sexta-feira, 22 de julho de 2022

NOSSO SENHOR JESUS CRISTO REVELA COMO FOI A CONVERSÃO DE SANTA MADALENA

 



Uma vidente italiana do século XVIII, a Bem-Aventurada Maria Cecília Baij, assim descreve como Nosso Senhor lhe contou a conversão de Santa Madalena, operada de uma forma fulminante pelo olhar divino de Jesus Cristo:

“Chegando, portanto, o dia festivo, concorreu a Jerusalém uma multidão de pessoas, muitas das quais vieram para ouvir-me pregar e para ver-me, outras ainda para serem liberadas de várias enfermidades. Veio também Marta, irmã de Lázaro, e tanto se empenhou que conseguiu trazer também a irmã, Madalena. Tinham eles uma boa casa em Jerusalém para suas vindas nos dias festivos.

“Madalena debatia-se intensamente no íntimo. O demônio com suas sugestões violentas dissuadia-a de vir, temendo o que depois ocorreu. Isto é, que, ouvindo minha prédica, se convertesse, como se converteram também outros pecadores. O demônio segurava-a muito fortemente. Era, no entanto, atraída pelos convites da graça, que poderosamente a impeliam a vir ao Templo. Eu esperava com grande desejo a pecadora para convertê-la e fazê-la inteiramente minha. Em vista disto, pedia ao Pai dar-lhe a graça de superar as sugestões do inimigo infernal, que fortemente a dissuadia, bem como de vencer as persuasões dos amantes que a aconselhavam a não vir, porque ali, diziam eles, havia um certo homem que pregava e atraía todos para seu partido e encantava a quem o ouvia. Por isso, também ela se deixaria enganar e abandonaria seus amores.

“Por fim, venceu a graça divina, que a convidava com veemência. Madalena dominou todas as persuasões e sugestões, e veio; porém não para ouvir minha palavra, nem para ver-me, mas só com a intenção de ser galanteada e conquistar mais amantes.

“Veio a Jerusalém com a irmã. Perdeu a manhã da festa em adornar-se, levantando-se cedo para enfeitar-se mais comodamente. Foi exortada pela irmã a desistir de tanta vaidade.Mas ela, surda à suas palavras, enfeitou-se mais ainda. A irmã contava-lhe muitas coisas acerca de minha pessoa. Ela, porém, nem sequer quis escutá-la, mostrando-se desgostosa até mesmo de ouvir mencionar-me.

“Eu via tudo. Naquela noite orei sempre ao Pai pela conversão de Madalena, a qual ia desmerecendo cada vez maisa graça da conversão. Mas o Pai prometeu-me para ela a plenitude da graça, conforme me tinha prometido em outras ocasiões.  Eu o louvei e agradeci-lhe por tanta bondade e misericórdia.

“Ao raiar do dia, fui ao Templo com os Apóstolos e discípulos. Demorei-me a orar ao Pai, a fim de que as funções dos Fariseus acabassem.Nesta oração pedi ao Pai tivesse misericórdia de todo o povo, iluminando-o e fazendo-lhe conhecida a verdade que eu lhe pregasse. Via então que Madalena se mostrava arredia a vir ao Templo. Por isso pedi de novo por ela, a fim de que viesse, vencida pelas exortações da irmã e atraída muito mais ainda pelos convites da graça. Sua vinda causou a todos os presentes grande admiração, atraindo a si os olhares de todos, seja por sua beleza, seja também por sua vaidade.

“Terminadas as funções e tendo pedido ajuda a meu divino Pai, ergui-me para começar a prédica. De pé, fixei os olhos em Madalena. Ao olhá-la, chamei-a com voz interior a minha seqüela. Simultaneamente, Madalena também fixou seus olhares em minha pessoa. De fato, seu coração ficou ferido pela potente a amorosa seta. De repente, sentindo o convite, deu-se por vencida, tanto que, antes que eu começasse a falar, ficou presa de meu amor. Fez, porém, grande esforço para resistir e ficar a ouvir minha prédica.

“Comecei a pregar as grandezas do divino Pai. Madalena desfazia-se em lágrimas ao ouvir a doçura e a sublimidade de minhas palavras, ao ver a amabilidade de meu semblante, meus admiráveis atrativos. Foi necessária uma graça especial para ela não morrer de puro amor e juntamente de dor por suas culpas.  Seu coração estava preso de um vivo incêndio de amor e traspassado de dor aguda. Olhei-a amiúde, para que mais e mais vezes ficasse ferida e inflamada. Seu coração destilava lágrimas de dor e se consumia nas chamas de um amor ardente.

Dizia-lhe ao coração:“Madalena, Madalena!Bastante tempo viveste longe de mim. Doravante serás inteiramente minha. Sacrificareis todos os teus afetos a mim.  Prova e vê quão suave e quão doce e potente é o meu amor!”  Continuava a falar-lhe ao coração. Ela respondia-me com todo afeto e não cessava de pedir perdão pelos erros cometidos. Ouvia minhas palavras – que lhe pareciam outros tantos dardos – e cada uma delas feria-lhe o coração.

“Prossegui um pouco minha prédica. Todos os presentes estavam admirados ao ouvirem minhas palavras e minha divina sabedoria.Muitos olhavam Madalena. Ao vê-la tão compungida, ficavam eles também compungidos. Alegrei-me muito ao ver aqueles corações e muito mais me alegrei  à vista do coração contrito e amoroso de Madalena. Alegrava-me qual caçador com sua presa.

“Encontravam-se ali numerosos Escribas e Fariseus, os quais começavam também a sentir comover-se-lhes o coração de compunção. Para não se renderem, fechavam os ouvidos a fim de não me ouvirem; tal era sua obstinação maligna, que os pérfidos amarguravam a consolação por mim sentida pela conversão de Madalena.

“Depois de ter falado algum tempo das perfeições divinas, da obrigação de amar o divino Pai e de observar a Lei divina, narrei a parábola do filho pródigo, seja para inspirar ânimo e confiança a Madalena contrita, como também para animar a todos os outros pecadores presentes.

“Madalena, presa de forte resolução,decidiu vir aos meus pés.  Não fez este ato no Templo, porque não ousou aproximar-se de mim, coberta de enfeites e objetos de vaidade.  Mas quis vir despojada de todas as pompas, inteiramente pobre, com veste humilde, como via minha pessoa, totalmente pobre e humilde.

