quinta-feira, 27 de outubro de 2022

MARTÍRIO INCRUENTO PARA CONSERVAR A CASTIDADE

 

 


O fato deu-se com os padres Anchieta e Manuel da Nóbrega, especialmente mais cruel para Anchieta com lances solitários desta luta, pois Manoel da Nóbrega teve que se ausentar para negociar as pazes com os índios. A este respeito, o sofrimento de Anchieta chega até o cume do heroísmo.

Estavam em Iperoig, aldeia dos terríveis tamoios, como reféns exigidos para a concretização do tratado de paz. O Padre Manoel da Nóbrega teve que sair com um grupo e ir confabular com outros índios, enquanto São José de Anchieta ficou retido na aldeia como garantia.

A permanência de São José de Anchieta naquele lugar revestiu-se do caráter de uma grandiosa luta, a luta entre o bem e o mal, onde uma das virtudes mais visadas pelas tentações diabólicas era exatamente a pureza. Além de ter que suportar os festins antropofágicos, os rituais de curandeirismos indígenas, os assassinatos cruéis de índios recém-nascidos, Anchieta tinha que lutar constantemente contra a tentação de impureza.

Segundo alguns observadores superficiais, teria sido mais fácil conseguir resolver logo as negociações de paz se os embaixadores tivessem cedido em matéria de castidade. No entanto, mandava os preceitos religiosos que em nada se poderia ceder, sob pena de pecado mortal por uma grave ofensa a Deus. O padre Anchieta conta que, logo de início, vieram os chefes da aldeia lhes oferecer suas filhas índias para com elas dormir, e por cima de tudo ficavam insistindo constantemente que as aceitassem, considerando uma ofensa a recusa.

Naquela situação o Santo poderia ter tido pensamentos de condescendências: “Essa recusa, considerada grosseira pelos chefes da tribo, não poderia atrapalhar as pazes? E Deus não levaria em conta nossa fraqueza, cedendo a tanta tentação, e nos perdoaria?”  Quntos pensamentos desta natureza não devem ter turbado a mente do santo padre.

No entanto, com a atenção posta na fidelidade a Deus, no progresso da santidade e, sobretudo, confiando que sendo fiel Deus o auxiliava muito mais do que se pecasse, Anchieta permaneceu incólume, não permitiu que lhe toldasse a mente o menor assentimento ao pecado.

E no entanto, as índias passavam constantemente em sua frente, inteiramente despidas, talvez fazendo gestos despudorados e tentadores, talvez a mando das matronas feiticeiras ou de seus chefes. Na maioria das vezes esta tentação era feita pelas índias mais jovens e formosas.

E isto durante vários dias, todos os dias, desde o amanhecer ao entardecer. Até mesmo quando São José de Anchieta celebrava missa, numa pequena palhoça separada dos índios, era repentinamente visitado por aquelas figuras sensuais e tentadoras. Voltando seu olhar para os céus, o santo homem rogava insistentemente a proteção da Virgem Maria. E fez uma promessa a Ela:  caso saísse dali intacto, sem cometer ou mesmo permitir no menor pecado contra a pureza, faria um poema em homenagem à Virgem Maria.

A respeito do episódio, o seu biógrafo Charles Sainte-Foy teceu o seguine comentário: “Compreendendo o perigo em que estava e desconfiando de suas próprias forças, aumentou as orações, os jejuns, as disciplinas, e conservou continuamente sobre si um duro cilício que, atormentando-lhe a carne, enfraquecia-a e reprimia seu ardor. Convencido de que, para conservar o precioso tesouro da pureza era preciso redobrar a vigilância, observava com exatidão os menores movimentos da natureza e sufocava em germe todos os que nele pudessem fazer enfraquecer a graça”.

E para mais facilmente fugir das tentações, Anchieta se refugiava na praia, e lá mesmo riscava com uma vara os versos do poema que mais tarde passou para o papel.

A propósito de sua fidelidade à Castidade, disse seu primeiro biógrafo, o padre Quirício Caxa: “Imerso num fogo babilônico não foi sequer chamuscado por aquelas chamas...”. Estava ele sob uma proteção especial da Santíssima Virgem. Por isso não pecou.

Índia brasileira, mártir da Castidade

O mesmo biógrafo citado acima, Charles Sainte-Foy, juntamente com os cronistas jesuítas contemporâneos de Anchieta contam vários casos em que índias convertidas e já praticantes do Cristianismo se tornaram mártires da pureza. Certa feita, duas índias estavam fazendo os círios para serem acesos nas missas da aldeia, quando uma delas guardou uma das velas para si. Perguntada pela outra com que finalidade, respondeu que era para o Padre Anchieta celebrar uma missa em sua honra e louvor quando se tornasse mártir e santa. Em seguida, a índia ofereceu aquela vela ao Padre Anchieta, que a guardou consigo. Alguns dias depois a aldeia foi atacada por índios contrários, os quais levaram aquela índia como cativa. O cacique tentou violentar a todo custo a pureza daquela índia, mas a mesma lutou bravamente com todas suas forças, dizendo corajosamente que era cristã e casada, não podendo portanto pertencer a outro homem. Cheio de ódio à Fé cristã e à virtude da Castidade, o índio terminou por matar a índia.

No mesmo dia, encontrando-se o Padre Anchieta ausente, resolveu celebrar missa e foi buscar aquela vela que a índia lhe tinha presenteado dias atrás. Inspirado pelo Espírito Santo, pois não sabia do ocorrido ainda, disse que tinha intenção de celebrar aquela missa em honra de uma mártir cristã. Quando outro padre perguntou o nome da mártir, respondeu o Padre Anchieta que era aquela índia que lhe tinha presentado aquele círio.

