Sou tomista convicto. O aspecto da Filosofia pelo qual mais me interesso é a Filosofia da História. Em função desta encontro o ponto de junção entre os dois gêneros de atividade em que me venho dividindo ao longo de minha vida: o estudo e a ação.
Esta última, eu a tenho exercido num campo muito definido: a difusão doutrinária, feita ora com o caráter de diálogo, ora—por mais que a noção e a palavra pareçam anacrônicas, sinto todo o desembaraço ao fazer o presente depoimento—também de polêmica.
O ensaio em que condenso o essencial de meu pensamento explica o sentido de minha atuação ideológica. Trata-se do livro Revolução e Contra-Revolução .
As grandes transformações históricas resultam da atitude do espírito humano perante a Religião e a Filosofia
Um dos pressupostos desse ensaio é que, ao contrário do que pretendem tantos filósofos e sociólogos, o curso da História não é traçado exclusiva ou preponderantemente pelas injunções da matéria sobre o homem. Estas influem, sem dúvida, no agir humano. Mas a direção da História pertence ao homem, dotado que é de uma alma racional e livre. Em outros termos, é ele que, atuando ora mais profundamente, ora menos, sobre as circunstâncias em que se encontra, e recebendo também, em medida variável, as influências destas, comunica aos acontecimentos o seu curso.
Ora, o agir do homem se faz normalmente em função de suas concepções sobre o universo, sobre si mesmo e sobre a vida. Isto importa em dizer que as doutrinas religiosas e filosóficas dominam a História, e que o núcleo mais dinâmico dos fatores de que resultam as grandes transformações históricas está nas sucessivas atitudes do espírito humano perante a Religião e a Filosofia.
Civilização cristã: em inteira consonância com os princípios básicos e perenes da lei natural e da Lei de Deus
Passo a outro pressuposto de Revolução e Contra-Revolução . Uma concepção católica da História deve levar em toda conta o fato de que a Lei Antiga e a Lei Nova contêm em si não só os preceitos segundo os quais o homem deve modelar sua alma na imitação de Cristo, preparando-se desse modo para a visão beatífica, como também as normas fundamentais do procedimento humano, conformes à ordem natural das coisas.
Assim, ao mesmo tempo que o homem se eleva na vida da graça, vai, pela prática da virtude, elaborando uma cultura, uma ordem política, econômica e social, em inteira consonância com os princípios básicos e perenes da lei natural e da Lei de Deus. É o que se chama a civilização cristã.
É óbvio que a boa disposição das coisas terrenas não se cifra exclusivamente a esses princípios básicos e perenes, e comporta muito de contingente, transitório e livre. A civilização cristã abrange uma incalculável variedade de aspectos e matizes. É isto tão verdadeiro que, de certo ponto de vista, se pode até falar em civilizações cristãs , e não apenas em civilização cristã . Não obstante, dada a identidade dos princípios fundamentais inerentes a todas as civilizações cristãs, a grande realidade que paira por cima de todas elas é uma possante unidade que merece o nome de civilização cristã por antonomásia. A unidade na variedade, e a variedade na unidade, são elementos de perfeição. A civilização cristã continua una em toda a variedade de suas realizações, de maneira a poder-se dizer que, no sentido mais profundo da palavra, há uma só civilização cristã. Mas ela é tão prodigiosamente vária em sua unidade que, com uma legítima liberdade de expressão, se pode afirmar, sob certo ponto de vista, existirem várias civilizações cristãs.
Dado este esclarecimento—que aliás vale analogamente para o conceito de cultura católica—observo que empregarei as expressões civilização cristã e cultura cristã no seu sentido maior , que é o da unidade.
Dispenso-me de fundamentar as asserções acima em textos de Santo Tomás ou do Magistério da Igreja, pois são eles tão numerosos e tão do conhecimento dos que com seriedade estudam esses assuntos, que o trabalho resultaria ao mesmo tempo fastidioso e supérfluo. Esta observação vale também para mais algumas considerações que se seguirão nesta primeira parte da presente exposição.
Em função destes pressupostos é fácil definir o papel da Igreja e da civilização cristã na História.
As nações só podem alcançar a civilização perfeita mediante a correspondência à graça e à Fé
É certo que, embora o homem possa conhecer com firme certeza e sem eiva de erro aquilo que nas coisas divinas não é de per si inacessível à razão humana, dado o pecado original é impossível ao homem praticar duravelmente a Lei de Deus. É só por meio da graça que tal se lhe torna possível. Ainda assim, para acautelar o homem contra sua própria maldade e sua própria fraqueza, Jesus Cristo dotou a Igreja de um Magistério infalível, que lhe ensinasse sem erro, não só as verdades religiosas, como também as verdades morais necessárias à salvação.
A adesão do homem ao Magistério da Igreja é fruto da Fé. Sem a Fé não pode o homem praticar durável e integralmente os Mandamentos.
Daí resulta que as nações só podem alcançar a civilização perfeita, que é a civilização cristã, mediante a correspondência à graça e à Fé, o que inclui um firme reconhecimento da Igreja Católica como única verdadeira, e do Magistério eclesiástico como infalível.
Assim, o ponto chave mais profundo e mais central da História consiste em que os homens conheçam, professem e pratiquem a Fé católica.
Dizendo-o, não nego evidentemente que tenha havido civilizações não cristãs de alto teor. Todas elas, entretanto, foram desfiguradas por estes ou aqueles traços que destoaram chocantemente da própria elevação que sob outros aspectos apresentavam. Basta recordar a enorme extensão da escravatura e a condição vil imposta à mulher antes de Jesus Cristo. E nenhuma civilização houve que apresentasse a perfeição excelsa inerente à civilização cristã.
Igualmente não contesto que, em países de população prevalentemente cismática ou herética, a civilização possa conter importantes traços de tradição cristã. Entretanto, a plenitude da civilização cristã, só da Igreja Católica pode florescer e só em povos católicos pode conservar-se cabalmente.
“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados...”
Mas—perguntará alguém—quando existiu historicamente essa civilização cristã perfeita? Será a perfeição realizável nesta vida?
