que venceria, lhe dava como prova de que era de Deus o aviso, o estupendo prodígio de fazê-lo entrar em Sevilha no meio da noite, mandando que um anjo lhe mostrasse o caminho, lhe abrisse as portas e o trouxesse de volta sem qualquer perigo. E tudo isto para que ele pudesse venerar a antiga imagem de Santa Maria, lá escondida como se fosse uma prisioneira.  E a prova de que não era sonho nem delírio, ali estava ele agora em todo o seu siso, fora do acampamento cristão e a dois passos da Sevilha moura, plenamente seguro e sem temor de nada, com uma paz firme e tranqüila e dentro do coração uma enorme gratidão para Seu Senhor, Jesus Cristo. 
Caiu ali de joelhos novamente. Olhou para o objeto em que havia tropeçado e feito com que saísse do êxtase e viu que se tratava de sua própria espada, que talvez tivesse deixado cair ali no chão quando seguia o seu anjo. Beijou carinhosamente a cruz de sua empunhadura, colocou-a rápido na bainha e disse:
- Como eu vos larguei sem dar conta disto?
De repente, ouviu vozes. Todo o acampamento cristão estava em polvorosa. Eram vozes de comando como se as hostes estivessem para sair para alguma investida. Homens montados a cavalo e bem armados davam ordens para partir imediatamente. O que ocorria? O rei correu para o acampamento para ver o que se passava. Foi barrado pelo sentinela, que ao ouvir a voz do rei gritou:
- O rei!
Ao mesmo tempo todos correm para o local e o rodeiam. Seus ricos-homens e cavaleiros fazem ao mesmo tempo a pergunta:
- Senhor, onde estavas?
- Graças ao Criador que voltais são e salvo!
Todo aquele clamor era porque, quando deram pela falta do rei, andavam a tempos o procurando por todo o acampamento sem o achar. Já imaginavam que havia sido raptado pelo inimigo. São Pelayo, um dos mais perplexos e preocupados com a ausência do rei, pergunta:
- Mas dizei, Senhor, onde estavas?
- Estava em Sevilha, tratando da rendição da cidade com alguns meus confidentes.
Em seguida pergunta o rei:
- Que horas são?
- Faltam duas horas para amanhecer o dia, senhor.
- Vamos aproveitá-las descansando, pois amanhã teremos muitos trabalhos que fazer. Dai muitos louvores a Jesus Cristo, pois amanhã Sevilha será nossa.
Os nobres lhe beijaram a mão e todos seguiram para sua tendas. No dia seguinte, Sevilha foi conquistada e libertada a imagem de Nossa Senhora “ A Antiga”, que os mouros mantinham “aprisionada” dentro da igreja transformada em mesquita.
(Fonte: Nuestra Señora en el Arzon - C. Fernandez de Castro, A. C. J.- Editora Escelicer, S.L., de Cádiz, Espanha -1948)