Outro exemplo de castidade heróica entre os indígenas

O tema pode causar pasmo a certos espíritos superficiais: mas como? Então gente que se dedicava a uma luxúria desbragada, de repente passa a praticar a castidade? Sim, é verdade; e isto já de si constitui um estupendo milagre na ordem da graça. O Padre Anchieta comenta: “Observam-se em muitos, máxime nas mulheres, assim livres como escravas, mui manifestos sinais de virtudes, principalmente em fugir e detestar a luxúria, que sendo comum pernície no gênero humano, desta parte parece que teve sempre, não somente imperioso senhorio, mas até tirania muito cruel. E sendo isto verdade, é muito para espantar e digno de grande louvor quantas vitórias e triunfos alcancem dela. Sofrem as escravas que seus senhores as maltratem com bofetadas, murros e açoites por não consentir no pecado. Outras desprezam as dádivas que lhe oferecem os mancebos desonestos. Outras, a quem pela violência  lhe querem roubar sua castidade, defendem-se, não somente repugnando com a vontade, mas até com clamores, mãos e dentes fazem fugir os que as querem forçar. Uma, acometida por um e perguntada de quem era escrava, respondeu: “de Deus sou, Deus é meu Senhor, a Ele lhe convém falar, se queres alguma coisa de mim”. Com estas palavras se foi vencido e confuso e contava isso a outros com grande admiração” [1]

Castidade, virtude detestada pela Revolução

Por ser uma virtude muito detestada pela Revolução e tenazmente muito combatida em todas as épocas, não poderíamos deixar de relatar um caso impressionante da prática de castidade heróica entre os índios. Quem o relata é o Padre Antonio Blásquez, em carta escrita da Bahia em 1558. Transcrevemos abaixo todo o relato, com todo o seu sabor quinhentista:

“E para concluir direi por último o que aconteceu nesta cidade digno de edificação e, por ser no Brasil, de muita admiração. Foi trazida de casa de seus pais uma índia brasílica mui pequena e, criando-se em bons costumes em casa de uma dona honrada, afeiçoou-se tanto à virtude e cousas do Senhor que propôs em sua alma (ensinada não por homens, senão pelo Espírito Santo) de não conhecer varão e isto quanto lhe fosse possível. Perseverando ela nestes desejos, cousa muito desacostumada entre as índias desta terra, o Demônio, inimigo da salvação dos homens, não podendo sofrer fazer tão grande desonra em terra onde ele é tão honrado, trabalhou que ela tivesse amos que a tirassem de tal propósito, e creio que assim fora se o Semhor não a prevenira antes com sua Graça, ornando-a de uma grande fortaleza para que pudesse resistir e vencer ao Demônio de uns não bons homens, por meio dos quais lhe queria roubar a jóia da castidade. Estes amos, pois, a acometeram muitas vezes querendo deflorá-la, aos quais ela resistiu com um ânimo mais que de mulher, rogando-lhes com as lágrimas nos olhos que tal cousa não quisessem fazer, pondo-lhes diante o mal que faziam a ela e a si mesmos;  finalmente quão grande desonra e desacato cometiam ao Senhor, verdadeiro amador dos limpos e castos”.

  (Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs. 221/224. Desejando o texto integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )



[1] “Cartas – Correspondência Ativa e Passiva” - |Pe. Joseph de Anchieta SJ – Ed. Loyola – pág. 160/161


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

SÃO LUÍS GONZAGA, PATRONO DA JUVENTUDE E DA CASTIDADE

 



A marquesa de Castiglioni, D. Marta, era estéril e pedia constantemente a Nosso Senhor que lhe desse um filho, e que o mesmo servisse a Deus como religioso. Fez votos de oferecer o filho a Deus e pouco tempo depois, veio o mesmo a nascer, o que seria o primeiro de seus três rebentos.  

Não fora fácil aquele nascimento. Porfiavam ainda os médicos que não era possível que o menino sobrevivesse, e o marquês, Dom Ferrante, instava a que se procurasse salvar a alma da criança. A experimentada parteira, logo que viu o menino o suficiente para poder receber a água do batismo, antes que nascesse totalmente, batizou-o.  Estávamos a 9 de março de 1568.   

O marquês, como era soldado, queria que seu filho o fosse também. Assim, quando Luís tinha apenas 4 anos mandou fazer uns arcabuzes e outras armas em tamanho pequeno a fim de que a criança pudesse carregá-las.  Além disso, quando preparava a armada contra Tunis, levou o filho consigo ao local onde deveriam se reunir a fim de que o garoto criasse interesse pelas coisas militares. Também, quando haviam paradas militares fazia-o ir à frente das tropas  com as armas pequenas que mandara fazer para que ele as conduzisse.

Quando o marquês partiu finalmente para a guerra, enviou de volta seu filho para Castiglioni. A criança tinha aprendido,  pelo trato e conversação com os soldados, algumas palavras livres e descompostas que eles de ordinária empregam. Chegando em Castiglioni começou a empregar tais palavras com a maior naturalidade, sem saber ao menos o que elas significavam.  Um dia o seu preceptor o repreendeu por causa disso, e de tal modo que desde aquele momento nunca mais se ouviu uma palavra descomposta sair de sua boca, e,  se escutava outros dize-las, baixava os olhos de vergonha,  ou virava o rosto, mostrando seu profundo desagrado.

São Luís sempre considerou aquelas palavras, ditas de forma tão ingênua e inocente, como os piores pecados que havia praticado em sua vida, e delas chorou até o último momento de sua morte.

Chegado aos sete anos, que é quando começa a amanhecer a luz da razão, decidiu dedicar-se inteiramente ao serviço de Deus.  De maneira que chamava a este tempo o de sua conversão. E quando ele dava conta de sua consciência a seus diretores espirituais contava como um dos mais assinalados benefícios que tinha recebido de Deus que aos sete anos o tivesse convertido do mundo à Seu serviço.

São Luís esteve desde a mais remota infância convivendo entre pessoas da alta nobreza, pois foi nascido na corte de seu pai e passou anos na do grão-duque de Florença,  na do duque de Mântua e na do próprio rei de Espanha. Tendo sempre que tratar com príncipes e senhores, com todo gênero de pessoas de categorias tão elevadas, mas que numa época onde tais convívios eram cheios de vícios e de maus costumes, no entanto conseguiu conservar sempre pura e limpa a vestidura branca da inocência batismal.

São Roberto Belarmino, Cardeal,  declarou o seguinte sobre São Luís:: provavelmente se pode crer que a Divina Providência, em todos os tempos, tem alguns santos confirmados em graça enquanto estão vivos.  "Eu para mim - completou - acho que um desses confirmados em graça é nosso irmão Luís Gonzaga, porque sei quanto se passa na sua alma".

Com a idade de nove anos, seu pai montou para ele uma casa em Florença, a fim de que continuasse a educação na corte do grão-duque.

