sábado, 27 de novembro de 2021

A ALMA CULPADA DIANTE DO JUIZ DIVINO

 



Omnes nos manifestari oportet ante tribunal Christi – “Todos nós devemos manifestar-nos diante do tribunal de Cristo” (2 Cor. 5, 10).

Sumário. Têm-se visto criminosos banhados em suor frio, na presença de um juiz terrestre. Que maior terror não deve sentir o pecador diante do tribunal de Jesus Cristo? Ó céus! Verá acima de si o Juiz irritado, por baixo o inferno aberto, a um lado os pecados que o acusam, ao outro os demônios armados para o seu suplício. O Bem-aventurado Juvenal Ancina, impressionado por esta grande verdade, resolveu deixar o mundo e fez-se religioso. Meu irmão, o que farás? Continuarás a viver em teu estado de tibieza?

I. É sentimento comum entre os teólogos, que o juízo particular se faz logo que o homem expira, e que no próprio lugar onde a alma se separa do corpo, aí é julgada por Jesus Cristo, que não manda alguém em seu lugar, mas vem ele mesmo para a julgar. Qual não será o espanto daquele que, vendo pela primeira vez seu Redentor, o vir indignado!

Ante faciem indignationis eius quis stabit? (1) – “Diante da face de sua indignação quem é que poderá subsistir?” Este pensamento causava tal estremecimento ao Padre Luiz Dupont, que fazia tremer consigo a cela onde se achava. O Bem-aventurado Juvenal Ancina, ouvindo cantar o Dies irae, e pensando no terror que se há de apoderar da alma ao comparecer em juízo, resolveu deixar o mundo, o que efetivamente fez. – O aspecto do Juiz indignado será o anúncio da condenação: Indignatio regis, nuntii mortis (2). Segundo São Bernardo, será maior sofrimento para a alma ver Jesus Cristo indignado do que estar no inferno.

Têm-se visto criminosos banhados em suor frio na presença de um juiz terrestre. Pison, comparecendo no senado em traje de réu, sentiu tamanha confusão, que a si próprio se deu a morte. Que pena não é para um filho ou para um vassalo ver seu pai ou seu príncipe indignado! Que maior mágoa não deve sentir a alma à vista de Jesus Cristo, a quem desprezou durante toda a vida! Videbunt in quem transfixerunt (3) – “Verão aquele a quem traspassaram”. Esse Cordeiro, tão paciente durante a vida do pecador, então mostrar-se-lhe-á irritado, sem esperança de se deixar aplacar. Pelo que a alma pedirá às montanhas que a esmaguem e a furtem às iras do Cordeiro indignado: Montes, cadite super nos, abscondite nos ab ira Agni (4).

II. Opinam os Doutores que o divino Juiz virá julgar a alma em forma humana, e portanto com as mesmas chagas com que deixou a terra. Estas chagas serão motivo de consolação para os justos, mas que terror e espanto não inspirarão ao pecador! A vista do Homem-Deus, que, morreu para o salvar, far-lhe-á sentir mais vivamente a sua ingratidão.

Quando José do Egito disse a seus irmãos: Eu sou José, a quem vendestes, diz a Escritura, que pelo terror perderam a fala e ficaram calados (5). Que responderá, pois, o pecador a Jesus Cristo? Terá coragem de lhe pedir misericórdia, quando, primeiro que tudo, tem de lhe dar contas do abuso que fez da misericórdia? Que fará então? Pergunta Santo Agostinho, para onde fugirá o miserável, quando vir acima de si o Juiz irritado, por baixo o inferno aberto, a um lado os pecados que o acusam, a outro os demônios armados para execução do suplício e dentro de si os remorsos de sua consciência?

Ó meu Jesus, quero chamar-Vos sempre Jesus; vosso nome me consola e me anima, recordando-me que sois o Salvador que morreu para me salvar. Aqui me tendes a vossos pés; confesso que mereci o inferno tantas vezes quantas Vos ofendi pelo pecado mortal. Sou indigno de perdão, mas Vós morrestes para me perdoar. Ah, meu Jesus, perdoai-me antes de virdes a julgar-me. Então não poderei implorar a vossa misericórdia; mas agora posso pedi-la e espero-a. Então vossas chagas me inspirarão terror, agora insipiram-me confiança. Meu querido Redentor, acima de todos os males, arrependo-me de ter ofendido a vossa bondade infinita. Estou resolvido, antes, a aceitar todas as penas, todos os sacrifícios, do que vir a perder a vossa graça. Amo-Vos de todo o coração. Tende piedade de mim, segundo a vossa grande misericórdia: Miserere mei secundum magnam misericordiam tuam (6). – Ó Maria, Mãe de misericórdia, Advogada dos pecadores, obtentede-me uma grande dor dos meus pecados, o perdão e a perseverança no amor divino. Amo-vos, ó minha Rainha, e em vós ponho minha confiança. (II 108.)

1. Nah. 1, 6.
2. Prov. 16, 14.
3. Io. 19, 37,
4. Apoc. 6, 16.
5. Gen. 45, 4.
6. Ps. 50, 1.

(Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II – Santo Afonso)

 


quarta-feira, 10 de novembro de 2021

SÃO LEÃO MAGNO E O PODER DE REGÊNCIA DA IGREJA

 



A 10 de novembro celebra-se a festa de São Leão Magno, o Papa que enfrentou o terrível Átila. 

Nos primórdios da Igreja já era a patente o poder de regência d’Ela, inclusive sobrepujando o poder temporal em alguns casos.

O poder temporal começa a respeitar o divino – O imperador Teodósio não resiste a Santo Ambrósio que o impede de entrar na igreja

Este fato é resumidamente narrado por Dr. Plinio Corrêa de Oliveira em uma de suas conferências chamadas de “Santo do Dia”:

 “Há fatos na vida da Igreja que ficam como símbolos para todos os séculos da história eclesiástica.

