quinta-feira, 30 de março de 2023

EXEMPLOS DE MULHERES HERÓICAS BRASILEIRAS

 

 

 


Ana Néri - Chamava-se Ana Justina Ferreira Néri e nasceu a 13 de dezembro de 1814 na cidade de Cachoeira, Bahia, que na época tinha o nome de Vila de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira. Quando irrompeu a guerra do Paraguai, em dezembro de 1864, Ana morava em Salvador. Em 8 de agosto de 1865 enviou ofício ao presidente da província solicitando trabalho como enfermeira na guerra. Alegava dois motivos: atenuar o sofrimento dos que lutavam pela defesa da pátria e estar junto de seus filhos que já se achavam na frente de combate.

Sem esperar o deferimento de seu pedido, Ana embarcou junto com o exército de voluntários 5 dias depois.  Demorou quase cinco anos com o exército, perdendo na guerra um filho e um sobrinho. Sua participação foi tida como heróica, pois não temeu permanecer no campo de batalha para socorrer solicitamente todos os feridos que a procuravam no hospital de campanha.

No entanto, não foi Ana Néri a primeira mulher a partir para a guerra como enfermeira, mas sim a paulista Felisbina Rosa.

Felisbina Rosa - Nascida em Santos (SP), em 1830, quando eclodiu a guerra do Paraguai Felisbina era viúva e tinha um filho. Um dos motivos de sua ida para a guerra foi também para estar ao lado de seu filho, além de prestar socorro aos feridos em combate. Apresentou-se como enfermeira e obteve as vantagens conferidas às religiosas da Santa Casa de Misericórdia. Em virtude de Ana Néri só ter partido para a guerra 7 ou 8 meses depois, os paulistas reivindicam para Felisbina o título de primeira enfermeira que vem sendo conferido à baiana.

Felisbina não teve a mesma sorte de Ana Néri, pois morreu na guerra. Esteve na frente de batalha da passagem do Paraná e na batalha de Tuiuti, onde socorria os feridos com abnegação e carinho. Regressou a Corrientes acompanhando os feridos em batalha. Estava assistindo a um enfermo, quando, repentinamente, no dia 31 de julho de 1866, sofreu um colapso cardíaco, falecendo em seguida. Seu filho continuou no serviço do Exército e chegou ao posto de general.

As órfãs da rainha -  Junto com os governadores do Brasil, vieram algumas órfãs que a rainha de Portugal mandou para o Brasil a partir de 1551. De modo geral eram descendentes da pequena nobreza, cujos pais haviam morrido em viagens ou em guerras. Um único dote que levavam era a promessa de um cargo público para seus maridos que o rei afiançava desde logo. Este fato histórico desmente, de algum modo, a calúnia de alguns historiadores que afirmam que os reis de Portugal só mandavam para o Brasil degredados e bandidos... Abaixo, relatamos o destino que aqui teve cada uma delas.

Ana de Paiva casou-se com Salvador da Fonseca, futuro escrivão da Provedoria da Fazenda. Ficou viúva e retornou depois para Portugal. Apolônia de Góis viveu na Bahia onde casou-se com Damião Lopes Mesquita. Mécia Lobo de Mendonça, Joana Barbosa Lobo e Marta de Souza Lobo eram três irmãs, filhas de um nobre que havia morrido na conquista das Índias, o general Baltasar Lobo de Souza. Mécia casou-se com Jerônimo Moniz Barreto com quem teve duas filhas;  Joana casou-se com Rodrigo de Argolo; e Marta casou-se com João Gonçalves Dormundo, fazendeiro de Ilhéus, com quem teve três filhos, os quais adotaram a grafia inglesa do nome do pai Drummond, e não Dormundo. 

As demais, Catarina de Almeida, casou-se com Gaspar Barros Magalhães com quem teve oito filhos; Catarina Fróis, filha de Mécia Rodrigues e Simão Rodrigues de Fróis, casou-se com Francisco de Morais e teve três filhas; Clemência  Dória, filha de Lorenzo d'Ória foi educada no Recolhimento Nossa Senhora da Ajuda, educandário para órfãs nobres. Casou-se com Sebastião Ferreira, moço de câmara do infante D. Fernando. Ficou viúva e realizou um segundo casamento, com Fernão Vaz da Costa, cunhado de Tomé de Souza; Damiana de Góis, filha de Manuel de Góis Macedo, morto no caminho das Índias, casou-se ela com João Fernandes Coelho; Inês da Silva, casou-se com Cristóvão Brandão; Jerônima de Góis, casou-se com João Velho Galvão; Maria Barbosa, casou-se no Rio de Janeiro com  Manuel Gonçalves;  Maria de Reboredo, casou-se com Antonio Lamego, homem de armas;  e Violante Eça, casou-se com.o fazendeiro João de Araújo de Souza, com quem teve seis filhos.

D. Francisca de Sande, heróica e rica senhora de Salvador, tornou-se um exemplo histórico de adnegação em favor do próximo. No século XVII irrompeu uma terrível epidemia sobre a capital, dizimando milhares de vítimas.  O escritor Rocha Pita destaca o papel caridoso e heróico que teve aquela matrona:

“Vivia naquele tempo D. Francisca de Sande, viúva poderosa, e matrona das principais da Bahia; e fazendo luzir a sua piedade, e o seu cabedal na cura dos enfermos, abriu em sua casa um hospital, mandando ir a ele os doentes que não  cabiam na Misericórdia, e recolhendo outros que voluntariamente escolhiam o seu, onde lhes ministrava pelas suas mãos as medicinas receitadas dos médicos, a quem pagava, e todos os medicamentos, despendendo considerável soma em galinhas, frangões, camas, roupas e tudo o que podia ser preciso para a saúde, cômodo e asseio dos enfermos, dos quais a maior parte escapava por força do seu cuidado e da sua caridade; virtudes que mereceram o agradecimento do sereníssimo senhor rei D. Pedro, expressado em uma honrosa carta que foi servido mandar-lhe escrever”.[1]