Ali, alimentou especial devoção por uma imagem de Nossa Senhora da Anunciata. Lendo um livro do padre Gaspar Loarte sobre os mistérios do Rosário, sentiu-se abrasado em desejos de fazer algo por Sua Senhora. Veio-lhe o pensamento de que seria serviço muito aceite que ele, para imita-La quanto fosse possível na sua pureza, lhe consagrasse com particular voto sua virgindade. Com este pensamento, estando um dia em oração diante da imagem da Anunciata,  fez em honra da Virgem voto a Nosso Senhor de perpétua castidade, a qual conservou durante toda a vida, inteira e perfeitamente.

Afirmam seus confessores, e em particular o Cardeal São Roberto Belarmino, que São Luís em toda sua vida não sentiu nunca o mais mínimo estímulo ao movimento carnal do corpo, nem um pensamento ou representação lasciva da mente contrária ao propósito do voto que fizera.

Para se medir a altura de tão grande privilégio dado por Deus, basta lembrar que o Apóstolo São Paulo pediu por três vezes a Deus que lhe tirasse o estímulo da carne, que ele chamava agulhão.  São Jerônimo por muito tempo fez rigorosas penitências com mesmo fim e Santo Afonso Ligório reclamava deste "agulhão" ainda no final da vida com mais de 90 anos.

Ainda que ele não tivesse batalhas nesta matéria, pelo menos de forma visível aos circunstantes, a estima e o grande amor por esta virtude fazia-o estar sempre em guarda do coração e sentinela dos sentidos, especialmente dos olhos. Para se resguardar na posse de virtude tão delicada, São Luís fugia sempre do trato com mulheres. Aborrecia tanto sua vista, que quem o visse assim proceder pensaria que tinha por elas alguma antipatia natural. Se acontecia alguma vez, estando em Castiglioni, que a marquesa sua mãe lhe enviasse algum recado através de algumas de suas damas, ele saía à porta de seu aposento, sem deixá-la entrar.  Fixos os olhos em terra, respondia ao recado e com isso despedia-se sem olhar na face.

Nem mesmo com a mãe ele gostava de falar a sós. E se alguma vez acontecia que, estando a falar com ela, os presentes saíam, logo ele procurava uma ocasião para também sair. E se não a encontrava, cobria seu rosto de um desagrado e uma vergonha virginal, indício do recato com que andava na guarda desta sublime virtude.

Quando esteve na corte de Sabóia, encontrou-se uma ocasião com um nobre já idoso, que não corava de pronunciar indecências em presença do santo jovem e de vários outros mancebos. São Luís exclamou indignado: "Pense nesses cabelos brancos - a gente havia de cuidar que nessa idade findavam semelhantes tolices".  E retirou-se imediatamente do recinto, deixando o infrator envergonhado.

Em 1580 esteve São Carlos Borromeu, arcebispo de Milão, visitando a diocese de Bréscia, e chegou a Castiglioni.  Depois do sermão visitou São Luís, então com 12 anos e quatro meses. Estiveram os dois a sós em práticas espirituais tão longo tempo, que ficaram espantados todos os que os aguardavam. Consolava-se o arcebispo de ver a tenra planta tão forte  no meio dos espinhos da corte, sem arte de jardineiro, mas só com as graças do céu. O menino alegrava-se em estar com o santo bispo, cuja fama de santidade já era grande, tomando suas palavras e avisos como vindos do próprio Deus. Fez na ocasião sua primeira comunhão.

Certo dia, o santo menino teve o seguinte pensamento, contado depois a seu diretor espiritual: "Olha Luís, que grande bem o da Religião! Estes padres estão livres dos laços do mundo, afastados das ocasiões de pecado. O tempo que os do mundo gastam sem proveito em procurar os bens transitórios e prazeres vãos, eles empregam com grande mérito em procurar os bens do Céu, e tem a certeza de que seus esforços não ficaram malogrados. Os religiosos são verdadeiramente os que vivem segundo a razão e não se deixam tiranizar pelas paixões;  não pretendem honrarias vãs, não fazem caso dos bens da terra, caducos e frágeis, não estão em comparação de uns com os outros, não têm inveja dos outros, mas estão sempre contentes em servir a Deus.  Por que estranhar que sejam alegres e sem medo, nem sequer da própria morte, do juízo e do inferno, se trazem sempre a consciência limpa, se dia e noite acumulam novos tesouros, se estão sempre ocupados ou com Deus ou por Deus? O testemunho da boa consciência dá-lhes aquela paz e tranqüilidade interior, de onde provam a serenidade que transparece por fora. Aquela esperança bem fundada que eles têm dos bens do céu, aquele se lembrar a quem eles servem e em cuja corte estão, a quem não alegrará? E tu, Luís, o que fazes, o que dizes, o que pensas, por que não tomas um estado tão feliz? Olha as magníficas promessas que Deus faz a estes.  Olha as grandes comodidades para acudir as suas devoções, sem estorvos"

São Luís estava visitando sempre o convento dos barnabitas, onde se confessava e comungava com freqüência. Anteriormente, o menino já havia tomado a decisão de deixar a seu irmão menor, Rodolfo, a posse do marquesado de Castiglioni, do qual era herdeiro por ser o mais velho. Continuava sua meditação:

"Se deixando o estado a teu irmão Rodolfo, como estás resolvido, queres ficar no século em sua companhia, forçoso será que vejas muitas coisas que não sejam de teu gosto.  Se ficas calado, eis o escrúpulo de consciência. Se falas, tornar-te-ás pesado, e não quererão ouvir-te.  Mesmo que queiras ser eclesiástico ou sacerdote, não alcançarás teu desejo.  Pelo contrário, tendo uma maior obrigação de dizer com perfeição do que os leigos ficas nos mesmos perigos que eles,  e talvez até maiores.  Não ficas livre de respeitos humanos, mas obrigado a empregar teu tempo em cumprimento, seja com este senhor, seja com outro.  Se não tens trato com mulheres, nem visitas às parentes, serás apontado; se cumpres com elas, eis teu propósito que vai por terra.  Se queres aceitar dignidades e bispados, ficas mais no mundo do que agora estás. Se não aceitas, dirão que és pouca coisa e que desonras tua casa, e por mil caminhos te apertarão para te fazer aceitar".