Santo Ambrósio teve um atrito com o imperador Teodósio, que era um dos maiores magnatas, dos homens mais influentes de seu tempo. E isto a propósito de questões de seu pecado público. No momento em que Teodósio ia entrar na igreja, encontrou Santo Ambrósio com todo o seu clero, do lado de fora, proibindo-o. E enfrentando o imperador, este se arrependeu e se humilhou.

Essa atitude do poder espiritual em relação ao poder temporal lembra um princípio ao qual devemos ser sumamente afeitos: todas as grandezas humanas, sejam elas de que natureza e título forem, por mais que sejam exaltadas e glorificadas na sociedade civil, se se apresentam com vistas a enfrentarem a glória de Deus, é missão do clero humilhá-las.

É missão do clero, quando essas potências humanas não andam bem, enfrentá-las e colocá-las em seu devido lugar. É missão do clero, por esta forma, tornar claro que todas as coisas humanas, por mais altas que sejam, em face de Deus, não são nada! Em face da eternidade, elas passam e se reduzem a nada! E que, afinal de contas, a única coisa que fica sempre, que vale, e está acima de tudo, é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, ou seja a Igreja de Deus”. [1]

 

A regência do poder temporal começa a ruir quando cresce o da Igreja

As várias invasões bárbaras, que terminaram por abalar aquele império em seus alicerces, não conseguiram demover das populações cristãs a verdadeira doutrina da regência divina entre os homens. Os bárbaros entravam e ficavam na Europa, destruíam cidades, acabavam com reinados e dinastias, mas, logo, logo, surgia entre eles uma nova elite já convertida ao Cristianismo e com idéias completamente diferentes a respeito do governo humano. Em poucos séculos já havia sido feita uma enorme troca de poderes entre as elites européias, e os católicos passaram a dominar todos os reinos. Aplicava-se então a doutrina do Sermão da Montanha de que “os mansos possuirão a terra”. De início, ainda cheios de vícios trazidos de suas terras bárbaras, mas, com o passar do tempo, a Igreja foi aos poucos transformando-os, dando lugar a uma das elites mais bem estruturadas e orgânicas de todos os tempos.

Havia também uma crescente ascensão do princípio da boa regência na sociedade romana por causa da grande influência do Cristianismo que tomava conta de todas as classes sociais. Um exemplo marcante tivemos no episódio guerreiro entre Constantino e Maxêncio: tendo o primeiro colocado a Cruz como símbolo de seu exército, e muitos dos cristãos que lutavam no lado inimigo vendo tal símbolo brilhar nas hordas contrárias, logo passaram para o lado de Constantino, ocasionando grandiosa vitória deste último e, consequentemente, dos cristãos.  Assim, o predomínio do Cristianismo em toda a Europa foi decorrente do império pacífico da regência da Igreja (que antes de conquistar reis já conquistara os corações dos súditos).

 

Um exemplo de regência mansa e pacífica

No início do século V, os bárbaros invadem Roma. Como a religião Católica já era reconhecida pelo Império, logo os seus opositores viram nela um motivo para condenação: julgavam que se Roma fosse dominada pelas religiões pagãs e seus ídolos não teria sido arrasada e saqueada pelos bárbaros. Foi com o intuito de desfazer tais falsas ideias, em geral defendidas por alguns que desejavam restaurar a idolatria, que Santo Agostinho publicou sua famosa obra “Civitate Dei” (A Cidade de Deus).  Nessa obra o Santo faz um resumo histórico dos acontecimentos que culminaram com as invasões dos bárbaros, demonstrando que, pelo contrário, estes últimos tiveram mais respeito às populações romanas, mesmo as pagãs, quando estas se refugiavam nos templos católicos:

 

“...Testemunhos são desta verdade as capelas dos mártires e as basílicas dos Apóstolos, que na devastação de Roma acolheram dentro de si aos que, precipitadamente e temerosos de perder sua vida., na fuga punham suas esperanças, em cujo número se compreendiam não somente gentis, mas também cristãos. Até estes lugares sagrados vinha executando seu furor o inimigo, porém ali mesmo se amortecia ou apagava o furor do encarniçado assassino, e, por fim, para estes lugares sagrados conduziam os piedosos inimigos aos que, encontrados fora dos santos asilos, tinham perdoado suas vidas, para que não caíssem nas mãos dos que não usavam exercitar semelhante piedade...”  “pelo que é muito digno de notar que uma nação tão feroz, que em todas partes se manifestava cruel e sanguinária, fazendo cruéis estragos, logo que se aproxima dos templos e capelas onde estava proibida sua profanação... refreava de todo o impero furioso de sua espada, desprendendo-se igualmente do prazer pela cobiça de fazer uma grande presa numa cidade tão rica e abastecida. Desta maneira libertaram suas vidas muitos daqueles que infamam e murmuram dos templos cristãos, imputando a Cristo os trabalhos e penas que Roma padeceu, e, não atribuindo a este grande Deus o benefício incomparável que conseguiram por respeito a seu santo nome de lhes conservar as vidas...”[2]

 

A Igreja comprova o poder de regência de origem divina: o Papa São Leão Magno faz o terrível Átila, o “flagelo de Deus”, recuar

 

Alguns anos após Santo Agostinho, nova onda de bárbaros invadia o Império. Desta vez comandados pelo terrível Átila e com mais furor e causando mais destruição do que nas anteriores. Só havia um poder  terreno, e ao mesmo tempo divino, que poderia detê-lo: o poder de regència da Igreja Católica, personalizado no Sumo Pontífice:

 

Átila, Rei dos Hunos, era um chefe bárbaro temido. Cruel e implacável com seus adversários. Ele mesmo se auto intitulava o "Flagelo de Deus". Destruiu, praticamente tudo, na Gália. Saqueou Tongres, Treves e Metz. A cidade de Troyes não foi destruída graças a intervenção de São Lupo, e o mesmo aconteceu com Orleans que foi salva por Santo Aniano.