Heroínas da Guerra do Paraguai – Além de Ana Neri, algumas mulheres se destacaram na famosa Guerra do Paraguai. Duque de Caxias, em carta ao Ministro da Guerra, informa que deu passagem no Vapor Arinos, para a Corte, à Joana Rita dos Impossíveis, mãe de dois soldados mortos em campanha e solicitava outra passagem de volta para o Piauí, sua terra de origem. Os historiadores citam, por exemplo, uma mulher chamada Florisbela, intrépida soldada do 29⁰ Corpo de Voluntários, que tomava a carabina do primeiro homem que caía e ocupava sua posição  na guerra, indo depois ajudar aos feridos no hospital. Sabe-se pouco sobre essa Florisbela, certamente por tratar-se de mulher de costumes dissolutos, sem família, mas tinha fama de ser audaciosa e abnegada no exercício de suas funções. Quando a viam com os lábios enegrecidos de pólvora pelo fato de morder o cartucho, os soldados se animavam e a chamavam de “anjo da vitória/’.

Uma figura que também merece destaque é uma chamada “Maria Curupaiti’, cujo nome verdadeiro era Maria Francisca da Conceição. Pernambucana, da cidade de Flores, “casou-se” aos treze anos de idade com um cabo de esquadra do Corpo de Pantaneiros do Exército, sendo uma das mulheres admiradas pela tropa. Havia a proibição das mulheres acompanharem seus maridos na guerra, mas ela cortou seus cabelos, vestiu o uniforme do marido, arranjou um boné e insinuou-se no meio dos soldados por ocasião do embarque.  Entrou em luta e vendo cair um soldado à sua frente, pega suas armas, cinturão e cartucheira, avançando junto com a artilharia. Quando entraram na fortaleza inimiga luta até de baioneta, derrubando vários soldados. Seu marido morre nos combates e ela lhe dá sepultura. Somente após ser ferida e ter que ir ao hospital descobriram que era uma mulher.

Em 1864, por ocasião do ataque paraguaio ao Forte Coimbra, cerca de 70 mulheres,  a maioria delas esposas de militares, fabricaram milhares de balas de fuzil. Duas delas, mulheres simples do povo, cognominadas de “Aninha Gargalhada” e “Maria Fuzil”, tiveram menções honrosas pelo fato de, na escuridão da noite, terem descido ao rio para trazer água para os defensores do forte.  Dentre outras, destaca-se também a jovem Jovita Feitosa (cearense), alistada entre os Voluntários da Pátria, tendo cortado os cabelos e vestido farda, mas foi logo descoberta. Sua fama lhe mereceu nome de rua em Fortaleza.

Nem todas estas mulheres levavam vida honesta, muitas delas eram pessoas de vida dissoluta, como Madame Lynch, amasiada com Solano López, e a famosa Anita Garibaldi, esta no tempo da guerra Farroupilha quando tornou-se amante de um sapateiro, com apenas 14 anos de idade, e depois com o bandoleiro famoso, Garibaldi

A protetora dos órfãos de Salvador, Bahia. Apesar da grande dificuldade na pregação da doutrina católica, oriunda muitas vezes da crise reinante nas próprias instituições religiosas, sempre se destacava entre o povo uma pessoa na prática das virtudes cristãs. Foi o caso de Maria de Lima das Mercês, uma mulher negra de origem humilde, nascida no ano de 1800, que dedicou toda a sua vida à proteção e educação das crianças de rua da Capital da Bahia entre os anos de 1820 a 1864.

Com a ajuda do Padre Francisco Gomes de Souza, Maria de Lima das Mercês dirigiu entre 1827 até o ano de sua morte em 1864 o Colégio Sagrado Coração de Jesus, nas dependências da Santa Casa de Misericórdia de Salvador, direcionado ao abrigo e educação das crianças de rua da capital baiana.

Maria sabia ler e escrever, e com a pouca instrução que tinha ensinava mais de 300 órfãos do Colégio com o auxílio das irmãs vicentinas as diferentes artes de ofício para que logo pudessem se sustentar. Em 1859 recebeu auxílio financeiro da Imperatriz Dona Teresa Cristina durante sua Visita a Cidade de Salvador.

Era conhecida pelo povo como a "Virtuosa Maria de Lima das Mercês" pois sacrificou sua vida humilde pela caridade de quem era ainda mais miserável. Os informes não dão conta se a mesma tinha sido escrava e conseguiu alforria ou se já nasceu livre. Um periódico da época descreveu que: "Maria recebia innumeras crianças, umas brancas como os jasmins, outras negras como a noite sem estrellas, aquellas, a rir, a brincar despreoccupadas, olhar limpido como a sua consciencia, ou languido pela febre, das urgentes necessidades, que conduzem a mais das vezes a podridào do vicio e do vicio á cadeia e de la aos prezidios"

Sua morte ocorreu em 1864, e não há registro de qualquer memória sobre seu trabalho, revelando um certo descuido que há em nosso país nessa matéria, deixando de reconhecer para a História importantes vultos.

Em 1862 o Fotógrafo Hermann Kummler fez o único registro conhecido de Dona Maria das Mercês, fotografada com uma das crianças do seu abrigo. [2]

 



[1]              Apud “A Sé Primacial de Salvador” – Riolando Azzi – Ed. Vozes – pág. 273

[2] Dados colhidos na obra “Mulheres illustres do Brazil”- Página 153 – e no Diario official do estado da Bahia - Página 477 -Revista do Instituto Geografico e Histórico da Bahia

domingo, 19 de março de 2023

APARIÇÃO DE SÃO JOSÉ EM COTIGNAC, NA FRANÇA

 


         


 

No dia 21 de fevereiro de 1660, o Rei Luís XIV viajava em direção a Saint Jean de Luz (confins com a Espanha), cidade onde, no dia 9 de junho, se uniria em matrimônio a Marie-Thérèse, infanta da Espanha. No caminho, fez uma parada em Cotignac, para testemunhar seu reconhecimento a Nossa Senhora das Graças, a quem devia o seu milagroso nascimento. No dia 7 de junho, após o encontro com os reis da França e da Espanha, na fronteira comum, Marie-Thérèse foi acolhida com honras, na França, aonde chegava para desposar Luís XIV, como previa o Tratado dos Pirineus, restabelecendo assim a paz entre os dois países assim como no interior da própria França.