Estava ele levantando as dúvidas, para depois surgir a solução:

"Entrando em Religião, de um golpe cortas com todos esses empecilhos. Ficas livre de todos os respeitos do mundo, e atinges um estado no qual gozes de quietude, e podes servir a Deus com perfeição".  Estas e outras razões se dava si próprio, segundo ele contou. Finalmente, depois de se ter encomendado a Deus com grande afinco, para que o iluminasse, após muitas comunhões oferecidas com este fim, julgando que Deus o chamava para este estado, resolveu-se a deixar o mundo e entrar numa Ordem religiosa, ordem onde pudesse fazer  votos perenes de castidade e pudesse guardar o de obediência e pobreza evangélica.

Por causa de sua pouca idade, não quis participar seu propósito a ninguém. Pouco depois, teve que acompanhar seus pais até à corte real, em Madri, onde tornou-se companheiro de estudos dos príncipes reais.

Seu confessor escreveu mais tarde sobre o jovem santo:  "Conheci na Espanha a Luís, e notei nele uma pureza rara de consciência. Tanto que durante todo aquele tempo, que foi de alguns anos, não só não achei nele pecado mortal, o qual ele aborrecia sumamente e jamais tinha cometido, mas muitas vezes não achei matéria de absolvição. Adverti também nele uma singular modéstia e recato nas palavras, não tocando com elas a ninguém, nem de mil léguas, em coisa mínima que fosse. Não é pouca coisa dizer que um senhor tão jovem, vivendo em tais palácios, não se achasse nele matéria de absolvição, nem sequer de pecados veniais.  Da modéstia e recato que tinha no olhar, ele próprio confessou que apesar de que viajou de Itália a Madri com a imperatriz, e ia cada dia na casa dela, e tendo mil ocasiões de vê-la de longe e de perto, jamais fitou-a uma só vez no rosto".

Naquele tempo não se importava de usar roupas velhas e algumas, principalmente as interiores, remendadas. Não usava qualquer objeto de ouro ou jóias, coisa comum entre os fidalgos.  Por causa disto, sofria severas repreensões de seu pai, acusando-o de desonrar a família com trajes pouco dignos de sua posição.

Suas conversas na Corte eram tão graves e religiosas, que sua simples presença fazia com que as pessoas ficassem compostas e sérias. E como não escutavam nunca dele palavras nem viam ações que não fossem mais do que honestas, era comum fazerem comentários dizendo que "o marquezito não era de carne como os demais", quer dizer, era um anjo.

Após permanecer um ano e meio em Madri, finalmente tomou a resolução de entrar na Companhia de Jesus. Moveu-o a isto quatro razões: a primeira, porque nela a observância estava no primeiro rigor e pureza; a segunda, porque lá faz-se votos de não pretender qualquer cargo eclesiástico; a terceira, por ver na Companhia tantos meios de estudo e de instrução da juventude; a quarta razão era porque a Companhia se ocupava especialmente em combater os hereges e na conversão dos gentios.

Lutou por mais de quatro anos para convencer seu pai a autorizar seu ingresso na Companhia de Jesus. E a autorização paterna surgiu exatamente por causa da fervorosa luta que o jovem vinha travando para preservar sua pureza. Procurava proteger sua inocência como se faz um baluarte para defender uma cidade contra a invasão inimiga. E para isto se utilizava de austeras penitências, que naqueles tempos era recurso comum entre os santos.  Inúmeras vezes levava noites em claro fazendo rigorosas penitências, de joelhos no duro chão.

Certo dia, disciplinou-se São Luís com maior violência a fim de mover os céus que lhe concedesse a graça da autorização paterna para ingressar na Companhia. Alguns criados da casa ouviram os estrépitos dos golpes de sua auto-disciplina e conseguiram observar o que ocorria por uma fresta da porta. A cena era tocante, os criados não queriam ficar omissos, e por isso correram e foram contar tudo ao marquês, o qual, comovido, disse:

- Deixa, meu filho, poupa a tua vida. Leva a cabo o teu propósito, em nome de Deus, e segue em paz.

Era, afinal, a tão esperada autorização para ingressar na Ordem. Vencida a mais difícil batalha de sua vida, por fim, em Mântua, na presença do Imperador e de muitos nobres, quando tinha 17 anos, leu o notário o instrumento de renúncia dos seus direitos de primogenitura em favor de seu irmão Rodolfo. Após assinar, disse ao irmão: "Qual de nós vos parece, meu irmão, que está mais contente - vós, com os vossos estados, ou eu com a minha pobreza? Tende por certo que é maior a minha alegria que a vossa". Estava assim desimpedido o caminho para que o jovem aspirante pudesse fazer os votos de ingresso na Ordem que Deus lhe inspirara.

Não completou seis anos na Companhia de Jesus,  falecendo mártir da caridade ao atender os empestados de Roma no ano de 1591, a 21 de junho. Sua mãe chegou a assistir a cerimônia de beatificação de São Luís, ocorrida já em julho de 1604. Foi canonizado por Bento XIII em 1724 e pelo mesmo Papa eleito como o patrono da juventude. [1]

  (Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs. 202/207. Desejando o texto integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )



[1] Dados extraídos de "Vida de San Luís Gonzaga, patrono de la juventud", do pe. Virgílio Cefari, SJ - e de "Santos  de Cada dia", de José Leite, S.J.9-*.


terça-feira, 25 de outubro de 2022

RESISTÊNCIA NA SÃO PAULO COLONIAL

 



 Cumpro hoje a já remota promessa de narrar o mais dramático dos episódios que enriquecem a história do Convento da Luz. Nestas proximidades do Natal, o tema – por seu essencial cunho religioso – vem especialmente a propósito.

Haviam cessado em junho de 1775 as funções de capitão-general do famoso Morgado de Mateus, D. Luís Antônio de Sousa Botelho e Mourão. Governara este com sabedoria, firmeza e bondade a Capitania paulista. Sucedeu-lhe imediatamente nas funções Martim Lopes Lobo de Saldanha, sob cuja férula São Paulo veio a passar oito anos de despotismos e arbitrariedades.

Executor açodado das tirânicas leis de perseguição religiosa de Pombal, Martim Lopes não tardou em oficiar ao vice-rei Marquês do Lavradio, comunicando-lhe que ordenara o fechamento do Convento da Luz, no qual viviam então dez religiosas.

