quinta-feira, 21 de junho de 2012

A ditadura sindical

Um fato inusitado chamou-me a atenção para um aspecto peculiar das greves, que é uma completa imposição da vontade sindical que impera nos momentos em que as mesmas são decretadas em suas assembleias. E o fato foi o seguinte: tendo os sindicalistas “decretado” uma greve entre professores da Universidade Federal da Bahia, um grupo discordante resolveu fazer uma consulta a todos os demais professores da instituição se concordavam ou não com a mesma. Chamaram muito apropriadamente a esta consulta de “plebiscito”, prática muito comum em países que se dizem democráticos. O resultado é que a grande maioria votou neste inusitado “plebiscito” contra a greve, deixando os sindicalistas desmoralizados, pois fizeram uma coisa em desacordo com o que desejava a maioria. No entanto, perante a justiça trabalhista o que ficou prevalecendo foi a vontade expressa na assembleia sindical, pois esta, segundo a lei vigente, é que tem autorização para “falar em nome da maioria”.
Vamos agora à segunda parte: o que decorre do episódio? É que, como o sindicato agiu dentro da lei, embora acintosamente contra o que desejava a maioria , poderá (para prevalecer o que foi decidido na “assembleia”) fazer piquetes e outras demonstrações de coações que visem impedir os demais de frequentar ao trabalho. É isto o que chamam de democracia.

Lembro-me bem de como procediam os sindicatos (o meu era o dos bancários) no tempo em que eu trabalhava, e nada mudou nos dias atuais, continuam agindo da mesma forma. Certa feita estive presente a uma dessas assembleias. A falta de representatividade é clamorosa; apenas alguns grupos, em geral politizados, comparecem à reunião.  A imensa maioria não vai a essas assembleias: alguns por comodidade, e outros porque já percebem de antemão que tudo lá é dirigido por grupos de manobra. Em geral, as pessoas dizem assim: “Não vou lá, não, pois não adianta minha opinião, tudo é resolvido mesmo por aqueles caras que comandam tudo...”  Quer dizer, dentro da minoria que ali comparece existem grupos, outras minorias, que procuram dominar os demais e forçar o conjunto a tomar uma decisão que já foi tomada antes. Pela lei, a convocação deve ser feita a todos, é o primeiro passo para que a assembleia seja legitimada depois; mas, na hora de se exigir que a decisão represente o pensamento da maioria a lei não exige que esta mesma maioria esteja presente e vote na assembléia, basta que vote os que estiverem lá presentes. Assim como nas reuniões de condomínios: quem decide é quem foi, e acabou. Mesmo que a decisão seja contrária ao pensamento da grande maioria.
Mas a coisa não pára por aí. Temos agora o que decorre disso tudo. Decidida a greve pelos que compareceram à reunião (embora não se possa comprovar como foi a votação, basta que se faça uma ata e diga que a maioria lá presente aprovou a greve) é necessário que se cumpra o que foi ali decidido. É necessário que a greve efetivamente seja feita. E agora, o que fazer com a maioria que não concorda? Aquela minoria ativa, decidida e politicamente organizada (ao contrário da grande maioria silenciosa) se organiza (fora da assembleia, é claro) e vai fazer piquete nas portas para impedir que os demais compareçam o trabalho. Afixam cartazes, ficam postados na frente (alguns entopem até as fechaduras para que não se abram as portas do local de trabalho) e nada é feito contra tais medidas atentatórias às liberdades individuais; até mesmo a polícia, quando é chamada, fica à distância, observando, e só agindo se houver brigas e arruaças. No entanto, o maior crime, a maior violência que se pratica ali é aquela que impede aos discordantes da greve de comparecer ao trabalho.
Quer dizer, nesta sequência, o sindicato age com uma férrea ditadura: Na hora de decidir antecipadamente o que eles querem e dominar a reunião feita para isso, e no momento de forçar os descontentes a cruzar os braços através de piquetes violentos e completo cerceamento das liberdades individuais.  Contra estes despotismos ninguém tem coragem de falar. É a democracia, dizem. Em nome dessa democracia tudo vale. E aqueles que mais a defendem são os que não suportam as opiniões contrárias, como, certamente, muitos dos que lerem o que foi dito acima e terão vontade de jogar pedras em mim.

domingo, 17 de junho de 2012

Conselhos de uma mãe católica sobre a prática da caridade




O texto abaixo foi extraído de uma obra escrita por uma viúva, no final do século XIX, em que a mesma dá conselhos a seu único filho órfão. Referido livro foi expressamente recomendado por Santo Antonio Maria Claret como de grande utilidade prática para as mães de família.
 

   Entregar-se todo para todos em aras da Caridade, é entregar-se todo para Deus

Posto que Deus, em sua infinita bondade, não deixa de te dar, não podes deixar de dar a teus irmãos, e não somente dinheiro, porque isso seria muito pouco, mas o amor e o sacrifício de teu coração, na medida em que sua necessidade o exija.
O primeiro que nos vem ao encontro nesta vida é nosso próximo, com defeitos e caracteres distintos. Saber respeitar seu caráter e suportar seus defeitos é o primeiro sacrifício que a caridade exige, nestes termos: Sofre com paciência as fraquezas de teus próximos.

Quem não conta entre seus familiares ou pessoas que o rodeiam, com as quais às vezes lhes é forçoso tratar continuamente, um desses sujeitos insuportáveis que, por muito que se estude uma forma de fazê-los satisfeitos, jamais se consegue; que sempre estão pondo de relevo nossos defeitos, mas que nunca fazem menção de nenhuma boa qualidade que tenhamos? O suportá-los com paciência um dia e outro dia e o não pô-las em ridículo a cada momento é um sacrifício notável e uma grande obra de caridade.

Quando alguém nos injuria e sabemos que com uma só palavra que pronunciemos podemos humilhá-lo e envergonhá-lo ante todos, descobrindo sua má intenção e grande miséria, é um ato de caridade recomendabilíssimo o dominar-nos , o dizer tão somente o necessário, para não nos deixar em tão má situação.

Temos também obrigação de fazer caridade com nosso talento, se Deus nos deu, usando-o para o ignorante e proporcionando-lhe idéias dignas de um cavaleiro cristão. Esta obra de caridade, em sociedade, apresenta-se com frequência ocasião de praticá-la. O evitar quando alguém diga alguma bobagem e compreendemos que cai em ridículo, aquele que se apodera de sua ignorância e a ponha em relevo com desapiedada burla, o sair ao encontro com mil indústrias, que nunca faltam à pessoa de bom trato para dar outro sentido à conversação, quando se trate de humilhar ou desacreditar alguém, isto é uma obra de caridade muito necessária de praticar-se quando há pessoas prontas que usam toda a travessura de sua imaginação em ver, como um microscópio, os defeitos dos demais, para por-se em evidência e burlar-se deles. O talento nestes indivíduos é como a beleza numa mulher leviana, um mal muito grande para ela e pior para os que a rodeiam.