“Terminada minha prédica, Madalena partiu depressa, como louca, vencida pela paixão do amor e traspassada de dor. Chegando a sua casa, despojou-se de todas as pompas, as quais calcou generosamente. E muito mais, despojou-se do amor próprio de qualquer respeito humano, odiando tudo  o que tinha mantido longe de Deus. Soltou também o cabelo, e inteiramente contrita, chorou amargamente. Não podendo no entanto mais reter a chama que lhe ardia no peito, resolveu repentinamente vir aos meus pés para desafogar o amor e a dor”[1].

 

Ao que muito se perdoa é porque muito amou

O episódio seguinte é muito conhecido, narrado por todos os 4 Evangelistas  (Lc 7, 36-50; Mt 26, 6-13; Mc 14, 3-9 e Jo 12, 1-8): Santa Madalena, após despir-se de todo mundanismo, foi ajoelhar-se aos pés do Salvador para Lhe despejar um vaso de alabastro cheio de bálsamo e Lhe enxugar os mesmos pés com seus cabelos.  Pelo relato de São João, São Lázaro participava do banquete de Betânia e já havia sido ressuscitado.

Foi desta forma que o próprio Nosso Senhor narrou à Abadessa Maria Cecília Baij o banquete de Betânia, na casa do ex-leproso Simão:

“Terminada, então, minha oração e tendo dado graças ao Pai, saí do Templo com os Apóstolos e fui à casa de Simão, o leproso, para ali restaurar-me com os apóstolos, porque estávamos muito necessitados.

“Depois de entrar na dita casa e das costumeiras bênçãos, quando estavam todos à mesa, veio a contrita e amante Madalena. Saíra de casa para vir até mim e prostrar-se aos meus pés. Tendo ouvido dizer que eu, com os apóstolos, tinha ido ao banquete na casa de Simão, foi velozmente para lá, superando todo respeito humano.

Causou admiração aos que a viram. Em verdade, ocasionou admiração e estupor ver uma pecadora pública, pessoa nobre, rica e bela, despojada de toda vaidade, coberta de veste vil, os cabelos soltos, correr velozmente àquela casa. Mas não conheciam o amor que ardia no coração de Madalena, nem a dor que a traspassava. Por isso todos ficaram estupefatos e admirados.

“Veio a penitente e entrou generosamente no lugar do banquete.Não olhou a ninguém. Mas tendo chegado aos meus pés, prostrada em terra, beijou-os amorosamente.  Lavava-os com suas lágrimas e enxugava-os com os cabelos, por meio dos quais havia captado vaidosamente tantas almas. Trouxera também um vaso de precioso e fragrante ungüento para ungir-me os pés. Mediante tal perfume pensava ela mitigar o mau cheiro que me causaria sua iniquidade”.

 

O contato de Santa Madalena arrependida com Jesus foi de Coração a coração

Após o arrependimento, Santa Madalena foi aos pés de Jesus manifestar o que havia dentro de seu coração:

“A dolente Madalena estava, portanto, detrás de meus pés desfazendo-se em lágrimas de dor e satisfazendo seu grande amor. Depois de beijar e ungir por algum tempo meus pés, ergueu-se e derramou todo o precioso e fragrante perfume em minha cabeça, voltando depois aos meus pés. A penitente Madalena não proferia palavra alguma, porque a dor não lhe permitia. Falava-me, no entanto, com o coração. Oh! Quantos afetos de amor exprimia esse coração amante e quantos atos de dor fazia no coração contrito e dolente! Eu falava-lhe ao coração com amor, convidando-a a seguir-me e assegurava-lhe meu amor.

Desde o primeiro instante em que me viu, e eu a mirei, Madalena teve um claro conhecimento acerca de minha pessoa e acreditou ser eu o verdadeiro Messias.O divino Pai concedera-lhe esta graça por causa das numerosas súplicas que eu lhe dirigira por ela. Minhas orações foram bem empregadas, pois ela correspondeu inteiramente à graça e aproveitou as luzes divinas”..

Ao afirmar que “o divino Pai concedera-lhe esta graça” Nosso Senhor confirma que a ação divina no nosso interior se inicia pelas chamadas “locuções interiores”, que são inspiradas por ação do Pai, como ocorreu com São Pedro: “Não foi a carne e o sangue que to revelastes, mas meu Pai que está no Céu” (Mt 16.17).

Após comentar sobre a raiva que o gesto de Santa Madalena causou em Judas e a ironia crítica dos fariseus, Nosso Senhor conclui:

“Tendo então Madalena se expandido, e dado algum reconforto a seu ardente amor e a sua grande dor, disse-lhe: “Tua fé te salvou; vai em paz” (Lc 7, 48). Despedi Madalena e mandei-a embora, absolvida de todas as suas culpas, porque grande foi sua dor e seu amor” [2]

O gesto de Santa Madalena foi assim reconhecido por Nosso Senhor: “Em verdade vos digo que em toda a parte onde for pregado este Evangelho por todo o mundo, publicar-se-á também para sua memória o que ela fez”(Mt 26.13) 



[1]A Vida Íntima de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Maria Cecília Baij, OSB, Acrópole Editora e Distribuidora Ltda, 1984, págs. 443/444

[2]op. cit. pp. 445/446


quarta-feira, 20 de julho de 2022

O ROSTO É ESPELHO DA ALMA

 


 


    
O Padre Jean-Marie de Lamennais foi um sacerdote do século XIX, o qual exerceu muita influência sobre certa corrente filosófica laica e agnóstica. Era irmão do filósofo Hugues Felicité Robert Lamennais, adepto e propagador do espiritismo

Vejam o que escreveu o Cardeal Bernetti sobre ele:

“É tal a união e a interação entre a alma e o corpo, que tudo o que se passa numa reflete-se no outro. E como nesta terra o que nos é dado conhecer nos outros de imediato é o que eles mostram no seu aspecto físico, é através desse prisma que percebemos os traços do espírito.

Tudo no homem, quando bem interpretado, é indicativo de sua alma. Um simples gesto pode revelar um espírito autoritário ou débil. O andar frequentemente indica a resolução ou a inconstância da alma. E até o sono reflete a placidez ou a agitação em que se revolve aquele espírito humano.

Entretanto, se tudo no corpo humano é expressivo, nada o é tanto e tão admiravelmente como o rosto. Nele se refletem com ênfase as virtudes e os vícios da alma, a harmonia interna e as paixões, as alegrias e os sofrimentos. Sobretudo o olhar é que transmite com especial riqueza o que vem do espírito, tal como um eco faz identificar o timbre da voz que o emitiu.

Por isso Santa Teresinha, com aquela perspicácia suave e penetrante que é própria aos puros de coração, dizia que o rosto é espelho da alma.