A resposta a estas perguntas chocará e irritará muitos leitores. Sem embargo, devo afirmar que houve tempo no qual uma larga parte da humanidade conheceu esse ideal de perfeição e para ele tendeu com fervor e sinceridade. Em conseqüência dessa tendência das almas, os traços fundamentais da civilização se tornaram tão cristãos quanto o permitiram as circunstâncias de um mundo que se ia soerguendo da barbárie. Refiro-me à Idade Média, da qual, a despeito desta ou daquela falha, Leão XIII escreveu com eloqüência: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”
Este modo de ver a amplitude da influência da Igreja na Idade Média, nós o encontramos também no seguinte texto de Paulo VI, referente ao papel do Papado na Itália medieval: “Não esquecemos os séculos durante os quais o Papado viveu sua História, defendeu suas fronteiras, guardou seu patrimônio cultural e espiritual, educou as suas gerações para a civilização, para a polidez, para a virtude moral e social, e associou sua consciência romana e seus melhores filhos à própria missão universal”[1].
Assim, a civilização cristã não é uma utopia. É algo de realizável, e que em determinada época se realizou efetivamente. Algo, enfim, que durou de certo modo mesmo depois da Idade Média, a tal ponto que o Papa São Pio X pôde escrever: “A civilização não mais está para ser inventada, nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe: é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade” [2]. Portanto, a civilização cristã tem largos vestígios ainda vivos em nossos dias.
As crises nascem, não da mente de algum pensador, mas das paixões desordenadas, atiçadas pelo Poder das Trevas
Há quem imagine todas as crises da cultura e da civilização como nascidas necessariamente de algum pensador, de cuja mente possante partiria sempre a centelha esclarecedora—ou destruidora—que se comunicaria primeiramente aos ambientes de alta cultura e ganharia depois todo o corpo social. É claro que, por vezes, as crises nasceram desse modo. Mas a História não confirma que assim tenham nascido todas elas. E em particular não nasceu assim a crise que pôs em declínio a Idade Média e suscitou o Humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante.
Pelo próprio fato de pedir ao homem uma austeridade de costumes penosa para a natureza humana decaída, a influência da Igreja sobre cada alma, cada povo, cada cultura e cada civilização está continuamente ameaçada. As paixões desordenadas, atiçadas pela ação preternatural do Poder das Trevas, solicitam continuamente homens e povos para o mal. A debilidade da inteligência humana é explorável por essas tendências. O homem facilmente engendra sofismas para justificar as más ações que deseja praticar ou já praticou, os maus costumes que contraiu ou está contraindo. Disse-o Paul Bourget: “Cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu” [3].
Orgulho e sensualidade: importância culminante no processo de revolta contra a Igreja
Especialmente duas paixões podem suscitar a revolta do homem contra a Moral e contra a Fé cristãs: o orgulho e a sensualidade.
O orgulho leva-o a rejeitar qualquer superioridade existente em outrem, e gera nele um apetite de preeminência e de mando que facilmente chega ao paroxismo. Pois o paroxismo é o ponto final para o qual tendem todas as desordens. Em seu estado paroxístico, o orgulho assume coloridos metafísicos: já não se contenta em sacudir em concreto esta ou aquela superioridade, esta ou aquela estrutura hierárquica, mas deseja a abolição de toda e qualquer superioridade, em qualquer campo em que exista. A igualdade onímoda e completa se lhe afigura então a única situação suportável e, por isso mesmo, a suprema regra da justiça. Assim, o orgulho acaba por engendrar uma moral própria. E no âmago dessa moral orgulhosa está um princípio metafísico: a ordem do ser postula a igualdade, e tudo quanto é desigual é ontologicamente mau.
A igualdade absoluta é, para o que chamaríamos de orgulhoso integral, o valor supremo ao qual tudo tem de se conformar.
A luxúria é outra paixão desordenada, de importância culminante no processo de revolta contra a Igreja. De si, ela induz ao desbragamento, e convida assim o homem a calcar aos pés toda lei, a rejeitar como insuportável todo freio. Seus efeitos se somam aos do orgulho, para suscitar na mente humana toda espécie de sofismas capazes de minar no seu âmago o próprio princípio de autoridade.
Por isso, a tendência que o orgulho e a sensualidade despertam orienta-se para a abolição de toda desigualdade, de toda autoridade e de toda hierarquia.
Processos opostos: a Fé convida ao amor à hierarquia; a corrupção, ao igualitarismo anárquico
Claro está que essas paixões desordenadas, ainda quando o homem capitula diante delas, podem encontrar em uma alma—ou no espírito de um povo—contrapesos representados por convicções, tradições, etc.
Nesse caso, a alma—ou a mentalidade do povo—fica dividida em dois pólos opostos: de um lado a Fé, que convida à austeridade, à humildade, ao amor de todas as hierarquias legítimas; e de outro lado a corrupção, que convida ao igualitarismo completo, an-árquico no sentido etimológico da palavra. Como pouco adiante se verá, a corrupção acaba por induzir à dúvida religiosa e à negação completa da Fé.
O mais das vezes, a opção entre esses pólos não se faz de um momento para o outro, mas aos poucos. Por meio de sucessivos atos de amor à verdade e ao bem, uma pessoa ou uma nação pode ir progredindo gradualmente na virtude, até se converter por completo. Foi o que sucedeu com o Império Romano sob a influência das comunidades cristãs, das preces dos fiéis nas catacumbas e nos ermos, do heroísmo que revelavam na arena e dos exemplos de virtude que davam na vida cotidiana. É um processo de ascensão.
O processo também pode ser de decadência. Ao embate das paixões desordenadas, as boas convicções vão sendo abaladas, as boas tradições vão perdendo sua seiva, os bons costumes vão sendo substituídos por costumes picantes , que degeneram para o francamente censurável, e chegam por fim ao escandaloso.