Neste mesmo dia, no monte Besillon, em Cotignac, Gaspar Ricard, um jovem pastor sedento, ao menos, por um gole de água, não tinha como saciar a sua sede, quando viu surgir diante de si um homem de altura imponente, que lhe mostrou um rochedo, dizendo: "Eu sou José; levanta esta rocha e tu beberás." A pedra era pesada; oito homens juntos poderiam apenas empurrá-la, mas como poderia o pobre Gaspar erguê-la? O venerável ancião - segundo os relatos da época - reiterou a sua ordem e o pastor obedeceu, empurrando a pedra - não se sabe com que força - e viu surgir, diante de seus olhos, um jorro de água fresca que passou a correr. Imediata e avidamente, ele se ajoelhou e bebeu daquela fonte. Ao se levantar, a aparição desaparecera. Gaspar corre ao povoado para contar o que lhe tinha acontecido e os curiosos vieram constatar o ocorrido. Apenas três horas passadas, naquele local conhecido por todos como árido, e desprovido de qualquer fonte, uma água abundante começara a correr.

No dia 19 de março, após a aparição de São José, em Besillon (Cotignac), e o surgimento repentino da fonte de água, Luís XIV decretou como legal, festivo e feriado, o dia de São José. Um sermão do escritor francês, Bossuet, o felicitaria por este gesto.

 

 

Sermão de 19 de março de 1657

O FIEL DEPOSITÁRIO

 

BOSSUET

É opinião generalizada e sentir comum entre os homens que o depósito, isto é, um bem que recebemos para guardar, tem qualquer coisa de sagrado e que o devemos conservar para quem no-lo confia não somente por fidelidade mas por uma espécie de sentimento religioso. Por isso o grande Santo Ambrósio nos ensina no livro 29 de seus Ofícios que era piedoso costume estabelecido entre os fiéis o de trazer aos bispos e a seu clero aquilo que se queria guardar com mais cuidado, para que fosse colocado junto ao altar, em virtude da santa persuasão em que estavam de que não havia melhor lugar para guardar um tesouro do que aquele ao qual o próprio Deus confiou a guarda dos seus, isto é, os santos mistérios.

Este costume se tinha introduzido na Igreja a exemplo da sinagoga antiga. Lemos na História Sagrada que o augusto templo de Jerusalém era lugar de depósito para os judeus. Autores profanos também nos ensinam que os pagãos tributavam esta honra a seus falsos deuses, colocando seus depósitos nos templos e confiando-os a seus sacerdotes, como se a própria natureza das coisas nos ensinasse que o respeito ao depósito tem algo de religioso e que não pode estar mais bem colocado do que nos lugares santos onde se reverencia a Divindade, nas mãos daqueles que a religião consagra.

Ora, se jamais existiu depósito que merecesse tanto ser chamado santo, santamente guardado, é este de que falo, que a providência do Pai confia à fé do justo José, tanto assim que sua casa se assemelha a um templo porque Deus aí se digna habitar e entregar-se a Si próprio em depósito. José deve ter sido, portanto, consagrado a fim de guardar tão santo tesouro. E realmente o foi, cristãos: seu corpo pela continência, sua alma por todos os dons da graça. [...]

No projeto que me proponho, o de apoiar os louvores a São José, não em conjeturas duvidosas mas em doutrina sólida tirada das Escrituras divinas e dos Padres seus intérpretes fiéis, nada de mais conveniente posso fazer, na solenidade deste dia, do que apresentar este grande santo como um homem que Deus escolheu entre todos os outros para lhe pôr nas mãos Seu tesouro e fazê-lo, aqui na Terra, seu depositário. Pretendo fazer ver hoje que nada melhor lhe convém, que nada existe tão ilustre e que esse belo título de depositário, desvendando-nos os desígnios de Deus sobre esse bem-aventurado patriarca, nos mostra a fonte de todas as graças e o fundamento seguro de todos os louvores.

Primeiramente, cristãos, é-me fácil fazer-lhes ver o quanto esta qualidade é, para ele, honra, porque, se o título de depositário já inclui a nota de estima e testemunho de probidade, se para confiar um depósito costumamos escolher entre nossos amigos aquele cuja virtude é mais reconhecida, cuja fidelidade é mais comprovada, enfim o mais íntimo e mais confidente, qual não será glória de São José, que Deus fez depositário não somente da bem-aventurada Virgem Maria, cuja pureza angélica a torna agradável a Seus olhos, mas ainda de Seu próprio Filho, único objeto de suas complacências, única esperança de nossa salvação: de modo que guardando a pessoa de Jesus Cristo, São José é instituído depositário do tesouro comum de Deus e dos homens. Que eloqüência poderá igualar a grandeza e a majestade desse título?

Então, fiéis, se esse título é tão glorioso e vantajoso àquele a quem devo hoje fazer o panegírico, é preciso que eu mesmo penetre em tão grande mistério com o socorro da graça; e que, procurando nas Escrituras o que aí lemos sobre José, vos faça ver que tudo converge para esta bela qualidade de depositário.

Efetivamente encontro nos Evangelhos três depósitos confiados ao justo José pela Providência divina, e ali também encontro três qualidades que refulgem entre as outras e que correspondem a esses três depósitos. É o que precisamos explicar por ordem. Segui, por favor, atentamente.

O primeiro de todos os depósitos que foi confiado à sua fé (o primeiro na ordem do tempo) é a santa virgindade de Maria, a qual São José devia conservar intacta sob o véu sagrado do seu matrimônio, que ele sempre guardou santamente como um depósito sagrado que não lhe era permitido tocar. Eis o primeiro depósito.