Embora tendo sofrido uma série de derrotas nas planícies de Chalons, graças aos esforços militares conjuntos de Aécio, Meroveu, rei dos francos, e Teodorico, rei dos visigodos, Átila não desistiu de seus intentos, não desanimou.

Sua sanha destruidora voltou-se para o norte da Itália, destruía tudo que podia a ferro e fogo. Quem conseguia, fugia de suas incursões destruidoras. Muitos se refugiaram nas pequenas ilhas existentes nas lagunas do Mar Adriático, onde deram origem à cidade de Veneza.

Átila atacou e saqueou Milão. O imperador Valentiniano III, não se julgou protegido em Ravena e fugiu para Roma. Mas, a meta de Átila era dominar Roma, capital do Império, sede do Papado, centro da Igreja Católica. E não demorou muito para o bárbaro chegar às portas da Cidade Eterna. Invasão, morticínio, destruição e saques era o que se esperava da ação iminente do "Flagelo de Deus".

Sem condições de se livrar dele, o Imperador, o Senado e povo romanos, num lance que depois mostrou-se ter sido de bom senso, imploraram socorro ao Sumo Pontífice. Pediram ao Papa que salvasse Roma da invasão. A missão do Vigário de Cristo era clara e de tremenda responsabilidade. Sua missão não era apenas defender Roma. Ele deveria salvar também sua pátria, seu povo e o mundo cristão: uma tarefa nada fácil, e de sucesso imprevisível.

 

Pastor que se expõe

Como Pastor que deseja sempre preservar a vida de suas ovelhas, o Papa aceitou o encargo de enfrentar o "Flagelo de Deus". Como desdobramento de sua ação ele estaria defendendo a Igreja, o Império, o Ocidente.

Além de demonstrar não ter medo, ele dava mostras de que acreditava no auxílio sobrenatural, na importância do Papado e na força dos símbolos religiosos. Sem perder tempo, revestiu- se dos paramentos pontificais reservados para as maiores solenidades e, acompanhado por sacerdotes e diáconos também em trajes sacerdotais, o Papa pôs-se a caminho para enfrentar o temível Rei dos Hunos, em Peschiera, uma pequena cidade próxima de Mântua.

O Papa que não tinha soldados a sua disposição, foi ao encontro do conquistador, que, contra toda a expectativa, o recebeu com honras. E mais, Átila desistiu de seus objetivos e, cessando as hostilidades, atravessou os Alpes, retornando para sua terra, sem atacar Roma. Era o ano de 453.

 

O que se passou com "Flagelo de Deus" para agir assim?

Os bárbaros perguntaram a seu chefe por que, contrariando seu costume, havia mostrado tanto respeito para com o Papa. Átila respondeu que "não foi a palavra daquele que veio me encontrar que me inspirou um medo tão respeitoso; mas eu vi junto ao Pontífice um outro personagem, de um aspecto muito mais augusto. Venerável por seus cabelos brancos, que se mantinha de pé, usando hábito sacerdotal, com uma espada nua na mão, ameaçando-me com um ar e um gesto terríveis, se eu não executasse fielmente tudo o que me era pedido pelo enviado". Esse personagem que causava terror a Átila era o Apóstolo São Pedro que tinha a seu lado, segundo outra tradição, o Apóstolo São Paulo que também aterrorizou o Bárbaro”[3]

Cumpria-se, assim, as palavras de Nosso Senhor quando falou no Sermão da Montanha que os mansos possuirão a terra. Naquele momento era novamente demonstrada a eficácia da regência pacífica sobre a imperativa, pois em pouco tempo aqueles bárbaros amoleciam seus corações e se tornavam cristãos. E a mansidão era uma virtude pregada pela Igreja para que com ela pudesse reger os povos.

E Deus passou a reger a Humanidade através de Sua Igreja.



[1]Plinio Corrêa de Oliveira – Conferência “Santo do Dia” – 07 de dezembro de 1964

[2] Civitate Dei, liv. I, cap. I -

[3] Texto extraído da hagiografia de São Leão Magno publicada no site dos Arautos do Evangelho http://www.arautos.org/especial/31322/Sao-Leao-Magno.html

 


terça-feira, 9 de novembro de 2021

DR. PLÍNIO COMENTANDO SOBRE A BASÍLICA DE SÃO JOÃO DE LATRÃO

 







Hoje é festa da Dedicação da Arqui-basílica do Santíssimo Salvador, que é chamada Mãe e Cabeça de todas as igrejas e que é a Igreja de Latrão. A nota é a seguinte:

“No dia 9 de novembro do ano de 324, foi o dia natalício, a dedicação da basílica de Latrão. Em 315 o Imperador Constantino tinha ordenado a construção da Basílica”.

Os senhores se lembram, naturalmente, que Constantino era o imperador que libertou a Igreja e A tirou das catacumbas. Então, coerentemente com o seu gesto, ele ordenou a construção da Basílica, local onde parece se erguia o palácio da sogra dele, da família dos Laterani. Eu não sei se isto é inteiramente indiscutível na historiografia de hoje, mas algum tempo atrás se admitia como sendo assim, e provavelmente é. Esse lugar ficou se chamando a Basílica de Latrão e o Papa Silvestre consagrou a Basílica ao Santíssimo Salvador, cuja imagem, mostrada então aos fiéis depois de séculos de perseguição, lhes pareceu uma aparição divina.