Principais elementos doutrinários de "Revolução e Contra-Revolução"
Tudo isto dito, ficam aqui resumidos os principais elementos doutrinários em que baseei Revolução e Contra-Revolução :
a) a missão da Igreja como única Mestra, Guia e Fonte de Vida dos povos rumo à civilização perfeita;
b) a contínua oposição das paixões desordenadas, particularmente do orgulho e da luxúria, à influência da Igreja;
c) a existência, para o espírito humano, de dois pólos opostos, para um dos quais necessariamente ruma: de um lado a Fé católica, que induz ao amor da ordem, da austeridade e da hierarquia; e de outro lado as paixões desordenadas, que induzem ao desbragamento, à revolta contra a lei, contra a hierarquia, contra qualquer forma de desigualdade, e que levam por fim à dúvida e à inteira negação da Fé;
d) a noção de um processo -- entendida a expressão sem prejuízo do livre arbítrio—pelo qual gradualmente os indivíduos ou os povos, sofrendo a atração dos dois pólos opostos, se vão aproximando de um deles e distanciando do outro;
e) a influência desse processo moral sobre a elaboração das doutrinas. As más tendências inclinam ao erro. As boas tendêcias inclinam à verdade. As grandes modificações no espírito dos povos não são um mero resultado de doutrinas elaboradas por pequenos cenáculos de intelectuais que elucubram serenamente à margem da vida. Para que uma doutrina encontre ressonância num povo, é mister o mais das vezes que as tendências desse povo tenham afinidade com tal doutrina. E não é raro que a própria reflexão feita pelos doutos, nos gabinetes, seja mais influenciada do que se pensa por essas apetências do ambiente no qual eles mesmos vivem.
Algumas definições fundamentais: Ordem, Revolução, Contra-Revolução
Tendo tudo isto em mira, é fácil definir os conceitos de:
1. Ordem , que não é apenas a disposição metódica e prática das coisas materiais, mas, conforme o conceito tomista, a reta disposição das coisas segundo o seu fim próximo e remoto, físico e metafísico, natural e sobrenatural;
2. Revolução , que não é essencialmente uma agitação de rua, um tiroteio ou uma guerra civil, mas todo esforço que visa dispor os seres contra a Ordem;
3. Contra-Revolução , todo esforço que vise circunscrever e eliminar a Revolução.
Revolução A, tendenciosa e sofística; Revolução B, nas leis, estruturas, instituições e costumes
Como se vê, tanto a Ordem como a Revolução e a Contra-Revolução podem existir: a) nas tendências; b) nas idéias; e c) nas leis, nas estruturas, nas instituições, nos costumes.
Assim, chamo de tendenciosa a Revolução enquanto existente nas tendências. E de sofística enquanto se desenvolve no terreno das doutrinas, ao sopro das tendências.
Estas duas modalidades de Revolução constituem um fenômeno eminentemente espiritual, isto é, têm como campo de operação a alma humana e a mentalidade das sociedades. Elas formam portanto um todo, que denomino Revolução A .
Quando a Revolução passa do interior das almas para os atos, produzindo convulsões históricas, desordenando as leis, estruturas, instituições, etc., ela constitui o que chamo de Revolução B .
Claro está que estas noções, apresentadas assim com o máximo de brevidade, pedem uma série de ressalvas e de conformes, que exponho em Revolução e Contra-Revolução , e que não caberia aqui explanar.
Limito-me a esclarecer que, delineando nesses traços o que há de mais essencial na História, não pretendo que ela se reduza a isto. A observação mais elementar indica que um sem-número de fatores, entre os quais os étnicos, geográficos e econômicos, condicionam possantemente o curso da História.
Quem for igualitário terá forçosamente objeções contra a Fé
Resta-me dizer uma palavra sobre o nexo existente entre o igualitarismo absoluto e metafísico, e a Fé. Quem for radicalmente igualitário terá forçosamente um sem-número de objeções à doutrina católica. Os conceitos de um Deus pessoal, perfeito e eterno, que paira infinitamente acima de suas criaturas imperfeitas e contingentes; da ordem sobrenatural, que transcende a ordem natural; da Lei promulgada por Deus, à qual cumpre obedecer; da Revelação, que comunica à mente humana verdades superiores à sua capacidade natural de conhecimento; do Magistério infalível da Igreja; das notas monárquica e aristocrática da estrutura desta; tudo, enfim, e até a noção de um Juízo em que os bons vão ser premiados e os maus castigados, irrita o igualitário e o convida à negação.
A contrario sensu , o católico aprende em Santo Tomás ( Summa Theologica , I, q. 47, a. 2) que a desigualdade é uma condição necessária para a perfeição da ordem criada. E, em conseqüência, as desigualdades de poder, ciência, categoria social e fortuna são intrinsecamente legítimas e indispensáveis à boa ordem, desde que não se acentuem a ponto de negar a cada homem a dignidade, a suficiência e a estabilidade de vida a que tenha direito por sua condição de homem, por seu trabalho, etc.
Primeira Revolução: Humanismo, Renascença, Protestantismo
Isto posto, descobre-se o sentido profundo da Revolução A sofística e da Revolução B ocorridas na Europa, no século XV, em conseqüência da anterior Revolução A tendenciosa, acima descrita.
O declínio da Idade Média foi marcado por uma explosão de orgulho e sensualidade. Essa explosão gerou tendências igualitárias e liberais, que não fizeram senão progredir nos séculos seguintes.
No Humanismo e na Renascença revela-se a hostilidade ao sobrenatural, ao Magistério da Igreja, bem como à austeridade dos costumes. No Protestantismo se encontram o livre-exame, o minimalismo em face do sobrenatural, o favorecimento do divórcio, a abolição do estado religioso, das austeridades e sujeições expressas nos votos de pobreza, castidade e obediência, e a eliminação virtual da hierarquia eclesiástica. Com efeito, em quase todas as seitas protestantes há o estado eclesiástico. Mas a diferença nítida e profunda entre o eclesiástico e o leigo, existente na Igreja Católica, ficou nelas debilitada em virtude do modo pelo qual entendem o sacerdócio. Ademais, a estrutura hierárquica do estado eclesiástico, como é instituída na Igreja, também foi profundamente mutilada, nas seitas protestantes, pela negação do elemento monárquico, que é o Papado. Se entre os anglicanos a tendência igualitária não chegou a suprimir a dignidade episcopal, já entre os presbiterianos não há dignitários intitulados bispos , mas apenas presbíteros . Em outras seitas o sopro do igualitarismo chegou a ponto de abolir mesmo a condição de sacerdote .
Ao realçar a importância do fator liberal e igualitário no Humanismo, na Renascença e no Protestantismo, não pretendo negar, é claro, que outras causas tenham concorrido para a gênese e expansão desses movimentos. Digo apenas que, na origem, na psicologia, nas doutrinas, no que hoje se chamaria de êxito propagandístico e nas realizações desses movimentos, a Revolução A tendenciosa , de sentido radicalmente anárquico e igualitário, representou o papel de força mestra.
