sexta-feira, 2 de maio de 2008

Sorbonne, maio 68: a Revolução passo a passo (1)

Para fazer o relato vou me basear num texto, insuspeito, de um dos membros da Revolução da Sorbonne. Esse texto foi publicado originalmente en junho de 1968 como uma brochura de um grupo revolucionário inglês chamado "Solidarity". Atribui-se a um indivíduo chamado Maurice Brinton a autoria do texto, mas não se identifica o mesmo provavelmente porque seria um mero pseudônimo. O grupo "Solidarity" havia surgido no início da década de 60, era formado por dissidentes de um grupo trotskista chamado "Socialist Labour League". Consta que o "Solidarity" se juntou depois ao grupo francês "Socialisme ou Barbarie", mais uma dissidência do trotskismo. Fala-se que o conhecido filósofo grego Cornelius Castoriadis, professor da Sorbonne, era um dos orientadores destes dissidenntes. Os membros do "Solidarity" tornaram-se, assim, um grupo marxista privilegiado como participantes e observadores daquela revolução. Como estrangeiros puderam circular de maneira mais livre em meio à guerra interna de tendências revolucionárias e, além do mais, tudo indica que faziam parte do restrito círculo dos que dirigiam os acontecimentos. Na descrição dos fatos nota-se que o autor entendia mais perfeitamente a filosofia da revolução e os narra com mais autoridade e conhecimento de causa.
No Brasil, a "Conrad Editora do Brasil Ltda" se encarregou de traduzir o texto e o publicar também em forma de brochura, provavelmente como "manual" ou roteiro para que os nossos estudantes pudessem fazer aqui também as nossas Sorbonnes.
1. Preliminares que preparam a grande ação de invasão da Sorbonne
Estávamos em pleno governo De Gaulle. Dia 22 de março de 1968: um magote de estudantes invade o dormitório feminino da Universidade de Nanterre, situada nos arredores de Paris. Em poucos instantes, as reivindicações dos amotinados passam a ser outras: modernização da universidade, maior democratização com plena liberdade aos estudantes, etc. O grupo aumenta com a adesão de uns 300 estudantes, os quais "invadem" as dependências da escola. Os ocupantes de
Nanterre divulgam um manifesto sob o nome de "Movimento 22 de Março". Foi dado o pontapé inicial da Revolução.
A polícia vem desalojar os insurrectos, há violências, barricadas, muitos são presos. O testemunho acima citado diz que na Rua Gay-Lussac, dias depois, ainda há sinais daquela "noite de barricadas", com diversos carros destruídos pelo fogo e pedras do calçamento removidas e ainda no meio da rua. O material para a guerra de guerrilhas urbanas foi colhido em diversos locais, inclusive até mesmo num canteiro de obras próximo, onde os arruaceiros conseguiram carrinhos de mão, cilindros de metal, vigas de aço, betoneiras, bicos de pedra, etc. Mas o que mais forneceu armas para a guerra foi realmente o calçamento, cujos paralelepípedos eram utilizados de diversas formas e até mesmo contra a polícia ou algum opositor.
A Revolução está em andamento e sua matéria-prima são escombros e coisas oriundas do caos da cidade, que se usa para fomentar o caos ideológico e filosófico. O público ainda está perplexo sem entender o que está ocorrendo, mas os mentores da revolução o sabem, e por isso mandam provocar a polícia com violência a fim de que esta reaja e causem as primeiras vítimas entre os estudantes. Era preciso que as pessoas vissem na ação policial o símbolo do poder, que seria o mal a ser exorcizado pela Revolução: acabe-se com o poder e tudo se resolve. A polícia entra violentamente na universidade, espanca, prende, expulsa os invasores e os põe na rua.
Em poucos instantes aqueles que foram expulsos se lançaram sobre os prédios de outras universidades situadas no Quartier Latin, conclamando os outros estudantes para a revolta. Espalhou-se entre eles o ódio, o ressentimento e a frustração contra o poder. Esta psicose do ódio coletivo foi mais latente nos mais radicais e temperamentais, enquanto que os dirigentes da revolta tentavam controlar a situação com certo sangue-frio e aparente calma. A reivindicação agora não era mais a guerra do Vietnã, mas a libertação dos estudantes presos.