Muitos crêem que quando uma pessoa é toda boa encontra só o bem nos demais, porque sua bondade não sabe ver nada mau, e tal não existe, porque não é possível ser ágil e tonto ao mesmo tempo; por boa que seja uma pessoa, se tem talento vê muito claro os defeitos dos demais, mas tem caridade para compadecê-los e para desculpá-los no possível.

Caridade é, em sociedade, quando se encontra uma pessoa antipática que ninguém faz caso, que parece que todos fogem dela sem lhe dar um instante de conversação, sobretudo se compreendemos que o isolamento tem por causa a pobreza, ou que não está elegante; pois o mundo é miserável até esse ponto. Queixam-se todos, mas os homens em particular, do luxo das mulheres, que é sua ruína, e, sem embargo, se uma delas apresenta-se numa reunião decentemente vestida, mas muito modesta e simples, isto basta para que aquela noite ninguém faça caso nem se ocupe em favorece-la, que digo, favorece-la! Até evitam no possível em lhe dar as atenções devidas.

Desejo que, filho meu, não sejas néscio, encomendo-te muitíssimo; quando uma pessoa vale, faça-a muito caso e tenha-a muito respeito, o mesmo estando só ou acompanhada, estando elegante ou pobremente vestida, se é rica ou indigente e, sobretudo, se os demais a louvam ou a desprezam, porque em agir assim não é caridade mais que justiça, e o obrar de outra maneira é uma grandíssima miséria que demonstra cabeça vazia e um coração muito ignóbil.

Caridade é, nesses dias em que o mundo se dedica por completo às diversões, como carnaval, etc., dedicar uma lembrança a essas famílias que estão de luto e que o ruído do mundo aumenta sua tristeza. Justo é deixar o passeio e o teatro para ir visita-las, procurando distraí-las um instante de seu sofrimento e proporcionando-lhe assim o consolo de que vejam que nem todos os amigos se esquecem de que elas choram enquanto os demais riem, e se estas famílias são pobres muito mais, porque seguramente a gente do mundo cuidará menos de consolá-las.

Caridade é quando temos multidão de assuntos particulares que nos pede pressa despachar e naqueles momentos chega alguém a nos contar largas histórias de seus sofrimentos, ao vê-lo aflito dominar nossa impaciência e ouvi-lo com afabilidade e doçura, procurando esquecer nossos problemas para ocupar-nos dos seus por violento que nos seja.

Caridade é, e das maiores, quando topamos com um caráter violento e dominante, que está sempre pronto a estourar e cometer grandes faltas, o estar disposto a sofrê-lo e calar sempre, para não ser causa que se exaspere e ofenda a Deus, fazendo mal ao mesmo tempo à sua alma.

Caridade é, quando uma pessoa nos dá motivos de sobra para odiá-la pelo mal que nos vem fazendo, o perdoá-la e pedir a Deus que a perdoe e a ilumine; o não falar a todas horas dela e do prejuízo que nos vem causando, e o tratá-la quando nos encontramos com ela, se não com doçura ao menos com cortesia.

Caridade é estudar os gênios das pessoas que nos rodeiam a fim de ter paz com todas e evitar assim cenas desagradáveis, das quais sempre resulta o ofender a Deus, que é o que sempre devemos evitar.

Numa palavra, filho meu, caridade é chorar com o que chora, gozar com o que goza e dedicar quantos dons de Deus recebemos para seu santo serviço e o serviço de nossos irmãos, buscando sempre os meios de proporcionar consolo em suas penas e remédio em suas necessidades com o mesmo afã com que buscamos remédio para nós mesmos. Esta é a única maneira de poder cumprir o grande mandamento de “Amar ao próximo como a nós mesmos”, a cujo cumprimento vai vinculado, como vimos, a salvação de nossa alma, que consiste em fazer que Deus nos ame nesta vida, para que depois possamos nós amá-lo eternamente na outra.

Bendita seja a caridade! É uma forte cadeia de dulcíssimo amor que,  atando-nos com os pobres nesta vida e confundindo-nos com eles, fará que, cobertos com seus rogos e sofrimentos, possamos entrar no reino dos Céus, com o que teremos recebido deles o cento por um na terra, pelo gozo que nos proporciona o consolá-los, e depois a eles lhes deveremos, como nos foi oferecida, a vida eterna!
(Traduzido para o português do livro “La Voz de una Madre”, de Maria de los Dolores del Pozo y de Mata, Estab, tipográfico de J. Famades, Barcelona, 1895)


Assim se expressou Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre esta virtude:
“I – N. S. Jesus Cristo quis que amássemos ao próximo como Ele nos amou. Decorre daí que os doentes, os fracos, os pobres, os infelizes, têm um direito especial a nosso amor. O que, por sua vez, obriga os poderosos, os ricos, os saudáveis, os felizes, a renunciar a qualquer egoísmo ou orgulho, para servirem com afeto e despretensão, àqueles sobre quem têm superioridade ou vantagem. Esse princípio foi plenamente aplicado na Idade Média. Não conduziu a um igualitarismo louco, mas levou, dentro da sociedade mais aristocrática e hierarquizada que a Europa tenha conhecido, reis e rainhas, príncipes e princesas, a se curvarem reverentes e servirem com carinho a simples leprosos, tidos em horror por todos.

II – Entretanto, a tendência de nossa natureza, afetada pelo pecado original, é outra. Sem a luz da doutrina de Cristo, o homem oprimiria naturalmente os mais fracos, fugiria dos infelizes e teria em horror os doentes. Prova-o a História. Antes de Cristo, a opressão do fraco e o desprezo ao infeliz e ao doente eram a regra geral de que só se excetuava o povo eleito. O amor pleno e desinteressado do próximo só pode medrar onde medra a Igreja, e fenece onde a Igreja é oprimida.

III – A Lei de Cristo é uma lei de Amor. A lei do homem que não é cristão – e portanto pagão – é a lei da força. E assim como aqueles que admiram a Lei do Amor tendem a amar e crer no seu Divino Autor, assim também aqueles que apostatam do Amor para servir à Força tendem a aceitar a apostasia completa, isto é, a renúncia a Cristo, e implicitamente a paganização. Porque não há meio termo: quem não é cristão é pagão.