Pode-se imaginar qual foi a emoção, qual foi a alegria dos católicos de Roma quando, depois de séculos de catacumbas, séculos de perseguição, vêem aparecer uma basílica e uma basílica grandiosa em Roma, afirmando o esplendor do culto católico pela primeira vez, na mais importante cidade do mundo. Os senhores podem imaginar a alegria deles quando viram, ao ar livre e à luz do dia, uma imagem grandiosa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Para os senhores terem uma certa impressão disto, os senhores precisam se reportar, por exemplo, a Sabará, à impressão que nós todos tivemos quando vimos nossos estandartes desfraldados ao ar livre em Sabará. A idéia de que ao ar livre e dominando uma cidade por pequena que fosse, nossos estandartes estarem tremulando, era uma coisa que nos enchia de emoção. Agora, os senhores imaginem em Roma, a própria imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo exposta aos olhos de todos e recebida por todos com veneração, e o culto pagão quebrado, proscrito, proscrito e fora da lei. É algo de parecido com a inauguração do Reino de Maria e com os primeiros momentos do Reino de Maria.

Eu tenho impressão de que poucas coisas podem dar tanto a idéia do que pode ser uma alegria católica na terra, como ver a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo ou de Nossa Senhora, ou então o estandarte do Grupo  desfraldado assim a todos os ventos.

Continua a nota biográfica:

“...os Papas fizeram sua residência num palácio próximo da Basílica. Realmente, o palácio anexo a Latrão foi durante muito tempo residência dos Papas, que se tornou assim sua catedral e que por isso foi chamada Cabeça e Mãe de todas as igrejas, de Roma e do mundo. Dois incêndios que sobrevieram no século XIV, e o abandono em que ela foi deixada durante a presença dos Papas em Avignon - os peregrinos que iam a Roma encontravam o gado pastando dentro das igrejas, por causa da erva que crescia lá dentro. Galinhas, pombos, outros bichos, morando dentro de igrejas e ocupando, inclusive, os altares...”

Os senhores vêem a rotação da História. A Igreja, que sai radiosa das catacumbas, levanta um imenso edifício, e depois nesse edifício o gado vai pastar porque os pastores estão em Avignon! Os senhores então entendem as ondulações da História.

Bem, então (...) “sua construção quase inteira. A Basílica foi novamente consagrada, desta vez em honra de São João Batista e de São João Evangelista”.

Então a Basílica do Santíssimo Salvador tem esses dois padroeiros secundários. Quem visita Roma nota uma diferença que chama atenção, entre a Basílica de Latrão e a Basílica do Vaticano. A Basílica de São Pedro é nova, é “chibante”, é gloriosa, é magnífica, parece construída ontem, tem todo o esplendor da Renascença. Depois que a gente olha, olha, fica no fundo daquilo uma imagem de bodas de noiva.

A Basílica de São João de Latrão é muitíssimo menos sensacional; é muito mais discreta, mas tem um tom de “grand dame”, tem uma nobreza, tem uma grandeza, tem uma paz, tem uma consciência de sua própria dignidade que a Basílica de São Pedro não tem.

A Basílica de São Pedro é aflita de se mostrar em tudo para obter a adesão daqueles que aparecem lá. A Basílica de Latrão, não. Está cônscia de si mesma e dizendo: "Na minha naturalidade sou assim. Não me enfeito, não faço permanente, não me pinto, eu sou o que sou. Mas no que sou, sou digna de respeito e de veneração". Quer dizer, é outra impressão que se tem com essa Basílica, mas a perder de vista.

É interessante isto porque mostra as duas fases diversas da vida da Igreja. Uma fase em que se fica posto em presença de uma espécie de naturalidade, de dignidade, de compostura, e depois é o bafo da Renascença que entra, e com o bafo da Renascença já é outro espírito, é outro modo de se apresentar que se faz sentir.

Entretanto, é uma coisa que corta o coração: a Basílica está colocada numa praça com uma confluência de ruas e, portanto, com um trânsito muito intenso. Ela fica sobre uma elevação que é uma elevação muito bem calculada para a altura dela, assim como, por exemplo, o Arco do Triunfo. A elevação do Arco é muito bem calculada para o tamanho, que é um dos encantos do Arco, assim também na Basílica de São João, há uma elevação de terreno esplendidamente calculada. Há um canteiro grande, e ali está a Basílica com a sua nobreza.

De outro lado, em diagonal, está um tesouro maravilhoso, que é a “Sancta Sanctorum”, a Scala Santa, aonde há gotas do Sangue de Nosso Senhor, sobe-se a Scala Santa de joelhos, e depois um tesouro que podemos visitar, que é magnífico, e que é a "Sancta Sanctorum" - de que é cópia esse tecido do Lísio representando Cristo Pantocrator que os senhores vêem aí.

Basílica na sua dignidade, na sua distinção de rainha, mas de rainha muito materna, muito autêntica. Ao lado, um corre-corre de lambretas, de automóveis, um ruído de motores de explosão, um formigar de vida moderna, uma passagem de europeus e turistas do mundo inteiro, mas que pouco olham para a Basílica, habitualmente visitada por pouco turistas, erma, deserta, etc., e ao pé daquilo, os europeus que passam, passam correndo, completamente com mentalidade "holywoodiana" e pensando em outras coisas.

Tem-se a impressão mais ou menos de uma rainha que com toda a sua majestade e a sua dignidade, vai de repente para uma raquete, qualquer lugar assim e se põe num lugar público, olhando. Ninguém compreende aquela rainha porque não pode compreender. Se aparecesse uma mulher do povo, eles entenderiam, eles achariam da mesma maneira, porque não têm mais olhos para ver, ouvidos para ouvir e, sobretudo, intelecto para inteligir.

É o formigamento da Europa nova junto à Europa velha, ainda mantida em monumentos cuja alma já ninguém mais compreende; o que é mais engraçado, por turistas que pensam que vão lá para ver isso, mas que, de fato, estão pensando no automovelzinho, no ruído de explosão, enfim, no paraíso da técnica.