Também não pretendo afirmar que essa força mestra tenha atuado apenas nas nações que se separaram da Igreja. A Renascença e o Humanismo sopraram com toda a intensidade mesmo nos países que continuaram nominalmente católicos. E ainda que a Revolução A tendenciosa não tenha chegado a provocar uma ruptura explícita deles com a Igreja, despertou entretanto formas larvadas de protestantismo, das quais a principal foi o jansenismo. Este produziu um progressivo esfriamento religioso, que culminou no ceticismo. Um estudo atento do absolutismo real, que em nenhum país protestante assumiu formas mais radicais do que na França católica, mostra que a política dos monarcas absolutos, em tudo quanto não dizia respeito à sua própria autoridade, era marcada por certo espírito igualitário. A redução dos privilégios do clero e da nobreza, feita progressivamente pelos reis absolutos, rumava para uma equiparação política de todos os cidadãos sob o poder do monarca. O favorecimento contínuo, pelos reis, da parte mais atuante e desenvolvida da plebe, isto é, da burguesia, contribuiu ainda mais para a igualdade política.
Segunda Revolução: Enciclopedismo, absolutismo, Revolução Francesa
A corrupção dos costumes, que vinha crescendo desde o fim da Idade Média, atingira no século XVIII um grau que espantava até alguns de seus corifeus.
A sociedade francesa, túmida dos fatores que nos países nórdicos haviam produzido o Protestantismo, se preparava, através do enciclopedismo e do absolutismo, para uma convulsão profunda, que outra coisa não seria senão a projeção, na esfera política, social e econômica, com novos desdobramentos no campo religioso e filosófico, daquilo que fora a essência do Protestantismo.
Assim, quando este último, em fins do século XVIII, já cansado e envelhecido, se mostrava falho de força de expansão, minado por dentro pelos progressos crescentes da dúvida e do ceticismo, e conservando uns restos de vida graças principalmente ao apoio do Estado, na França as tendências liberais e igualitárias atingiam um ápice. O Humanismo e a Renascença estavam mortos havia muito tempo. No Protestantismo, como acaba de ser dito, tudo estava gasto. Mas o que esses três movimentos tinham de mais dinâmico e fundamental—o espírito que os suscitara—a eles sobrevivera e estava mais forte do que nunca. Esse espírito haveria de lançar a França, e depois a Europa inteira, num cataclismo liberal e igualitário.
A Revolução Francesa de tal maneira era marcada pelo espírito protestante, que a Igreja constitucional por ela organizada não era senão um mal velado instrumento para implantar na França um verdadeiro Protestantismo. O sentido igualitário, antimonárquico e antiaristocrático da Revolução Francesa é a projeção, na esfera civil, da tendência igualitária que levou o Protestantismo a rejeitar os elementos aristocrático e monárquico da hierarquia eclesiástica. O fermento comunista, que trabalhava a extrema esquerda da Revolução, e que acabou por se explicitar em movimentos como o de Babeuf, não era senão o símile laico dos movimentos comunistas, como o dos irmãos Morávio, que brotaram daquilo que se poderia chamar a extrema-esquerda protestante. A completa laicização do Estado, a mascarada greco-romana, a contínua evocação das repúblicas do paganismo clássico, mostravam na Revolução Francesa o efeito do Humanismo, da Renascença e do Enciclopedismo.
Cumpre insistir. O Protestantismo, o Humanismo, a Renascença não foram senão aspectos que o espírito anárquico e igualitário tomou em sua longa trajetória histórica. Esses aspectos se extinguiram, em parte porque o espírito que os suscitara, destruidor por excelência, os aniquilara no seu próprio foco. A Revolução Francesa não foi senão um aspecto novo e ainda mais enérgico desse mesmo espírito.
A Revolução Francesa propagou-se por toda a Europa nas mochilas das tropas de Napoleão
Através de vicissitudes históricas bem conhecidas, a Revolução Francesa, aparentemente encerrada com a instauração do Império, propagou-se na mochila das tropas de Napoleão por toda a Europa. As guerras e revoluções que marcaram o período de 1814 a 1918, isto é, da queda de Napoleão até a queda dos Habsburg, dos Romanov e dos Hohenzollern, foram um conjunto de convulsões ao longo das quais toda a Europa se metamorfoseou segundo o espírito da Revolução Francesa. Os resultados da II Guerra Mundial não fizeram senão acentuar ainda mais essa metamorfose. Hoje, das antigas monarquias européias só resta uma meia dúzia, todas tão tímidas em se afirmarem e tão dóceis em se deixarem modelar cada vez mais pelo espírito republicano, que se tem a impressão de que a todo momento estão a pedir desculpas por ainda viverem...
Ao fazer estas observações, de modo nenhum quero negar que houvesse, nas estruturas assim destruídas, reais abusos que estavam a pedir corretivo. Nem quero dizer que a adoção de uma forma de governo eletiva e popular só possa resultar do espírito igualitário e liberal que venho analisando. Isto não seria verdade em doutrina, nem se justificaria em vista da História. A Idade Média conheceu várias estruturas políticas aristocráticas, se bem que não monárquicas, como a República de Veneza, e várias estruturas sem caráter monárquico nem aristocrático, como certos cantões helvéticos e cidades livres alemãs. Todas essas formas de governo conviviam pacificamente entre si. Pois se compreendia a legítima diversidade de formas de governo segundo os tempos, os lugares e as demais circunstâncias.
A Revolução que eclodiu em fins da Idade Média era animada de um espírito completamente diverso do que levara à formação dos Estados aristocráticos ou burgueses da Europa medieval. Esse espírito importava na afirmação da liberdade absoluta e anárquica, e da igualdade completa, como únicas regras de ordem e justiça, válidas para todos os tempos e todos os lugares.
Por sua vez, esse espírito minou a sociedade burguesa, politicamente igualitária, a que dera origem. E passou por fim a se manifestar na mais audaciosa de suas afirmações, na terceira grande Revolução do Ocidente, que é o comunismo.[1] Alocução ao Presidente da República Italiana de 11 de janeiro de 1964, Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. II, p. 69.
