sexta-feira, 30 de setembro de 2022

REMÉDIOS CONTRA A LUXÚRIA

 


Em seu livro “Guia de Pecadores” Frei Luis de Granada tece várias considerações sobre os remédios para se combater o vício da luxúria. Ei-los:

“Luxúria é apetite desordenado de sujos e desonestos deleites. Este é um dos vícios mais comuns, mais acossador e mais furioso em acometer que existe.  Porque (como disse São Bernardo) entre todas as batalhas dos cristãos as mais duras são as da castidade, onde é muito cotidiana a peleja e muito rara a vitória.

Pois quando este feio e abominável vício tentar teu coração, podes sair em campo com as seguintes considerações:

Primeiramente considera que este vício não só suja a alma (que o Filho de Deus limpou com seu sangue), senão também o corpo, no qual, como num sagrado relicário, é depositado o sacratíssimo Corpo de Cristo.  Pois se tão grande culpa é profanar e sujar o templo material de Deus, que será profanar este templo em que mora Deus?  Por isto disse o Apóstolo: "Fugi, irmãos, do pecado da fornicação, porque todo outro pecado que fizer o homem, é fora do seu corpo; mas o que cai em fornicação, peca contra seu próprio corpo, profanando-o e sujando-o com o pecado carnal"  Considera também que este pecado não se pode pôr por obra sem escândalo e  prejuízo de outros muitos que comumente intervêm nele, que é a coisa que à hora da morte mais agudamente soe ferir a consciência.  Porque se a lei de Deus manda que se dê vida por vida, olho por olho e dente por dente, que poderá dar a Deus o que tantas almas destruiu? E com que pagará o que Ele com seu próprio sangue redimiu?

Considera também que este vício tem muitos doces começos e muitos amargos fins, muito fáceis as entradas e muito difíceis as saídas. Por onde disse o Sábio que a má mulher era como uma cova muito funda e um poço profundo onde, sendo tão fácil a entrada, é dificultosíssima a saída. Porque verdadeiramente não há coisa em que mais facilmente se enredam os homens que neste doce vício, segundo que aos princípios se demonstra; mas depois de enlaçados nele e travadas as amizades e amassado véu da vergonha, que os tirará daí? Pelo qual com muita razão se compara com as iscas dos pescadores que, tendo as entradas muito largas, têm as saídas muito estreitas, por onde o peixe que uma vez entra, por nada sai daí. E por aqui entenderás quanta multidão de pecados para este tão prolixo pecado, pois em todo este tempo tão largo está claro que assim por pensamento, como por obra, como por desejo, há de ser Deus quase infinitas vezes ofendido.

Considera também, sobretudo isto (como disse um doutor), quanta multidão de outros males traz consigo esta maldita pestilência.  Primeiramente rouba a fama (que, entre as coisas humanas, é a mais formosa possessão que podes ter); aqui nenhum rumor de vício produz mais mal, nem traz consigo maior infâmia que este. E, além disto, debilita as forças, amortiza a formosura, tira a boa disposição, faz mal à saúde, gera enfermidades sem conta (estas muito feias e sujas), deflora antes do tempo a frescura da juventude, e faz chegar mais cedo uma torpe velhice; tira a força do gênio, embota agudeza do entendimento e quase o torna brutal; afasta o homem de todos os honestos estudos e exercícios, e lhe lambuza todo no seio deste deleite, que já não para de pensar, nem falar, nem tratar coisa que não seja vileza e sujeira. Faz a juventude louca e infame, e a velhice aborrecível e miserável. Mas não se contenta este vício com todo este estrago que faz na pessoa do homem, senão também o faz em suas coisas. Porque nenhuma fazenda há tão grossa, nenhum tão grande tesouro a quem a luxúria não gaste e consuma em pouco tempo. Porque o estômago e os membros vergonhosos são vizinhos e companheiros, e uns aos outros se ajudam e conformam nos vícios. De onde os homens dados a vícios carnais comumente são comedores e bebedores, e assim em banquetes e vestidos gastam tudo quanto possuem. E, além disto, as mulheres desonestas nunca se fartam de jóias, anéis, vestidos, enfeites, perfumes e aromas e coisas tais, e mais amam estes presentes que aos próprios amantes que os dão. Para cuja confirmação basta o exemplo daquele filho pródigo que nisto gastou toda a herança de seu pai.

Olha também que quanto mais entregares teus pensamentos e teu corpo a deleites, tanto menos fartura acharás: aqui este deleite não causa fartura, senão fome, porque o amor do homem à mulher, ou da mulher ao homem, nunca se perde, antes apagado uma vez se torna a acender. E olha, outrossim, como este deleite é breve, e pena que por ele se dá perpetua, e, por conseguinte, que é muito desigual troque por uma brevíssima e torpíssima hora de prazer perder nesta vida o gozo da boa consciência, e depois a glória que para sempre dura, e padecer a pena que nunca se acaba. Pelo qual disse São Gregório: "Um momento dura o que deleita, e eternamente o que atormenta".

Considera também, por outra parte, a dignidade e preço da pureza virginal que este vício destrói, porque os virgens nesta vida começam a viver vida de anjos, e principalmente por sua limpeza são semelhantes aos espíritos celestiais, porque viver em carne sem obras de carne, mais é virtude angélica que humana. Só a virgindade (como disse São Jerônimo) é a que neste lugar e tempo de mortalidade representa o estado de glória imortal. Só ela guarda o costume daquela cidade soberana onde não há bodas nem desponsórios, e assim dá aos homens terrenos experiência daquela celestial conversação. Pela qual no céu se dá certo e singular prêmio aos virgens, dos quais escreve São João no Apocalipse, dizendo: "Estes são os que não amaciaram sua carne com mulheres, mas permaneceram virgens: e estes seguem ao Cordeiro por onde quer que vá". E porque neste mundo se avantajaram sobre os outros homens em parecer-se com Cristo na pureza virginal, por isto no outro se chegarão a Ele mais familiarmente, e singularmente se deleitarão da limpeza de seus corpos.

E não só faz esta virtude, aos que a têm, semelhantes a Cristo, mas os faz também templos vivos do Espírito Santo: porque aquele divino Espírito, amante da limpeza, assim como um dos vícios que mais repele é a desonestidade, assim em nenhuma parte mais alegremente repousa que nas almas puras e limpas. Pelo qual o Filho de Deus, concebido pelo Espírito Santo, tanto amou e honrou a virgindade, que por ela fez um tão grande milagre como foi nascer de Mãe virgem. Mas tu, já que perdeste a virgindade, ao menos depois do naufrágio teme os perigos que já experimentastes.  E já que não quiseste guardar inteiro o bem da natureza, sequer depois de quebrado repara-lhe e tornando-te a Deus depois do pecado, tanto mais diligentemente te ocupa em boas obras, quando pelas más que tens feito te conheces por mais merecedor de castigo. Porque muitas vezes acontece (como disse São Gregório) que depois da culpa se faz mais fervente a alma, a qual, no estado de inocência, estava mais frouxa e descuidada. E pois Deus te guardou, havendo cometido tantos males, não faças agora por onde pagues o presente e o passado, e seja o futuro ônus pior que o primeiro.

Pois com estas e outras considerações deve o homem estar apercebido e armado contra este vício, e este seja a primeira maneira de remédios que damos contra ele.

De outros remédios mais particulares contra a luxúria

Além destes comuns remédios que se dão contra este vício, existem outros mais especiais e eficazes, de que também será razão tratar. Entre os quais, o primeiro é resistir aos princípios (como já em outra parte dissemos), porque se no início não se rechaça o inimigo, logo cresce e se fortalece; porque (como disse São Gregório) depois que a gulodice do deleite se apodera do coração, não lhe deixa pensar outra coisa que aquilo que o deleita. Por isto se deve resistir no início, deitando fora os pensamentos carnais, porque assim como a lenha sustenta o fogo, assim os pensamentos mantêm os desejos, os quais, se forem bons, acende-se no fogo da caridade, e se maus, no da luxúria.

Além disto, convém guardar com diligência todos os sentidos, principalmente os olhos, de ver coisas que te podem causar perigo. Porque muitas vezes olha o homem sensivelmente, e só pela vista fica a alma ferida. E porque o olhar inconsideravelmente as mulheres o inclina ou abranda a consciência do que as olha, nos aconselhou o "Eclesiástico", dizendo: "Não queiras trazer os olhos pelos rincões da cidade, nem por suas ruas ou praças; afasta os olhos da mulher ataviada, e não vejas sua formosura".  Para o qual nos deveria bastar o exemplo de Jó, que (com ser varão de tanta santidade), guardava muito bem seus olhos (como o mesmo o confessa), não fiando-se de si, nem de tão largo uso da virtude como tinha. E se este não basta, ao menos deveria bastar o de David que, sendo varão santíssimo, e tão fiel à vontade de Deus, bastou a vista de uma mulher para trazer-lhe três grandes males, como foram homicídio, escândalo e adultério.