Tal ordem, o capitão-general a efetivara por meio do Bispo de São Paulo. Submisso, o Prelado mandou chamar, no dia 29 de junho, festa de São Pedro, a Frei Galvão, fundador e capelão do pequeno cenóbio, e lhe intimou a dar início imediatamente à dissolução do Convento. Tão logo recebida a ordem dada pelo Pastor – ao qual, entretanto, incumbia o dever de proteger as religiosas, mais do que o de as dispersar – Frei Galvão dirigiu-se ao mosteiro cuja Capela estava repleta de povo à espera da Missa. Celebrada esta, Frei Galvão comunicou às religiosas transidas de dor, a deliberação arbitrária que as fulminava. Que avisassem suas famílias para virem buscá-las. Dentro de um mês, o Convento teria que cerrar suas portas.

Três religiosas saíram. As outras, porém, resolveram resistir, dentro dos limites do Direito canônico, aos intuitos do Governador, endossados pelo Bispo. Ao pé da letra, a ordem recebida obrigava-as a fechar o Convento. Não porém a se dispersarem. Fecharam-no. Mas resolveram continuar vivendo nele clandestinamente.

A resistência parecia absurda, pois, conhecendo-a o Governador ou o Bispo, tinham o poder – se bem que não o direito – de desferir contra as religiosas violentas penalidades canônicas e civis. Ora, como manterem-se na clausura sem receber de fora os víveres e a água potável, que as freiras tinham escassa? E como tomar contato com gente estranha ao Convento sem se exporem à delação?

Há porém deliberações absurdas para as criaturas sem fé, e inteiramente cabíveis para aquelas cuja fé move as montanhas. As freiras resolveram enfrentar o que humanamente era impossível. Cerraram portas e janelas. E cortaram todos os contatos com o exterior.

Consumidos os poucos mantimentos de que dispunha o Convento, as religiosas passaram a viver de umas tais ou quais ervas que possuíam no quintal. Entrementes, um pé de morangas, que no mesmo quintal se achava, produziu de modo inteiramente imprevisível uma tal quantidade de frutas, que as religiosas não conseguiam comê-las todas. Faltando a água, reuniram-se no coro em dia sereno e claro, e pediram chuva. O céu começou logo a se cobrir de nuvens. Trovejou. E uma chuva copiosa caiu, enchendo as talhas e vasilhas que as irmãs haviam exposto para recolhê-la. Repletos os recipientes, a chuva cessou.

O céu concedeu às “resistentes” socorros ainda maiores. A alegria inundava as almas das religiosas, que nessa vida catacumbal recebiam graças assinaladas.

Assim escoou, nessa espécie de santo “maquis”, todo o mês. E passados mais alguns dias, de repente, fortes golpes desferidos contra a porta fizeram estremecer a comunidade – Estaria tudo descoberto? Iriam ser levadas à cadeia? Puseram atenção, e conseguiram ouvir a voz de Frei Galvão, que as chamava pelos nomes. Abriram. E ele lhes comunicou, radioso, a notícia: o vice-rei, Marquês do Lavradio, cancelara a ordem do fechamento e determinara a reabertura do Convento. Comunicava-o carta recém chegada do Rio, à qual o Bispo se apressara em anuir. Chegara, para as vitoriosas freiras, a hora da recompensa, do Te Deum e do Magnificat...

Estes fatos, que colho no abalizado livro “Frei Galvão, Bandeirante de Cristo”, não revelam apenas o vigor de alma das religiosas, mas também de Frei Galvão. Parece-me óbvio que Frei Galvão conhecia e apoiava a santa resistência das religiosas. – Se não, como podia saber ele que se achavam no Convento fechado?

Assim, o grande franciscano paulista, a seus títulos de sacerdote, religioso, místico insigne, escravo de Maria e fundador, juntou também o de Resistente, dentro do espírito e da letra da lei canônica.

 

(Plinio Corrêa de Oliveira - "Folha de S. Paulo", 22 de dezembro de 1974)

Observação: importante notar que, antes de ser franciscano, Frei Galvão havia estudado no seminário que os jesuítas mantinham na Bahia, no lugar chamado Belém, na cidade de Cachoeira(BA), de lá saindo porque havia sido dado ordem de seu fechamento pelo famigerado Marquês de Pombal.


A PUREZA DE SANTA GEMA

 




Transcrevemos abaixo um texto que, por si mesmo, fala da grande pureza que praticava Santa Gema Galgani:

"Entre outras práticas santas, que preservam do  vício impuro, a senhora Galgani aconselhava a seus filhos que recitassem todas as noites três Ave-Marias, com as mãos debaixo dos joelhos, em honra de Maria Imaculada.

A inocente criança praticava este ato numa idade em que não podia ainda compreender o alcance de sua significação.

Depois de ter repetido três vezes a saudação angélica nessa atitude humilde e penosa, levantava-se e dizia, juntando as mãozinhas: "Minha mãe do Céu, nunca permitais que eu perca a santa pureza. Refugio-me sob o vosso manto virginal. Guardai-me bem,  assim agradarei mais a Jesus".

Gema conservou durante toda a vida esta prática recomendada por muitos santos.  Poucos dias antes de morrer, quando, esgotada de forças, lhe era impossível ter-se de pé, surpreenderam-na no quarto a dizer as três Ave-Marias com as mãos debaixo dos joelhos. Todas as suas mortificações, penitências, macerações da carne, e acima de tudo, a guarda rigorosa dos sentidos, tinham por fim principal a conservação da angélica inocência.

Considerando que a mais leve condescendência lhe pode alterar o suave frescor, aborreceu todas as liberdades dos sentidos sem distinção, até cair em verdadeiros exageros. Nunca se viu ao espelho, nem mesmo para se limpar do sangue, que muitas vezes lhe corria dos olhos em suas dolorosas contemplações, ou da fronte circundada de picaduras, produzida pela coroa de místicos espinhos.

Quando mais tarde o seu coração, completamente abrasado do amor divino, submergiu em dores inexprimíveis toda a região peitoral;  quando a violência de suas pulsações misteriosas arqueou três costelas, Gema nem sequer se atreveu a aproximar a mão do seio ou a pôr nele os olhos, embora não pudesse explicar, a princípio, fenômenos tão extraordinários.  E este mesmo rigor de modéstia virginal observou quando um místico dardo de fogo, saído do lado de Jesus, abriu um largo estigma no seu próprio lado.