IV - Um estudo acurado demonstra que o princípio do predomínio da força está na medula do pensamento de Lutero, dos demais pseudo-reformadores e dos enciclopedistas. A despeito de aparências em sentido contrário, é esta a realidade. Desde que a sociedade ocidental rompeu com a Igreja, sua história pode ser descrita, em última análise, como a substituição gradual da Lei do Amor pela da força. E isto não apenas nas relações entre pobres e ricos, poderosos e oprimidos, etc., mas até entre as nações  [1]





[1] in “Legionário’, 23.10.38

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Como São José de Anchieta via a Natureza


No dia 9 de junho comemora-se o dia de São José de Anchieta. Embora não digam explicitamente, a data do Santo tem muita ligação com o movimento ecológico.
Conforme notícia veiculada pelo “jornal do Brasil”, de junho de 1991, no dia dedicado a Anchieta (9 de junho), o nome do Apóstolo do Brasil estaria sendo cogitado naquela época para ser uma espécie de “guia espiritual” da Conferência Mundial sobre o Meio-Ambiente, a Rio-92, ou “Eco-92” como ficou sendo chamada, a se efetivar em 1992. Um dos defensores de tal idéia era o Pe. Luiz Montezzano, vigário de Magé (RJ), o qual afirmava que Anchieta foi o primeiro no Brasil a se preocupar com o meio-ambiente. Parece que a idéia não vingou, nem se fala mais de Anchieta nos meios ecológicos (a não ser alguns religiosos).
Se formos procurar pioneiros nesta área, basta dar uma olhada em qualquer compêndio de história e se verifica que a preocupação de preservar a natureza sempre foi uma idéia latente em nossa sociedade: e pioneiros encontramos muitos no passado. Um exemplo bem frisante temos nos construtores dos famosos castelos medievais, ou das abadias e mosteiros religiosos daquela época, todos eles construídos em locais verdejantes e cheios (ou em meio) de florestas, cujas espécies não somente eram cultivadas, preservadas, mas aperfeiçoadas e difundidas em toda a sociedade. Até nos dias atuais ainda vê-se a profusão de matas que circundam aquelas construções, a maioria enriquecida com melhorias e aperfeiçoamentos botânicos.
E a Companhia de Jesus não poderia deixar de seguir os costumes daquela época, destacando-se Nóbrega e Anchieta. Logo que chegou ao Brasil, o Pe. Anchieta escreveu algumas cartas, nas quais fazia minuciosa descrição “sobre as coisas naturais do Brasil”. Mas, a forma como se encarava a Natureza era completamente diferente do fanático ecologismo moderno: enquanto estes últimos enaltecem a Natureza como se fosse uma deusa digna de adoração, os Jesuítas, pelo contrário, viam tudo em seu devido lugar, isto é, que há na natureza aspectos bons e maus a serem considerados, competindo ao homem aperfeiçoá-la no que lhe for possível.
Segundo Santo Agostinho, seguido pelos Escolásticos, a Natureza reflete os vestígios de Deus. Enquanto os homens e os anjos são imagem e semelhança de Deus, a Natureza é apenas seus vestígios, não se podendo apegar-se à sua beleza e benesse com o sentido de adoração. Foi este erro que levou os povos antigos a adorar animais como gatos, cobras, astros e uma infinidade de seres naturais como se fossem deuses.

São Tomás de Aquino assim expõe a questão:

“O conhecimento das criaturas é necessário não só para o esclarecimento da verdade, como também para eliminar erros, porque os erros a respeito das criaturas desviam-nos muitas vezes da verdade da fé, enquanto se opõem ao nosso verdadeiro conhecimento de Deus. Dá-se isto de muitos modos.

“Primeiro porque os que ignoram a natureza das criaturas ás vezes se pervertem ao constituírem, como causa primeira e como Deus, aquilo que não pode vir senão de outrem e pensam que nenhuma coisa há além das criaturas que vêem, como pensavam os que consideraram Deus um corpo qualquer, dos quais diz a Sagrada Escritura “Reputaram por Deus o fogo, o vento e o ar sutil: o curso dos astros, a imensidade das águas, o sol ou a lua”  (Sab 13, 2).

“Segundo, porque atribuíram a algumas criaturas o que é próprio só de Deus, o que provém também de erros a respeito das criaturas...

“Terceiro, porque se tira algo da virtude divina que opera nas criaturas, quando se ignora a natureza da criatura...

“(...) O erro acerca das criaturas redunda em falsa idéia de Deus e, ao submeter as mentes a quaisquer outras coisas, afasta-se de Deus, para quem a fé as quer encaminhar...”[1]

Numa carta dirigida ao Geral da Companhia de Jesus, Pe. Diogo Laínes, Anchieta comenta demoradamente sobre nossa terra “cheia de coisas... dignas de admiração”.

A fim de transmitir melhor a idéia sobre as novas terras, Anchieta dividiu sua carta em várias partes: inicialmente descreveu dados astronômicos, posição do sol, curso dos astros, etc.; em seguida passou a dissertar sobre as tais “coisas da terra”, dividindo seu relato entre animais aquáticos e terrestres, primeiramente, e depois, entre árvores e pedras. Quer dizer, houve uma ordem, como ordenadas devem ser as coisas bem feitas: primeiro se descreve os seres superiores e depois os de menor importância.

Sobre os animais aquáticos, começa descrevendo o fenômeno do piraquê, e depois fala dos peixes diversos, como o peixe-boi e tantos outros. Não se esquece, porém, dos jacarés, “de tão grande corpulência que podem engolir um homem”, nem tampouco das lontras que “munidas de agudíssimos dentes e unhas atacam às vezes as pessoas”.

Ao descrever os animais terrestres, fala “em primeiro lugar.. dos diversos gêneros de cobras venenosas...  jararacas...  boicininga, isto é, cobra que soa, que tem na cauda um chocalo, uma outra chamada ibiboca”, etc. E tantas eram as cobras que “não se pode viajar sem perigo”.

Outros animais que chamavam a atenção de Anchieta eram os escorpiões, as aranhas, uma das quais “crer-se-ia serem caranguejos, tal é o tamanho do corpo, horrível de ver, “que só o vê-las parece que traz peçonha”. Fala também das abelhas, das formigas e de diversos insetos voadores.

Antes dos animais de trato agradável, Anchieta fala sobre as onças, “de extrema crueldade”, e sobre o tamanduá, a anta, a preguiça, não se esquecendo do malcheiroso gambá. Quanto aos macacos, “em quantidade infinita” (hoje divinizados pelos ecologistas) “são na realidade  bons para se comerem, como com frequência o experimentamos, alimento muito são até para os doentes”.

A descrição continua com veados, tatus, insetos de diversos tipos como moscas e mosquitos peçonhentos, aves diversas, concluindo falando sobre as árvores e pedras preciosas. Somente um espírito sensato como o do Pe. Anchieta poderia discernir que, por detrás de tantas coisas maravilhosas e paradisíacas à primeira vista, se esconde também o lado prosaico. Daí resultando a natureza toda infestada de espinhos, venenos, feiúras, agressões, feras traiçoeiras, insetos peçonhentos e irritantes, ao lado de rosas aromáticas, de animais encantadores, de aves maviosas e belezas inebriantes.