Durante todo o mês de abril as agitações, passeatas, comícios relâmpagos, tomaram conta das ruas próximas às universidades. A cada dia que passava engrossava o número dos manifestantes. No dia 7 de maio, o número de estudantes que marchava pelas ruas já era calculado em mais de 50 mil. O dirigente do movimento estudantil (UNEF) e o sindicato dos professores anunciam uma greve "por tempo indeterminado". Pela primeira vez tentam entoar a canção da "Internacional Socialista", indo ao túmulo do soldado desconhecido, local onde se fazem cerimônias cívicas militares. A canção era completamente desconhecida da população (como ainda hoje o é), mas eles pretendiam fazê-la popular.
O governo De Gaulle endurece: o ministro do interior (Fouchet) e o primeiro-ministro interino (Joxe) ordenam à polícia que tire os manifestantes da rua de qualquer jeito. A polícia conseguiu tirar os manifestantes da rua Gay-Lussac, mas a ação serviu para angariar mais adesões aos revoltosos. Quando a rua foi evacuada ficou lá a polícia plantada ao lado da destruição, do caos e dos pichamentos dos muros: a partir deste momento o processo se repetia - a polícia expulsava os elementos de um local, de uma rua, de um prédio, etc., e quando eles saíam deixavam suas pichações com seus "slogans" revolucionários. E, desta forma, a revolução era paulatinamente pregada à população pela publicidade que a imprensa fazia destas mensaqens curtas e bem elaboradas para a ocasião. Por enquanto, nada de livros ou discursos: a Revolução escolhe para propagar suas idéias os muros e as pichações, com frases inteligentemente criadas para criar na população, além da simpatia por ela, o ódio ao poder e um apego às concepções românticas de felicidade coletiva e das falácias revolucionárias. Enfim, cada seguidor de uma corrente anarquista procurava estampar nas paredes o substrato de seu pensamento, o qual pretendia impor à sociedade.
Havia também pasquins colados nas paredes, como "Voix Ouvrière" (Voz Operária) e Avant-Garde et Revoltes" (Avanços e revoltas), ambos de orientação marxista trotskista, "Servir le Peuple" (Servir o Povo) e "Humanité Nouvelle" (Nova Humanidade), maoístas, "Le Libertaire", anarquista, etc., e até mesmo edições de conhecidos jornais comunistas. Logo, logo, os revoltosos rabiscavam frases em cima de tais pasquins, rejeitando-os ou criticando-os, pois foi dada a palavra de ordem que era preciso rejeitar as forças comunistas, completamente antipáticas entre a população. De outro lado, os comunistas de todas as cores cumpriram o seu papel na peça de teatro, pois costumeiramente faziam comunicados contra os estudantes: era necessário que a população lhes caísse na simpatia e o apoio dos comunistas seria um desastre.
Nos momentos de calmaria, alguns eram mandados conversar com os populares que passavam pelos locais das manifestações a fim de se saber o que o povo estava pensando daquilo tudo. É claro que as opiniões variavam de acordo com o pensamento de cada pessoa. Mas a idéia geral, a estas alturas, que se procurava criar na mente das pessoas era que tudo aquilo era fruto apenas de uma crise do atraso em que se encontravam as universidades e o ensino no país. Tudo se resolveria com uma reforma: que tipo de reforma seria esta nada deixava transparecer, pois não se cogitava disto. Para alguns transeuntes, os manifestantes vão mais além e dizem que é necessário uma reforma em toda a sociedade, considerando a vida burguesa como trivial, medíocre e repressiva. A palavra "repressão" era bastante usada para caracterizar o poder civil e a sociedade burguesa como um todo: havia repressão nas autoridades, na vida civil, nos empregos e até mesmo na vida de família com a autoridade dos pais. Repetia-se, também amiúde, a palavra "alienação" para caracterizar a situação em que se encontrava a população perante os sistemas sociais, isto é, de dependência e quase escravidão a conceitos, a sistemas, etc. Esta pregação era feita também com intuito de angariar mais adeptos para as ações futuras - e como surtiu efeito!
Os efeitos da doutrina de Marcuse e Paul Sartre
Os novos conceitos sociológicos estudados por aqueles agitadores lhes haviam dado meios de como manipular a opinião pública, tudo ali havia sido debatido tanto em salas de aula quanto nas reuniões de seus grupos de ativistas políticos e sociais. Diziam para a população que a coisa não poderia ser resolvida ali nas ruas, nem somente pelos estudantes, era preciso ir de encontro à sociedade trabalhadora e com ela trocar idéias, fazer uma frente ampla. A opinião geral sobre os rumos dos acontecimentos era de que se deveria extender o movimento à toda sociedade, chamando a atenção de todos para aquelas idéias, muito simpáticas e fascinantes.

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