O segundo, o mais augusto, é a pessoa de Jesus Cristo, que o Pai celeste depõe em suas mãos a fim de que lhe sirva de pai, ao Santo Menino que não o tem na Terra. Vede, desde já, cristãos, dois grandes, dois ilustres depósitos confiados ao zelo de São José. Mas observo ainda um terceiro, que acharão admirável, se eu conseguir explicá-lo com clareza. Para isso é preciso compreender que o segredo é uma espécie de depósito. Trair o segredo de um amigo é como violar a santidade do depósito. Pelas leis humanas sabemos que, se alguém divulga o segredo de um testamento a ele confiado, pode ser acusado de ter violado o depósito: Depositi actione tecum agi posse, dizem os juristas. É evidente, pois, a razão por que o segredo é como um depósito. Por onde podemos facilmente compreender que, se José é o depositário do Pai eterno, é porque Este lhe contou o Seu segredo. Que segredo? Um segredo admirável: a encarnação de Seu Filho.

Assim, porque, como sabemos, era desígnio de Deus esconder Jesus Cristo do mundo até que Sua hora houvesse chegado, São José foi escolhido não somente para O guardar mas também para O esconder. Por isso lemos no Evangelista (S. Lucas 2, 33) que José, com Maria, admirava tudo o que se dizia do Salvador, mas não lemos que ele falasse, porque o Pai eterno, desvendando-lhe o mistério, fez dele um segredo sob a obrigação do silêncio. Este segredo é o terceiro depósito que o Pai acrescenta aos outros dois. Segundo o que nos diz o grande São Bernardo, Deus quis confiar à sua fé o segredo mais santo de seu coração: Cui toto committeret secretissimum atque sacratissimum sui cordis arcanum (Super Missus est — hom. 2, no 15).

Como sois querido de Deus, ó incomparável José, já que Ele a vós confia esses três grandes depósitos: a Virgindade de Maria, a pessoa de Seu Filho único e o segredo de Seu mistério!

Mas não julgueis, cristãos, que ele desconhecia essas graças. Se Deus o honrava com aqueles três depósitos, de sua parte José apresentava a Deus, em sacrifício, três virtudes que observo no Evangelho. Não duvido que sua vida tenha sido ornada com todas as outras, mas eis aqui as três principais virtudes que Deus quer que vejamos na sua Escritura. A primeira é a pureza, que aparece pela continência no seu matrimônio; a segunda, sua fidelidade; a terceira, sua humildade e seu amor à vida obscura. Quem não verá a pureza de São José nesta santa sociedade de desejos pudicos, nesta admirável correspondência à Virgindade de Maria e em suas bodas espirituais? A segunda, sua fidelidade, aparece nos cuidados infatigáveis que tem para com Jesus no meio das tantas adversidades que por todas as partes seguem esse Menino divino desde o começo de sua vida. A terceira, sua humildade, vê-se em que, possuindo tão grande tesouro por uma graça extraordinária do Pai eterno, longe de se vangloriar por esses dons ou de publicar suas vantagens, se esconde tanto quanto pode aos olhos dos mortais, contemplando, em gozo pacífico com Deus, o mistério que lhe fora revelado e as riquezas imensas que tem sob sua guarda.

Ah! Quanta grandeza descubro aqui e como aqui descubro tão importantes instruções! Quanta grandeza vejo nesses depósitos, quantos exemplos vejo nessas virtudes! E como a explicação desse assunto tão belo será glorioso para São José e frutuoso para todos os fiéis!

(PERMANÊNCIA, ano XI, março/abril, números 112/113.)


Jacques-Bénigne Bossuet (Nascido em, 27 de setembro de 1627, em Dijon - e morreu em Paris, 12 de abril de 1704) foi Bispo de Condom e Meaux (Dioceses da França) e teólogo francês.


Fonte: Ite ad Joseph

 


segunda-feira, 6 de março de 2023

VESTÍBULO DO CÉU - APARIÇÃO DE SÃO DOMINGOS SÁVIO A SÃO JOÃO BOSCO (1876)

 




Sonhei. Talvez as coisas que sonhei vos pareçam muito estranhas. Mas vós sabeis que para meus filhos não tenho segredos; abro-lhes todo o meu coração. Pensai dele o que quiserdes. Mas, como diz São Paulo, quod bonum esse tenete[1], se algo encontrardes nisto que seja de proveito para vossa alma, sabei aproveitar. Aquele que não quiser crer, não creia; mas ninguém jamais ridicularize as coisas que vou dizer. Além disso, desejaria que não contásseis nem comunicásseis por escrito àqueles que não sejam da casa. Aos sonhos se pode dar a importância que, enquanto sonhos, merecem; e aqueles que não conhecem nossa intimidade poderiam formar juízos errôneos, dando às coisas um nome diferente daquele que elas na realidade têm. Eles não sabem que vós sois meus filhos, e que sempre vos digo tudo que sei, e algumas vezes até aquilo que não sei. Mas aquilo que um pai manifesta a seus filhos para seu bem, deve ficar entre o pai e os filhos e não sair daí. E ainda por outra razão. Em geral, ao contar essas coisas fora, ou se desfiguram os fatos, ou somente se contam uma parte, e essa mal contada; de onde resultam prejuízos, pois o mundo desprezaria aquilo que não deve ser desprezado.

Convém que saibais que ordinariamente os sonhos a gente os tem enquanto dorme. Ora, na noite de 6 de dezembro, enquanto eu estava no quarto, não lembro bem se lendo ou passeando pelo aposento, ou se já me havia deitado, comecei a sonhar.

Começa o sonho – beleza extasiante aos olhos mortais 

De início tive a impressão de estar sobre uma elevação ou colina, à beira de uma imensa planície, cujos confins se perdiam de vista na imensidade; era cerúlea como o mar calmo, se bem que aquilo que eu via não era água; parecia um puro cristal luzidio. Sob meus pés, atrás de mim e aos lados, eu via uma região à maneira de um litoral junto do oceano.