E não menos também deves guardar os ouvidos de ouvir coisas desonestas; e quando as ouvires recebe-as com rosto triste, porque facilmente se faz o que de boa vontade se ouve. Guarda também tua língua de qualquer palavra torpe, porque os bons costumes se corrompem com as más práticas. A língua descobre as afeições do homem, porque qual se mostra a prática, tal se descobre o coração; a língua fala do que o coração está cheio.

Trabalha por trazer ocupado teu coração em santos pensamentos e teu corpo em bons exercícios, porque (como disse São Bernardo) os demônios enviam à alma ociosa maus pensamentos em que se ocupe, porque mesmo que cesse de mal obrar não cesse de mal pensar.

Em toda tentação, principalmente nesta, põe ante teus olhos de teu coração o Anjo da tua guarda, e o demônio teu acusador, os quais na verdade sempre estão olhando tudo o que fazes, e o representam ao mesmo Juiz que tudo vê; porque sendo isto assim, como te atreverás a fazer obra tão feia, que diante de outro homenzinho como tu não ousarias fazer, tendo diante teu guardador, teu acusador e teu Juiz? Põe também ante os olhos o espanto do juízo divino e a chama dos tormentos eternos, porque qualquer pena se vence com temor de outra mais grave, como um cravo se tira com outro; e assim muitas vezes o fogo da luxúria se mata com a memória do fogo do inferno. Além disto, escusa-te, quanto for possível, de falar só com mulheres de suspeitosa idade, porque (como disse Crisóstomo) então acomete mais atrevidamente nosso adversário aos homens e mulheres quando os vê sós; porque onde não se teme repreensor, mais ousado chega o tentador.   Portanto, nunca te ponhas a tratar com mulher sem testemunhas, porque estar só incita e convida a todos os males.

Nem confies na virtude passada, ainda que seja muito antiga, pois sabes que aqueles velhos se acenderam no amor de Susana porque a viram muitas vezes só em seu jardim.  Recusa, pois, toda suspeitosa companhia de mulheres, porque vê-las dana os corações, ouvi-las os atrai, falá-las os inflama, tocá-las os estimula, e, finalmente, tudo delas é laço para os que tratam com elas. Por isso disse São Gregório: "Os que dedicaram seus corpos à continência não se atrevam a morar com mulheres, porque enquanto o calor  vive no corpo, ninguém presuma que de todo tem apagado o fogo do coração".

Afaste também os presentinhos, visitações e cartas de mulheres, porque tudo isto é liga para prender os corações e sopros para acender o fogo do mau desejo quando a chama vai se apagando. E se amas a alguma mulher honesta e santa, ama-a em tua alma, sem procurar visitá-la amiúde, nem tratar com ela familiarmente”.  (Fray Luís de Granada - "Guia de Pecadores" - págs. 139/141)

 


(Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs.82/86 – Desejando receber o texto integral desta obra, favor enviar mensagem para o email juracuca@gmail.com – Juraci Josino Cavalcante)

 

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

POR QUE O NOSSO MUNDO POBRE E IGUALITÁRIO SE EMPOLGOU COM O FAUSTO E A MAJESTADE DA COROAÇÃO?

 


 


Por ocasião da posse do General Eisenhower no cargo de Presidente da República dos Estados Unidos, escrevemos algumas considerações que despertaram interesse entre os leitores de CATOLICISMO. Prometemos, então, analisar igualmente as cerimônias da coroação da Rainha da Inglaterra, Elisabeth II. É deste compromisso que nos vimos desobrigar.

 

MONOGRAFIA SOCIAL DE PALPITANTE INTERESSE

 

A esplêndida cerimônia proporcionou uma visão de conjunto - num plano simbólico apenas, mas que precisamente por ser simbólico traduz melhor do que qualquer outro alguns aspectos da realidade - da Inglaterra com tudo quanto ela é, possui e pode nos dias de hoje. As instituições inglesas, seu significado íntimo, seu passado, suas presentes condições de existência, as tendências com que caminham para o futuro, a situação atual da Grã Bretanha na Commonwealth e no mundo, as perspectivas favoráveis e também as brumas espessas que se delineiam para ela nos horizontes diplomáticos, tudo enfim se refletiu de algum modo na coroação, e nas cerimônias que a antecederam e seguiram. Há pois em todas estas uma tal riqueza de aspectos, capaz cada um, de despertar tantas considerações, que não seria demais se uma equipe de especialistas, nesta época de investigações sociológicas, consagrasse às cerimônias, manifestações e solenidades de que a coroação foi o ponto central, um inquérito acurado, que formaria por certo alguns grossos volumes.

Nossas aspirações, evidentemente, têm de ser mais limitadas. Não queremos tratar de todos os aspectos das festas da coroação, e nem sequer intentamos enumerá-los. Queremos considerar tão somente uma faceta deste vasto assunto.

 

A IGUALDADE, ÍDOLO DE NOSSO SÉCULO

 

Em todos os domínios da vida hodierna se manifesta a influência avassaladora do espírito de igualdade. Outrora, a virtude, o berço, o sexo, a educação, a cultura, a idade, o gênero de profissão, as posses, outras circunstâncias ainda, modelavam e matizavam a sociedade humana com a variedade e a riqueza de mil relevos e coloridos, influíam de todas as maneiras nas relações entre os homens, marcavam a fundo as leis, as instituições, as atividades intelectuais, os costumes, a economia, e comunicavam a toda a atmosfera da vida pública e particular uma nota de hierarquia, de respeito, de gravidade. Nisto estava um dos traços espirituais mais profundos e típicos da sociedade cristã. Haveria exagero em se afirmar que hoje todos estes relevos e matizes foram abolidos. Seria entretanto impossível não reconhecer que muitos desapareceram de todo, e que os poucos que restam vão minguando e desbotando dia a dia.

Sem dúvida, a vida é uma transformação constante de tudo quanto não é perene. Que muitos dos matizes de outrora desaparecessem, e outros se formassem, seria normal. Mas em nossos dias não há por assim dizer uma só transformação que não tenha por efeito um nivelamento, que não favoreça direta ou indiretamente o caminhar da sociedade humana para um estado de coisas absolutamente igualitário. E quando os de baixo relaxam a "poussée" igualitária, são os de cima que se encarregam de a levar por diante. Este fenômeno não está circunscrito a uma nação, nem a um continente, e parece impelido por um vento que sopra no mundo inteiro. O tufão nivelador retifica aqui e acolá - na Ásia, por exemplo, e em certas regiões hipercapitalistas do Ocidente - abusos intoleráveis, impondo em outros lugares mudanças admissíveis, destruindo em outros, enfim, direitos incontestáveis e ferindo a fundo a própria ordem natural das coisas. Em todos estes casos, porém, o que importa notar é que este tufão igualitário, de amplitude cósmica, não cessa de soprar. Feita uma reforma justa, ele tende a continuar sua faina niveladora e passar para o que é duvidosamente justo, e uma vez atingido este ponto, entra com ímpeto crescente para o terreno do que é francamente injusto. Esta sede de igualdade só se sacia no nivelamento completo, total, absoluto. A igualdade é a meta para a qual tendem as aspirações da massa, a mística que governa a ação de quase todos os homens, o ídolo sob cuja égide a humanidade espera encontrar a idade de ouro.

 

UM FATO DESCONCERTANTE: A POPULARIDADE DA COROAÇÃO

 

Ora, enquanto este tufão sopra com uma força sem precedentes, em pleno desenvolvimento deste imenso processus mundial, uma Rainha é coroada segundo ritos inspirados por uma mentalidade absolutamente anti-igualitária. Este fato não irrita, não provoca protestos, e pelo contrário é recebido com uma imensa onda de simpatia popular. O mundo inteiro festejou a coroação da jovem soberana inglesa, quase como se as tradições que ela representa fossem um valor comum a todos os povos. De toda a parte afluíram para Londres pessoas desejosas de se embevecer com espetáculo tão anti-moderno. Diante de todos os aparelhos de televisão, se aglomeraram ávidos, sedentos de ver a cerimônia, homens, mulheres, crianças de todas as nações, falando todas as línguas, exercendo as mais variadas profissões, e, o que é mais extraordinário, professando as mais diversas opiniões. Neste imenso movimento de alma da humanidade contemporânea, há algo de surpreendente, de contraditório, de desconcertante talvez, que exige uma análise detida. E é este o objeto do nosso estudo.