 

Evitando familiaridades perigosas

"Logo desde os primeiros anos a casta menina mostrou nesta matéria uma extraordinária severidade. Seu pai não conseguia abraça-la;  e, tendo apenas sete anos,  fez pagar caro a um primo o direito a simples tentativa duma inocente carícia.

O jovem, depois de uma visita à família Galgani, preparava-se para sair. Estava já sobre o cavalo, quando notou que tinha esquecido não sei que objeto. Convidada a ir busca-lo, Gema obedeceu, voltando logo com o objeto pedido. E com tanta graça o apresentou, que o primo, enternecido, se inclinou para fazer uma carícia em sinal de agradecimento. A  menina, porém, apenas notou o gesto familiar, mas a seus olhos quase criminoso, repeliu vivamente a mão e o braço do jovem, e de tal modo que ele perdeu o equilíbrio e caiu da sela, magoando-se bastante na queda.

Era inútil querer ajudá-la na sua "toillete". Se uma criada ou mesmo qualquer pessoa da família se aproximava, por exemplo, para lhe ajustar o chapéu, ou atar as fitas do sapato, dizia resolutamente: "Deixai, deixai, eu posso muito bem fazer tudo sozinha".

 

Recato também no linguajar

 Tinha um extremo recato nas alusões, por vezes inevitáveis, ao vício impuro. Longe de usar termos vulgares, abstinha-se de certas palavras absolutamente indiferentes e usadas até pelas almas mais piedosas, sobretudo na Toscana, onde há costume de dar às coisas seu nome próprio.

Para se exprimir usava perífrases[1]  muito naturais em sua boca, o que era muito para admirar, pois ignorava o mal e as diferentes faltas contra a pureza. Disse-me um dia: "Há certas coisas que não compreendo. Quem sabe já terei feito alguma coisa proibida?  Parece-me que não". E acrescenta: "Não, eu não quero ofender a Jesus;  antes morrer! Antes ser cega durante o resto da minha vida, que pecar contra a santa modéstia, mesmo venialmente! Antes ser privada de todos os sentidos  do meu pobre corpo, que abusar deles!"

 

Como fugir das tentações

O demônio, cheio de raiva, tornou-se direta e pessoalmente o tentador da angélica virgem. O ataque não era fácil. Por que lado assaltar tão inocente pomba que nem sequer o nome do vício asqueroso conhecia? Como insinuar grosseiras ilusões a um coração idealmente casto?  O espírito do mal depressa compreendeu que perderia o trabalho, ou que Deus certamente inutilizaria os seus esforços.  Por isso contentou-se com dirigir as suas criminosas tentativas contra os sentidos. Em primeiro lugar apresentou quadros impuros à imaginação da santa menina, depois apareceu-lhe em atitudes lascivas e fez-lhe ouvir expressões escandalosamente indecentes. Enfim, pôs em ação todos os artifícios.

Embora Gema não atingisse o sentido de semelhantes palavras e gestos lúbricos, o instinto do pudor nela tão aperfeiçoado fez-lhe compreender a abominação de tais atitudes. Acautelou-se contra o inimigo e opôs-lhe uma enérgica resistência. Satanás redobrou de esforços, apesar de serem evidentemente inúteis, para atormentar a casta menina, a quem a vista destas cenas impudicas desolava. Ouçamo-la contar as suas mágoas ao diretor espiritual:

"Que terríveis tentações são estas, meu Padre! Todas as tentações me desagradam, mas as que são contra a santa pureza fazem-me tanto mal!...  O que eu sofro só Jesus o sabe, Ele que me olha, permanecendo escondido, e que se compraz com as minhas lutas".

Para não ver, tanto quanto lhe era possível, estas representações impuras, Gema fechava os olhos, e conservava-os fechados até desaparecer o tentador. Com o crucifixo na mão, chamava em seu auxílio  o Anjo da Guarda, os seus santos protetores e sobretudo a Rainha das virgens" [2]

 

(Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs. 199/201. Desejando o texto integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )



[1] Perífrase - Rodeio, circunlóquio, recurso verbal para exprimir por meios verbais através de uma forma indireta aquilo que poderia ser dito por termo próprio, mas às vezes numa linguagem ferida e dura.

[2] "Santa Gema Galgani" - Pe. Germano de Santo Estanislau - Liv. Apostolado da Imprensa, Porto, Portugal- págs. 253/258.

 


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

SANTO AMBRÓSIO REFUTA OS OPOSITORES DA CASTIDADE

 





 

"Ouvi dizer que com a consagração das virgens se acaba o mundo, decresce o gênero humano e se põe em perigo o matrimônio. Eu pergunto: porventura houve alguém que tenha buscado esposa e não a encontrou por essa causa?  Se alguém julga que pelo voto de virgindade decresce o gênero humano, convença-se de que precisamente onde é menor o número das virgens é também menor o número dos nascimentos, e onde é mais freqüente a consagração virginal, é também maior a população. Olhai quantas são as virgens que se consagram cada ano em Alexandria, na África, em todo o Oriente; pois bem, entre nós o número de nascimentos é menor que o número de virgens naquelas regiões.  A virgindade não é, pois, prejudicial, se refletimos sobre o que ocorre em todo o orbe da Terra, e muito menos se trazemos à memória que por meio de uma Virgem veio a salvação, que havia de tornar fecundo o Império Romano.

Mas se alguém ainda persiste em se opor devido a esta causa à pureza, que esse proíba às esposas viver honestamente, já que serão mais fecundas se se entregarem à incontinência; que não guardem fidelidade ao marido, se ele se ausenta, para não impedir o nascimento da possível prole, nem deixar passar inutilmente a idade mais hábil para ter sucessão.

"Mas (dizem) deste modo se dificulta aos jovens o caminho do matrimônio! E, se eu vos disser que, pelo contrário, assim lhes ficará mais fácil a escolha?

 

Duas palavras aos que se opõem ao voto de virgindade

"Vou me permitir duas palavras com aqueles que se opõem ao voto de virgindade. Antes de tudo saibamos quem são.  São os já casados ou os solteiros? Se se trata dos que já contraíram matrimônio, não têm porque temer, pois suas esposas já não podem entrar no coro da virgens; se se trata dos que ainda são célibes, não devem tomar por injúria o ter posto os olhos em quem estava decidida a não aceitar proposta alguma de boda.