Largos e gigantescos caminhos dividiam a planície em vastíssimos jardins de beleza inenarrável, estando todos como que divididos em pequenos bosques, prados e canteiros de flores de diversas formas e cores. Nenhuma de nossas plantas pode nos dar uma idéia daquelas, se bem que alguma semelhança tenham.  As ervas, as flores, as árvores, as frutas,  eram vistosíssimas e de belíssimo aspecto.  As folhas eram de ouro; os troncos e ramos de diamante, e o resto correspondia a essa riqueza.  Era impossível contar as diferentes espécies. E cada espécie e cada flor resplandecia com luz especial. Em meio àqueles jardins e em toda a extensão da planície eu contemplava inumeráveis edifícios com uma ordem, beleza, harmonia, magnificência e proporções tão extraordinárias, que, para construção de um só deles, parece que não bastariam todos os tesouros da terra. Eu dizia para mim mesmo: “Se meus jovens tivessem uma única destas casas, como se alegrariam, que felizes seriam e com quanto prazer viveriam nela”. E isto, pensava eu, sendo que somente podia ver esses palácios por fora. Qual não deveria ser sua magnificência interior!

Extasiante também aos ouvidos

 Enquanto contemplava extasiado tão estupendas maravilhas como as que adornavam aqueles jardins, chegou aos meus ouvidos uma música dulcíssima e de tão grata harmonia, que não posso dar-vos dela uma idéia adequada.  Em comparação com ela nada são as de D. Cagliero e de D. Dogliani. Eram cem mil instrumentos que produziam cada um som diverso do outro, enquanto todos os sons possíveis difundiam pelo ar suas ondas sonoras. A estas uniu-se os coros dos cantores.

Vi então uma multidão de gente que naquele jardim se encontrava e se regozijava alegre e contente.  Uns tocavam, outros cantavam. Cada voz, cada nota, tinha o efeito de mil instrumentos reunidos, todos diferentes uns dos outros.  Ouviam-se simultaneamente os diversos graus da escala harmônica, desde os mais baixos até os mais altos que se possa imaginar, mas tudo em perfeita consonância. Ah! para descrever essa harmonia não bastam comparações humanas.

Via-se pelos rostos daquelas felizes habitantes do jardim, que os cantores não só experimentavam extraordinário prazer em cantar mas ao mesmo tempo sentiam imenso gozo ao ouvir os demais cantarem. E quanto mais alguém cantava mais se lhe acendia o desejo de cantar, e quanto mais ouvia mais desejava ouvir.

Era este o seu canto:  Salus, honor, gloria Deo Patri Omnipotenti. Auctor, saeculi, qui erat, qui est, qui venturas est judicari vivos et mortuos in saecula saeculorum.[2]

A multidão dos eleitos

Enquanto ouvia atônito estas celestes harmonias, vi aparecer uma multidão de jovens, muitos dos quais tinham estado no Oratório e nos outros colégios; conhecia a muitos, portanto; sendo-me, não obstante, desconhecida a maior parte. Aquela multidão interminável se dirigia a mim. À sua frente ia Domingos Sávio e atrás dele D. Alazonatti, D. Chiala, D. Giulitto e muitos outros sacerdotes e clérigos, cada um dirigindo uma seção de meninos.

Perguntei-me a mim mesmo: “Durmo ou estou acordado?”  e batia palmas e batia no peito para assegurar-me de que era realidade o que via.

Chegada toda aquela multidão diante de mim, parou à distância de oito a dez passos. Então brilhou um relâmpago de luz mais viva; cessou a música e seguiu-se profundo silêncio. Aqueles jovens estavam possuídos de enorme alegria, que se refletia em seus olhos, e em seus rostos se via a paz de uma felicidade perfeita. Olhavam-me com um doce sorriso nos lábios e davam a impressão de que queriam falar; mas não falavam.

Glória e esplendor de São Domingos Sávio

Adiantou-se Domingos Sávio, sozinho, e manteve-se perto de mim. Em silêncio, olhava-me sorrindo. Como estava belo. Sua indumentária era realmente singular. Caía-lhe até os pés uma túnica alvíssima coalhada de diamantes e toda tecida de ouro. Cingia sua cintura uma ampla faixa vermelha recamada com tantas pedras preciosas que umas tocavam nas outras; e se entrelaçavam num desenho tão maravilhoso, oferecendo tanta beleza e colorido que eu, ao vê-lo, sentia-me fora de mim de admiração.  Pendia-lhe do pescoço um colar de flores primorosas; as folhas assemelhavam-se a diamantes unidos entre si sobre ramos de ouro; e assim tudo o mais. Estas flores refulgiam com luz sobre-humana mais viva que a do sol, que naquele instante brilhava com todo o esplendor de uma manhã de primavera, refletindo seus raios sobre aquele rosto cândido e corado de maneira indescritível, iluminando-o de tal forma que não se podia sequer distinguir seus diversos traços. Levava sobre a cabeça uma coroa de rosas; caía-lhe sobre os ombros em ondulantes cachos a formosa cabeleira, dando-lhe um ar tão belo, tão afetuoso, tão encantador, que parecia... que parecia um Serafim!

Não menos resplandecente de luz estavam aqueles que o acompanhavam. Todos se vestiam de maneira diferente, mas sempre belíssima; uns mais, outros menos; uns de uma forma, outros de outra; num dominava uma cor, noutro, outra; e cada uma daquelas indumentárias tinha um significado que ninguém saberia compreender. Mas todos tinham a cintura cingida por uma faixa vermelha igual, recamada de pedrarias.

Finalmente, São Domingos Sávio fala a São João Bosco

Eu continuava contemplando absorto e pensava: “O que significa isto? Como vim parar neste lugar?” E não sabia onde me encontrava. Fora de mim, trêmulo pela reverência que aquilo me inspirava, não me atrevia a dizer palavra. Também os demais continuavam silenciosos. Finalmente, Domingos Sávio abriu os lábios.