 

ALGUMAS EXPLICAÇÕES

 

Este fato chamou a atenção de diversos comentaristas, que propuseram algumas explicações. Uns lembraram que, à medida que a igualitarização se alastra e os reis se vão fazendo raros, uma coroação também se vai tornando mais singular, mais estranha, mais interessante. Outros, mal satisfeitos com estas razões, procuraram motivo diverso. A beleza das cerimônias, consideradas em seu aspecto meramente estético, atrairia a atenção dos amadores do gênero. A debilidade destas explicações é óbvia. Tudo, no noticiário da coroação, demonstrou que as massas se comoveram com ela, não por um simples impulso de curiosidade, para ver a reconstituição de uma cena histórica ou o desenrolar de um espetáculo artístico, mas por um imenso movimento de admiração quase religiosa, de simpatia, de ternura mesmo, que envolveu não só a jovem Rainha, mas tudo aquilo que ela e a instituição monárquica da Inglaterra simbolizam. Se a coroação tivesse sido para os que a viram um simples espetáculo histórico, uma mera curiosidade artística, que tão bem ou melhor poderia ter sido apresentada por atores profissionais, como explicar o frêmito de alegria, o renovar de esperanças de um porvir melhor, as manifestações apoteóticas, as aclamações sem fim, dos dias da coroação ?

O Sr. Menotti del Picchia aventou outra explicação. O homem mostrou em todos os tempos, em todos os lugares, uma fraqueza: o gosto pelas honrarias, pelas distinções, pela gala. Ora, o igualitarismo racional e austero de nossos dias não alimenta em nada esta fraqueza. E, assim, quando uma oportunidade como a coroação a isto dá ensejo, o homem sente todo o deleite que a satisfação de suas fraquezas costuma proporcionar-lhe.

A nosso ver, há muita ganga nesta opinião, mas há também um filão de ouro. O filão está em reconhecer que há na natureza humana uma tendência profunda, permanente, vigorosa, para o que é gala, honraria, distinção, e que o igualitarismo hodierno comprime esta tendência, gerando uma nostalgia profunda que explode sempre que para isto encontra uma ocasião. A ganga está em considerar esta tendência uma fraqueza. Que o gosto pelas honrarias e pelas distinções dê origem a muitas manifestações da pequenez humana, não há quem o negue. Deduzir daí que este gosto seja em si mesmo uma fraqueza, que erro! Como se a fome, a sede, o desejo de repouso, e tantas outras tendências naturais ao homem, e em si muito legítimas, devessem ser consideradas más, errôneas, ridículas, pelo simples fato de que dão ocasião a excessos e mesmo a crimes sem conta! Até os sentimentos mais nobres do homem podem levá-lo a fraquezas. Não há sentimento mais respeitável do que o amor materno. Entretanto, a quantos erros pode conduzir, a quantos já tem conduzido, a quantos ainda, conduzirá de futuro...

 

UMA VIRTUDE ESSENCIAL: O BRIO

 

O gosto do homem pelas honrarias, pelas distinções, pela solenidade, não é senão a manifestação do instinto de sociabilidade, tão inerente à nossa natureza, tão justo em si mesmo, tão sábio quanto qualquer outro dos instintos com que Deus nos dotou.

Nossa natureza nos leva a viver em sociedade com outros homens. Mas ela não se contenta com um convívio qualquer. Para as pessoas de uma estrutura de espírito reta, e portanto feita exceção dos excêntricos, dos atrabiliários, dos neuropatas, o convívio humano só realiza perfeitamente seus objetivos naturais quando baseado no conhecimento e na compreensão recíproca, e quando desse conhecimento e compreensão nasce a estima, a amizade. Em outros termos, o instinto de sociabilidade pede, não um convívio humano baseado em equívocos, eriçado de incompreensões e de atritos, mas uma contextura de relações pacíficas, harmoniosas e amenas.

Antes de tudo, queremos ser conhecidos pelo que efetivamente somos. Um homem que tenha qualidades tende naturalmente a manifestá-las, e deseja que essas qualidades lhe granjeiem a estima e a consideração do meio em que vive. Um cantor, por exemplo, tende a fazer-se ouvir, e a despertar no auditório o gosto que as qualidades de sua voz merecem. Pela mesma razão, tende um pintor a expor suas telas, um escritor a publicar seus trabalhos, um homem culto a comunicar o que sabe, etc. E por motivo análogo enfim o homem virtuoso se preza em ser havido por tal. A indiferença omnímoda em relação ao conceito que tem de nós o próximo, não é virtude mas falta de brio.

Claro está que o reto e comedido desejo de boa reputação pode facilmente corromper-se, como tudo quanto é inerente ao homem. É uma conseqüência do pecado original. Assim também o instinto de conservação pode facilmente degenerar em medo, o razoável desejo de alimento em gula, etc. No caso concreto da sociabilidade, é muito fácil que cheguemos ao excesso de considerar o aplauso de nossos semelhantes um verdadeiro ídolo, o objetivo de todos os nossos atos, o motivo de nosso procedimento virtuoso; que para alcançar este aplauso simulemos predicados que não temos ou reneguemos nossos princípios mais sagrados ( quem saberá jamais quantas almas o respeito humano arrasta ao inferno! ); que levados por esta sede cometamos crimes para galgar postos e situações eminentes; que fascinados por este objetivo damos uma importância ridícula aos menores fatores capazes de nos pôr em relevo; que sintamos ódios violentos, exercitemos vinganças atrozes contra quem não reconheceu em toda a sua pretensa amplitude os méritos que imaginamos ter. A História pulula literalmente de tristes exemplos de tudo isto. Mas, insistimos, se com este argumento devassemos concluir que é intrinsecamente mau o desejo do homem de ser conhecido e estimado pelos seus semelhantes pelo que verdadeiramente é, deveríamos condenar todos os instintos, a nossa própria natureza.

É certo também que Deus exige que em relação ao nosso bom conceito junto ao próximo, sejamos desapegados interiormente, como em relação a todos os outros bens da terra, a inteligência, a cultura, a carreira, a formosura, a fartura, a saúde, a própria vida. A alguns Deus pede um desapego não só interior, mas exterior da consideração social, como a outros pede não só a pobreza de espírito mas a pobreza material efetiva. É preciso então obedecer. E daí o fato de regurgitarem as hagiografias de exemplos de Santos que fogem das mais justas manifestações de apreço de seus semelhantes. Tudo não obstante, é legitimo em si mesmo que o homem deseje ser estimado por aqueles com quem convive.

 

UMA CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE: A JUSTIÇA

 

Esta tendência natural está em consonância aliás com um dos princípios mais essenciais da vida social, que é a justiça, segundo a qual se deve dar a cada qual, não só em bens materiais, mas também em honra, distinção, estima, afeto, aquilo a que faz jús. Uma sociedade baseada sobre o desconhecimento total deste princípio seria absolutamente injusta. "Pagai a todos o que lhes é devido: a quem imposto, imposto; a quem tributo, tributo; a quem temor, temor; a quem honra, honra", diz-nos S. Paulo ( Rom. 13,7 ).

Acrescentemos que estas manifestações se devem rigorosamente não só aos méritos pessoais, mas também à função, cargo ou situação que uma pessoa possui. Assim o filho deve respeitar seu pai ainda que mau, o fiel deve reverenciar o Sacerdote ainda que indigno, o súdito deve venerar seu soberano ainda que corrupto. São Pedro manda aos escravos que acatem seus senhores ainda que díscolos ( 1 Ped. 2, 18 ).

E de outro lado é preciso também saber honrar num homem a estirpe ilustre de que descenda.

Este ponto é particularmente doloroso para o homem igualitário de hoje. É entretanto assim que pensa a Igreja. Leiamos o ensinamento profundo e brilhante de Pio XII:

"As desigualdades sociais, inclusive as que são ligadas ao nascimento, são inevitáveis; a natureza benigna e a benção de Deus à humanidade, iluminam e protegem os berços, beijam-nos, porém não os nivelam. Atendei mesmo para as sociedades mais inexoravelmente niveladas. Nenhum artifício logrou jamais ser bastante eficaz a ponto de fazer com que o filho de um grande chefe, de um grande condutor de multidões, permanecesse em tudo no mesmo estado que um obscuro cidadão perdido no povo. Mas se tais disparidades podem, quando vistas de maneira pagã, parecer uma inflexível conseqüência do conflito das forças sociais e da supremacia conseguida por uns sobre os outros segundo as leis cegas que se supõe regerem a atividade humana, e consumar o triunfo de alguns, bem como o sacrifício de outros; pelo contrário, tais desigualdades não podem ser consideradas por uma alma cristãmente instruída e educada, senão como disposição desejada por Deus pelas mesmas razões que explicam as desigualdades no interior da família, e portanto com o fim de unir mais os homens entre si, na viagem da vida presente para a pátria do céu, ajudando-se uns aos outros, da mesma forma que um pai ajuda a mãe e os filhos" ( Alocução ao patriciado e nobreza romana, "Osservatore Romano", 5-6 de janeiro de 1942 ).