Aprenderão os ecologistas a lição do Pe. Anchieta e passarão a ver a Natureza com outros olhos? Antigamente chamavam as florestas de “inferno verde”; hoje são conhecidas como “paraísos ecológicos”: como é que um inferno se transforma em paraíso tão rápido assim?

Pulgas, piolhos e percevejos

Uma das pragas das matas são os insetos chupadores de sangue. A promiscuidade é responsável por muitas das aflições oriundas de certos flagelos, como por exemplo os insetos parasitos chupadores de sangue humano. Existem várias espécies de piolhos, pulgas, percevejos, carrapatos e outros parasitos que infestam o convívio humano nas florestas. Em geral produzem efeitos terríveis para o homem: causam coceiras e comichões, além de transmitir diversas doenças, dentre as quais a peste bubônica.

São três os tipos de piolhos: o da cabeça, o do corpo e o da virilha. O piolho do corpo como raramente é encontrado na pele, pois prefere esconder-se na roupa, era pouco comum entre os índios de antigamente. Quanto ao piolho da cabeça era mais comum, vivendo em cardume nos fios de cabelo. Tais insetos aumentam consideravelmente em ambientes de intensa promiscuidade e falta de asseio. O piolho da virilha propaga-se muito entre os de vida sexual promíscua, o que é comum entre os indígenas.

Existem mais de 1.600 espécies de pulgas; enquanto que poucas atacam especificamente o homem, todas são transmissoras de doenças. Das pulgas que infernizam a vida dos índios as mais comuns são a pulga do rato e o penetrante bicho-de-pé. As pulgas do rato (“Xenopsylla cheopis”) são encontradas em clima tropical e é transmissora da peste bubônica. É comum encontrar-se referências a bicho-de-pé entre os índios, os quais não os tiram.

Os percevejos são insetos de hábitos noturnos. Durante o dia escondem-se em frestas e gretas de casas ou habitações mal construídas, de madeira ou palha. O incômodo maior do percevejo é sua picada e o mal cheiro que exala quando é esmagado.

Os carrapatos também não produzem maiores danos a não ser o incômodo de sua comichão. Em geral agarram-se tenazmente às suas vítimas. Embora seja observado sua existência preferentemente onde existem animais do campo, como gado bovino, sabe-se que sua origem é nas matas, pois não prolifera em pastagens limpas e bem cuidadas.

Algumas espécies de ácaros parasitam o homem e podem ser vetores de doenças graves. Seus sintomas são também a grande comichão e a sensação de calor quando a vítima se deita para dormir: trata-se da sarna, que não só infesta cães e gatos, mas também o homem.

Ora, o controle profilático de tais insetos só se faz por um meio: asseio sanitário e vida social não promíscua. Como poderiam os nativos das florestas viver sem tais flagelos se conviviam comunitariamente em palhoças, aos montes, dormindo em redes infectas ou no chão, despidos e sem qualquer proteção a não ser o fogo? Um cronista português do século XVI, Gabriel Soares de Souza, descreve como encontrou tal flagelo entre os índios:

“Digamos logo dos mosquitos, a que chamam “nhitinga”... Estes são amigos de chagas, e chupam-lhe a peçonha que; e se vão pôr em qualquer cossadura da pessoa sã, deixam-lhe a peçonha nela, do que se vêm muitas pessoas a encher de boubas.  Estes mosquitos seguem sempre em bandos as índias, que andam nuas, mormente quando andam sujas do seu costume...”

A quantidade dos mosquitos que há entre os índios é proporcional ao tamanho da selva onde moram. Assim, continua Gabriel Soares o seu relato, nomeando-os como “marguis”, “pium”, nhatium-açu”, etc. Detém-se ele mais detalhadamente sobre pulgas e piolhos:

“Pulgas há no Brasil, a que os índios chamam tunguaçu, e nenhuns piolhos do corpo entre a gente branca;  entre os índios se criam alguns nas partes em que dormem, como estão sujas, os quais são compridos com feição de pernas, com os piolhos ladros, e fazem comichão no corpo.

“(...) e que os índios chamam tungas, os quais são pretinhos, pouco maiores que ouções. Criam-se em casas despovoadas, como as pulgas em Portugal, e em casas sujas de negros que as não limpam, e dos brancos que fazem o mesmo, mormente se estão em terra solta e de muito pó, em os quais lugares estes bichos saltam como pulgas nas pernas descalças; mas nos pés é a morada a que eles são mais inclinados, mormente junto das unhas...”[2]

Do que se tem notícia, o único meio usado pelos índios para combater os insetos é o fogo. Este por sua vez causa-lhes problemas nos olhos, pois tendo que se manter sempre aceso à noite o excesso da fumaça é prejudicial. Os insetos, como piolhos, pulgas e percevejos, porém, proliferam no próprio corpo humano, atraídos pela sujeira ou mesmo se aculturando no ambiente em que moram os agrupamentos humanos. Esta é uma das razões que explicam as constantes migrações de tribos: dentro de pouco tempo uma taba torna-se um lugar insuportável de se viver, e a única cultura que lá fica é a destes insetos.






[1] Suma Contra os Gentios, Liv II, cap. III
[2]  “Tratado Descritivo do Brasil em 1587” – Gabriel Soares de Sousa – Typografia José Ignácio da Silva, 1879, págs. 222 e 253

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O POVO AINDA GOSTA TANTO DA MONARQUIA COMO OUTRORA?


Após mais de dois séculos da queda da Bastilha (223 anos!), o povo ainda gosta da monarquia. Apesar da rainha inglesa não exercer função pública de regência política direta, cargo hoje do primeiro-ministro. Enquanto a mídia procura tentar esconder o esplendor da festa feita pelo povo inglês,  mostrando, por exemplo,  cenas do rei da Espanha, no Brasil, de muletas, com comentários sobre escândalo em que o mesmo esteve envolvido, de outro lado o rumor republicano é tão fraco que quase não  se ouve seu som. O brado de revolta republicano hoje é tão antiquado quanto o do socialismo.
Quantas monarquias ainda restam no mundo? São um pouco mais de 40. Na Europa, além de monarquias propriamente ditas como as da Inglaterra, Espanha, Suécia, Holanda, Dinamarca, Noruega e Bélgica, há ainda alguns principados e ducados;  Na Ásia, só resta o império do  Japão;  No Oriente Médio temos a Arábia Saudita , Brunei, Omã, Qatar, Jordânia e Marrocos, algumas com tronos claudicantes. Pelo ímpeto com que se iniciou a derrubada dos tronos há mais de 2 séculos, previa-se que não restaria mais nenhuma monarquia no final do século XX, nem sequer casas reais.
As nações que mais derrubaram  tronos foram as europeias, lideradas pela França como fruto da Revolução Francesa. Antes disso, as nações se identificavam como católicas e monarcas; hoje, as nações que ainda podem se dizer católicas e monarcas na Europa são a Espanha e a Bélgica, pois todas as demais monarquias europeias são protestantes.
O brilho da comemoração dos 60 anos de governo da Rainha Elisabeth II vem chamando a atenção do mundo todo.  Demonstra quanto o povo inglês ainda gosta da monarquia. Do mesmo modo que na França no século XVIII, como o atestam vários historiadores respeitáveis.
 