Esta propriedade do rosto vai tão longe, que em alguns casos ele deixa transparecer não só as virtudes ou defeitos de uma alma, mas até a presença da benção de Deus. O Pe. Ribadenera escreve a respeito de Santo Inácio de Loyola, seu Fundador: “mesmo quando se calava, parecia que seu semblante inflamava os presentes e que o brilho de todo o seu rosto os abrandava e derretia com o divino amor”.

Impressionante por sua vez, é o discernimento que o Papa Leão XII teve do espírito de Lamennais, padre francês, analisando os traços de seu rosto.

O Pe. La Mennais (este era o seu verdadeiro nome), de grande inteligência, teve duas fases bem marcadas em sua vida pública. Numa primeira foi tido nos meios católicos como defensor da Religião, apologista brilhante. Pensou-se seriamente em nomeá-lo cardeal. Na segunda fase tornou-se um pregoeiro dos princípios revolucionários, foi condenado por Roma, apostatou do Catolicismo e morreu impenitente e desesperado em 1854.

No auge da primeira fase, em 1824, então com 42 anos e grande fama, Lamennais foi a Roma para uma audiência com o Papa Leão XII. Amigos do sacerdote intercediam junto ao Sumo Pontífice para conceder-lhe o chapéu cardinalício, e o Papa parecia inclinado a essa concessão. Tanto assim que cumulou-o de bondades, chegando a oferecer-lhe um apartamento no Vaticano, tendo ele mesmo em seu quarto, uma fotografia do sacerdote francês.

Pois bem. Eis o que Leão XII viu em Lamennais durante a audiência, segundo o próprio Papa contou alguns dias depois ao Cardeal Bernetti. Escreve o cardeal:

“O Santo Padre, com voz calma e quase triste, me disse: ‘Quando Nós o recebemos e conversamos com ele, ficamos tomados de espanto. Desde esse dia temos sem cessar, diante dos olhos, sua face de danado’.

“O Santo Padre me dizia isto tão seriamente, que eu fiquei muito surpreso. `Sim – acrescentou o Papa, olhando-me  fixamente – sim ,esse padre tem uma face de danado. Há algo de heresiarca marcado em seu rosto.

Seus amigos da França e da Itália quereriam para ele o chapéu de cardeal. Este homem é por demais possuído pelo orgulho, para depois fazer  a Santa Sé arrepender-se de uma bondade que seria de  justiça se se olhassem apenas suas obras da primeira fase. Mas agora considerai cada traço de seu rosto e dizei-me se não há nele um sinal visível da maldição celeste’.”. (Carta do Cardeal Bernetti ao Duque de Laval-Montmorency, de 30-8-1824).

 

(Revista “Catolicismo” – Abril de 1986)

 

terça-feira, 19 de julho de 2022

ORIGEM DA IMAGEM DE NOSSA SENHORA DO DESTERRO VENERADA NO CONVENTO DE SANTA CLARA DA BAHIA

 




O mundo tem a sua formosura na sua variedade, porque se ele não fora vá-rio, não fora formoso: daqui nasce aquela grande inconstância com que o mundo reparte ordinariamente as suas felicidades. Que esta conseqüência tenha lugar nos mundanos, seja embora; porque na sua adoração podem ser a sua desculpa: mas que tenha também lugar no filho de Deus e na Virgem Santíssima, que a golfo de Cristo se ver adorado: “Venimus adorare eum”, se siga a pena de se ver fu-gido: “Fugem Aegyptum”. E que à alegria de se ver Maria venerada por Rainha do Céu, se siga a pena de se ver obrigada, das perseguições de Herodes a fugir com o Santíssimo Filho, é muito para admirar. Que sendo a Providência Divina tão grande, que é infinita; disponha que Maria se veja obrigada a se desterrar; e que o Filho seja obrigado a fugir? Que as luzes, e mais as sombras sejam os mesmos ditames e corram a mesma fortuna, grande maravilha! Mas alcançando-se o mistério, cessará logo o espanto. Cristo e Maria eram luzes, era Cristo Sol: “Crietur nobis Sol justitiae”; era Maria luz: porque era Lua: “Pulchra ut luna”. Justo era que Maria com a ocasião desta pena, fosse luzir no desterro com o seu exemplo; e que Cristo, fugindo à perseguição de Herodes, fosse luzir no Egito com o seu amparo, como diz Crisóstomo. Esta é a natureza das luzes. Os seus resplendores são as suas influências. Os Astros em tanto luzem, em quanto aproveitam, que senão aproveitaram, não luziram; e assim vão Maria e seu Santíssimo Filho desterrados para luzirem e para espalharem no Egito os resplendores de suas divinas virtudes. E dispunha a Divina Providência, que as sagradas imagens de que compõem este soberano mistério, sejam levados pela devoção católica ao novo mundo da América para nele como lá se viu no Egito, arruinar os ídolos daquela Gentilidade bárbara e inculta, ilustrando-as com suas luzes para o inflamarem e guiarem aos caminhos da verdadeira Religião, como aqui veremos.

Pouco depois de se dar princípio à Cidade de São Salvador, ou Bahia de todos os Santos, foi isto pelos anos de 1560 sendo Governador Mem de Sá, se erigiu uma Ermida no Sertão, ou alguma cousa distante da nova povoação; aonde uns devotos, não sem destino do Céu (porque havia escolhido aquele lugar para Palácio), colocaram as imagens de Jesus, Maria e José. Imagens de vulto formadas de madeira, o menino, e São José com seus bordões. Era esta Ermida feita de tábuas e o teto coberto de folhas de palma. O sítio desmatá-lo-iam; mas afrouxando a devoção, tornou a crescer o mato; e assim era muito infestada de animais ferozes e peçonhentos, com cobras jibóias ou de veados muito grandes, jacarés e outros que saíam das lagoas que lhe ficavam vizinhas. E, ou fosse que se acabasse de todo a devoção, ou que o temor de cair dos dentes daquelas feras cruéis e medonhas, fez que se acabasse totalmente o ir a venerar a Senhora à sua Ermida. E assim se perdeu a devoção; e quando algumas pessoas (se iam lá) levavam armas de fogo para se evitar qualquer perigo.

Pelos anos de 1567, sendo ainda Governador o referido Mem de Sá, se diz por tradição comum, que fora um homem (ou Nossa Senhora lhe inspirou que lá fosse). Ia este a cavalo para aquela parte e vendo Ermida, ou casa de palha, perguntou a uns negros o que aquilo era, e eles lhe responderam: era a casa de Nossa Senhora do Desterro; mas que se não podia lá ir, porque era aquele sítio muito reparo o homem, no que os presto referiram; e assim se resolveu a entrar na Ermida e ir fazer oração à Senhora do Desterro. Foi chegando, se apeou e entrou dentro a encomendar-se à Senhora.