 

O BRIO E A JUSTIÇA IMPÕEM A FORMAÇÃO DO PROTOCOLO

 

Vimos até aqui, que a própria natureza exige que no convívio social sejam tomados na devida consideração todos os valores humanos, que se diferenciam uns dos outros quase ao infinito.

Como aplicar na prática este princípio? Como conseguir que um valor seja visto e reconhecido por todos os homens, e que cada qual sinta exatamente em que medida esse valor deve ser reverenciado? Mais concretamente, como ensinar a todos que a virtude, a idade, o talento, a estirpe ilustre, o cargo, a função, devem ser honrados? Como indicar a medida exata de respeito e de amor que a cada qual se deve? Em todos os tempos, em todos os lugares, a própria ordem natural das coisas foi resolvendo o problema com o auxílio do único meio plenamente eficaz: o costume.

 

SABEDORIA PROFUNDA DO PROTOCOLO DA COROAÇÃO

 

Assim, usando os mesmos modos de tratar, para as pessoas de situação idêntica, o bom senso, o equilíbrio, o tacto das sociedades humanas foi criando ponto por ponto, em cada país ou em cada zona de cultura, as regras de polidez, as fórmulas, os gestos, quase diríamos os ritos adequados para definir, ensinar, simbolizar e exprimir o que a cada pessoa se deve, segundo sua situação, em matéria de veneração e estima.

Sob o bafejo da Igreja, a Civilização Cristã levou ao apogeu esta bela arte dos costumes e dos símbolos sociais. Veio daí a maravilhosa distinção e afabilidade de maneiras do europeu, e por extensão dos povos americanos nascidos da Europa; os princípios da Revolução de 1789 se incumbiram de a golpear fundamente.

Os títulos de nobreza, os sinais da heráldica, as condecorações, as regras do protocolo, não foram outra coisa senão meios admiráveis, cheios de tacto, de precisão e de significado, para definir, graduar e modelar as relações humanas dentro dos quadros políticos e sociais então existentes. A ninguém ocorreria ver nisto mera vaidade. A própria Igreja, que é mestra de todas as virtudes e combate todos os vícios, instituiu títulos de nobreza, distribuiu e distribui condecorações, elaborou para si todo um cerimonial de uma admirável precisão no definir todas as diferenças hierárquicas - que a lei divina e a sabedoria dos Papas foi criando em seu grêmio ao longo dos séculos. Sobre as condecorações, disse o Bem-aventurado Pio X:

  "As recompensas concedidas ao valor contribuem poderosamente para suscitar nos corações o desejo de ações relevantes, porque glorificam os homens notáveis que bem mereceram da Igreja ou da sociedade, e, com isso, arrastam os outros pelo exemplo a percorrer o mesmo caminho de glória e de honra. Com esta sábia intenção, os Pontífices Romanos, Nossos Predecessores, cercaram de um amor especial as Ordens eqüestres, como estimulantes de glória" ( Breve sobre as Ordens eqüestres, pontifícias, de 7 de fevereiro de 1905 )

Que haja pois uma insígnia para o cargo supremo do Estado, insígnias próprias para as pessoas de estirpes mais ilustres, trajes de gala para os dignitários incumbidos das funções de maior importância política, que todo o aparato destes símbolos seja utilizado na cerimônia de posse do Chefe do Estado, em tudo isto não há mascarada, nem concessões a fraquezas. Há apenas a observância de regras de procedimento inteiramente conformes com a ordem natural das coisas.

 

MODERNIZAÇÃO ESTÚRDIA

 

Mas, dirá alguém, não seria conveniente modernizar todos estes símbolos, atualizar todas estas cerimônias? Por que conservar ritos, fórmulas, trajes do mais remoto passado?

A pergunta é de um simplismo primário. Os ritos, as fórmulas, os trajes, para exprimirem situações, estados de espírito, circunstâncias realmente existentes, não podem ser criados ou reformados bruscamente e por decreto, mas sim gradualmente, lentamente, em geral imperceptivelmente, pela ação do costume. Ora, este processus de transformação, a Revolução Francesa com toda a sua seqüela de acontecimentos o tornou impossível. Pois a humanidade se deixou fascinar pela miragem de um igualitarismo absoluto, votou desprezo e até ódio a tudo quanto, no terreno dos costumes, exprime desigualdade, e instituiu uma ordem de coisas nova, baseada sobre a tendência para o nivelamento inteiro, a abolição de todas as etiquetas e todas as pragmáticas. Imbuída deste espírito, ela perdeu a capacidade de tocar nas coisas do passado para outro fim, senão para as destruir. Se o homem contemporâneo fosse reformar ritos e instituir símbolos, como a Revolução Francesa criou nele a adoração da lei e o desprezo do costume, ele procuraria, ademais, fazê-lo por decreto. E ainda uma vez, nada é mais irreal, mais caricato, em muitos casos mais perigoso, do que as realidades sociais que se imagina poder criar por lei. A corte de opereta, rutilante, farfalhante, e profundamente vulgar de Napoleão o demonstrou bem.

 

DESTRUIR POR DESTRUIR

 

Mas, é preciso acrescentar que o simples fato de um rito ou símbolo ser muito antigo, não é motivo para o abolir, mas antes para o conservar. O verdadeiro espírito tradicional não destrói por destruir. Pelo contrário, ele conserva tudo, e só destrói aquilo que há motivos reais e sérios para destruir. Pois a verdadeira tradição, se não é uma esclerosação, uma fixação hirta no passado, ainda muito menos é uma negação constante deste. A este propósito, permita-se-nos citar mais uma página magistral de Pio XII. Dirigindo-se à Nobreza e ao Patriciado Romano ( "Osservatore Romano" de 19 de Janeiro de 1944 ), e referindo-se à tradição que a aristocracia da Cidade Eterna ali representava, disse o Pontífice: 

"Muitos espíritos, mesmo sinceros, imaginam e crêem que tal tradição não seja mais do que a lembrança, o polido vestígio de um passado que não existe mais, que não pode voltar, e que quando muito é relegado, com veneração se tanto e com reconhecimento, à conservação de um museu, que poucos amadores ou amigos visitam. Se nisto consistisse e a isto se reduzisse a tradição, e se importasse em recusa ou desprezo do caminho do porvir, seria razoável negar-lhe respeito e honra, e seria para se olharem com compaixão os sonhadores do passado, retardatários face ao presente e ao futuro, e com maior severidade aqueles que, movidos por menos respeitáveis e puras intenções, mais não são do que desertores dos deveres da hora que se mostra tão lutuosa.

"Mas a tradição é coisa muito diferente de simples apego a um passado desaparecido, é justamente o contrário de uma reação que desconfie de todo são progresso. O próprio vocábulo, etimologicamente, é símbolo de caminho e marcha para a frente; sinonímia, e não identidade. Com efeito, enquanto o progresso indica somente o fato de caminhar para a frente, passo a passo, procurando com o olhar um incerto porvir, a tradição indica também um caminho para a frente, mas um caminho contínuo, que se desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz de acordo com as leis da vida, escapando à angustiosa alternativa: "si jeunesse savait, si vieillesse pouvait", semelhante àquele Senhor de Turenne do qual foi dito: "il a eu dans sa jeunesse toute la prudence d'un age avancé, et dans un age avancé toute la vigueur de la jeunesse" ( Fléchier, Oração Fúnebre, 1676 )

"Por força da tradição, a juventude, iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiantemente o arado a mãos mais vigorosas, que continuam o sulco já iniciado. Como indica com seu nome, a tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a cada revezamento põe na mão e confia a outro corredor, sem que a corrida pare ou arrefeça de velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com tanta harmonia que, assim como a tradição sem progresso se contradiria a si mesma, assim também o progresso sem tradição seria um empreendimento temerário, um salto no escuro.

"Não, não se trata de subir contra a correnteza, de retroceder para formas de vida e de ação de idades já passadas, mas sim de, aceitando e seguindo o que o passado tem de melhor, caminhar ao encontro do futuro com o vigor de imutável juventude".