"Ou talvez são os pais solícitos de colocar suas filhas os que se incomodam em ver consagrarem-se novas virgens? Também estes não têm porque irritar-se pelo fato de que um tão grande número de jovens sigam meus conselhos sobre a virgindade; quanto menos jovens ficam disponíveis, mais facilmente serão eleitas suas filhas por esposas" [1]  

(Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, pág. 198. Desejando o texto integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )




[1] "De Virginitate", Cap. VII, 36 a 38 - citado na obra de João S. Clá Dias sobre "Vocação e Famílias"

 


domingo, 23 de outubro de 2022

VÁRIOS EXEMPLOS DOS SANTOS E PESSOAS VIRTUOSAS (IV)


 

Da vida de Santo André e sua poderosa intercessão

 

Um ancião escravo da luxúria há mais de setenta anos

Um ancião chamado Nicolau apresentou-se perante Santo André e lhe disse:

- Senhor, fazem setenta anos que estou entregue à luxúria. Tenho crido no Evangelho, tenho orado a Deus pedindo-lhe a graça da continência, mas até agora nada tenho conseguido; meus hábitos inveterados e o aguilhão da concupiscência têm feito pouco caso com meus bons propósitos quantas vezes os tenho formulado. Certo dia, impulsionado por meu apetite e sem dar-me conta de que levava comigo uns "evangelhos", fui até um lupanar; quando acabei de entrar a meretriz me expulsou de sua casa dizendo-me: "Sai daqui imediatamente, velho! Tu és um anjo de Deus; não me toques; não te atrevas a aproximar-te de mim! Vejo em teu redor coisas maravilhosas!"  Ao ouvir falar assim a rameira fiquei estupefato; mas logo lembrei que levava comigo os "evangelhos".  Te rogo, pois, santo de Deus, que rezes piedosamente por mim e peça ao Senhor que me livre deste vício e salve minha alma.

Ouvindo isto, o bem-aventurado André começou a chorar e a rezar; desde a hora terça até à nona permaneceu prostrado em oração. Quando terminou suas súplicas  elevou-se do chão, mas não quis comer, senão que disse: "Não provarei bocado até que saiba que o Senhor tem perdoado misericordiosamente a este ancião".  Cinco dias seguidos jejuou. Ao cabo destes dias ouviu uma voz que lhe disse: "André, te foi concedido o que tens pedido para este velho; porém dize-lhe que para que se salve deverá macerar seu corpo com jejuns tão rigorosos como os que tu tens feito".

Seis meses seguidos jejuou a pão e água o ancião; ao término do sexto mês, cheio de boas obras, faleceu. Tão logo morreu o velho, novamente ouviu André a voz que seis meses antes ouvira; porém desta vez lhe dizia: "Havia perdido a Nicolau, graças a tuas orações o recuperei definitivamente”.

 

Um bispo é tentado e salvo por Santo André

Conta-se que houve um bispo de vida muito virtuosa e tão devoto de Santo André que antes de iniciar qualquer obra de alguma entidade encomendava-se a ele rezando esta jaculatória: "Pela honra de Deus e de Santo André, etc;"  Mas o antigo inimigo, invejoso da piedade do referido prelado, adotou a aparência de uma belíssima dama e se apresentou em seu palácio com o pretexto de que desejava confessar-se com ele. O bispo lhe argumentou que procurasse o confessor em quem tinha delegadas suas faculdades em relação com o sacramento da penitência. A mulher insistiu em suas pretensões e fez saber ao bispo que a ninguém mais que ele manifestaria os segredos de sua consciência. Em vista disto o referido prelado acedeu em ouvir em confissão à suposta penitente.

- Te rogo, senhor - disse a dama, ao iniciar a manifestação de seus pecados ao bispo - que tenhas misericórdia de mim e me escutes com paciência. Como vês, sou jovem; pertenço a uma família de reis; desde minha infância tenho vivido num ambiente  de delícias.  Vim até aqui, só e disfarçada sob este hábito de peregrina, pela seguinte razão: o poderosíssimo rei, meu pai, pretende casar-me com um grande príncipe; tenho procurado fazer-lhe ver que sinto horror pelo matrimônio, que tenho consagrado perpetuamente minha virgindade a Cristo, que nunca faltarei a meu compromisso e que jamais concordarei em manter relações carnais com homem algum. A tudo isto meu pai me tem respondido que se não me caso com o príncipe a quem me tem prometida me trancará por toda vida num cárcere e me submeterá a horríveis suplícios e torturas. Como sei que ele é capaz de cumprir o que diz e de levar a cabo suas terríveis ameaças me esforcei como pude para fugir da corte sem que ninguém me visse, porque prefiro viver desterrada a faltar à palavra empenhada a meu esposo Jesus Cristo.  Havia eu ouvido falar muito de tuas virtudes; por isso, uma vez fora de minha casa e de minha terra, decidi vir a ver-te  para expor-te meu problema, solicitar tua proteção e pedir-te ajuda sob as asas de tua piedade. Espero, pois, senhor, que me acolhas benignamente e me proporcione algum rincão de teu palácio que me sirva de asilo e em que possa entregar-me ao silencioso ofício da contemplação, manter-me afastada dos ruídos  e agitações do mundo, e salvar minha alma dos perigos da vida deste século.

O bispo, admirado ante a nobreza daquela senhora de tão elevada estirpe, tão jovem, tão bela, tão fervorosa e tão espiritual e tão eloqüente em suas palavras , com voz doce e bondosa atenção lhe disse:

- Filha minha, não temas.  Tranqüiliza-te. Aquele que por cujo amor fostes capaz de renunciar a ti, a tua família, a teus bens e grandezas, premiará teu sacrifício, te concederá o máximo de sua graça nesta vida e depois a plenitude da bem-aventurança eterna. Eu, seu humilde servidor, ponho à tua disposição minha pessoa, minha casa e quanto sou e tenho. Escolhe as habitações de meu palácio que mais te agradem, acomoda-te nelas e permanece nesta cidade todo o tempo que queiras. Aqui estarás segura. Hoje desejo que te sentes à minha mesa.