Depois de fazer a sua oração, saiu para fora e assentou-se à porta da Ermida, e ali encostado, dizem, que adormeceu. Despertou logo todo sobressaltado; porque se viu cingido e cercado de uma grande jibóia, ou securiubam (1) a qual já fazia diligência pelo tragar. Neste tempo, e neste perigo, invocou em seu favor à Senhora do Desterro, e com ela animado puxou de ma navalha, que também dispôs Deus que a levasse consigo; tal golpe e com tal sucesso lhe deu pela garganta que a degolou e caiu morta aquela fera e animal espantoso. Reconhecendo logo de onde lhe viera o socorro, entrou dentro da Ermida a dar graças à Senhora, que o havia livrado da morte. E depois saindo fora, carregou como pôde no cavalo aquele medonho animal, e com ele se foi à praça da Cidade, apregoando a grande maravilha e o favor que a Senhora lhe fizera. Tem aquele animal a pele tão dura, que dizem por encarecimento que tem sete couros. E é esta tão dura que parece impenetrável, porque para o abrirem não bastavam os machados. E aqui se viu o mais o portentoso do milagre, que sendo aquela pele tão dura e tão impenetrável , a fez o favor de Maria Santíssima tão e tão branda no pescoço que com uma navalhada pôde aquele homem degolar aquela grande fera. Esfolaram-na e depois encheram a pele de algodão, e com a navalhinha na boca a foram oferecer à Senhora do Desterro, em memória do benefício que fizera em livrar da morte aquele seu devoto.

Com este grande milagre se ascendeu o povo em fervorosa devoção para com a Senhora do Desterro, e tanto que o mesmo Governador Mem de Sá pediu a todos os moradores que tinham pretos, aos que tinham seis, que dessem três, e aos que tinham quatro, que dessem dois, e assim aos mais, para irem roçar todo aquele mato, que estava em o circuito da Ermida da Senhora. Limpa toda a terra até o sítio da casa da Senhora, trataram de lhe edificar outra mais grande e capaz de pedra e cal, e alevantar casas junto a ela. E o mesmo Governador mandou ali edificar uma casa nobre, ou palácio, para sua vivenda. E depois se foram fazendo tantas casas, que a Cidade se estendeu até aquele sítio. O mesmo Governador desejou logo, que naquele mesmo sítio se edificasse um Convento para religiosas, que perpetuamente louvassem a Nosso Senhor e a Nossa Senhora, e fez as dili-gências possíveis para que estes seus desejos se efetuassem. E porque ele o não pôde conseguir em sua vida, o recomendou à Câmara daquela Cidade. E tão certo estava de que a Senhora do Desterro havia de ser servida naquele lugar por religiosas, que na sua morte deixou ao Padre Reitor do Colégio da Companhia (2) daquela Cidade mil cruzados em depósito, para que assim que chegassem as religiosas a tomar posse daquela casa lhes entregasse para a ceia daquele dia; como em efeito o executou, indo logo entregá-los ás religiosas. E reparando elas na aceitação, o Padre Reitor as certificou, de que aquele dinheiro era seu, e que se lhe havia deixado em legado para quando elas chegassem.

Isto mesmo testemunha ainda hoje uma companheira das Madres Fundadoras, que vive no Convento de Santa Clara da Cidade de Évora (de onde saíram para fundar) neste presente ano de 1705, a qual disse que estes mil cruzados depositaram logo as Madres Fundadoras, para se dar com ele princípio a obra do seu Convento. O ano em que as Fundadoras saíram do seu Convento de Évora, foi o de 1676 em oito de novembro. E tomaram posse do Convento novo na Cidade da Bahia em nove de março de 1677. As Fundadoras eram a Madre Soror Margarida da Coluna, que ia por Abadessa, a Madre Soror Luiza de São José por Vigária, as outras duas eram a Madre Soror Maria de São Raimundo e Soror Jerônima do Presépio. E teve muito de mistério, que todas quatro voltaram a Portugal e foram para o seu Convento, aonde se restituíram todas em oito de novembro de 1686. Gastando dez anos justos e completos nesta obra, que podíamos dizer fora profetizada por aquele pio e devoto Governador Mem de Sá. Esta casa da Senhora do Desterro é juntamente paróquia daquele distrito; se o era já quando as religiosas tomaram posse não me constou; mas já o devia ser. A imagem da Senhora é de talha estofada, e por ornato lhe põem um rico manto, e assim a Senhora como São José; e o soberano menino se vem com varas de prata por bordões, a sua estatura da Senhora são cinco palmos. Obrou sempre, e obra muitos milagres. A sua festividade se faz sempre com grandeza em dia de Reis, na qual se acaba o seu septenário.

NOTAS: 1) Tudo indica que o autor quer se referir à cobra sucuri.

2) Refere-se à Companhia de Jesus.

(Transcrito do livro “Santuário Mariano e História das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora” – de Frei Agostinho de Santa Maria – Em Lisboa – 1722- págs. 28/30).

Nota: O trabalho de Frei Agostinho (“Santuário Mariano...”) foi feito sob encomenda do Bispo, Dom Sebastião Monteiro da Vide, que viu a necessidade de documentar todas as imagens milagrosas de Nossa Senhora que haviam na Bahia.


MADRE VICTÓRIA DA ENCARNAÇÃO, GRANDE DEVOTA DAS ALMAS DO PURGATÓRIO

 





 Hoje, 19 de julho, se celebra na Bahia a memória da Serva de Deus Victória da Encarnação, um freira que morreu em odor de santidade no Convento de Nossa Senhora do Desterro no início do século XVIII (1715).

Em 22 de maio de 1702, assumiu o cargo de Arcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide, insigne prelado português que trouxe para nossa pátria excelentes frutos para a formação moral e cultural de nosso povo. Foi ele responsável pela publicação da biografia de alguns místicos que se sobressaíam, como o ermitão de Bom Jesus da Lapa (a quem convenceu receber as ordens sacerdotais) e a freira reclusa do Convento do Desterro, Victória da Encarnação. Também foi de sua responsabilidade a publicação de um rigoroso levantamento das imagens milagrosas de Nossa Senhora que havia na Bahia. Procurou reformar o clero, moralizou a vida social e religiosa, dentre outras ações benéficas que legou.