 

NOSTALGIA DE UMA SÃ ORDEM NATURAL

 

Ora, foi precisamente com esta tradição que o mundo contemporâneo rompeu, para adotar um progresso nascido, não do desenvolvimento harmônico do passado, mas dos tumultos e dos abismos da Revolução Francesa. Num mundo nivelado, paupérrimo em símbolos, regras, maneiras, compostura, em tudo que signifique ordem e distinção no convívio humano, e que a todo momento continua a destruir o pouquíssimo que disto lhe resta, enquanto a sede de igualdade se vai saciando, a natureza humana, em suas fibras profundas, vai sentindo cada vez mais a falta daquilo com que tão loucamente rompeu. Alguma coisa de muito interior e forte dentro dela me faz sentir um desequilíbrio, uma incerteza, uma insipidez, uma pavorosa trivialidade de vida, que tanto mais se acentua quanto mais o homem se enche dos tóxicos da igualdade.

A natureza tem reações súbitas. O homem contemporâneo, ferido e maltratado em sua natureza por todo um teor de vida construído sobre abstrações, quimeras, teorias vácuas, nos dias da coroação se voltou embevecido, instantaneamente rejuvenescido e repousado, para a miragem deste passado tão diferente do terrível dia de hoje. Não tanto por nostalgia do passado, quanto de certos princípios da ordem natural que o passado respeitava, e que o presente viola a todo momento. Eis a nosso ver a explicação mais profunda e mais real do entusiasmo que empolgou o mundo durante as festas da coroação.

 (Plinio Corrêa de Oliveira, "Catolicismo" Nº 31 - Junho de 1953)

 

 

CONSELHOS PARA CONSERVAR-SE PURO

 

 

 


 Abaixo damos alguns conselhos de sábios, obras de piedade, teólogos e santos sobre a melhor forma de conservar a castidade, quem a possui; ou de recuperá-la, quem a perdeu.

 Santa Catarina de Sena e o modo de se conseguir a perfeita pureza

"Observa a doutrina que sabes que te foi dada por minha Verdade ao começar tua vida, quando pediste com grande desejo chegar à perfeita pureza de espírito. Se pensas no modo em que podeis consegui-la, lembras o que te disse sobre esse desejo quando estavas em êxtase. Não só no espírito, senão na voz que soou aos teus ouvidos quando voltaste aos sentidos, se bem te recordas, quando minha Verdade te disse: "Queres chegar à perfeita pureza de espírito e ver-te livre dos escândalos e que teu espírito não se escandalize por nada? Então façais que sempre te unas a Mim por afeto de amor, porque eu sou suma e eterna pureza e fogo que purifica a alma. Por isto, quanto mais a alma se aproxima de Mim, mais pura se faz, e quanto mais se afasta, se faz mais imunda. Os homens caem em tantas maldades por encontrar-se separados de Mim, porém a alma que se une a Mim, sem restrições, participa de minha pureza”  .             

Imitação de Cristo

1. Enquanto vivemos neste mundo, não podemos estar sem trabalhos e tentações.  Por isso lemos no livro de Jó (7, 1): "É um combate a vida do homem sobre a terra".  Cada qual, pois, deve estar acautelado contra as tentações, mediante a vigilância e a oração, para não dar azo às ilusões do demônio, que nunca dorme, mas anda por toda parte "em busca de quem possa devorar"  (I Pedr 5, 8). Ninguém há tão perfeito e santo, que não tenha, às vezes, tentações, e não podendo ser delas totalmente isentos.

2. São, todavia, utilíssimas ao homem as tentações, posto que sejam molestas e graves, porque nos humilham, purificam e ilustram. Todos os santos passaram por muitas tribulações e tentações, e com elas aproveitaram; aqueles, porém, que não as puderam suportar foram reprovados e pereceram. Não há Ordem tão santa nem lugar tão retirado, em que não haja tentações e adversidades.

3. Nenhum homem está totalmente livre de tentações, enquanto vive, porque em nós mesmos está a causa donde procedem: a concupiscência em que nascemos.  Mal acaba uma tentação ou tribulação, outra sobrevém, e sempre teremos que sofrer, porque perdemos o dom da primitiva felicidade.  Muitos procuram fugir às tentações, e outras piores encontram. Não basta a fuga para vencê-las; é pela paciência e verdadeira humildade que nos tornamos mais fortes que todos os nossos inimigos.

4. Pouco adianta quem somente evita as ocasiões exteriores, sem arrancar as raízes; antes lhe voltarão mais depressa as tentações, e se achará pior. Vencê-las-á melhor com o auxílio de Deus, a pouco e pouco com paciência e resignação, que com importuna violência e esforço próprio. Toma a miúdo conselho na tentação e não sejas desabrido e áspero para o que é tentado, trata antes de o consolar, como desejas ser consolado.

5. O princípio de todas as más tentações é a inconstância do espírito e a pouca confiança em Deus; pois, assim como as ondas lançam de uma parte a outra o navio sem leme, assim as tentações combatem o homem descuidado e inconstante em seus propósitos. O ferro é provado pelo fogo, e o justo pela tentação. Ignoramos muitas vezes o que podemos, mas a tentação manifesta o que somos. Todavia, devemos vigiar, principalmente no princípio da tentação; porque mais fácil nos será vencer o inimigo, quando não o deixarmos entrar na alma, enfrentando-o logo que bater no limiar.  Por isso disse alguém: "Resiste desde o princípio, que vem tarde o remédio, quando cresceu o mal com a muita demora" (Ovídio)...   Porque primeiro ocorre à mente um simples pensamento, donde nasce a importuna imaginação, depois o deleite, o movimento; e assim, pouco a pouco, entra de todo na alma o malvado inimigo, porque se não lhe resistiu a princípio...

6. Uns padecem maiores tentações no começo de sua conversão, outros, no fim;  outros por quase toda a vida são molestados por elas. Alguns são tentados levemente, segundo a sabedoria da divina Providência, que pondera as circunstâncias e o merecimento dos homens, e tudo predispõe para a salvação de seus eleitos.

7. Por isso não devemos desesperar quando somos tentados; mas até, com maior fervor, pedir a Deus que se digne ajudar-nos em toda provação, pois que, no dizer de São Paulo, "nos dará graça suficiente na tentação para que a possamos vencer"  (I Cor 10, 13). Humilhemos, portanto, nossas almas, debaixo da mão de Deus, em qualquer tentação ou tribulação porque ele há de salvar e engrandecer os que são humildes de coração.

8. Nas tentações e adversidades se vê quanto cada um tem aproveitado; nelas consiste o maior merecimento e se patenteia melhor a virtude. Não é lá grande coisa ser o homem devoto e fervoroso quando tudo lhe corre bem; mas, se no tempo da adversidade conserva a paciência, pode-se esperar grande progresso. Alguns há que vencem as grandes tentações e, nas pequenas, caem freqüentemente, para que, humilhados, não presumam de si grandes coisas, visto que com tão pequenas sucumbem.   

O exercício da própria vontade

Não temos de ser, portanto, curiosos nem imodestos no olhar, andando pelas ruas; nem olhar imprudentemente pelas janelas; temos de evitar a conversa inútil, não gritar, não rir às gargalhadas, não queixar-nos imoderadamente do mau tempo ou da má saúde, não comer fora de hora, enquanto possamos, não ser cobiçosos, não andar atrás dos bocados deliciosos, não desaprovar a comida que nos dão, não pegar na bandeja a porção que está mais perto, não ser apressado em abrir cartas, não dormir demais, renunciar a alguma diversão, retirar-nos de quando em quando à solidão, não falar, sem motivo, de nós mesmos, e, enquanto se possa, não contradizer aos outros. Estas mortificações não são pesadas, os santos exercitaram outras mais rigorosas, mas que não podem recomendar-se a todos. São João Batista exercitou a vontade própria em sumo grau. São Paulo disse de si: Castigo meu corpo e o reduzo á servidão para que, depois de pregar a outros, não seja eu condenado (I Cor 9, 27).

O controle da vontade é uma maneira de martírio (S. Bernardo). O que se domina a si mesmo é um verdadeiro rei, porque em vez de arrastar-se cativo de seus apetites, lhes domina. É um vencedor, pois obtém sobre seus maus desejos uma vitória, na verdade, sem sangue nem suor. O domínio de si é o próprio sinal do verdadeiro cristão, pois disse Cristo: O que quer vir depois de mim, negue-se a si mesmo (Mc 8, 24), a saber: o que quer ser eu discípulo (cristão), exercite-se no domínio da vontade . Por isso disse São Paulo: Os que são de Cristo têm crucificado sua carne com seus vícios e concupiscências (Gál 5, 24).  O que é mortificado é santo.  O peixe vivo nada água acima, o morto é levado água abaixo. Assim mesmo podes conhecer se estás vivificado pelo Espírito de Deus, ou morto: basta que olhes se andas contra a corrente dos maus desejos, ou te deixas arrebatar por eles.  Pelejar consigo é a mais dura guerra; porém vencer-se a si próprio é a mais gloriosa vitória. 

(Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs.76/78 – Desejando receber o texto integral desta obra, favor enviar mensagem para o email juracuca@gmail.com – Juraci Josino Cavalcante)


quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O CORPO HUMANO, TEMPLO DIVINO

 


As considerações abaixo visam fazer com que o leitor tenha plena consciência do que representa o corpo humano perante Deus.  Trata-se do templo de Deus. E tendo plena consciência disso devemos tratá-lo como tal: não só respeitando as leis divinas, mas fazendo-se crer que estamos sempre não somente na presença de Deus, mas tendo-O continuamente dentro de nós mesmos, já que nosso corpo é o seu templo vivo.

Nesse sentido o que representa a alma humana neste templo que é nosso corpo? Ela é o claustro onde Deus se encontra de forma mais perfeita. Num templo religioso, o edifício é o corpo e o altar (ou o claustro) é como que a alma do templo, onde Deus é mais adequadamente cultuado, adorado. 

Em vista disso, o nosso corpo merece ser respeitado como coisa admirável, como algo respeitável e venerável, dando-lhe todas as regalias e pompas, mas tudo isso com único objetivo: que cumpra seu papel de templo divino, acolhendo a Santíssima Trindade no seu claustro (que é nossa alma) e prestando-lhe o culto devido.

a) O Templo de Deus

Os primórdios do templo de Deus entre o povo eleito encontra-se no Monte Mória (Gen 22) quando para lá Deus conduziu Abraão e pediu que imolasse seu filho Isaac em holocausto.  Há também referências a um templo na época dos Juízes: “E estando o pontífice Heli sentado na sua cadeira à porta do templo do Senhor”  (I Sam 1, 9). Na realidade, este “templo” era a Arca da Aliança, situada em Silo, uma prefigura do templo de Salomão.

O rei David deixou tudo pronto para Salomão fazer a construção do mais majestoso Templo que já houve (I Crôn 22, 1-16).  Antes de se iniciar a obra, porém, Deus falou a Salomão, dizendo: se todos Lhe fossem fiéis, Ele habitará no meio dos filhos de Israel (“no meio”, quer dizer, no coração, onde se encontra o verdadeiro templo da Santíssima Trindade); caso não fossem fiéis, porém, “lançarei para longe de minha presença o templo que consagrei ao meu nome...” (I Rs 9, 7-8).  O Rei David escrevera nos Salmos: “Dentro de mim orarei ao Deus de minha vida” (Sl 41,9). demonstrando que era o interior da alma humana que se encontrava o verdadeiro templo de Deus.

De outro lado, qual a finalidade principal do Templo?  Oração e reparação dos pecados – que Deus “ouvirá do céu, do lugar de sua morada (I Rs 8, 29-39)”, indicando que o templo era dedicado à oração e reparação mas não ainda para a adoração de Deus. E para que serviam os holocaustos? Era uma forma de reparação dos pecados, mas em si mesmo “não é o holocausto que agrada a Deus, mas o coração contrito e humilhado”  (Sl 50, 18-19). O sacrifício, todo ele ainda simbólico, não era o que Deus mais apreciava: “o que eu quero é a misericórdia e não o sacrifício”  (Oséias 6,5). O sacrifício, pois, em si, era inútil para reparar os pecados a Deus (Os 5,6).

Quando as calamidades estavam prestes a cair sobre o povo de Israel, o principal castigo foi ele ficar privado de seu Templo: “O Santuário (o templo) de Jerusalém terá o mesmo destino de Silo” (Jer 7,1-12). Silo era um lugarejo que ficava distante 35 km de Jerusalém, onde havia ficado a Arca da Aliança desde o tempo de Josué, mas nem por isso foi salva da destruição no tempo do rei Jeroboão (Jer 7, 22-23). Vê-se mais uma vez que Deus não considerava importante o local (edifício) nem o holocausto das vítimas animais, mas “ouvir a voz de Deus”, coisa que se faz com o coração, com o interior da alma.

E de tal forma o Templo foi abandonado por Deus que permitiu não só que o destruísse, mas que o amaldiçoasse: “Deus rejeitou o seu Santuário e o destruiu”. “Amaldiçoou o seu santo lugar”  (Lam 2, 6-8). Depois que Nabucodonosor (em 586 a.C.) o destruiu e roubou todos os seus vasos sagrados, levando-os para a Babilônia juntamente com os cativos, os hebreus imploraram a Deus que lhes permitisse reconstruí-lo. Deus não tinha pressa: no reino de Dario “ainda não é chegado o tempo de reedificar a casa do Senhor” (Ageu 1,2), mas em seguida Deus dizia: “reedifica a minha casa”. Que “casa”  era essa? Explica o Profeta: “aplicai os vossos corações”, indicando que a casa do Senhor para ser reedificada era, antes de tudo, o coração humano (Ageu 1,7).  Completa o Profeta: “A glória desta última casa será maior do que a primeira”, que só será reconstruída quando vier “o desejado de todas as nações” (Ageu 2, 1-10), que a encherá de glória, quer dizer, a Santa Igreja.

O segundo templo (edifício para prestar culto público a Deus) é o que foi construído no tempo de Zorobabel (520 a.C,), cujos trabalhos e guerras estão descritos nos livros de Esdras (3, 1-6) e Neemias (6, 10). Este foi saqueado por Antíoco IV  em 168 a.C, conforme consta no livro dos Macabeus (I Mac 22, 24; 4, 36; 35-59).

O terceiro templo foi o de Herodes, iniciado em 19 a. C., e aparente-mente não foi totalmente concluído, tendo sido destruído o de Zorobabel para se fazer um novo edifício, suntuoso para satisfazer o egoísmo dos judeus. Este foi definitivamente destruído pelos romanos no ano 70 de nossa era e até hoje nunca reconstruído.

Fala-se ainda de um quarto templo, que seria o descrito pelo Profeta Ezequiel (Ez 40, 43), mas este seria mais um templo espiritual, representado somente pela Igreja Católica, pois nunca existiu de fato como edifício ou monumento com aqueles características.

O quinto templo seria o mais perfeito, o próprio Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo e, por extensão, os corpos dos demais homens, desde que participantes do Corpo Místico de Cristo. Conforme São Paulo, este é o verdadeiro templo de Deus:  “Porventura não sabeis que os vossos membros são templo do Espírito Santo, que habita em vós, que vos foi dado por Deus e que não pertenceis a vós mesmos?” (I Cor 6, 19). Também no Antigo Testamento há referência sobre o Templo de Deus no “meio dos homens”, quer dizer, no interior de cada um: "Vós, pois ensinareis aos filhos de Israel, que se guardem da impureza, para não morrerem nas suas imundícies, tendo violado o meu tabernáculo, que está no meio deles". (Levítico 15, 31).

Daí entende-se o sentido da frase de Nosso Senhor, quando disse: “Destruí este Templo, e eu o reconstruirei em três dias”  (Jo 2, 19). E deveria haver um entendimento entre os doutores mais cultos de que o “templo de Deus” era o  interior do homem. Os judeus replicaram, sem entender ou por malícia, que naquele templo (o edifício) haviam sido gastos 46 anos em sua construção. Realmente, aquele prédio era o terceiro templo erigido pelos judeus, chamado “templo de Herodes 

Para que serve o templo

O templo é dedicado a Deus com três finalidades fundamentais: oferecimento de holocaustos, oração e reparação dos pecados e o culto divino (adoração a Deus). Assim, o edifício onde se espelha o aspecto externo do templo divino deve refletir o que há no interior dos homens e deve, portanto, propiciar a todos as facilidades de se praticar estas finalidades.  Um templo barulhento ou em que as cerimônias não convidem à oração e reflexão interior, não levando os homens à reparação de seus pecados, não conduzem, também, para a verdadeira adoração a Deus.