O rei e o amor do povo pela Monarquia

Este fato não é só constatado hoje em dia com relação à monarquia inglesa, mas também no passado quando se iniciou o ciclo das revoltas republicadas com a Revolução Francesa. Segue abaixo um trecho de obra que fala sobre o assunto:

No alto dessa pirâmide social, quase diria, desse magnífico palácio de graça e distinção que foi a sociedade francesa anterior à Revolução, encontrava-se o Rei.

“Defensor da Igreja – escreve o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira -, primeiro gentil-homem de seu Reino, reunindo exponencialmente em sua pessoa toda a distinção e requinte de uma Nobreza que por sua vez é o expoente da própria nação, o Rei de França encarnava todos os ideais de uma sociedade em que a Fé, a tradição, a destilação de valores através de um processo formativo de base familiar, realizado durante séculos pelas famílias de escol, eram elementos dos mais essenciais das instituições, geralmente aceitos e prezados pela psicologia coletiva.

“Em relação a seu Rei, todo francês experimentava um sentimento tão vivo de enlevo, de veneração e de ternura, que nos é difícil hoje em dia imaginá-lo. “Um rei – escrevia em 1790 o Cardeal de Tencin – seja ele qual for, é para os soldados e para o povo o que era a Arca da Aliança para os hebreus; sua simples presença já anunciava o sucesso.

“O conhecido escritor e filósofo Joseph de Maistre, ao comentar as cartas de um viajante inglês que percorreu a França naquela época, transmite algo desse sentimento.

“Ninguém ignora que este povo fosse talvez o mais monarquista de toda a Europa, que o amor que ele tinha pelos seus reis era o principal traço de seu caráter, aquele do qual se orgulhava e que se repetia sob todas as formas possíveis.  (..) Um viajante inglês (...) nos descreve muito bem esta característica:

“O amor e a afeição do francês, diz ele, pela pessoa de seus reis constitui uma parte essencial e marcante do caráter nacional (...) A palavra rei suscita no  espírito de um francês idéias benfazejas de reconhecimento e amor, ao mesmo tempo que de poder, grandeza e felicidade.

“O entusiasmo do povo francês pela monarquia e pelos membros da Família Real fazia com que a magnificência da Corte e o luxo dos palácios fizessem parte do orgulho nacional.

“O povo – escreve Lenôtre – sentia-se vaidoso em obedecer a seus senhores, em comparação dos quais todos os demais monarcas da Europa ou da Ásia não passavam de “Reis de Província”. Orgulhava-se do incontestável prestígio desta augusta família, à qual estavam ligados seus destinos. Orgulhava-se não pouco de que a Corte da França fosse suntuosa, ou que o palácio de Versailles fosse o mais admirado do mundo.

“Para a Corte francesa, o esplendor é indispensável. E não é a vaidade dos príncipes, mas a vaidade do povo que o torna necessário”...

 (“Despreocupados... Rumo á Guilhotina” – João S. Clá Dias – págs. 11/20)

 Quando o governo francês, em seu afã republicano, comemorou os 200 anos da queda da Bastilha, em 1989, fez oficialmente um convite à Rainha da Inglaterra para comparecer ao evento. Muito sensatamente a Rainha recusou, pois não poderia se regozijar com uma festa que homenageasse assassínios e queda de trono.  Um jornalista criticou o gesto da rainha alegando que lá também tinha havido no passado uma revolução que destronou um rei sangrentamente. Sim, mas ninguém fez festa por causa disso... Quer dizer, assim como na França (e alhures) o povo ama seus reis.





 




sábado, 2 de junho de 2012

VII Encontro Mundial das Famílias



Está ocorrendo na cidade Milão, na Itália, de 30 de maio a 3 de junho, o VII Encontro Mundial das Familias, um acontecimento de alcance midiático de ressonância internacional. Informa-se que estarão presentes ao mesmo cerca de 1.500 jornalistas provenientes de toda parte do mundo, além de 40 emissoras de TV. Lá estarão representantes de mais de 24 países. A abertura do evento se deu no dia de Pentecostes, com a celebração eucarística sendo presidida pelo Cardeal Angelo Scola, com a participação de 5 mil voluntarios. Bento XVI também está presente a este grande evento para a Igreja.

Na oportunidade, declarou o Cardeal Scola que “é um dom extraordinário que o Santo Padre venha por três días, e isto representa, evidentemente, uma ocasião extraordinária para reincrementar a fé e a vida cristã, que tanto necesitamos.” O Papa chegou a Milão na sexta-feira à tarde, saudando a multidão na praça do Duomo. À noite do mesmo assistiu a um concertó no Teatro de la Scala. No sábado, dia 2 de junho, Sua Santidade participou de um encontro com religiosos e religiosas, os quais se preparam para receber a confirmação de seu estado religioso, e pela tarde estará com as autoridades. Após intensa programação, o Papa Bento XVI retornará ao Vaticano no domingo, dia 3, à tarde.

EM MILÃO, PAPA PEDE PELAS FAMÍLIAS

MILÃO, 01 Jun. 12 / 04:21 pm (ACI) - O Papa Bento XVI chegou a Milão na tarde desta sexta-feira, 1, onde participa do VII Encontro Mundial das Famílias. Ele foi recebido pelo Arcebispo de Milão, Cardeal Angelo Scola, pelo Ministro Andrea Riccardi e outras autoridades presentes. Em seu discurso Bento XVI pediu a solidariedade de todos para com as famílias desfavorecidas do mundo inteiro, especialmente aquelas atingidas pela crise financeira mundial e as emergências humanitárias.

“Estou contente de estar hoje aqui em meio a vós e agradeço a Deus, que me ofereceu a oportunidade de visitar vossa ilustre cidade”, disse.

“Dirijo uma particular saudação aos representantes das famílias – provenientes de todo mundo – que participam do VII Encontro Mundial. Um pensamento afetuoso dirijo, em seguida, àqueles que necessitam de ajuda e conforto e estão aflitos por causa das várias preocupações: as pessoas sozinhas ou em dificuldade, os desempregados, os doentes, os carcerários, aqueles que não tem uma casa ou não tem a possibilidade de viver decentemente”.

“Que não falte a nenhum desses nossos irmãos e irmãs a solidariedade constante da coletividade. A este respeito, congratulo aquilo que fez e continua fazendo a Diocese de Milão para ir concretamente ao encontro das necessidades das famílias mais atingidas pela crise econômica e financeira, e pelo seu pronto atendimento, junto a toda
Igreja e a sociedade civil italiana, ao socorrer as famílias da região de Emilia Romagna, atingidas pelo terremoto, que estão em nosso coração e em nossa oração e pelas quais eu convido todos, mais uma vez, a uma generosa solidariedade”.