Dom Sebastião Iniciara sua vida religiosa como jesuíta, mas abandonou-a, abraçando a carreira militar que também renunciou para estudar direito canônico. Ordenou-se sacerdote posteriormente. Além de Arcebispo da Bahia, Metropolitano no Estado do Brasil, do Conselho de sua Majestade, exercia também o cargo de  Governador-Geral. Sua principal obra foi “As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, promulgadas em 1707, importante documento que norteou não só sua ação pastoral mas a própria educação moral, religiosa e cultural do nosso povo “para o bom governo do Arcebispado, direção dos costumes, extirpação dos vícios e abusos, moderação dos crimes, e reta administração da justiça", e estiveram em vigor até o final do século XIX. Segue a seguir um resumo da vida daquela Serva de Deus.

 

Madre Victória da Encarnação

 “MADRE VITÓRIA DA ENCARNAÇÃO nasceu na cidade do Salvador, então capital do Brasil colonial, em 6 de março de 1661, sendo batizada no mesmo ano na antiga Sé da Bahia. Foram seus pais, Bartolomeu Nabo Correia e Luísa Bixarxe. Teve um irmão e três irmãs. Conforme escreveu Dom Sebastião Monteiro da Vide (1720), a casa desta família era um exemplo de lar cristão.

 Em 1675, quando Vitória estava com 14 anos, seu pai desejou enviá-la, juntamente com sua irmã mais velha, Maria da Conceição, para um convento nos Açores, em Portugal, porém a menina se recusou, dizendo que preferia que lhe cortassem a cabeça de que ser enviada para um convento.

 Em 1677, quando foi fundado o primeiro mosteiro feminino no Brasil, o Mosteiro de Santa Clara do Desterro da Bahia, Vitória, então com 16 anos de idade, ainda dava mostras de aversão à vida religiosa, preocupando seus pais com seu comportamento.”

 — A origem desta Fundação está num milagre realizado por Nossa Senhora do Desterro em favor de um cavaleiro que após sentar-se no passeio da frente de uma pequena ermida erigida em  uma região montanhosa de Salvador de então, em meio a uma floresta virgem, acordou apavorado pois se encontrava  fortemente enroscado por uma jiboia gigante prestes a ter seus ossos e suas carnes por ela esmagados, para ser em seguida engolidos pelo dantesco réptil, quando das profundezas do seu coração suplicou alto e em bom som: – “ Valei-me Nossa Senhora do Desterro!” –  “  Salvai-me Nossa Senhora do Desterro” e ainda por uma terceira vez: – “ Valei-me minha Nossa Senhora!” Como num passe de mágica,  conseguiu puxar com uma de suas mãos o punhal que se encontrava preso à sua cintura e desferiu um golpe certeiro num ponto vital da garganta do monstro rastejante, que imediatamente perdeu suas forças, estertorou e em seguida morreu, podendo o confiante devoto de Nossa Senhora desvencilhar-se de tão sinistro abraço, pôr-se de joelhos e agradecer à Mãe de Deus tão insigne favor Ato contínuo, conseguiu arrastar o seu troféu até o centro da nascente Cidade de Salvador, atraindo toda a população que exultante de alegria, agradecia a Nossa Senhora por tão significativo sucesso!

 O Terceiro Governador-Geral, Mem de Sá, acabava de chegar de uma viagem e muito se alegrou com o acontecido e foi com uma grande quantidade de pessoas até a abençoada ermida, na qual, em uma de suas toscas paredes foi colocada a pele da malfadada jiboia, e sobretudo muito se rezou e se agradeceu a proteção de Nossa Senhora.

  Por inspiração divina, Mem de Sá teve a feliz ideia de ali construir uma igreja e um convento para abrigar vocações religiosas femininas que abundavam em nossa Cidade, mas que para serem correspondidas demandavam uma perigosa viagem a Portugal, expostas a morrerem em naufrágios  ou a se tornarem escravas de cruéis piratas que infestavam a rota marítima que as levaria ao seu destino,  naqueles tempos. Embora não tivesse o nosso insigne Governador Geral visto a realização do seu intento, a igreja foi construída, em seguida o Convento, em honra de Santa Clara de Assis, o primeiro do Continente Americano! E  no ano de 13 de maio de 1669, o Papa  Clemente IX atendeu à solicitação do Arcebispo de então e autorizou a vinda de Freiras do Convento de Évora, para fundar a Ordem das Irmãs Clarissas em nossa Terra. E vai ser neste solo bendito que vicejará a sua mais bela Rosa, Madre Vitória da Encarnação, como veremos mais abaixo.

 No ano de 1686, num domingo pela manhã, em 29 de setembro, dia de São Miguel Arcanjo, Vitória foi acolhida no noviciado das monjas clarissas do Mosteiro do Desterro da Bahia e juntamente com ela, foi acolhida também a sua irmã, Maria da Conceição. Recebeu neste dia, o nome religioso de Vitória da Encarnação. No ano seguinte (1687), conforme seu desejo, fez profissão Solene em 21 de outubro, dia em que se celebrava na cidade de Salvador a festa das Onze Mil Virgens”

 Sua vida como religiosa

 “Mostrou-se grande em suas virtudes. Desapegada de tudo o que é mundano, quis fazer-se a menor de todas e aquela que servia a todas. Dotada de imensa caridade para com os mais desvalidos, desejou viver como uma escrava e adotou para si o estilo de vida das servas que viviam no mosteiro servindo as religiosas. Fazia suas refeições sentada no chão, como era costume entre os escravos da época, corria para fazer os trabalhos que ninguém queria, e por querer ser a menor de todas, foi diversas vezes ridicularizada e até mesmo agredida, levando uma bofetada de uma das servas a quem ela tanto servia e quis se fazer semelhante. Cuidava daquelas que adoeciam, levando-as para sua própria cela e de lá só saiam quando completamente curadas. Suportou diversas humilhações calada e com paciência, pois considerava-se digna de todas aquelas ofensas”.

 “Viveu inteiramente dedicada aos pobres, doentes e desamparados que procuravam o mosteiro em busca de socorro. Pela sua grande caridade recebeu dos pobres o apelido de “madre Esmoler. Quando exercia o cargo de porteira, grande quantidade de pessoas dirigia-se à portaria para pedir-lhe algum auxílio. Atendeu a todos quantos podia, e de dentro da clausura recomendava aos seus familiares que cuidassem daqueles pobres e doentes que ela não poderia socorrer, mas que vinha a saber que estavam necessitados. Doou em vida tudo o que possuía aos pobres, inclusive a cama na qual dormia, passando então a dormir no chão sobre uma esteira de palha. Por esse motivo, não morreu em sua própria cela. Quando estava prestes a falecer foi levada para a cela de outra monja pois suas coirmãs não quiseram deixá-la morrer no chão.