Desta forma, o que mais conspurca as finalidades do verdadeiro templo de Deus é o que se chama hoje de “sincretismo” religioso, pois a mistura de religiões no templo de Deus leva os homens a considerar que não há um Deus verdadeiro que nos ensinou um caminho verdadeiro até Ele. E este sincretismo, esta tendência a misturar as religiões, numa tentação para agradar a Deus e ao demônio, foi uma constante na História da humanidade.  E talvez não exista homem algum que tenha procurado ser fiel a Deus, o qual o demônio não haja tentado com o sincretismo. Foi assim com a feitura do bezerro de ouro no tempo de Moisés, na construção das sinagogas, na permissão de construção de oráculos e templos pagãos entre o povo de Israel, e, durante o Cristianismo, esta tentação foi freqüente em várias épocas, suscitando heresias e pensamentos acomodatícios deles com a Religião Católica. Até mesmo no tempo da Reconquista Espanhola, quando alguns cristãos misturavam-se com os mouros e procuravam ser-lhes agradáveis praticando suas religiões e, ao mesmo tempo, também praticando o Cristianismo, os chamados “moçárabes”

Esse tipo de mistura, de sincretismo,  não é feito somente com a prática externa do culto divino. Também no interior da alma humana é uma forte tentação, pois a maioria procura acomodar os preceitos divinos com suas concepções pessoais sobre Deus e sua Lei, criando para si uma falsa imagem de Deus. Como se trata de ser feliz nesta vida, tudo aquilo que a lei de Deus proíbe pode ser esquecido, pois, nesta concepção, Deus não poderia desejar nossa infelicidade. E assim, de razão em razão, a alma humana vai concebendo concessões por cima de concessões, até aceitar abertamente os pecados mais abomináveis como a coisa mais normal do mundo. É por causa deste espírito que muitos religiosos, até mesmo sacerdotes e bispos, chegam a praticar atos indignos e ofensivos a Deus, como os pecados contra o sexto mandamento e até mesmo o homossexualismo e a sodomia, declarando ser isto a coisa mais normal do mundo e que Deus não os vai levar para o inferno. Contrariam o que disse São Paulo: “Neque fornicarii, neque adulteri, neque molles regnum Dei possidebunt” – Nem os fornicadores, nem os adúlteros, nem os efeminados possuirão o Reino de Deus.  (1 Cor 6, 9-10). 

Como destruir o templo interior

No Antigo Testamento a mistura da idolatria com os princípios divinos era chamada pelos Profetas de “adultério”, o que seria o mesmo que sincretismo. O adultério sempre foi tido como a simples traição dos esposos, mas nas Escrituras era usado como metáfora para simbolizar a mistura de crenças ou a traição a Deus, como consta em Esdras (9, 1-2) e em outros lugares comparado com a prostituição, principalmente no livro de Oséias (Os 1, 2): “a terra de Israel não cessa de se prostituir, abandonando o Senhor”. Este “adultério”, prostituição, sincretismo ou qualquer outra denominação, reflete um estado de espírito de quem não pratica a Religião da forma como Deus ensinou, mas sim conforme seus caprichos pessoais.

E tudo isto começa pela maneira como os homens consideram o templo mais importante, que é o do interior de sua alma.

Eis como destruir o templo da Santíssima Trindade no claustro da alma:

Os pecados da carne:

1 – Contra o 6º. E o 9º mandamentos, destrói o trono de Deus no interior da alma humana como fruto das manchas corporais da impureza;

2 – De outro lado, os pecados, tanto os solitários quanto os demais, entronizam Satanás no coração humano;

3 – Os pecados coletivos levam o demônio ao domínio social e a incrementar a conjuração contra Deus;

4 – A inversão da Ordem, os pecados contra a natureza como a sodomia, instalam o caos do inferno na alma.

Os pecados de orgulho:

1 – A revolta, a impaciência, a busca da liberdade sem freios, é a rejeição da soberania divina no interior da alma humana; Peca-se contra o 1º. Mandamento com a adesão de qualquer superstição ou gnose em detrimento da adesão à verdadeira Fé.

2 – A conjugação de esforços para denegrir, humilhar e perseguir os bons, principalmente através do respeito humano, faz parte da conjuração contra Deus;

3 – A indiferença, frieza, desleixo e falta de respeito nas orações ou nos atos de piedade constitui um ato de vanglória e de orgulho contra Deus;

4 – A auto-suficiência, falta de humildade e de retidão nos atos corriqueiros faz a pessoa se presumir de si mesmo como um outro Deus.

Só há uma maneira de interromper este processo, salvando a vida, tanto esta terrena quanto a eterna: “Ne impie agas multum, ne moriaris in tempore non tuo” – Evita pecar com tanta facilidade, para não vires a morrer antes do tempo (Ecl 7, 18). Esta morte, prematura, tanto pode ser a terrena quanto a eterna, esta como conseqüência daquela.

 (Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs.68/72 – Desejando receber o texto integral desta obra, favor enviar mensagem para o email juracuca@gmail.com – Juraci Josino Cavalcante)


terça-feira, 27 de setembro de 2022

FALSO ESPÍRITO DE CONCILIAÇÃO

 


 

(Comemorando-se hoje a festa de São Vicente de Paulo, relembramos neste artigo de Dr. Plínio, escrito em 1944, o verdadeiro espírito de caridade dos Santos, preocupados antes de tudo em combater o erro).

 “Numa época em que a política da mão estendida, condenada pelo Santo Padre Pio XI, de novo tenta lançar uma ponte entre os católicos e os socialistas, é muito oportuno lembrar o que sobre a união dos católicos disse o santo por excelência da Caridade e do amor ao próximo, São Vicente de Paulo, cuja festa litúrgica foi celebrada a 19 deste mês .

As considerações que abaixo transcrevemos são sobretudo preciosas porque se referem à união de católicos com “cristãos” jansenistas, numa época em que os erros dos discípulos do Bispo de Ypres ainda não haviam sido condenados pela Santa Sé. As cartas de São Vicente de Paulo que hoje transcrevemos, tratam justamente da adoção de medidas tendentes a provocar um pronunciamento do Papa sobre os pontos de doutrina que dividiam os católicos franceses.

Segundo o Patrono das conferências vicentinas, fora da verdade nenhuma união é desejável. E apesar da mensagem “cristã” mais ou menos “fraca” dos jansenistas, era irredutível partidário de uma ruptura completa com eles.

Vejamos o que sobre este assunto se acha no livro do Padre Charles Maignen, “Nouveau Catholicisme et Nouveau Clergé”.

 “É um alivio para o espírito e o coração, quando colocamos de lado as tristezas e vergonhas do presente e nos transportamos para as grandes épocas da história, na companhia dos santos.

Não há leitura mais apropriada, neste sentido, que a dos capítulos da Vida de São Vicente de Paulo, em que o Padre Maynard, seu historiador, narra as lutas do santo contra o jansenismo.

Essas páginas parecem escritas para a hora presente.

Os processos dos jansenistas, seu modo de fazer polêmica e de desenvolver os interesses do partido não são apenas semelhantes, são idênticos à maneira de agir dos americanistas e católicos liberais de nosso tempo.

Não pretendemos redizer como São Vicente de Paulo que perseguiu a seita e atravessou seus projetos, denunciando-os à rainha, denunciando-os à Igreja e escrevendo a todos os Bispos de França para levá-los a pedir ao Papa a condenação das cinco proposições extraídas do livro “Augustinus”. Nós nos limitaremos a reproduzir alguns trechos de suas cartas, em que o zelo do santo aparece bem afastado dessa falsa virtude que protege o erro sob pretexto de caridade.

Eis em que termos Vicente de Paulo termina uma carta ao Bispo de Louçon, de 23 de abril de 1651, a respeito dos jansenistas:

“É grandemente de se desejar que tantas almas sejam alertadas... e que se impeça em boa hora que outras entrem em uma facção tão perigosa. – O exemplo de um chamado Labadie é uma prova da malignidade dessa doutrina. É um padre apóstata que passava por grande pregador, o qual, depois de haver feito grandes danos na Picardia e depois na Gasconha, fez-se huguenote em Montauban; e, por um livro que escreveu de sua pretensa conversão, declara que tendo sido jansenista, achou que a doutrina que ali se adota é a mesma crença que ele abraçou. E, com efeito, Monsenhor, os ministros se vangloriam em seus sermões, falando a essa gente, que a maioria dos católicos se acha de seu lado, e que em breve terão o resto.”

Vê-se que São Vicente de Paulo não desdenhava o testemunho dos padres apóstatas de seu tempo. Logo depois dessas palavras, o santo acrescentava: “Assim sendo, que não se deve fazer para extinguir esse fogo que dá vantagem aos inimigos jurados de nossa Religião? Quem não se lançará sobre esse pequeno monstro que começa a devastar a Igreja, e que afinal a desolará, se não for estrangulado ao nascer? Que não desejariam ter feito tantos bravos e santos Bispos destes dias, se fossem do tempo de Calvino? Vê-se agora a falta dos daquele tempo, que não se opuseram fortemente a uma doutrina que devia causar tantas guerras e divisões.” E São Vicente de Paulo insistia com o Bispo de Luçon para que “requeresse que Nosso Santo Padre” falasse enfim “para reprimir essas opiniões novas que simbolizam tanto com os erros de Calvino. Estará nisso a glória de Deus, concluiu ele, o repouso da Igreja e, ouso dizê-lo, também do Estado.”

Mas onde a clarividência e a energia de Vicente de Paulo aparecem com mais brilho, é na admirável carta aos Bispos de Alet e de Pamiers, que estranhas razões de prudência e de contemporização haviam levado a permanecer neutros no conflito.