“Queridos irmãos e irmãs, obrigado mais uma vez por vosso acolhimento! Confio-vos à proteção da
Virgem Maria, que, da mais alta torre do Duomo, maternalmente vigia os dias e as noites dessa cidade. A todos vós, que deixo um grande abraço, dou a minha afetuosa benção”, concluiu o Papa no seu discurso na Praça Duomo de Milão.

Esta noite, o Santo Padre assiste, no "Teatro alla Scala" de Milão, a um concerto em sua honra oferecido também às delegações oficiais deste VII Encontro Mundial das Famílias.

Dom Petrini fala sobre como os fiéis vivem o Encontro de Milão

Eis o texto da entrevista concecida por Dom Petrini à Gaudium Press.

http://www.arautos.org/noticias/37419/Dom-Petrini-fala-sobre-como-os-fieis-vivem-o-Encontro-de-Milao.html

Milão (Quinta-feira, 31-05-2012, Gaudium Press) Participando do Encontro Mundial das Famílias, que acontece na cidade de Milão, na Itália, os bispos do Brasil declararam que a família brasileira pode levar um belo e particular testemunho ao mundo ocidental.

No entanto, segundo eles, na própria realidade ela deve enfrentar o desafio da secularização, e também as mudanças da lei que podem levar ao indiferentismo nas pessoas da própria natureza da família.

Neste sentido, os prelados salientam que a lei não basta, o que vale mais é a formação das pessoas. Porque o futuro e a força estão na consciência dos próprios fiéis que podem ser exemplo de contraposição das tendências seculares.

Hoje, a Gaudium Press falou com Dom João Carlos Petrini, bispo de Camaçari (BA) e presidente da Comissão Vida e Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sobre como os fiéis vivem o Encontro em Milão.

Gaudium Press - Quais são suas primeiras impressões sobre o Encontro Mundial das Famílias?

Dom Petrini - O que mais impressiona são as pessoas que chegam de diversos países. São 135 países representados. Há uma facilidade do diálogo. Então, impressiona muito bem como no fundo esta realidade católica una pessoas tão diferentes. História, cultura, circunstâncias de vida. Prevalece este sentimento de unidade que deixa sempre as pessoas cheias de admiração e há também o efeito de um grande consolo. Não estamos sós, há muita gente também em outras partes do mundo que está fazendo esse caminho de fé, mas também de batalha para não perder a vida da família em circunstâncias às vezes muito hostis.

GP - De onde e quais são as famílias provenientes do Brasil?

Dom Petrini - Há famílias um pouco de todo o Brasil, principalmente do sul, onde grandes movimentos familiares são talvez mais organizados. As zonas do Brasil onde há mais recursos que tornam mais fácil realizar uma viagem longa.

GP- As famílias mais ricas ajudaram as mais pobres a participarem?

Dom Petrini - Certamente sempre acontece isto. Um núcleo, um grupo que se organiza, há sempre alguém que diz: eu não posso. No momento estou sem recursos porque não trabalho há três meses, etc. Em grupo, geralmente há esta facilidade de recolher de cada um um pouco para que tenham possibilidade de participar. É um costume belíssimo da Igreja católica que se renova em circunstâncias.

Milão por poucos dias tornou-se uma capital das famílias. A família brasileira como pode contribuir para a família ambrosiana e não somente ela?

A característica da família brasileira é que é uma família muito alegre. O brasileiro em geral é o tipo humano cheio de esperança, de iniciativa, de criatividade, que não pára diante de uma dificuldade. Isto na família se torna muito importante, porque a família é feita de tantas expectativas, de tantas esperanças, de tantas alegrias de cotidiano, também de pequenos dramas. É importante no dia de hoje, ter este olhar positivo também diante de dificuldades e dramas. Porque creio que a cultura na qual vivemos não é capaz de conviver com os dramas, tende a não olhar para eles, de ignorá-los, de substituí-los com um modo mais banal. De viver vendo passar o tempo, sem pensar nas dificuldades. Tenho a impressão que também no Brasil esta realidade mundial tenha a sua importância, porém há esta característica do espírito brasileiro que é muito diferente. Eu noto que na Europa há uma tendência a se lamentar. A se lamentar de tudo, das circunstâncias, da vida, da família, do clima, de tudo. Como uma doença em fundo, como se o olhar se concentrasse somente em aspectos menos positivos, menos belos do que a realidades. A família brasileira pode contribuir no sentido da positividade quase espontânea. Depois, quando encontra Jesus Cristo, dá uma verdadeira explosão de vida, de cultura, de atenção pelo outro. A esperança que é capaz de atravessar também as dificuldades.

GP - O que deseja ver como fruto deste encontro?

Dom Petrini - A minha esperança é que o tema da relação entre o trabalho e a família seja de fundamental importância. É muito pouco sentido. Começa a ser mais sentido por toda a sociedade e também pela comunidade cristã. Às vezes, por ingenuidade perde coisas importantes. Uma pessoa deve trabalhar e fica fora de casa quinze horas por dia e depois de um tempo não se dá conta que é um estranho para seu filho. O que quer dizer: Se não se pensa um pouco nestas situações acaba criando problemas previstos, sem buscar uma resposta adequada. Certamente a concentração entre trabalho e família é de excepcional importância. Que o trabalho se torna uma idolatria. É verdade que é preciso trabalhar, porque é preciso ganhar dinheiro. É necessário para manter a família. É também verdade que às vezes se exagera muito. Porque muitas vezes não há um olhar equilibrado sobre certas necessidades. Quem sabe, um dos dois poderia trabalhar menos, dedicar-se mais às crianças que estão crescendo. Creio que uma grande contribuição deste VII Congresso Mundial das Famílias seja uma ajuda para pensar nesta realidade do trabalho e na relação da família, a procriação dos filhos, a convivência do casal que não são prejudicados como aparece no cotidiano da família.

O tema da festa também é muito importante porque a família é capaz de alegrar-se junto como no afeto que vive, na reciprocidade da dedicação. Um motivo para fazer festa certamente é uma família mais alegre que terá uma história mais longa. Porque se faz sempre festa. Quando os camponeses terminavam a colheita, se fazia festa de agradecimento. Havia o trabalho de quem tinha plantado, semeado. Havia também a chuva e o sol que vieram gratuitamente. Então havia um senso de gratidão, de uma parte se olhava o trabalho feito, mas do outro, a graça de Deus que gerou tantos bens. Então a ideia de festa é associada a uma gratidão por alguma coisa de belo e grande que aconteceu. Na vida de família pode acontecer algo parecido. Há o empenho do homem para ser fiel à sua mulher, para ocupar-se de seus filhos, mas a experiência de felicidade que se pode viver na família é tão grande que não é o fruto do próprio empenho, isto é mais, é a graça de Deus. Fazer festa, agradecer ao Senhor, ir juntos à missa em clima de oração é certamente um fato importante porque isto é que faz aparecer aos olhos de todos como algo grande que vale a pena ser vivido. Algo que me ajuda porque gastamos menos que é um modo um pouco esquálido. A grandeza da família tem a sua medida.