Aí os senhores têm então uma espécie de "ambientes e costumes" das várias Europas. Isso se repete na Europa inteira. O Arco do Triunfo é napoleônico, ele tem um pouco daquela carranca napoleônica. Mas não deixa de ser um monumento que incontestavelmente tem mérito, sobretudo quando comparado a tantos que conhecemos. É uma coisa que não se pode negar,  que há mérito nesse monumento. Bem, isso fica no rodopio do trânsito. Todo o mundo passa por ele e pensa em tudo menos nele. E os próprios turistas vão para lá, mas não pensam muito nele. Pensam no trânsito, pensam em gasolina, pensam no asfalto, pensam nas imoralidades que vêem, pensam no nudismo, pensam na vida moderna, atraídos por uma vaga idéia, um resto de idéia, de que a Europa antiga está aí.

Eu me lembro de um estado de espírito que me chamava muito a atenção, de pessoas velhas de família que iam para Santos. Quando se faziam as malas - porque naquele tempo, quando ainda era meninote, a gente fazia malas para ir para Santos, muitas malas. Era uma coisa grossa e solene ir para Santos, em que se ia de trem, com carregador, carroça que vinha pegar as malas em casa de manhã, etc. -, pessoas antigas que diziam que iam lá porque gostavam muito do mar, a primeira coisa que faziam era tomar uma casa - ainda não havia apartamentos - que não dava para o mar. Dava para qualquer daquelas ruas próximas do mar.

Ia-se prestar atenção, uma vez ou outra iam à praia em vinte dias, umas duas ou três vezes. Eles ficavam no terraço da casa, que não dava para o mar, com uma vaga consciência de que o mar estava ali perto e com um ar assim de quem está fazendo veraneio, se abanando... Quer dizer, é a coisa mais tola que possa haver no mundo, não é?

Bem, é a posição que toma em face dessas coisas antigas o turista de hoje. "- Ah! O Arco do Triunfo..." Ele, de fato, está pensando em câmbio, em qualquer bobagem. Aquilo figura como um fundo de quadro, uma espécie de mar hipotético para o qual ele não olha. Ele apenas gosta de saber que aquilo está lá.

Isto é a véspera da demolição! Porque à força de não entender, acabam fazendo da Basílica de Latrão um museu, ou qualquer outra coisa.

 

  (Plinio Corrêa de Oliveira - "Santo do Dia", 9 de novembro de 1965)

 


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

OS SEMINÁRIOS, VERDADEIRAS SEMENTEIRAS DE GRANDES HOMENS E MUITAS VEZES DE GRANDES SANTOS

 



Temos para amanhã a festa de São Carlos Borromeu (1538-1584), bispo e confessor. Ele foi suscitado por Deus para a verdadeira reforma da Igreja no século XVI. À sua prudência deve-se, em grande parte, a feliz conclusão do Concilio de Trento. Cardeal aos vinte e três anos, presidiu sínodos e conselhos, e estabeleceu colégios e comunidades. Renovou o espírito do seu clero e das ordens religiosas. A ele se deve a criação de seminários diocesanos. Século XVI.

Talvez coubesse dizer alguma coisa rápida a respeito da obra de São Carlos Borromeu, mas sob um ponto de vista especial.

Quando se fala a respeito de seminário diocesano, não sei bem que sonoridade isso tem aos ouvidos dos meus jovens amigos de 1970, e quando a gente elogia o santo por ser criador dos seminários diocesanos, não sei bem até que ponto os jovens compreendem o mérito dessa criação...

Exatamente no “Êremo de Elias”, onde eu estava jantando agora, comentávamos que “corruptio optima péssima” (a corrupção do ótimo dá no péssimo). Sendo São Carlos canonizado pela Igreja e considerado um grande Santo, forma-se então a ideia de que deve ser uma coisa muito boa o que realizou, mas não se compreende bem por que não fez os seminários um pouco melhorzinhos do que esses que estão funcionando por aí. De maneira que valeria a pena considerar como um seminário deveria ser e como eram os seminários na mente de São Carlos Borromeu.

Tenho a impressão de que a primeira coisa que é preciso considerar é que em sua época - tratarei do assunto de baixo para cima e não o contrário -, os recursos higiênicos eram muito menores do que em nossa época. Enquanto a humanidade foi crescendo em falta de higiene de alma, ela foi crescendo simultaneamente em maior higiene do corpo.

Os senhores considerem o século XIX - um século bastante mais corrupto do que o século XVIII - em que começa a água corrente, os encanamentos, começam os progressos da hidráulica enfim e tem início também uma possibilidade de limpeza que nos séculos anteriores não havia.

No Brasil do século passado, nas cidades em que ainda não havia água encanada, o banho era assim: punha-se o reservatório de água todo cheio de furinhos e em cima uma caixa d’água; em certo momento abria-se a comunicação da caixa d’água para o reservatório e caía um chuvisco do tamanho de uma caixa d’água pequena. A pessoa que tratasse de se lavar com isso. Depois, subiam escravos com balde de água e enchiam a caixa d’água para outro da família que vinha tomar banho.

Os senhores podem imaginar que limpeza precária uma coisa dessas poderia produzir... Mas era uma limpeza que nos mostra bem como as coisas que se referem ao corpo são inferiores às do espírito. O século XIX começou a era da limpeza. Acho que os homens nunca se lavaram tanto e tão bem como no século XX, sobretudo na América.

No século XX começou a apologia da porcaria e da sujeira nas pessoas dos hippies - não por falta de água encanada, mas por sujeira de ideias, por corrupção moral. Assim, a higiene dos homens começa a decair de novo e o hippie é mais porco do que o homem nem sei de que eras pré-históricas e troglodíticas.