- Por que estás aí mudo e como que aniquilado? Não és o homem que em outros tempos não temia nada, que arrostava com intrepidez as calúnias, as perseguições, os inimigos e as angústias e perigos de toda sorte? Onde está a tua coragem? Por que não fala?

Respondi eu com dificuldade, balbuciando:

- Eu não sei o que dizer... Mas não és tu Domingos Sávio?

- Sim, sou; já não me reconheces?

- E como te encontras aqui? – acrescentei confuso.

Domingos então afetuosamente disse:

- Vim para falar-te. Quantas vezes nos falamos na terra! Não recordas quanto me amavas, quantas provas de estima e quantas demonstrações de amor me deste? E eu por acaso não correspondi a teus desejos? Era tão grande a minha confiança em ti! Por que, pois, temes? Vamos! pergunte-me alguma coisa.

O esplendor do Paraíso comparado com o do mundo material aumentado por Deus

- É que não sei onde me encontro; por isso tremo.

- Estás no lugar de felicidade – respondeu Sávio – onde se gozam todas as alegrias, todas as delícias.

- É este pois o prêmio dos justos?

- Não, por certo. Aqui não se gozam os bens eternos, apenas, ainda que em larga medida, os temporais...

- Então, todas estas coisas são materiais?

- Sim, se bem que embelezadas pelo poder de Deus.

- E a mim me parecia que isto era o Paraíso! – exclamei.

- Não, não, não! – respondeu Sávio. – Não há olho humano mortal que possa ver as belezas eternas.

- E estas músicas – continuei perguntando – são as harmonias de que gozais no Paraíso?

- Não, não, já te disse que não!

- São sons naturais?

- Sim, são sons naturais, aperfeiçoados pela onipotência de Deus.

- E esta luz que sobrepuja a luz do sol, é luz sobrenatural?

- É luz natural, se bem que reavivada e aperfeiçoada pela onipotência de Deus.

- E não se poderia ver um pouco da luz sobrenatural?

- Ninguém pode vê-la enquanto não chegar a ver Deus sicut est. O menor raio desta luz tiraria no mesmo instante a vida de um homem, porque não há forças humanas que o possam sustentar.

- E pode haver uma luz natural mais bela do que esta?

- Se soubésseis! Se tu vísseis somente um raio de luz natural levada a um grau superior a este, ficareis fora de si... Vais vê-lo...  Fixe os olhos! olha ali no fundo desse mar de cristal.

Levantei a vista, e ao mesmo tempo apareceu de improviso no céu, a uma distância imensa, uma centelha instantânea de luz, subtilíssima como um fio, mas tão brilhante, tão penetrante, que lancei um grito, o qual despertou D. Lemoye  (aqui presente) que dormia num quarto próximo.  Aquele fio de luz era cem milhões de vezes mais claro que o sol e seu fulgor bastaria para iluminar o universo inteiro.

- E isto, é um raio divino? – perguntei, apenas recuperado.

Sávio respondeu:

- Não é luz sobrenatural, se bem que, comparada com a terrestre, a supera em fulgor. Não é senão luz natural feita desta maneira mais viva pelo poder de Deus. E ainda que imaginasses uma imensa zona de luz semelhante à pequena centelha que acaba de ver ao longe rodeando todo o mundo, nem dessa forma terias idéia dos esplendores do Paraíso.

- E vós, o que gozais no Paraíso?

- Oh! Dizê-lo a ti é impossível; o que se goza no Paraíso não há nenhum mortal que possa sabê-lo enquanto não deixe esta vida e se reuna a seu Criador. Fica tudo dito ao dizer que se goza a Deus.

Nesse meio tempo, já plenamente recuperado de meu primeiro aturdimento, contemplava absorto a extraordinária formosura de Domingos Sávio, e com franqueza lhe perguntei:

- E esta tua roupa, tão branca e pomposa? 

Domingos calou-se. O coro continuou suas harmonias e cantou acompanhado de todos os instrumentos: Ipsi abuerunt lumbos praecintos et dealbaverunt stolas suas ins sanguine agni.[3]

Quando cessou o canto, voltei a perguntar:

- E essa faixa com que te cinges?

Também desta vez Sávio não quis responder.

E então, D. Alazonatti cantou sozinho:

Virgines enim sunt, et sequuntur adnum quocunque ierit.[4]

Compreendi então que a faixa encarnada, cor de sangue, era símbolo dos grandes sacrifícios feitos, dos violentos esforços e do quase martírio sofrido para conservar a virtude da pureza; e que, para manter-se casto na presença do Senhor, estivera pronto a dar a vida, se as circunstâncias assim o houvessem requerido; e também que era símbolo das penitências, que limpam a alma da culpa. A brancura e o esplendor da túnica significavam a inocência batismal conservada.

Eu, entretanto, atraído por aqueles cantos e contemplando todos aquelas falanges de jovens celestiais formados atrás de Domingos Sávio, perguntei-lhes:

- E quem são estes que te rodeiam?

E, dirigindo-se aos demais, disse-lhes:

- E como é que todos vós estais tão exultantes?

Sávio continuou em silêncio, e todos aqueles jovens puseram-se a cantar:

Hi sunt sicut angeli Dei in caelo.[5]

Entretanto, percebia que Domingos parecia ter preeminência sobre aquela multidão, a qual respeitosamente encontrava-se a uma distância de uns dez passos atrás dele; então disse-lhe:

- Diga-me, Domingos: sendo tu o mais jovem de quantos te seguem e de quantos morreram em nossas casas, por que és tu quem vai à frente deles e os precede? Por que és tu que fala e eles calam?

- Eu sou o mais velho de todos.

- Não – repliquei -, muitos são mais velhos do que tu.

- Eu sou o mais antigo do Oratório[6]  – repetiu Domingos Sávio – porque fui o primeiro a deixar o mundo e passar à outra vida. Ademais, legatione dei fungor.[7]

Essa resposta indicava-me o motivo da visão. Era o embaixador de Deus.

- Então – disse-lhe – falemos daquilo que, agora, mais nos importa.