- Pai, - respondeu a dama - não posso aceitar este oferecimento teu.  Eu te pedia meramente um rincão onde possa viver isolada e oculta, mas não uma hospitalidade semelhante à que me ofereceu. Compreende meus temores a tanta generosidade. Se aceitasse ao que me propões e me sentasse à tua mesa, e o povo se inteirasse de que aqui, sob teu teto, reside uma mulher, poderia sofrer detrimento a boa fama de que gozas.

- Desfaça teus temores, filha - replicou-lhe o bispo. Nesta casa não estaremos somente tu e eu. Aqui vive muita gente; não haverá, pois, perigo de que surjam murmurações.

Chegada a hora da comida passaram ao refeitório. O bispo e a dama se sentaram frente a frente, ocupando cada qual uma das cabeceiras da mesa; nos assentos das bandas de um e de outro lado acomodaram-se os outros comensais. O prelado, desejoso de atender a sua convidada, olhava-a com freqüência a fim de que nada lhe faltasse. Cada vez cravava os olhos com mais insistência em seu semblante, considerando detidamente a perfeição e beleza de suas feições, e quanto mais a contemplava, mais enlanguescia seu espírito, porque, enquanto mantinha sua vista cravada no rosto dela, o antigo inimigo da espécie humana mais profundamente enterrava seus venenosos dardos no coração do prelado, mostrando-lhe a refulgente formosura da dama. O bispo, à borda já do naufrágio, começou interiormente a traçar um plano para conseguir estar com ela tão pronto quando se apresentasse alguma oportunidade adequada.  Nisto, um peregrino chamou à porta do palácio com fortes batidas e dizendo com altas vozes que lhe abrissem, e como não acudiam a abri-lhe insistiu em seus golpes cada vez mais estrondosos e em seus gritos, também cada vez mais altos. Enfim o bispo perguntou à sua convidada:

- Te parece bem, senhora, que abramos a esse importuno?

- Melhor seria - respondeu ela - que antes de lhe abrir a porta perguntássemos alguma questão complicada para ver se sabe solucioná-la. Se responde satisfatoriamente a ela demonstrará ser pessoa discreta e digna de que se lhe abra; se não sabe responder entenderemos que se trata de algum ignorante e não se lhe permitirá que venha a estas horas molestar um bispo.

A todos os comensais pareceu boa a sugestão da dama. Seguidamente o prelado convidou a seus amigos que propusessem a pergunta que deveriam fazer ao forasteiro que continuava chamando à porta, e como todos, um após outro, se escusassem alegando falta de idéias, o bispo, dirigindo-se à senhora, lhe disse:

- Quem, entre os presentes, em melhores condições do que vós, senhora, que a todos nos superais em eloqüência, discrição e sabedoria, para propor a questão que devemos apresentar ao inesperado visitante?  Sugeri a que vos pareça.

A dama aceitou e propôs esta:

- Pergunte-se-lhe que é o mais maravilhoso que Deus fez numa coisa pequena.

Um criado do bispo, de dentro e sem abrir a porta, formulou a pergunta ao peregrino e voltou com esta resposta:

"A variedade e excelência dos rostos: entre tantos homens como têm existido desde o princípio do mundo e existirão até o último dia, não houve e nem haverá dois cujos rostos sejam completamente iguais; e, sem embargo, em algo tão reduzido como a face de uma pessoa, o Senhor colocou todos os sentidos do corpo humano".

Os comensais, unanimemente, reconheceram que a resposta era interessante, verdadeira e satisfatória. Porém a mulher disse:

- Proponhamos-lhe uma segunda questão mais complicada que nos permita julgar melhor sobre sua prudência e conhecimentos. Ver se sabe dizer-nos onde está por cima do firmamento a terra?

Eis aqui o que respondeu o peregrino:

"No céu empíreo, porque nele se acha atualmente o corpo de Cristo, que é da mesma natureza que o nosso, e, portanto formado do barro da terra. Como o corpo do Senhor de terra foi feito, terra é; e como se encontra no mais alto dos céus, ou seja, muito por cima do firmamento, segue-se que aí precisamente, no céu empíreo, é onde a terra está por cima do firmamento".

Os convidados amigos do bispo deram por muito boa a resposta e louvaram a sabedoria  do forasteiro.  A dama, sem embargo, propôs:

- Apresentemos-lhe um terceiro e último problema mais difícil que os anteriores; se conseguir resolvê-lo aceitaremos definitivamente  que se trata de um sujeito autenticamente discreto e sábio e que merece ser recebido. Pergunte-se-lhe que distância mede entre a terra e o céu.

O peregrino respondeu ao portador da pergunta:

"Volta à sala e diz a quem te mandou que me fizesse esta pergunta, que a resposta a conhece ele muito bem, posto que a sabe por experiência; ou deveria sabê-la, já que teve ocasião de medi-la quando foi expulso da glória e caiu precipitado no fundo do abismo. Eu, ao contrário, não passei por isso. De passagem, diz a teu senhor o bispo que a pessoa que sugeriu que me formulasse esta e as outras questões não é o que parece, senão que é um demônio disfarçado de mulher".

O mensageiro, assustado, regressou ao refeitório e repetiu diante de todos quanto o peregrino acabava de dizer-lhe; mas, antes que terminasse de transmitir o recado, que os ouvintes escutaram estupefatos, a suposta dama repentinamente desapareceu. Então foi quando o bispo compreendeu a subversão que pouco antes havia sentido em sua alma e os maus pensamentos  e desejos que a haviam assaltado; se arrependeu deles sinceramente, pediu insistentemente perdão a Deus e enviou novamente seu criado à porta, esta vez para que dissesse ao peregrino o que se passara; porém o peregrino já não estava ali e, por mais que o procurassem pelas ruas da cidade, não puderam achá-lo. O prelado convocou o povo, referiu publicamente quanto havia ocorrido e rogou a todos que com jejuns e orações suplicassem ao Senhor que se dignasse comunicar a alguém quem havia sido realmente o misterioso forasteiro que bateu à sua porta e lhe livrado de um gravíssimo perigo. Aquela mesma noite, o bispo conheceu por revelação que o forasteiro havia sido Santo André.[1]

 

(Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs. 183/187. Desejando o texto integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )



[1] "La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 30/36.