GP - O olhar brasileiro sobre a relação família-trabalho-festa?

Dom Petrini - Eu diria que o brasileiro é muito propenso para a festa. Talvez mais para a festa que para o trabalho por circunstâncias históricas que não vale a pena recordar. Certamente a festa caracteriza um pouco a alma brasileira. O perigo é que a festa acabe sendo fora da família. Se o espírito brasileiro é que ama a festa, então que a festa seja amada na família. A festa do afeto, da gratuidade, da estima recíproca. A vida que se desenvolve no ventre materno e se torna um verdadeiro milagre. É preciso ter olhos para ver as razões da festa na família.

GP - Em quais projetos está trabalhando a Comissão para a Vida e a Família que o senhor dirige na Conferência Episcopal Brasileira? Como se prepara para o Ano da Fé?

Dom Petrini - Nós temos três grandes projetos. Em primeiro lugar a formação. Porque na realidade cultural se corre sempre o risco de estar muitos passos atrás. A vida da família é muito ligada àquela de nossos avós, pais. O ponto de encontro da família como sacramento e a realidade atual com todas as complexidades e dificuldades do mundo de hoje. Por isso oferecemos muitos momentos de estudo. Uma iniciativa que se chama que tentamos difundir em toda a família. Também outras iniciativas que vão nesta direção. Ajudar principalmente as jovens gerações a entenderem melhor o que é a família cristã, quais são as características e valores específicos do Sacramento e os vários aspectos da vida da família.

Um outro compromisso que temos é o de fazer diversas famílias cristãs de vida fraterna. Não que uma família seja isolada nos diversos desafios deste tempo. Mas cultive sistematicamente um pouco a amizade com as famílias com as quais compartilha o caminho da fé de rezar, de ler o Evangelho, mas também de dividir as preocupações, as esperanças, o amor em modo tal que a família se sinta acompanhada por outras famílias e portanto tenha menos ocasiões de desânimo, de desconforto.

O nosso terceiro compromisso é construir as associações das famílias que possam representar a família não como a Igreja que fala, não como a pastoral de dialogar com os poderes públicos, mas que se reúnem para defender os próprios interesses. Que poderão reunir estas associações das famílias as pessoas que têm no coração a família, mas não estão interessadas em estar na pastoral da família. Então, que haja instrumentos civis para poder dialogar. É necessário preparar uma realidade que tenha, do ponto de vista civil, a sua dignidade e existência com as pessoas jurídicas.

Nós vemos o Ano da Fé como uma retomada do Concílio Vaticano II, não por acaso ele inicia no dia do 50º aniversário do Concílio, mas também os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica. Então, o olhar da fé sobre todos esses 50 anos foram colocados em movimento também às vezes com os conflitos, pontos de vista exagerados. Porém, o olhar da fé que possa ser importante e o Espírito Santo que guia a Igreja. Que está também na origem do Concílio. Portanto, podemos tentar entender o percurso que o espírito cristão requer neste tempo. A fé é sempre a mesma, mas os desafios mudam a todo instante. Então, é preciso buscar a verdade para sermos portadores da tradição da Igreja. Não como pessoas que vivem fora do mundo, do tempo e do espaço, mas realmente atentos aos desafios de hoje. (BD)

Anna Artymiak

ENTREVISTA DE DOM CARLOS PETRINI Á CANÇÃO NOVA


O  PAPA EM MILÃO



Site oficial do VII Encontro das Famílias
http://www.family2012.com/pt/

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Papel do Estado e do invidíduo numa sociedade orgânica


 
O tema acima nos veio à mente a propósito das inúmeras medidas, todas de caráter socialista ou socializantes, que os governos europeus vêm tomando nos últimos dias a fim de superar a crise econômica e financeira que lhes assalta até o momento. A crise atual é decorrente de um amontoado de leis que dão ao Estado prerrogativas cada vez mais absorventes de toda a sociedade. Para comprovar que o socialismo está na base desta crise, basta lembrarmos que as principais nações que a sofrem têm forte influência (ou são governadas) por partidos socialistas (No caso, especialmente a Espanha e a Grécia: a primeira, vítima de vários anos de domínio do PS, e a última que é ainda governada por eles). A idéia do “Estado Previdenciário”, muito cara ao PS europeu, está levando aqueles países à falência...

Mas a mentalidade que domina a Europa está bastante disseminada em todas as outras nações do mundo. É muito comum nos dias atuais a ideia de que o Governo, ou o Estado, deve resolver todos os problemas sociais. Com base nessa premissa, todas, ou quase todas, as constituições modernas elegem o Estado como senhor absoluto das vidas dos cidadãos. Nessas constituições consta a consigna “compete ao Estado”, seguida de atribuições verdadeiramente extrapolativas das funções de um regime político ou de um Estado organizado.  “Compete ao Estado...”, dizem, resolver todos os problemas de saúde, de educação, de trabalho, enfim, tudo o que diz respeito ao bem estar da população. E chega a tal ponto que o programa paradigmático dos políticos modernos consta de metas utópicas e até demagógicas, como alguns deles que pretendem, por exemplo, erradicar a pobreza ou a miséria.

Para que se entenda como esta ideia está enraizada em nossa população, vamos analisar o texto abaixo, extraído de uma obra de Amélia Rodrigues, escritora católica baiana falecida no início do século XX.  Trata-se de um fato tirado do conto “Mestra e Mãe” , no qual ela mostra uma personagem como modelo de exemplar professora, uma verdadeira “mãe” nos cuidados com suas pupilas. O debate abaixo surgiu por ocasião da construção da escola do lugarejo imaginado pela escritora, quando a Autora pôs em destaque o choque entre duas mentalidades:  a estatólatra[1] (de um comerciante do lugar),  que julga o Estado como pairando superior a todos os cidadãos, e a da sociedade orgânica (defendida pelo pároco, que representa a voz da Igreja).

O pároco chama-se Padre Martins, e o comerciante Sr. Botelho.

“Quando se fez encomenda de vidraças para as janelas ao Sr. Botelho, que sempre andava em viagens para a capital, saiu-se ele com uma observação: - que deviam fazer economias. Vidraças era luxo inteiramente dispensável.

O padre Martins franzia a testa. O Sr. Botelho pareceu-lhe pequeno, do tamanho de um mosquito, com aquela avareza.