É claro que certos recursos de limpeza naquele tempo eram menores do que são hoje em dia. Mas havia nos homens da época em que São Carlos Borromeu fundou os seminários, uma tendência para aprimorar tudo, para melhorar tudo, para levar tudo à plenitude de sua ordem natural. Razão pela qual, se não existiam esses recursos de limpeza, havia uma grande apetência para tê-los, a tal ponto que foi só eles apareceram, que o mundo inteiro os utilizou imediatamente. Quer dizer, havia uma grande aptidão para isso, um grande desejo que só não se realizava por falta de circunstâncias materiais inteiramente convenientes. Não era possível que houvesse tal desejo se não houvesse um surto do homem para tudo quanto era melhor, para tudo que era perfeito, para tudo que era mais adequado à natureza humana e ao cuidado com o corpo.

Os seminários de São Carlos Borromeu, da época tridentina, poderiam parecer, portanto, comparados com um hotel de hoje, menos asseados e menos limpos. Entretanto, o que está no espírito e na letra do Concílio de Trento, no que foi realizado, é que eles fossem tão limpos quanto as circunstâncias da época permitissem. E que eles fossem organizados de modo tal que a pessoa que frequentasse tais seminários resultasse um homem másculo, varonil, batalhador, padre no sentido pleno da palavra, e por isso varão no sentido pleno da palavra.

Por causa disso, observa-se que esse tipo mocorongo, “heresia branca” não existia no clero de antes de Revolução Francesa. Esse tipo veio aparecer depois dela, com o sentimentalismo piegas, com o romantismo de século XIX, com a super estima dos sentimentos, e que começaram a entrar nos seminários. Padre de antes da Revolução Francesa era varonil; poderia até não ser muitas vezes um padre clerical, mas varonil era. E isso ao ponto de que nem passava pela cabeça de ninguém achar um padre menos varonil que outra pessoa, ou considerar o padre inferior em cultura e em preparo de inteligência do que qualquer outro.

Os seminários modelavam gente tal, que o perigo para formação do padre não era de lá sair uma nulidade, mas sim um homem tão preparado e tão igual em valor aos outros, que até era requisitado para as carreiras de caráter meramente humano. Daí, então, o excesso da entrada de padres que visavam fazer carreiras cujo fim não fosse o próprio dos sacerdotes.

Os senhores considerem por exemplo Richelieu. Onde se tinha formado um homem como ele, que punha couraça e que ia de pistola na batalha? Tinha-se formado em seminário. Quando é que de um seminário comum e corrente de hoje poderia sair um Richelieu? Ou ele mesmo se formava, ou ele saía antes de se formar, ou ele saia deformado... Mas sair daquele jeito do seminário era inteiramente impossível.

Tomem outro exemplo, como os jesuítas da grande época: um ia ser missionário na China e convertia o imperador; outro ia ser não sei o quê e dirigir reis, era homem de corte, outro era diplomata, outro figurava em batalhas, etc. De onde é que saiam esses homens? Saiam dos seminários.

Reportem-se a um São Lourenço de Brindisi (1559-1619), franciscano que lutou na batalha de Albareale (Hungria) para libertar os católicos dos maometanos. Ele não lutava fisicamente, porque era padre e só podia se defender, não podia atacar, mas de crucifixo na mão percorria constantemente todas as fileiras dos combatentes incitando a voltarem à carga e a lutarem mais uma vez; fazendo sermão durante horas inteiras da batalha. De maneira que, ganha a batalha, a conclusão que tirou o imperador foi que ele deveria ser arrolado entre os generais vencedores, pela sua energia, pela sua capacidade, pelo seu espírito sobrenatural.

Onde é que os senhores encontram isso nos seminários de hoje? Esses foram os seminários formados por São Carlos Borromeu, de onde saíam homens exímios na fé, e porque tinham as virtudes cardeais - justiça, fortaleza, temperança e prudência –, eram capazes de fazer tudo aquilo quanto um homem pleno, plenamente equilibrado, plenamente senhor dos seus dotes era capaz de realizar.

Os seminários foram, então, verdadeiras sementeiras de grandes homens e muitas vezes de grandes santos.

(Plínio Corrêa de Oliveira – Conferência “Santo do Dia”, 3 de novembro de 1970)



 


SÃO CARLOS BORROMEU

 



 

Hoje temos a festa de um grande santo, São Carlos Borromeu, bispo e confessor:

“Suscitado por Deus para a verdadeira reforma da Igreja. Século XVI. À sua prudência deve-se, em grande parte, a feliz conclusão do Concílio Tridentino”.

É preciso que os senhores considerem bem o que quer dizer aqui prudência. A prudência não quer dizer somente a atitude de um homem cauteloso, que evitou qualquer risco. Este é o sentido comum da palavra. A prudência, como virtude cardeal, é - simplificando um pouco as coisas - a virtude que nos faz conhecer e aplicar bem os métodos necessários para os fins que temos em vista.

(...)Então, o que se está aqui elogiando em São Carlos Borromeu é porque teve esse acerto; para a aplicação do Concílio de Trento, ele empregou os métodos adequados. É por isso também que, na Ladainha Laurentana, se chame Nossa Senhora de Virgo Prudentissima, a Virgem que - com muito acerto - fez todas as coisas para chegar ao fim que a super-excelsa vocação d’Ela pedia ou indicava.

“Ele foi cardeal aos 23 anos, presidiu sínodos e concílios, estabeleceu colégios e comunidades, renovou o espírito de seu clero e das ordens religiosas. A ele se deve a criação dos seminários diocesanos no século XVI”.

É uma coisa curiosa como os modos de ser da Igreja caminham e como são diferentes dos modos de ser – legítimos – de hoje. Os senhores imaginem que tudo na Igreja estivesse andando bem. Os senhores imaginem que se fizesse o seguinte elogio de um bispo: “Esse bispo é muito bom... Primeiro, ele presidiu sínodos” (sínodos são reuniões de padres sob a direção do bispo para fazerem leis para a diocese; o bispo é que faz as leis; o padre está ali apenas para dar sugestões, como um conselheiro qualificado do bispo), “presidiu sínodos, presidiu concílios (ou seja, concílios parciais de bispos em nome do Papa); depois, estabeleceu colégios católicos e comunidades religiosas e renovou o espírito de seu clero e das ordens religiosas”.