Esta última, eu a tenho exercido num campo muito definido: a difusão doutrinária, feita ora com o caráter de diálogo, ora—por mais que a noção e a palavra pareçam anacrônicas, sinto todo o desembaraço ao fazer o presente depoimento—também de polêmica.
O ensaio em que condenso o essencial de meu pensamento explica o sentido de minha atuação ideológica. Trata-se do livro Revolução e Contra-Revolução .
As grandes transformações históricas resultam da atitude do espírito humano perante a Religião e a Filosofia
Um dos pressupostos desse ensaio é que, ao contrário do que pretendem tantos filósofos e sociólogos, o curso da História não é traçado exclusiva ou preponderantemente pelas injunções da matéria sobre o homem. Estas influem, sem dúvida, no agir humano. Mas a direção da História pertence ao homem, dotado que é de uma alma racional e livre. Em outros termos, é ele que, atuando ora mais profundamente, ora menos, sobre as circunstâncias em que se encontra, e recebendo também, em medida variável, as influências destas, comunica aos acontecimentos o seu curso.
Ora, o agir do homem se faz normalmente em função de suas concepções sobre o universo, sobre si mesmo e sobre a vida. Isto importa em dizer que as doutrinas religiosas e filosóficas dominam a História, e que o núcleo mais dinâmico dos fatores de que resultam as grandes transformações históricas está nas sucessivas atitudes do espírito humano perante a Religião e a Filosofia.
Civilização cristã: em inteira consonância com os princípios básicos e perenes da lei natural e da Lei de Deus
Passo a outro pressuposto de Revolução e Contra-Revolução . Uma concepção católica da História deve levar em toda conta o fato de que a Lei Antiga e a Lei Nova contêm em si não só os preceitos segundo os quais o homem deve modelar sua alma na imitação de Cristo, preparando-se desse modo para a visão beatífica, como também as normas fundamentais do procedimento humano, conformes à ordem natural das coisas.
Assim, ao mesmo tempo que o homem se eleva na vida da graça, vai, pela prática da virtude, elaborando uma cultura, uma ordem política, econômica e social, em inteira consonância com os princípios básicos e perenes da lei natural e da Lei de Deus. É o que se chama a civilização cristã.
É óbvio que a boa disposição das coisas terrenas não se cifra exclusivamente a esses princípios básicos e perenes, e comporta muito de contingente, transitório e livre. A civilização cristã abrange uma incalculável variedade de aspectos e matizes. É isto tão verdadeiro que, de certo ponto de vista, se pode até falar em civilizações cristãs , e não apenas em civilização cristã . Não obstante, dada a identidade dos princípios fundamentais inerentes a todas as civilizações cristãs, a grande realidade que paira por cima de todas elas é uma possante unidade que merece o nome de civilização cristã por antonomásia. A unidade na variedade, e a variedade na unidade, são elementos de perfeição. A civilização cristã continua una em toda a variedade de suas realizações, de maneira a poder-se dizer que, no sentido mais profundo da palavra, há uma só civilização cristã. Mas ela é tão prodigiosamente vária em sua unidade que, com uma legítima liberdade de expressão, se pode afirmar, sob certo ponto de vista, existirem várias civilizações cristãs.
Dado este esclarecimento—que aliás vale analogamente para o conceito de cultura católica—observo que empregarei as expressões civilização cristã e cultura cristã no seu sentido maior , que é o da unidade.
Dispenso-me de fundamentar as asserções acima em textos de Santo Tomás ou do Magistério da Igreja, pois são eles tão numerosos e tão do conhecimento dos que com seriedade estudam esses assuntos, que o trabalho resultaria ao mesmo tempo fastidioso e supérfluo. Esta observação vale também para mais algumas considerações que se seguirão nesta primeira parte da presente exposição.
Em função destes pressupostos é fácil definir o papel da Igreja e da civilização cristã na História.
As nações só podem alcançar a civilização perfeita mediante a correspondência à graça e à Fé
É certo que, embora o homem possa conhecer com firme certeza e sem eiva de erro aquilo que nas coisas divinas não é de per si inacessível à razão humana, dado o pecado original é impossível ao homem praticar duravelmente a Lei de Deus. É só por meio da graça que tal se lhe torna possível. Ainda assim, para acautelar o homem contra sua própria maldade e sua própria fraqueza, Jesus Cristo dotou a Igreja de um Magistério infalível, que lhe ensinasse sem erro, não só as verdades religiosas, como também as verdades morais necessárias à salvação.
A adesão do homem ao Magistério da Igreja é fruto da Fé. Sem a Fé não pode o homem praticar durável e integralmente os Mandamentos.
Daí resulta que as nações só podem alcançar a civilização perfeita, que é a civilização cristã, mediante a correspondência à graça e à Fé, o que inclui um firme reconhecimento da Igreja Católica como única verdadeira, e do Magistério eclesiástico como infalível.
Assim, o ponto chave mais profundo e mais central da História consiste em que os homens conheçam, professem e pratiquem a Fé católica.
Dizendo-o, não nego evidentemente que tenha havido civilizações não cristãs de alto teor. Todas elas, entretanto, foram desfiguradas por estes ou aqueles traços que destoaram chocantemente da própria elevação que sob outros aspectos apresentavam. Basta recordar a enorme extensão da escravatura e a condição vil imposta à mulher antes de Jesus Cristo. E nenhuma civilização houve que apresentasse a perfeição excelsa inerente à civilização cristã.
Igualmente não contesto que, em países de população prevalentemente cismática ou herética, a civilização possa conter importantes traços de tradição cristã. Entretanto, a plenitude da civilização cristã, só da Igreja Católica pode florescer e só em povos católicos pode conservar-se cabalmente.
“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados...”
Mas—perguntará alguém—quando existiu historicamente essa civilização cristã perfeita? Será a perfeição realizável nesta vida?