 Dotada de dons místicos, se transfigurava quando fazia a via-sacra, todas as sextas-feiras do ano. Um desses eventos foi testemunhado pelas outras religiosas quando participava de uma procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos no corredor da clausura, e foi narrado por Dom Sebastião em seu livro. Conforme o mesmo escreveu, “brotavam nas faces duas rosas, com cuja púrpura avivando-se o desmaiado e penitente do rosto, arrebatava as atenções das que a viam, não podendo reprimir as lágrimas da devoção que lhes causava esta devota penitente.

 Tinha tanto desejo de imitar ao Divino Esposo em seus sofrimentos, que castigava-se com cilícios e disciplinas duríssimas, chegando a converter os pecadores que passavam pela via próxima ao convento e que ouviam o barulho daquelas chibatadas. Fazia rigorosos jejuns e quando comia algo que lhe agradava o paladar, misturava cinzas à comida para estragar o sabor”.

 “Em uma noite viu o Senhor a andar pelo corredor do mosteiro com sua pesada cruz às costas. Ao encontrá-lo, Ele disse-lhe: “Esposa minha, vem e segue meus passos”. Desde então começou a carregar uma grande cruz às costas durante as madrugadas das sextas-feiras. Foi a Madre Vitória a responsável pela difusão da devoção ao Senhor Bom Jesus dos Passos na cidade de Salvador e mandou construir dentro da clausura do mosteiro uma capela a Ele dedicada.

  “Amou tanto as almas do purgatório que sufragava-as diariamente com orações e oferecia-lhes todas as missas em seu favor. Conforme narrou seu biógrafo, muitas almas se mostraram a ela em seus sofrimentos no purgatório e também voltavam para agradecer-lhe pelas orações em seu favor, quando de lá saíam para o Céu, resplandecentes de luz”.

 “Tinha o dom da revelação e profecia. Era capaz de saber o local exato em que uma pessoa, tida por desaparecida, se encontrava, assim como de prever acontecimentos futuros. Chegou a descrever eventos que aconteceriam por ocasião e após sua morte. Tinha também a capacidade de encontrar objetos e animais desaparecidos. Passava maior parte da noite em vigília diante do Santíssimo Sacramento e por esse motivo foi chamada, pelo seu biógrafo o arcebispo da Bahia, de “tocha acesa no Divino Amor”.”

 

Tinha o dom da Profecia! Previa acontecimentos futuros!

 “Teve por companheiras mais próximas em seus exercícios penitenciais duas outras monjas, também biografadas por fama de santidade, a saber, Madre Maria da Soledade e Madre Margarida da Coluna. Era frequentemente tentada pelo demônio por meio de visões aterradoras e desses terríveis combates espirituais sempre saía vitoriosa. Alguns deles ocorreram quando estava junto a estas companheiras. Em um deles a Madre Maria da Soledade foi lançada de cima do coro para baixo sem sofrer muitos danos físicos.”

 Igreja do Desterro

 “Sentindo que se aproximava ou dia de sua morte fez diversas recomendações às suas irmãs. Uma delas foi o pedido de ser levada à sepultura pelas mãos das servas a quem ela tanto amava. Outro pedido feito foi o de não ser enterrada com o hábito que usava em vida, pois não queria levar para o túmulo nada que tivesse lhe pertencido neste mundo e pediu que cada uma das irmãs doasse a ela uma peça do hábito religioso com o qual ela seria enterrada.

 Após 29 anos de clausura e de total consagração de sua vida à Cristo e ao próximo, faleceu numa sexta-feira, às 15 horas, 19 de julho de 1715, acompanhada do padre e das irmãs que a assistiam. No momento de sua morte as religiosas disseram ter sentido uma maravilhosa fragrância de rosas a inundar as dependências do mosteiro. E durante o rito das exéquias um misterioso passarinho foi visto voando pelos corredores do mosteiro numa velocidade jamais vista para um pássaro comum. Os que ali se encontravam narraram este fato a que Dom Sebastião dissera ser “a alma da Madre Vitória voando para as mansões celestiais”.

 “Ao se espalhar a notícia de sua morte, uma grande multidão se aglomerou diante do convento. Logo toda a cidade ficou a saber, pois diziam ter morrido a “santa da Bahia”. Muitos levavam lenços, medalhas, terços e outros objetos e pediam que as religiosas os tocassem no corpo da “santa”. Esses objetos eram guardados por essas pessoas e eram tidos como verdadeiras relíquias. Como a quantidade de pessoas às portas do convento crescia cada vez mais durante aquela noite, e não paravam de chamar pelas religiosas para que tocassem seus objetos ao corpo da madre, se viram obrigadas a não mais saírem à portaria e não puderam atender mais a nenhum deles.

  “Seu corpo foi velado durante toda a noite na capela que a mesma havia mandado construir em honra ao Senhor dos Passos, e foi enterrado no dia seguinte no cemitério conventual. Ao tentarem, as irmãs, levarem o corpo para a sepultura, o esquife tornou-se tão pesado que não se movia do lugar. Ao se lembrarem do pedido da madre de que fosse levada à sepultura pelas mãos das servas, chamaram-nas para que levassem o corpo. Quando estas levantaram o esquife, parecia não haver nele corpo algum, pois o mesmo estava leve como que quase sem peso algum.

 Inúmeros foram os milagres narrados pelos seus devotos logo após sua morte. Sendo crescente o número desses supostos milagres, o então arcebispo da Bahia tratou de interrogar as religiosas do Desterro sobre a vida que teve a Madre Vitória. Em 1720, apenas cinco anos após a sua morte, Dom Sebastião Monteiro da Vide publicou em Roma a biografia da “santa da Bahia” com o título “História da Vida e Morte da Madre Soror Victória da Encarnação”.

 O zeloso arcebispo jesuíta pretendia solicitar a abertura da sua causa de beatificação e chegou a compará-la à Santa Rosa de Lima. Porém faleceu em 1722. Anos mais tarde, com a perseguição do Marquês de Pombal aos Jesuítas e proibição de muitos dos seus escritos no Brasil, diversos livros se perderam. Isso dificultou a difusão da sua história. Mas a memória da Madre Vitória não se apagou dentro do convento em que viveu, nem nas mentes daqueles que pela tradição oral ou pelos poucos escritos que restaram, vieram a saber da sua vida e fama de santidade. E muitos ainda esperam vê-la elevada à honra dos altares.