São Vicente de Paulo refuta, uma após outra, todas as razões que eles haviam alegado em favor de sua abstenção. Essas razões são de todos os tempos e os argumentos que São Vicente de Paulo lhes opõe não são menos probantes em nossos dias do que no século dezessete:

“Monsenhores,

Recebi, com o respeito que devo à vossa virtude e à vossa dignidade, a carta que me haveis feito a honra de escrever no fim do mês de maio, para responder as minhas a respeito das questões presentes, na qual vejo muitos pensamentos dignos da posição que ocupais na Igreja e que parecem vos fazer inclinar ao partido do silêncio nas contendas do momento atual. Não deixarei, entretanto, de tomar a liberdade de vos apresentar algumas razões, que talvez vos poderão levar a outros sentimentos, e que vos suplico, Monsenhores, prosternado em espírito a vossos pés, vos digneis de boamente ouvir.

É, primeiramente, sobre o que testemunhais recear que o julgamento que se deseja de Sua Santidade não seja recebido com a submissão e a obediência que todos os cristãos devem à voz do Soberano Pastor e que o Espírito de Deus não encontre bastante docilidade nos corações para neles operar uma verdadeira união, eu vos diria de bom grado que, quando as heresias de Lutero e de Calvino, por exemplo, começaram a aparecer, se se tivesse esperado para condená-las até que seus sectários parecessem dispostos a se submeter e a se unir, essas heresias estariam ainda no número das coisas indiferentes, que podem ser seguidas ou deixadas, e elas teriam infectado mais pessoas que o fizeram. Se, portanto, essas opiniões, das quais vemos os efeitos perniciosos nas consciências, são dessa natureza, em vão esperaremos que aqueles que as semeiam entrem em acordo com os defensores da doutrina da Igreja, porque é isto que não devemos esperar, e o que jamais acontecerá; e diferir a obtenção da condenação da Santa Sé, é dar-lhes tempo de espalhar seu veneno, e é também privar a várias pessoas de condição e de grande piedade, o mérito da obediência que protestaram render aos decretos do Santo Padre, logo que os conheçam; tais pessoas não desejam senão saber a verdade, e, enquanto esperam o efeito desse desejo, elas permanecem sempre de boa fé nesse partido, que fazem aumentar e fortificar por esse meio; a ele aderindo pela aparência do bem e pela reforma que pregam e que é a pele de ovelha com que os verdadeiros lobos sempre se cobrem para enganar e seduzir as almas.

Em segundo lugar, o que vós dizeis, Monsenhores, que o calor dos dois partidos em sustentar sua opinião deixa pouca esperança de uma perfeita união, à qual entretanto se deve visar, me obriga a vos ponderar que não há união a fazer na diversidade e contrariedade de sentimentos em matéria de Fé e de Religião, a não ser apelando para um terceiro que não pode ser senão o Papa, na falta dos Concílios e que aquele que não deseja unir-se nessa matéria, não é capaz de nenhuma união, a qual fora disto não é mesmo desejável: porque as leis não se devem jamais reconciliar com os crimes, não mais que a mentira concorda com a verdade.

Em terceiro lugar, essa uniformidade que desejais entre os Prelados seria bem de se desejar, desde que sem prejuízo para a Fé, porque não deve haver união no mal e no erro; mas quando essa união deve ser feita, a parte menor deve procurar a maior, e o membro deve se unir à cabeça, que é o que se propõe, e havendo ao menos, das seis partes, cinco que ofereceram de se ater ao que disser o Papa na falta de um concílio, que não pode reunir-se por causa das guerras; e quando, depois disso permanecer a divisão e se achardes melhor o cisma, deve-se imputa-lo àqueles que não desejam juiz, nem se render à pluralidade dos Bispos, aos quais. não acatam, do mesmo modo que não o fazem ao Papa.

E daí se forma uma quarta razão, que serve de resposta ao que vos ocorreu de me dizer, Monsenhores, que um e outro partido acreditam que a razão e a verdade se acham de seu lado, o que concedo. Mas vós bem sabeis que todos os hereges têm dito o mesmo, e que isto não os garantiu contra a condenação e os anátemas com que têm sido fulminados pelos Papas e pelos concílios; não se achou que a união com eles fosse um meio de sanar o mal, pelo contrário, foi-lhes aplicado o ferro e o fogo e algumas vezes demasiadamente tarde, como pode acontecer agora. É verdade que um partido acusa o outro, mas com esta diferença, que um pede juízes, e que o outro não os deseja, o que é mau sinal. Ele não deseja remédio, digo eu, da parte do Papa, porque sabe que é possível; e faz gesto de pedir Concílio porque o crê impossível, no estado presente das coisas; e se pensasse que ele fosse possível, rejeitá-lo-ia do mesmo modo que rejeita o outro. E não será, segundo creio, motivo para o riso dos libertinos e hereges, nem escândalo para os bons, ver os Bispos divididos, porque além de ser muito pequeno o número dos que não desejam subscrever as cartas escritas ao Papa sobre este assunto, não é coisa extraordinária, nos antigos Concílios, que todos não tenham o mesmo sentimento; e é o que mostra também a necessidade que o Papa conheça o assunto; pois que, como Vigário de Jesus Cristo, é o Chefe de toda a Igreja, e por conseguinte o superior dos Bispos.

Em quinto lugar, não vemos porque a guerra, por estar espalhada quase por toda a Cristandade, há de impedir que o Papa julgue com todas as condições e formalidades necessárias e prescritas pelo Concílio de Trento, a escolha das quais este deixou nas mãos de Sua Santidade, a quem vários santos e antigos Prelados tem ordinariamente consultado e reclamado nas dúvidas sobre a Fé, mesmo quando reunidos, como se vê nos Santos Padres e nos anais eclesiásticos. Ora, se se prevê que haverá quem não dê aquiescência ao seu julgamento, será este um meio de discernir os verdadeiros filhos da Igreja dos rebeldes.

Quanto ao remédio que propondes, Monsenhores, de proibir a um e outro partido de dogmatizar, eu vos suplico muito humildemente que reconsidereis que isto já foi experimentado inutilmente, e serviu apenas para dar força ao erro, porque vendo que era tratado na mesma base que que a verdade, o erro se aproveitou desse  ensejo para se consolidar; e não se deve tardar demasiadamente em extirpa-lo, visto que essa doutrina não se aplica somente em teoria, mas que consistindo também na pratica, as consciências não mais podem suportar a perturbação e a inquietação que nascem dessa dúvida, a qual se forma no coração de cada um, a saber se Jesus Cristo morreu por ele ou não, e outras semelhantes. Há pessoas que, ouvindo outros dizerem, a moribundos, para consolá-los, que tivessem confiança na bondade de Nosso Senhor, que morreu por eles, disseram aos doentes que não se fiassem nisso, porque Nosso Senhor não havia morrido por todos.

 “Permiti também, Monsenhores, acrescentar a estas considerações que esses que fazem profissão da novidade, vendo que se temem suas ameaças, as aumentam, e se preparam para uma forte rebelião; servem-se de vosso silêncio como um poderoso argumento em seu favor, e mesmo se ufanam, por um impresso que publicam, que sois de sua opinião; e, pelo contrário, os que se conservam na simplicidade da antiga crença, se debilitam e se desencorajam, vendo que não se acham universalmente sustentados. E não ficareis um dia bem contristados, Monsenhores, se vosso nome, ainda que contra vossas intenções, que são muito santas, tivesse servido para confirmar a uns em sua obstinação, e para abalar a crença de outros?

“Quanto a confiar o assunto a um concílio ecumênico, qual o meio de convoca-lo durante estas guerras? Passaram-se quase quarenta anos desde que Lutero e Calvino começaram a perturbar a Igreja e a convocação do Concílio de Trento. Segundo este, não há mais pronto remédio que o de recorrer ao Papa, ao qual o próprio Concílio de Trento nos encaminha em sua última sessão, no último capítulo, do qual vos envio um excerto.

“Portanto, Monsenhores, não se deve temer que o Papa não seja obedecido como é bem justo quando se tiver pronunciado; porque além do que essa razão de temer a desobediência é comum em todas as heresias, as quais por conseguinte dever-se-ia deixar existir impunemente, nós temos um exemplo muito recente na falsa doutrina dos dois pretensos chefes da igreja saída da mesma botica, a qual, tendo sido condenada pelo Papa seu julgamento foi obedecido, e não mais se fala dessa nova opinião. Certamente, Monsenhores, todas essas razões e várias outras que vós sabeis melhor que eu, que desejaria aprender de vós, que respeito, como meus pais e como doutores da Igreja, fizeram que restam presentemente poucos prelados em França que não tenham assinado a carta que vos foi apresentada.”

 (Plínio Corrêa de Oliveira – “Legionário”, 30 de julho de 1944, pág. 5)