Os senhores não ficariam com uma certa decepção? Não achariam, de um lado, uma coisa excelente e, de outro lado, não ficariam com uma impressão de que falta qualquer coisa e que há uma lacuna que deixa passar o perigo, apesar de tudo? Ora, qual é essa lacuna? É exatamente que, como a Revolução se estruturou de maneira a organizar um movimento revolucionário de leigos agindo sobre leigos, não dentro dessas ou daquelas instituições só, mas no conjunto de todos os fiéis, tornou-se necessário um movimento de leigos agindo sobre o conjunto dos leigos a favor da Igreja. E se esse movimento não for feito, não se tem uma ação eficaz da Igreja. Haveria uma ação falha, com lacunas.

Exatamente o que nosso Grupo visa realizar é essa atuação em benefício da Tradição, da Família e da Propriedade. Mas se nos dessem asas livres - sobretudo sem deixar a Tradição, Família e Propriedade nem de longe, mas a favor de Nossa Senhora e de coisas espirituais etc. - faríamos ainda mais porque o leigo agindo sobre o leigo, no ambiente da vida comum que a ação dos eclesiásticos não atinge, é propriamente o nosso apostolado. E sem esse apostolado, não existe uma penetração eficaz do espírito da Igreja no mundo de hoje.

Quer dizer, onde houve um perigo, onde a Revolução cresceu num ponto, compete à Igreja acompanhá-la e crescer neste ponto correspondente, opor-se à Revolução ponto por ponto, paralelamente. Esta é a característica da ação da Igreja.

São Francisco de Sales A compara num de seus livros, muito belamente, com uns rochedos de que fala a mitologia e que cercavam não me recordo que lago ou que mar. Dizia que eram rochedos que cresciam com as tempestades e que, quando o mar ficava revolto, o rochedo crescia. De maneira que, por mais que o mar crescesse, ele nunca podia invadir a terra. Assim é a Igreja Católica em face da Revolução. À medida que o mar – o mundo – vai ficando revolto, nessa medida a Igreja vai crescendo.

(...)

Outra coisa: Nossa Senhora de Genazzano. Por razões que já expliquei várias vezes, o que está implícito nessa devoção é que Nossa Senhora nos assistirá com graças, por assim dizer, fora de toda a proporção e fora de todo o mecanismo das anteriores. São graças que não se podiam imaginar, não seria sensato imaginar. São extremos de misericórdia, correspondendo a ocasiões de gravíssimo apuro de vida interior ou de vida de apostolado.

Não é verdade que a graça de Nossa Senhora de Genazzano nos veio numa ocasião de muita aflição, pelo menos para mim? Não é verdade que uma oração a Nossa Senhora de Genazzano deteve subitamente uma tempestade que estava em cima de nós? E por aí exatamente os senhores estão vendo que, ainda que não pareça, nós crescemos em função dos golpes do adversário. Eu poderia fazer toda uma filosofia da história do Grupo, desenvolvendo isso. Seria uma coisa muito bonita.

 

 

A nobreza de sangue é poderoso estímulo para a prática da virtude

Do magnífico texto da homilia de S. Carlos Borromeu, na festa da Natividade de Nossa Senhora, em 8 de Setembro de 1584:

"O início do Santo Evangelho escrito por São Mateus, que deste lugar vos foi há pouco proclamado pela Santa Madre Igreja, nos induz antes de tudo a examinar atentamente a nobreza, a insigne linhagem e a magnificência desta Virgem Santíssima. Se, pois, se deve considerar nobre aquele que tira a sua origem do mérito de antepassados ilustres, quão grande é a nobreza de Maria, que teve princípio de geração em Reis, Patriarcas, Profetas e Sacerdotes da tribo de Judá, da raça de Abraão, da estirpe régia de David?

"Ainda que não ignoremos sermos nós de verdadeira nobreza – a cristã – a qual nos conferiu a todos o Unigênito do Pai, quando `a todos aqueles que O receberam lhes deu o poder para se tornarem filhos de Deus' (Jo. 1, 12), e que a todos os fiéis cristãos é comum essa dignidade e nobreza, não obstante de nenhum modo pensamos que deve ser desprezada ou rejeitada a nobreza segundo a carne. Pelo contrário, quem não reconhecesse esta mesma nobreza igualmente como dom e favor singular de Deus, e não desse também por ela graças especiais a Deus, que é o dispensador de todos os bens, este seria na verdade absolutamente indigno da denominação de nobre, posto que, por deformidade de um espírito ingrato, que mais vergonhoso não pode ser, obscureceria o brilho dos seus maiores. Pois a nobreza da carne muito contribui também para o verdadeiro reluzimento da alma e proporciona-lhe não pequenos benefícios.

"Antes de tudo, o esplendor do sangue, a virtude dos antepassados e os feitos famosos predispõem de modo maravilhoso o varão nobre a marchar sobre as pegadas daqueles de quem ele descende. E é fora de dúvida também que a sua própria natureza é mais inclinada ao bem e à virtude: seja porque isto lhe toque pela conformidade do seu sangue com o dos seus progenitores e, em conseqüência, pela transmissão do espírito deles; seja pela perene memória que retém das suas virtudes, as quais considera como mais caras – o que ele sabe avaliar – por terem brilhado nos seus consanguíneos; seja, por fim, pela reta educação e formação que recebeu de varões ilustres. É certamente reconhecido como verdadeiro que a nobreza, a magnificência, a dignidade, a virtude e a autoridade dos pais induzem muito os filhos a manterem o zelo por essas mesmas coisas. De onde se segue que os nobres, por um como que instinto da natureza, são desejosos da honra, cultivam a magnanimidade, desprezam as vantagens de baixo preço, aborrecem enfim tudo aquilo que reputam indigno da sua nobreza.