 Seus restos mortais encontram-se na igreja do Convento de Santa Clara do Desterro e estão depositados acima de uma das portas que ligam o coro de baixo à nave da igreja. 

Em busca da beatificação

 Cinco anos após o falecimento da Madre Vitória, devido sua fama de santidade e ao grande número de curas milagrosas por sua intercessão, o então arcebispo da Bahia, o jesuíta Dom Sebastião Monteiro da Vide, desejando torná-la conhecida e promover sua causa de beatificação, publicou em Roma sua biografia com o título “História da Vida e Morte da Madre Soror Vitória da Encarnação”.

 Com a morte de Dom Sebastião e as dificuldades de comunicação da época, assim como a diversos outros problemas como a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal e a perseguição às ordens religiosas que se seguiram nos anos posteriores culminando com a extinção de alguns mosteiros, entre eles o das clarissas da Bahia, a causa da Madre Vitória não seguiu adiante. Muitos escritos de jesuítas foram proibidos de circular e a biografia da madre quase desapareceu. Mas a tradição oral e a discreta devoção nutrida pelos fiéis que frequentavam o convento do Desterro mantiveram viva a sua memória e 300 anos após seu falecimento a Madre Vitória continua sendo lembrada como a primeira religiosa do Brasil com fama de santidade.

 Três séculos se passaram e o interesse dos devotos na beatificação da Madre Vitória resistiu. O Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, fez um pedido à Congregação para a Causa dos Santos de abertura oficial da sua causa de beatificação. No dia 07 de julho de 2016, a Congregação para a causa dos Santos emite o decreto ‘nihil obstat’ que autoriza a abertura do processo de beatificação da Madre Vitória e dá a ela o título de Serva de Deus. Enquanto isso seus devotos e admiradores permanecem em oração nos dias 19 de cada mês diante do seu túmulo, no Convento do Desterro, esperando que em breve esta fiel filha de São Francisco e Santa Clara seja elevada às honras dos altares.”

Todos os anos, O Grupo de Amigos de Madre Vitória promove a celebração de uma Santa Missa no dia 19 de julho, para fazer memória à santa vida de Madre Vitória e para obter de Deus a beatificação desta insigne e valorosa Freira, nossa conterrânea a fim de que nos sirva de exemplo para crescermos, cada vez mais, no amor a Deus Nosso Senhor.

Os textos acima foram extraídos de:

·                     SEBASTIÃO MONTEIRO DAVID. História da vida e morte da Madre Sóror Victoria da Encarnação: Roma, 1710.

·                     RODRIGUES, amelia. Uma Flor do Desterro: Niterói, 1924.

https://ambientesecostumes.wordpress.com/2020/03/15/tocha-acesa-do-divino-amor/

 

 

 


domingo, 17 de julho de 2022

O MARTÍRIO DAS CARMELITAS DE COMPIÈGNE

 


O vendaval de ódio anti-religioso que soprou na França durante a Revolução de 1789, atingiu duramente e de forma indiscriminada todas as ordens, todos os religiosos, de todas as cidades, inclusive, de forma brutal, a humilde Comunidade das carmelitas de Compiègne.

Já a partir de novembro de 1789 os bens eclesiásticos são compulsoriamente colocados à disposição do Poder Público. Depois, eram considerados "fora da lei" todos os religiosos que não jurassem a Constituição Civil do Clero.

No dia 4 de agosto de 1790, as carmelitas de Compiègne recebem a visita dos "comissários do povo" a fim de fazer o inventário de seus bens. No dia seguinte, insinuam que as religiosas abandonem o Convento e voltem para casa para aproveitar o "privilégio concedido pela lei".

Mais tarde, em 14 de setembro do mesmo ano, como relutavam em abandonar a clausura, recebem ordens expressas de abandonar o edifício, sob pena de serem punidas pela lei. Sem ter para onde ir, procuram as freiras abrigo em casas de pessoas amigas na cidade, em grupos de quatro ou cinco. Mesmo assim, os "comissários do povo" vão a procura delas e exigem que façam um juramento republicano denominado "Liberdade-Igualdade".


Predileção divina

Depois da Páscoa de 1792, esteve visitando o Carmelo de Compiègne o bispo de Saint-Papoul, Mgr. de Maillé-la-Tour-Landry, quando soube de um fato miraculoso ocorrido muitos anos antes. Estava um clérigo dando a comunhão a uma jovem de 15 a 16 anos, "virgem como um anjo", segundo o bispo, quando a mesma entrou em êxtase vendo grande quantidade de religiosas, uma comunidade inteira, subir aos céus com palmas nas mãos. A superiora, dirigindo-se às irmãs, interpretou o sonho: "Poderíamos esperar que fosse a nossa comunidade que o Céu predestinasse a um tão grande favor?" Os fatos provariam que era aquela Comunidade, sim, que ganharia inteirinha a palma do martírio.

Esta idéia do martírio ia tomando vulto no espírito da superiora, Madre Teresa, e de suas religiosas à medida que o vendaval revolucionário ia crescendo. Determinado dia, a superiora reúne suas religiosas e lhes diz: "tendo feito meditação sobre esta matéria, veio-me ao pensamento fazer um ato de consagração pelo qual a Comunidade se ofereceria em holocausto para aplacar a cólera de Deus, para que a divina paz que Seu Filho veio trazer ao mundo fosse concedida à Igreja e ao Estado". Todas as religiosas aprovaram a idéia e a consagração foi logo feita.

A situação das religiosas era difícil, dispersas pelas casas de amigos. Mas as proximidades das casas permitia-lhes reunirem-se para realizar alguns atos comuns sem chamar atenção. Certo dia, porém, as casas são "visitadas" abruptamente pelo "Comitê de Vigilância" da cidade. Nos dias seguintes as visitas se sucedem.

Durante aquelas "visitas", os representantes do "povo" reúnem finalmente as "provas" com que podem mandar prender todas as religiosas, o que ocorre no dia 22 de junho. O material recolhido é enviado a Paris com os dizeres: "Já de há muito desconfiávamos que as ex-religiosas carmelitas deste município, se bem que alojadas em casas diferentes, viviam em comunidade, submissas às regras de seu ex-convento. Nossas desconfianças não eram vãs.
“Após várias visitas feitas, encontramos correspondência criminosa: não somente paralisavam elas os progressos no espírito do povo, admitindo pessoas numa confraria dita do escapulário, mas faziam também votos pela Contra-Revolução e destruição da República e restabelecimento da tirania".
Dentre os documentos que foram apresentados como "provas" dos delitos das freiras, estavam cartas de alguns padres em que se falava de novenas, escapulários e direção espiritual; um retrato de Luís XVI, e imagens do Sagrado Coração de Jesus.