- Sim, pergunte-me logo o que desejas saber. As horas estão passando, e poderia acabar o tempo que me foi concedido para falar-te; e não poderias ver-me nunca mais.

- Segundo parece, tens algum assunto de suma importância a comunicar-me?

- Que teria a dizer-te eu, mísera criatura? – disse humildemente Domingos. – Do alto recebi a missão de falar-te e por isso vim.

São Domingos Sávio fala sobre os salesianos

- Assim – exclamei – fale-me do passado, do presente e do porvir do nosso Oratório. Fale-me de meus queridos filhos, fale-me da minha Congregação.

- Com respeito a esta, muito teria a comunicar-te.

- Conte-me, pois, o que sabes, o passado...

- O passado recai todo sobre ti.

- Cometi alguma falta?

- Quanto ao passado, digo-te que a tua Congregação já fez muito bem. Vês lá embaixo aquele número incontáveis de jovens?

- Vejo-os – respondi. – Quantos são! Que felicidade há em seus rostos.

- Olha o que está escrito à entrada do jardim.

- Leio-o.  Diz: Jardim Salesiano.

- Pois bem – prosseguiu Domingos – todos eles foram salesianos, ou foram educados por ti, ou foram salvos por ti ou por teus sacerdotes ou clérigos, ou por outros que encaminhaste pela via de sua vocação. Conta-os, se podes. Seu número, entretanto, seria cem milhões de vezes maior se maior tivesse sido tua fé e a confiança no Senhor.

Lancei um suspiro, sem saber o que responder a tal censura; contudo disse para mim mesmo: No futuro procurarei ter esta fé e esta confiança. Depois lhe disse: E o presente?

Domingos me apresentou um magnífico ramalhete que tinha na mão. Havia nele rosas, violetas, girassóis, gencianas, lírios, sempre-vivas e, entre as flores, espigas de trigo. Ofereceu-mo e disse:

- Olha!

- Vejo mas não entendo nada.

- Dê este ramalhete a teus filhos para que possam oferecê-lo ao Senhor quando chegar o momento; procure que todos o tenham; a ninguém falte nem se o deixe tirar. Tenha a segurança de que com ele terão o bastante para ser felizes.

- Mas o que significa esse ramalhete de flores?

- Consulta a Teologia; ela te dirá e te dará a explicação.

- Estudei a Teologia, mas não saberia como tirar dela o significado do que me apresentas.

- Pois tens estrita obrigação de saber tudo isso.

- Vamos, acalma minha ansiedade, vamos; explique-o tu.

As virtudes e a Porta do Céu

- Vês estas flores? Representam as virtudes que mais agradam ao Senhor.

- Quais são?

- A rosa é o símbolo da caridade; a violeta, da humildade; o girassol, da obediência; a genciana, da penitência e da mortificação; as espigas, da comunhão freqüente; o lírio indica a bela virtude da qual está escrito:  erunt sicut angeli dei in caelo[8] – a castidade. E a sempre-viva significa que essas virtudes devem durar sempre, e simboliza a perseverança.

- Pois bem, querido Domingos: Tu, que durante a tua vida praticavas todas essas virtudes, diga-me: qual foi a que mais te consolou na hora da morte?

- Que pensas que possa ser? – respondeu Domingos.

- Foi talvez ter conservado a bela virtude da pureza?

- Não é somente isto.

- Alegrou-te talvez ter tranqüila a consciência?

- Isto é bom, porém não é o melhor.

- Acaso terá sido o teu consolo a esperança do Paraíso?

- Tampouco.

- Então o que será? O haver entesourado muitas obras boas?

- Não, não!

- Então, qual foi teu consolo naquela última hora? – lhe disse entre confuso e suplicante, vendo que não conseguia adivinhar.

- O que mais me confortou no transe da morte foi a assistência da poderosa e amável Mãe do Salvador. Diga-o a teus filhos; e não se esqueçam de invocá-La em todos os momentos de sua vida.  Porém... desperta-te, se queres que possa ainda responder-te.

 

Com relação ao porvir...

-...Com relação ao porvir, o próximo ano de 1877 terás que sofrer uma grande dor; seis mais dois dos que te são mais caros serão chamados por Deus à eternidade. Consola-te, porém, pois serão transplantados do deserto deste mundo aos jardins do Paraíso. Serão coroados. Mas não temas. O Senhor te ajudará e te mandará outros filhos igualmente bons.

- Paciência, e quanto ao que se refere à Congregação?

- Quanto ao que se refere à Congregação, saiba que Deus te prepara grandes acontecimentos. No próximo ano surgirá para ela uma aurora de glória tão esplêndida, que iluminará, como um relâmpago, os quatro cantos do mundo; do oriente ao ocidente, do meridiano ao setentrião, está preparado a ela uma grande glória. Tu deves procurar que o carro no qual vai o Senhor não seja desviado pelo teu para fora de suas vias nem de seu caminho. Se teus sacerdotes o conduzirem bem e souberem tornar-se dignos da alta missão que se lhes confiou, o futuro será esplêndido e infinitas as pessoas que salvarás, sob a condição, entretanto, de que teus filhos sejam devotos da Santíssima Virgem e quantos vivem em tua casa conservem a virtude da castidade que é tão grata aos olhos de Deus.

- Agora, gostaria de que dissesses algo sobre a Igreja em geral.

- Os destinos da Igreja estão nas mãos do Criador. O que determinou em seus infinitos decretos, não o posso revelar. Tais arcanos Ele os reserva exclusivamente para Si, e nenhum dos espíritos criados participa deles.

- E Pio IX?

- O que posso dizer-te é que o Pastor da Igreja terá que sustentar ainda longas batalhas sobre esta terra. Poucas são as que ainda lhe restam por vencer. Dentro em breve será arrebatado desta terra, e o Senhor lhe dará a merecida recompensa. Quanto ao mais já se sabe. A igreja não perece... Tens ainda algo a perguntar?

- E quanto a mim? – disse-lhe.