"Em segundo lugar, a nobreza é igualmente um estímulo a aferrar-se às virtudes. Difere este do primeiro benefício que referimos pelo fato de que aquele predispõe o nobre a abraçar mais facilmente as obras retas; este segundo, porém, acrescenta ainda, àquilo que se tornou fácil, estímulos veementes; e, como um freio, coíbe os vícios e as ações que desconvêm ao nobre, e faz com que, se alguma vez o nobre cair nalguma falta, logo se tomará de um pudor extraordinário e cuidará, com todas as suas forças, de se purificar dessa mancha.

"Por fim, o último benefício a considerar na nobreza é que, assim como uma pedra preciosa refulge mais quando engastada em ouro do que em ferro, assim as mesmas virtudes são mais esplendorosas no nobre do que no plebeu; e à virtude junta-se a nobreza, como o maior ornamento dela.

"Não apenas é verdade que se deve atribuir valor à nobreza e ao lustre dos antepassados, como além disso sustentamos muito firmemente estas duas teses, a saber: a primeira é que, tal como no nobre é muito mais esplêndida a virtude, também nele o vício é de longe muito mais vergonhoso. Assim como mais facilmente se nota a sujidade num lugar claro e batido pelos raios do sol do que num canto obscuro, e as manchas numa veste de ouro do que numa veste comum e andrajosa, ou, por fim, marcas e cicatrizes no rosto do que em outra parte oculta do corpo, assim também os vícios são mais notáveis e chamam muito mais a atenção, e mais vergonhosamente desfiguram o espírito dos culpados, nos nobres do que nos homens de condição vulgar. Que há, na verdade, de mais indigno do que o adolescente nascido de pais ilustres e de fino trato, que se vê corrompido e entregue às tabernas, jogos, bebidas e comedorias desregradas?

"A segunda tese é que, ainda quando alguém seja nobilíssimo, se à nobreza dos seus maiores não acrescenta as próprias virtudes, imediatamente se torna obscuro. Pois, com a descontinuidade da virtude, cessa nele a nobreza, uma vez que, se permanecem nele os vestígios do lustre dos seus antepassados, são certamente inúteis; pois nem sequer atingem o seu fim, a saber: que o tornem mais inclinado aos grandes feitos, que sejam para ele estímulos à virtude, e freio que o coíba de pecar. E toda a nobreza serve, para ele, de sumo opróbrio ou não acrescenta à sua honra o mínimo grau. E isto é o que exprobava Nosso Senhor Jesus Cristo aos fariseus que se jactavam de ser filhos de Abraão, dizendo-lhes: `Se sois filhos de Abraão, fazei as obras de Abraão' (Jo. 8, 39). Pois alguém só pode vangloriar-se de ser filho, ou neto, e partícipe da nobreza daquele cuja vida e virtudes imita. E, por isso, o Senhor dizia aos mesmos: `Vós tendes por pai o Diabo' (Jo. 8, 44); e eram chamados, além disso, pelo santíssimo Precursor de Cristo, `raça de víboras' (Lc. 3, 7).

"Quem é na verdade tão ignorante e inadvertido que ainda encontre base para duvidar da suma nobreza da Santíssima Virgem Maria? Quem não sabe que Ela não apenas igualou as virtudes dos progenitores, mas muitíssimo de longe os excedeu, a tal ponto que se pode e deve chamá-La, com razão, nobilíssima, pois que o esplendor de tão ilustres Patriarcas, Reis, Profetas e Sacerdotes, cujas séries o Evangelho de hoje descreve, tomou nEla o máximo desenvolvimento?

"Perguntará sem dúvida alguém porque razão, de tudo quanto foi até aqui exposto, se pode deduzir a nobreza dos antepassados de Maria, uma vez que é descrita a origem de José, que foi esposo de Maria. Porém, quem mais diligentemente tiver estudado as Sagradas Escrituras resolverá facilmente esta dúvida. Porquanto na Lei Divina era estabelecido que a virgem não tomasse varão fora da própria tribo, principalmente em vista da linha de sucessão hereditária (cfr. Num. 36, 6 ss.); e por isso fica claríssimo terem sido José e Maria da mesma tribo e família, e desta descrição da geração humana do Filho de Deus, torna-se patente ser uma e a mesma a nobreza duma e doutro".

E o Santo passa a encarar outro aspecto do grande tema sobre o qual discorre.

Diz ele:

"Em terceiro lugar, por fim, ó dilectíssimas filhas – pois isto vos concerne – é descrita a progênie de José e não a de Maria para que aprendais a não vos ensoberbecer, nem dizer de modo insultante aos vossos maridos: `Eu introduzi a nobreza na tua casa; eu trouxe-te o brilho das honras; a mim deves referir, ó varão, o que recebestes de dignidade'. Sabei, na verdade, e isto esculpi constantemente nos vossos espíritos, que o decoro e a nobreza da família da esposa, não é devida a outra família senão à do esposo; e são detestáveis aquelas esposas que ousam preferir-se de algum modo aos seus maridos, ou – o que é pior – se envergonham das famílias dos seus maridos; calam o apelido gentílico deles, e mencionam apenas a sua própria origem. Há aqui realmente um diabólico espírito de soberba. Qual é pois a família de Maria? A de José. Qual é a tribo, qual a casa, qual a nobreza de Maria? A do seu esposo José. Isto, esposas cristãs, verdadeiramente nobres e tementes a Deus, é o que mais se deve ter em conta" (*).

(*) Sancti Caroli Borromei Homiliae CXXII, Ignatii Adami et Francisci Antonii Veith Bibliopolarum, Augustae Vindelicorum, editio novissima, versio latina, s.d., Homilia CXXII, cols. 1211-1214.

 

(Plínio Corrêa de Oliveira - Santo do Dia, 04 de novembro de 1968)