A resposta a estas perguntas chocará e irritará muitos leitores. Sem embargo, devo afirmar que houve tempo no qual uma larga parte da humanidade conheceu esse ideal de perfeição e para ele tendeu com fervor e sinceridade. Em conseqüência dessa tendência das almas, os traços fundamentais da civilização se tornaram tão cristãos quanto o permitiram as circunstâncias de um mundo que se ia soerguendo da barbárie. Refiro-me à Idade Média, da qual, a despeito desta ou daquela falha, Leão XIII escreveu com eloqüência: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”
Este modo de ver a amplitude da influência da Igreja na Idade Média, nós o encontramos também no seguinte texto de Paulo VI, referente ao papel do Papado na Itália medieval: “Não esquecemos os séculos durante os quais o Papado viveu sua História, defendeu suas fronteiras, guardou seu patrimônio cultural e espiritual, educou as suas gerações para a civilização, para a polidez, para a virtude moral e social, e associou sua consciência romana e seus melhores filhos à própria missão universal”[1].
Assim, a civilização cristã não é uma utopia. É algo de realizável, e que em determinada época se realizou efetivamente. Algo, enfim, que durou de certo modo mesmo depois da Idade Média, a tal ponto que o Papa São Pio X pôde escrever: “A civilização não mais está para ser inventada, nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe: é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade” [2]. Portanto, a civilização cristã tem largos vestígios ainda vivos em nossos dias.
As crises nascem, não da mente de algum pensador, mas das paixões desordenadas, atiçadas pelo Poder das Trevas
Há quem imagine todas as crises da cultura e da civilização como nascidas necessariamente de algum pensador, de cuja mente possante partiria sempre a centelha esclarecedora—ou destruidora—que se comunicaria primeiramente aos ambientes de alta cultura e ganharia depois todo o corpo social. É claro que, por vezes, as crises nasceram desse modo. Mas a História não confirma que assim tenham nascido todas elas. E em particular não nasceu assim a crise que pôs em declínio a Idade Média e suscitou o Humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante.
Pelo próprio fato de pedir ao homem uma austeridade de costumes penosa para a natureza humana decaída, a influência da Igreja sobre cada alma, cada povo, cada cultura e cada civilização está continuamente ameaçada. As paixões desordenadas, atiçadas pela ação preternatural do Poder das Trevas, solicitam continuamente homens e povos para o mal. A debilidade da inteligência humana é explorável por essas tendências. O homem facilmente engendra sofismas para justificar as más ações que deseja praticar ou já praticou, os maus costumes que contraiu ou está contraindo. Disse-o Paul Bourget: “Cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu” [3].
Orgulho e sensualidade: importância culminante no processo de revolta contra a Igreja
Especialmente duas paixões podem suscitar a revolta do homem contra a Moral e contra a Fé cristãs: o orgulho e a sensualidade.
O orgulho leva-o a rejeitar qualquer superioridade existente em outrem, e gera nele um apetite de preeminência e de mando que facilmente chega ao paroxismo. Pois o paroxismo é o ponto final para o qual tendem todas as desordens. Em seu estado paroxístico, o orgulho assume coloridos metafísicos: já não se contenta em sacudir em concreto esta ou aquela superioridade, esta ou aquela estrutura hierárquica, mas deseja a abolição de toda e qualquer superioridade, em qualquer campo em que exista. A igualdade onímoda e completa se lhe afigura então a única situação suportável e, por isso mesmo, a suprema regra da justiça. Assim, o orgulho acaba por engendrar uma moral própria. E no âmago dessa moral orgulhosa está um princípio metafísico: a ordem do ser postula a igualdade, e tudo quanto é desigual é ontologicamente mau.
A igualdade absoluta é, para o que chamaríamos de orgulhoso integral, o valor supremo ao qual tudo tem de se conformar.
A luxúria é outra paixão desordenada, de importância culminante no processo de revolta contra a Igreja. De si, ela induz ao desbragamento, e convida assim o homem a calcar aos pés toda lei, a rejeitar como insuportável todo freio. Seus efeitos se somam aos do orgulho, para suscitar na mente humana toda espécie de sofismas capazes de minar no seu âmago o próprio princípio de autoridade.
Por isso, a tendência que o orgulho e a sensualidade despertam orienta-se para a abolição de toda desigualdade, de toda autoridade e de toda hierarquia.
Processos opostos: a Fé convida ao amor à hierarquia; a corrupção, ao igualitarismo anárquico
Claro está que essas paixões desordenadas, ainda quando o homem capitula diante delas, podem encontrar em uma alma—ou no espírito de um povo—contrapesos representados por convicções, tradições, etc.
Nesse caso, a alma—ou a mentalidade do povo—fica dividida em dois pólos opostos: de um lado a Fé, que convida à austeridade, à humildade, ao amor de todas as hierarquias legítimas; e de outro lado a corrupção, que convida ao igualitarismo completo, an-árquico no sentido etimológico da palavra. Como pouco adiante se verá, a corrupção acaba por induzir à dúvida religiosa e à negação completa da Fé.
O mais das vezes, a opção entre esses pólos não se faz de um momento para o outro, mas aos poucos. Por meio de sucessivos atos de amor à verdade e ao bem, uma pessoa ou uma nação pode ir progredindo gradualmente na virtude, até se converter por completo. Foi o que sucedeu com o Império Romano sob a influência das comunidades cristãs, das preces dos fiéis nas catacumbas e nos ermos, do heroísmo que revelavam na arena e dos exemplos de virtude que davam na vida cotidiana. É um processo de ascensão.
O processo também pode ser de decadência. Ao embate das paixões desordenadas, as boas convicções vão sendo abaladas, as boas tradições vão perdendo sua seiva, os bons costumes vão sendo substituídos por costumes picantes , que degeneram para o francamente censurável, e chegam por fim ao escandaloso.
Principais elementos doutrinários de "Revolução e Contra-Revolução"
Tudo isto dito, ficam aqui resumidos os principais elementos doutrinários em que baseei Revolução e Contra-Revolução :
a) a missão da Igreja como única Mestra, Guia e Fonte de Vida dos povos rumo à civilização perfeita;
b) a contínua oposição das paixões desordenadas, particularmente do orgulho e da luxúria, à influência da Igreja;
c) a existência, para o espírito humano, de dois pólos opostos, para um dos quais necessariamente ruma: de um lado a Fé católica, que induz ao amor da ordem, da austeridade e da hierarquia; e de outro lado as paixões desordenadas, que induzem ao desbragamento, à revolta contra a lei, contra a hierarquia, contra qualquer forma de desigualdade, e que levam por fim à dúvida e à inteira negação da Fé;
d) a noção de um processo -- entendida a expressão sem prejuízo do livre arbítrio—pelo qual gradualmente os indivíduos ou os povos, sofrendo a atração dos dois pólos opostos, se vão aproximando de um deles e distanciando do outro;
e) a influência desse processo moral sobre a elaboração das doutrinas. As más tendências inclinam ao erro. As boas tendêcias inclinam à verdade. As grandes modificações no espírito dos povos não são um mero resultado de doutrinas elaboradas por pequenos cenáculos de intelectuais que elucubram serenamente à margem da vida. Para que uma doutrina encontre ressonância num povo, é mister o mais das vezes que as tendências desse povo tenham afinidade com tal doutrina. E não é raro que a própria reflexão feita pelos doutos, nos gabinetes, seja mais influenciada do que se pensa por essas apetências do ambiente no qual eles mesmos vivem.