A morte "in odium fidei"

A 12 do mês seguinte, enquanto almoçam na prisão, as religiosas recebem ordens de partida imediata para Paris. Já estavam prontas a sua espera as carruagens que as levariam de viagem.

Tão logo chegam a Paris são levadas para a Conciergerie, a prisão de onde só se saía para a guilhotina. Por terem as mãos atadas, as religiosas descem com dificuldade das carruagens. O carcereiro, impaciente, empurra a mais idosa, quase octogenária e doente, fazendo-a cair de bruços sobre as pedras do calçamento. O povo presente protestou contra tal brutalidade. Ferida e com a face ensangüentada, a anciã ainda agradece a seu algoz por não a ter matado, porque isto a privaria da graça coletiva do martírio.

No dia seguinte as carmelitas são obrigadas a comparecer perante o Tribunal Revolucionário juntas com outro grupo de 15 pessoas. A maioria destas pessoas haviam cometido o "crime" de havê-las acolhido em suas casas. As características deste "julgamento" são iguais aos outros: não há advogado de defesa nem testemunhas a serem arroladas, há apenas o libelo acusatório.

A sentença saiu também da mesma forma das demais: morte pela guilhotina. Para se avaliar o facciosismo de tal "júri" basta julgarmos um caso. Um dos réus, Mulot de la Ménardière, foi condenado à morte como "padre refratário", quando se sabe que o mesmo não era padre mas agricultor, bastante conhecido na cidade para ter sua profissão trocada em plena sentença do Tribunal, por sinal dirigido por um sujeito que o conhecia muito bem, pois era natural de Compiègne.

Em sua prisão na Conciergerie, as 16 carmelitas não deixam de cumprir a Regra da Ordem. Testemunhas afirmam que elas nunca deixaram de rezar o Ofício. E no dia de 16 de julho, véspera do martírio, celebraram a Festa de Nossa Senhora do Carmo, Patrona da Ordem, com tal entusiasmo que um dos presos que o testemunhou disse que "a véspera da morte parecia para elas um dia de grande festa".

Enquanto as religiosas aguardam os carroções que as levariam ao cadafalso, como estavam em jejum, a superiora Madre Teresa de Santo Agostinho, temendo que alguma possível fraqueza física possa ser tomada como temor da morte, vende a um circunstante um xale de uma das freiras e proporciona a cada uma das freiras uma xícara de chocolate.

Vítimas expiatórias

Caminhando para o cadafalso, as carmelitas cantam. Primeiro o Miserere, para que Deus perdoe os seus pecados; depois a Salve Regina, pedindo proteção à Santíssima Virgem, e, finalmente, o Te Deum, como canto de vitória pelo martírio. A multidão as segue em silêncio respeitoso, ninguém ousa bradar os usuais xingamentos que costumavam fazer contra os condenados. Nem sequer as furiosas "lambedeiras de guilhotinas", ou, como alguns chamavam, "furiosas da guilhotina", grupo de megeras debochadas e sedentas de sangue que sempre acompanhavam as vítimas para lhes aumentar o tormento e saborear suas angústias e terror.
Madre Teresa de Santo Agostinho pede para ser a última a morrer, a fim de poder encorajar suas filhas espirituais até o final. Segurando uma pequena imagem da Virgem Santíssima nas mãos ela entoa o hino "Veni Creator Spiritus", invocando o Divino Espírito Santo. Irmã Constância, a primeira a ser chamada para o suplício, aproxima-se dela, oscula a pequena imagem, e pede à Superiora sua bênção e licença para morrer. Sobe depois serenamente os degraus do cadafalso, cantando o Salmo "Laudate Dominum omnes gentes", indo colocar-se sob o cutelo e não permitindo que os carrascos nela toquem. Todas as outras seguirão seu exemplo. Os carrascos, cheios de respeito, não têm pressa e nem demonstram impaciência, permitindo que as carmelitas façam publicamente esse último ritual de sua Comunidade.
Era o dia 17 de julho de 1794. O sacrifício destas 16 mártires não foi em vão. Deus logo fez cair seu braço sobre a cabeça dos principais chefes da Revolução. Alguns dias depois, no final do mesmo mês de julho, eram guilhotinadas 108 cabeças revolucionárias de Paris, dentre elas a do próprio Robespierre. Ao contrário das carmelitas, todos morrem desesperados, blasfemando, maldizendo-se a si mesmo e aos outros. Eram os demônios “mantenedores”, que alimentavam a Revolução em sua fase do terror, que estavam sendo exorcizados. Não sem grande comoção, desespero e blasfêmias.

Assim, embora elas não tenham feito o propósito de forma explícita, pode-se dizer que se tornaram Vítimas Expiatórias Exorcísticas.
O Papa São Pio X, a 10 de dezembro de 1905, beatificou as 16 mártires.

O grupo de religiosas carmelitas lideradas por Madre Teresa de Santo Agostinho era composto por 10 monjas, 1 noviça, 3 irmãs leigas, 2 irmãs rodeiras.

Relação das 16 beatas

Madeleine-Claudine Ledoine ou Madre Teresa de Santo Agostinho priora, 41 anos;
Anne-Marie-Madeleine Thouret ou Irmã Carolina da Ressurreição monja, sacristã, 78: Anne Petras ou Irmã Maria Henriqueta da Providência monja, 34;

Marie-Geneviève Meunier ou Irmã Constança. noviça, 29;
Rose Chretien de la Neuville ou Irmã Júlia Luísa de Jesus, monja, 53;
Marie-Claude Cyprienne (Catherine Charlotte) Brard ou Irmã Eufrásia da Imaculada Conceição, monja, 58; Marie-Anne (ou Antoinette) Brideau ou Madre São Luís, sub-priora, 41; Marie-Anne Piedcourt ou Irmã de Jesus Crucificado, monja, 79; Marie-Antoniette (ou Anne) Hanisset ou Irmã Teresa do Imaculado Coração de Maria, monja, 54; Marie-Francoise Gabrielle de Croissy ou Madre Henriqueta de Jesus, antiga priora, 49; Marie-Gabrielle Trezel ou Irmã Teresa de Santo Inácio, monja, 51; Angelique Roussel ou Irmã Maria do Espírito Santo, irmã leiga, 51; Julie (or Juliette) Verolot ou Irmã São Francisco Xavier, irmã leiga, 30. Marie Dufour Irmã Santa Marta irmã leiga, 51; Catherine Soiron rodeira, 52; Thérèse Soiron rodeira, 46.