- Oh, se soubesses por quantas vicissitudes ainda terás que passar! ...Apressa-te, pois me resta pouco tempo para falar contigo.

Então estendi com ardor as mãos para agarrar aquele santo filho; porém suas mãos pareciam aéreas e nada pude tocar.

- Que fazes? – Disse-me Domingos, sorrido.

- Temo que vás embora – exclamei. – Pois, não estás com teu corpo?

- Com meu corpo, não. Recobrá-lo-ei no último dia.

- Mas se não é teu corpo, o que são estas linhas que me fazem ver em ti a figura de Domingos Sávio?

- Olha, quando, pela divina permissão, se vos aparece alguma alma já separada do corpo, apresenta aos vossos olhos a forma exterior do corpo, ao qual animou com  todos os traços exteriores se bem que grandemente embelezados, e assim os conserva enquanto a ela não volte a reunir-se no dia do juízo universal.  Então levá-lo-á consigo ao Paraíso. Por isso, perece-te que tenho mãos, pés e cabeça mas não podes agarrar-me, porque sou espírito puro. Esta é apenas uma forma exterior pela qual me podes conhecer.

- Compreendo – respondi -; porém, escuta. Ainda uma palavra. Meus meninos estão todos no reto caminho da salvação? Diga-me algo para que possa dirigi-los bem.        

A divisão entre o Bem e o Mal

- Os filhos que a Divina Providência te confiou podem dividir-se em três categorias.  Vês estas três listas?

E me entregou uma.

- Olhe-as!

Olhei a primeira; encabeçava-a a palavra invulnerati, e tinha o nome daqueles aos quais o demônio não pôde ferir, que não macularam sua inocência com culpa alguma. Eram em grande número e os vi a todos. A muitos já os conhecia, outros era a primeira vez que os via, e certamente virão ao Oratório em anos vindouros. Marchavam íntegros por um estreito caminho, apesar de serem alvos de flechadas, espadadas e lançadas que de todas as partes lhes choviam. Estas armas formavam como que uma cerca ao longo das duas beiras do caminho, e os combatiam e molestavam sem feri-los.

Então Domingos me deu a segunda lista, cujo título era vulnerati, isto é, os que estavam na desgraça de Deus; porém, uma vez postos em pé, já curaram suas feridas e arrependendo-se e confessando-se.  Eram em maior número que os primeiros, e tinham sido feridos no caminho de sua vida pelos inimigos que lhes serviam de cerca durante a viagem. Li a lista e os vi a todos. Muitos iam curvados e desalentados.

Domingos tinha a terceira lista. Era sua epígrafe lassati in via iniquitatis, e continha os nomes dos que estavam na desgraça de Deus. Estava impaciente por conhecer o segredo; pelo que estendi a mão; mas Domingos interrompeu-me com presteza:

- Não; aguarde um momento e ouve. Se abrires esta folha, sairá dela um fedor tal, que nem tu nem eu lhe poderemos resistir. Os anjos terão que se retirar enojados e horrorizados, e o mesmo Espírito Santo sente náuseas pela horrível hediondez do pecado.

- E como pode dar-se isto, sendo Deus impassível? – interrompi.

- Sim; porque quanto melhores e mais puras são as criaturas, tanto mais se aproximam dos espíritos celestiais; e, ao contrário, quanto pior e mais desonesto e soez é alguém, tanto mais se afasta de Deus e de seus anjos, os quais, por sua vez, se apartam dele, que se converteu num objeto de náusea e repulsa.

Então me deu a terceira lista.

- Tome-a – disse-me – abre-a e aproveita-te dela para o bem de teus filhos; porém não te esqueças do ramalhete que te dei; que todos o tenham e o conservem...

Dito isto, e depois de entregar-me a lista, retirou-se no meio de seus companheiros.

Abri então a lista; não vi nome algum, porém instantaneamente foram-me apresentados de um só golpe todos os indivíduos nela escritos, como se, na realidade, eu visse suas pessoas. Com quanta amargura os contemplei! Conhecia a maior parte deles e pertencem ao Oratório e a outros colégios. Quantos desses parecem bons, e até os melhores dentre os companheiros, e contudo não o são!

Quando abri a lista, difundiu-se nos arredores um fedor tão insuportável, que imediatamente me vi assaltado de acerbíssimas dores de cabeça e de umas aflições e náuseas tais, que acreditava estar morrendo. Obscureceu-se o ar, desapareceu a visão, ziguezagueou um raio que iluminou a estância, e reboou um trovão no espaço, tão forte e terrível que me despertei sobressaltado.

Aquele fedor penetrou nas paredes, infiltrando-se nas minhas roupas, a tal ponto que muitos dias depois eu ainda sentia aquela pestilência. Agora mesmo, só com a recordação me vêm náuseas, sinto-me sufocar e se me revolve o estômago.

Em Lanzo, aonde me encontrava, comecei a perguntar, ora a um ora a outro; falei com alguns jovens e pude certificar-me de que o sonho não me havia enganado. É, pois, uma graça do Senhor, que me deu a conhecer o estado de alma de cada um de vós, meus filhos; mas disto nada direi em público. Aproveitai, pois é para o vosso bem que o Senhor me envia esses sonhos.

(“Bibliografia y Escritos de San Juan Bosco” –  BAC – págs. 654/663).



[1] isto é, retendes apenas o que é bom.

[2] A Deus, toda honra, toda glória, Deus Pai Onipotente. Criador, pelos séculos dos séculos, que era, que é, e que virá a julgar os vivos e os mortos nos séculos dos séculos.

[3] Apoc. 7, 14: Estes são aqueles que vieram da grande tribulação, lavaram seus vestidos e os embranqueceram no sangue do Cordeiro.

[4] Eis que são virgens e os que assim se tornaram pela penitência.

[5] Eles são como os anjos de Deus no céu.

[6] O Oratório, como era chamado a casa onde Dom Bosco convivia com os meninos.

[7] Quer dizer que se apresenta como “embaixador de Deus”.

[8] Eram parecidos com os anjos