Algumas definições fundamentais: Ordem, Revolução, Contra-Revolução
Tendo tudo isto em mira, é fácil definir os conceitos de:
1. Ordem , que não é apenas a disposição metódica e prática das coisas materiais, mas, conforme o conceito tomista, a reta disposição das coisas segundo o seu fim próximo e remoto, físico e metafísico, natural e sobrenatural;
2. Revolução , que não é essencialmente uma agitação de rua, um tiroteio ou uma guerra civil, mas todo esforço que visa dispor os seres contra a Ordem;
3. Contra-Revolução , todo esforço que vise circunscrever e eliminar a Revolução.
Revolução A, tendenciosa e sofística; Revolução B, nas leis, estruturas, instituições e costumes
Como se vê, tanto a Ordem como a Revolução e a Contra-Revolução podem existir: a) nas tendências; b) nas idéias; e c) nas leis, nas estruturas, nas instituições, nos costumes.
Assim, chamo de tendenciosa a Revolução enquanto existente nas tendências. E de sofística enquanto se desenvolve no terreno das doutrinas, ao sopro das tendências.
Estas duas modalidades de Revolução constituem um fenômeno eminentemente espiritual, isto é, têm como campo de operação a alma humana e a mentalidade das sociedades. Elas formam portanto um todo, que denomino Revolução A .
Quando a Revolução passa do interior das almas para os atos, produzindo convulsões históricas, desordenando as leis, estruturas, instituições, etc., ela constitui o que chamo de Revolução B .
Claro está que estas noções, apresentadas assim com o máximo de brevidade, pedem uma série de ressalvas e de conformes, que exponho em Revolução e Contra-Revolução , e que não caberia aqui explanar.
Limito-me a esclarecer que, delineando nesses traços o que há de mais essencial na História, não pretendo que ela se reduza a isto. A observação mais elementar indica que um sem-número de fatores, entre os quais os étnicos, geográficos e econômicos, condicionam possantemente o curso da História.
Quem for igualitário terá forçosamente objeções contra a Fé
Resta-me dizer uma palavra sobre o nexo existente entre o igualitarismo absoluto e metafísico, e a Fé. Quem for radicalmente igualitário terá forçosamente um sem-número de objeções à doutrina católica. Os conceitos de um Deus pessoal, perfeito e eterno, que paira infinitamente acima de suas criaturas imperfeitas e contingentes; da ordem sobrenatural, que transcende a ordem natural; da Lei promulgada por Deus, à qual cumpre obedecer; da Revelação, que comunica à mente humana verdades superiores à sua capacidade natural de conhecimento; do Magistério infalível da Igreja; das notas monárquica e aristocrática da estrutura desta; tudo, enfim, e até a noção de um Juízo em que os bons vão ser premiados e os maus castigados, irrita o igualitário e o convida à negação.
A contrario sensu , o católico aprende em Santo Tomás ( Summa Theologica , I, q. 47, a. 2) que a desigualdade é uma condição necessária para a perfeição da ordem criada. E, em conseqüência, as desigualdades de poder, ciência, categoria social e fortuna são intrinsecamente legítimas e indispensáveis à boa ordem, desde que não se acentuem a ponto de negar a cada homem a dignidade, a suficiência e a estabilidade de vida a que tenha direito por sua condição de homem, por seu trabalho, etc.
Primeira Revolução: Humanismo, Renascença, Protestantismo
Isto posto, descobre-se o sentido profundo da Revolução A sofística e da Revolução B ocorridas na Europa, no século XV, em conseqüência da anterior Revolução A tendenciosa, acima descrita.
O declínio da Idade Média foi marcado por uma explosão de orgulho e sensualidade. Essa explosão gerou tendências igualitárias e liberais, que não fizeram senão progredir nos séculos seguintes.
No Humanismo e na Renascença revela-se a hostilidade ao sobrenatural, ao Magistério da Igreja, bem como à austeridade dos costumes. No Protestantismo se encontram o livre-exame, o minimalismo em face do sobrenatural, o favorecimento do divórcio, a abolição do estado religioso, das austeridades e sujeições expressas nos votos de pobreza, castidade e obediência, e a eliminação virtual da hierarquia eclesiástica. Com efeito, em quase todas as seitas protestantes há o estado eclesiástico. Mas a diferença nítida e profunda entre o eclesiástico e o leigo, existente na Igreja Católica, ficou nelas debilitada em virtude do modo pelo qual entendem o sacerdócio. Ademais, a estrutura hierárquica do estado eclesiástico, como é instituída na Igreja, também foi profundamente mutilada, nas seitas protestantes, pela negação do elemento monárquico, que é o Papado. Se entre os anglicanos a tendência igualitária não chegou a suprimir a dignidade episcopal, já entre os presbiterianos não há dignitários intitulados bispos , mas apenas presbíteros . Em outras seitas o sopro do igualitarismo chegou a ponto de abolir mesmo a condição de sacerdote .
Ao realçar a importância do fator liberal e igualitário no Humanismo, na Renascença e no Protestantismo, não pretendo negar, é claro, que outras causas tenham concorrido para a gênese e expansão desses movimentos. Digo apenas que, na origem, na psicologia, nas doutrinas, no que hoje se chamaria de êxito propagandístico e nas realizações desses movimentos, a Revolução A tendenciosa , de sentido radicalmente anárquico e igualitário, representou o papel de força mestra.