- Não é luxo, meu caro amigo. Diga-me o que há de fazer durante as aulas, quando a chuva açoitar? Ou queremos escola ou não a queremos. Se queremos, que seja tão completa quanto nos for possível.  Ou então não façamos nada. Que diria o Sr. de um alfaiate que lhe encurtasse as mangas ao casaco para poupar-lhe um pedaço de pano? Que era idiota, sem dúvida nenhuma. E eu ainda tenho planos. Há de ver, se Deus nos der vida e saúde, como isto irá ficando bonito pouco a pouco.

- Mas o que estamos fazendo já é bastante, é mesmo demasiado para escola de aldeia.

- Escola de aldeia! Ora, valha-nos Deus. Então as crianças da aldeia valem menos que as da cidade? Os sertanejos não têm os mesmos deveres a cumprir, reclama-se menos deles que dos outros? Não. Portanto, as exigências do ensino devem ser igualmente atendidas em todos os lugares, tanto quanto isso for possível. É da mais elementar justiça.

- Sim, quando o governo é quem cuida dele . Aqui o caso é outro. Que o estado faça e deva fazer liberalidades: a iniciativa privada não é obrigada a tanto.

Já não era a primeira vez que o Sr. Botelho se manifestava contra o que chamava – os desperdícios do padre Martins. Este passou a mão pela cabeleira branca, sinal nele de que precisava apelar para a paciência.

- Diante do serviço da pátria, Sr. Botelho, tanta obrigação tem o governo como o cidadão, e quando o cidadão pode mais deve fazer mais. Ainda mesmo – vou mais longe – ainda mesmo que eu saiba que o governo pode e não quer, se estiver ao meu alcance o melhoramento exigido devo fazê-lo, devo tentá-lo, sob pena de não ser patriota. Uma comparação. Se uma mulher desnaturada abandonar o filhinho na estrada, deverá o Sr. deixá-lo morrer lá, porque a mãe, que era a única obrigada a criá-lo, o desampara? Com certeza não. Pois é o mesmo, na minha humilde opinião. Quem nada pode fazer não é obrigado a coisa alguma, mas quem pode, deve contribuir no limite de suas forças para o bem geral, ou então não é digno do nome de cidadão. Será um parasita que só aproveita e nada produz.

- Os particulares pagam impostos para ter escolas e etc., Sr. Cura. Logo, já fizeram o seu dever, produzem, e terão somente que exigir.

- isto é um sofisma anti-patriótico. A renda do país não chega para prover todas as necessidades do ensino, sabemos disso; e, porque o rico paga um imposto, deve cruzar os braços indiferente, deve passar descuidoso, aqui ou acolá, pelas escolas paupérrimas, desprovidas de tudo, as escolas, os ninhos dos cidadãos futuros, - donde sairia uma geração nova de brasileiros dignos de sua pátria se as elevassem à altura de sua missão, - esperando que o governo faça tudo?... Não, meu amigo, isso não é amar o Brasil! Imagine que cada ricaço protegia a escola de sua freguesia, que se interessava pelo progresso dela, que dotava-a de melhoramentos... Uma coisa belíssima! Daqui a dez anos estaria mudada a face do país.

O Sr. Botelho não ficou convencido. Vão lá convencer a coruja a que adeje de dia pelas cumeadas brilhantes das montanhas! O Sr. Botelho era um egoísta. Só olhava para dentro do bolso. Ele, sua família e acabou-se. Como por vaidade ou para não fazer figura feia tinha dado alguma coisa para a edificação da escola, receava que a despesa fosse longe e que se visse obrigado a desembolsar ainda.

Porém não teve remédio senão aceitar a encomenda das vidraças, com intenção feita de cobrar mais do que lhe custassem. E o Sr. Botelho era um homem bem apessoado, bonito, olhar altivo e seguro, que não tinha cara de velhaco e passava por homem de bem!”



Como se viu acima, a escritora caracterizou bem o homem fanático pela supremacia do Estado sobre o indivíduo, verdadeiro estatólatra. O Sr. Botelho é um comerciante, um homem que só pensa em si, no dinheiro, um sujeito securitário que não quer dar do que é seu para ajudar a comunidade onde vive (a não ser o suficiente para viver) – para ele, seu imposto deve bastar para o Estado resolver tudo, como num passe de mágica! Eis a mentalidade do homem moderno... que está resumida nessa frase do comerciante: “Os particulares pagam impostos para ter escolas e etc., Sr. Cura. Logo, já fizeram o seu dever, produzem, e terão somente que exigir”.

Com base neste pensamento, vamos exigir que o governo não somente construa escolas, mas também hospitais, creches, transportes, estradas, ruas, esgotos sanitários, enfim, tudo aquilo que se exige para vivermos em sociedade. E, com base nesta obrigatoriedade do Estado provir a tudo, cruzemos os braços e esperemos que as providências sejam tomadas!



O Princípio de Subsidiariedade



Não é essa a filosofia da verdadeira convivência política e social. O princípio defendido pela Igreja chama-se “Princípio de Subsidiariedade”, pelo qual o governo só deve intervir onde o cidadão, seja por si mesmo ou através de sua família e de suas organizações sociais, não puder realizar. O governo subsidia, auxilia, socorre, é elemento suplementar e organizador da sociedade, e não o único e exclusivo responsável pela solução dos problemas sociais. Foi este erro que gerou o estado socialista, absorvente e que suprimiu as liberdades individuais no decorrer do século passado. É o mesmo erro que está levando a Europa para a bancarrota generalizada, junto à qual irão os Estados Unidos da América e todo o resto do mundo civilizado se não forem tomadas medidas que façam com que o Estado intervenha menos e deixe a sociedade por si mesma solucionar seus problemas.

Este princípio (da subsidiariedade do Estado) foi exposto na Encíclica “Quadragésimo Anno”, do Papa Pio XI (de 15.5.1931), da seguinte forma:

“...assim, como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem realizar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los.

“...Persuadam-se todos os que governam de quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este princípio da função “supletiva” dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridades terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação”.



A mesma doutrina foi defendida por Pio XII:



“...Sua função [do Estado], sua magnífica função é, pelo contrário, favorecer, auxiliar, promover a íntima coalizão, a cooperação ativa no sentido de uma unidade mais elevada de membros que, ao mesmo tempo que respeitam sua subordinação ao fim do Estado, provêm do melhor modo ao bem de toda a comunidade, precisamente na medida em que conservam e desenvolvem seu caráter particular e natural. Nem o indivíduo, nem a família devem ser absorvidos pelo Estado. Cada um conserva e deve conservar a própria liberdade de movimentos, desde que ela não crie o risco de causar prejuízo ao bem comum.[2]



[1] “Estatolatria” – neologismo surgido recentemente: veneração, adoração pelo poder do Estado.
[2] Discurso ao Congresso Internacional das Ciências Administrativas. 5.8.1950.