Também não pretendo afirmar que essa força mestra tenha atuado apenas nas nações que se separaram da Igreja. A Renascença e o Humanismo sopraram com toda a intensidade mesmo nos países que continuaram nominalmente católicos. E ainda que a Revolução A tendenciosa não tenha chegado a provocar uma ruptura explícita deles com a Igreja, despertou entretanto formas larvadas de protestantismo, das quais a principal foi o jansenismo. Este produziu um progressivo esfriamento religioso, que culminou no ceticismo. Um estudo atento do absolutismo real, que em nenhum país protestante assumiu formas mais radicais do que na França católica, mostra que a política dos monarcas absolutos, em tudo quanto não dizia respeito à sua própria autoridade, era marcada por certo espírito igualitário. A redução dos privilégios do clero e da nobreza, feita progressivamente pelos reis absolutos, rumava para uma equiparação política de todos os cidadãos sob o poder do monarca. O favorecimento contínuo, pelos reis, da parte mais atuante e desenvolvida da plebe, isto é, da burguesia, contribuiu ainda mais para a igualdade política.
Segunda Revolução: Enciclopedismo, absolutismo, Revolução Francesa
A corrupção dos costumes, que vinha crescendo desde o fim da Idade Média, atingira no século XVIII um grau que espantava até alguns de seus corifeus.
A sociedade francesa, túmida dos fatores que nos países nórdicos haviam produzido o Protestantismo, se preparava, através do enciclopedismo e do absolutismo, para uma convulsão profunda, que outra coisa não seria senão a projeção, na esfera política, social e econômica, com novos desdobramentos no campo religioso e filosófico, daquilo que fora a essência do Protestantismo.
Assim, quando este último, em fins do século XVIII, já cansado e envelhecido, se mostrava falho de força de expansão, minado por dentro pelos progressos crescentes da dúvida e do ceticismo, e conservando uns restos de vida graças principalmente ao apoio do Estado, na França as tendências liberais e igualitárias atingiam um ápice. O Humanismo e a Renascença estavam mortos havia muito tempo. No Protestantismo, como acaba de ser dito, tudo estava gasto. Mas o que esses três movimentos tinham de mais dinâmico e fundamental—o espírito que os suscitara—a eles sobrevivera e estava mais forte do que nunca. Esse espírito haveria de lançar a França, e depois a Europa inteira, num cataclismo liberal e igualitário.
A Revolução Francesa de tal maneira era marcada pelo espírito protestante, que a Igreja constitucional por ela organizada não era senão um mal velado instrumento para implantar na França um verdadeiro Protestantismo. O sentido igualitário, antimonárquico e antiaristocrático da Revolução Francesa é a projeção, na esfera civil, da tendência igualitária que levou o Protestantismo a rejeitar os elementos aristocrático e monárquico da hierarquia eclesiástica. O fermento comunista, que trabalhava a extrema esquerda da Revolução, e que acabou por se explicitar em movimentos como o de Babeuf, não era senão o símile laico dos movimentos comunistas, como o dos irmãos Morávio, que brotaram daquilo que se poderia chamar a extrema-esquerda protestante. A completa laicização do Estado, a mascarada greco-romana, a contínua evocação das repúblicas do paganismo clássico, mostravam na Revolução Francesa o efeito do Humanismo, da Renascença e do Enciclopedismo.
Cumpre insistir. O Protestantismo, o Humanismo, a Renascença não foram senão aspectos que o espírito anárquico e igualitário tomou em sua longa trajetória histórica. Esses aspectos se extinguiram, em parte porque o espírito que os suscitara, destruidor por excelência, os aniquilara no seu próprio foco. A Revolução Francesa não foi senão um aspecto novo e ainda mais enérgico desse mesmo espírito.
A Revolução Francesa propagou-se por toda a Europa nas mochilas das tropas de Napoleão
Através de vicissitudes históricas bem conhecidas, a Revolução Francesa, aparentemente encerrada com a instauração do Império, propagou-se na mochila das tropas de Napoleão por toda a Europa. As guerras e revoluções que marcaram o período de 1814 a 1918, isto é, da queda de Napoleão até a queda dos Habsburg, dos Romanov e dos Hohenzollern, foram um conjunto de convulsões ao longo das quais toda a Europa se metamorfoseou segundo o espírito da Revolução Francesa. Os resultados da II Guerra Mundial não fizeram senão acentuar ainda mais essa metamorfose. Hoje, das antigas monarquias européias só resta uma meia dúzia, todas tão tímidas em se afirmarem e tão dóceis em se deixarem modelar cada vez mais pelo espírito republicano, que se tem a impressão de que a todo momento estão a pedir desculpas por ainda viverem...
Ao fazer estas observações, de modo nenhum quero negar que houvesse, nas estruturas assim destruídas, reais abusos que estavam a pedir corretivo. Nem quero dizer que a adoção de uma forma de governo eletiva e popular só possa resultar do espírito igualitário e liberal que venho analisando. Isto não seria verdade em doutrina, nem se justificaria em vista da História. A Idade Média conheceu várias estruturas políticas aristocráticas, se bem que não monárquicas, como a República de Veneza, e várias estruturas sem caráter monárquico nem aristocrático, como certos cantões helvéticos e cidades livres alemãs. Todas essas formas de governo conviviam pacificamente entre si. Pois se compreendia a legítima diversidade de formas de governo segundo os tempos, os lugares e as demais circunstâncias.
A Revolução que eclodiu em fins da Idade Média era animada de um espírito completamente diverso do que levara à formação dos Estados aristocráticos ou burgueses da Europa medieval. Esse espírito importava na afirmação da liberdade absoluta e anárquica, e da igualdade completa, como únicas regras de ordem e justiça, válidas para todos os tempos e todos os lugares.
Por sua vez, esse espírito minou a sociedade burguesa, politicamente igualitária, a que dera origem. E passou por fim a se manifestar na mais audaciosa de suas afirmações, na terceira grande Revolução do Ocidente, que é o comunismo.[1] Alocução ao Presidente da República Italiana de 11 de janeiro de 1964, Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. II, p. 69.
[2] Carta Apostólica _ Notre Charge Apostolique de 25 de agosto de 1910, Acta Apostolicae Sedis , vol. II, p. 612.
[3] Le Démon du Midi , Plon, Paris, 1914, vol. II, p. 375.
[3] Le Démon du Midi , Plon, Paris, 1914, vol. II, p. 375.
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