terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

DESTAQUE DE MULHERES BRASILEIRAS NA “BELLE ÉPOQUE” EUROPÉIA

 





         A propósito de artigo estampado na revista “Dr. Plínio” deste mês (fev/2023), com um resumo da vida de Madre Francisca do Rio Negro, ou Madre Francisca de Jesus, damos a seguir os dados de duas personalidades femininas brasileiras que se destacaram, uma como símbolo de nobreza e a outra de santidade.

É natural que sejam poucas as mulheres brasileiras de destaque na Europa, por ser o Brasil uma nação jovem, de cultura recente, e que somente a partir do século XIX começou a mostrar uma elite emergente.  Oriundas das famílias aristocráticas bafejadas pela monarquia, destacamos aqui duas somente: a condessa Maria Eugênia Monteiro de Barros e a Fundadora religiosa Francisca Carvalho do Rio Negro, filha do Barão do Rio Negro, cujo nome religioso era Madre Francisca de Jesus.

O Brasil, país jovem e governado por uma família imperial muitas vezes aliada matrimonialmente à casa real francesa, não podia escapar à regra geral. Na corte brasileira falava-se freqüentemente o francês, os convites e menus eram feitos nesse idioma, o que acabou tornando moda entre a aristocracia brasileira enviar os filhos a Paris em busca de cultura, educação e status social. Alguns voltaram ao Brasil, procurando trazer para cá o melhor que podiam da cultura francesa; outros, porém, de lá mesmo envidavam esforços no mesmo sentido.

Foi o caso da Condessa Romana Maria Eugênia (título agraciado pela Santa Sé), nascida a 13 de novembro de 1848, no Rio de janeiro, casada com um dos chamados “barões do café”, Carlos Monteiro de Barros. Seguindo o exemplo de seus irmãos e parentes, seu esposo rumou para as terras roxas do Oeste paulista, explorando a fazenda São Carlos, no município de Pirassununga. Logo, porém, D. Eugênia ficou viúva e resolveu transferir sua residência para Paris. Tornou-se uma pessoa muito bem relacionada na França – onde posou para o fotógrafo “Nadar” – alcunha do maior retratista do século XIX, Gaspar Félix Toumachon. No estúdio particular daquele fotógrafo também passaram figuras ilustres do calibre dos compositores eruditos Listz, Rossini e Berliotz, da atriz Sara Bernadete, do escritor Victor Hugo, do ilustrador Gustave Doré, entre outros. D. Maria Eugênia já era amiga intima da Condessa D’Eu, a Princesa Isabel.

Embora morando na França, a Condessa Monteiro de Barros projetou a construção de uma igreja dedicada ao Sagrado Coração de Jesus num povoado brasileiro que ainda estava nascendo. Financiou inteiramente o projeto de construção da igreja, que somente foi concluída em 29 de dezembro de 1922, quando não era mais viva. Em 9 outubro de 1888, convidadas pela Condessa em nome da sociedade carioca, aportaram no Brasil as primeiras religiosas do Colégio Nossa Senhora do Sion, fundado na França pelos sacerdotes católicos Teodoro e Afonso Ratisbonne (convertidos por intercessão de Nossa Senhora das Graças), irmãos e filhos de uma rica família de judeus de Estrasburgo.  Inicialmente, abriram um pequeno e modesto catecumenato para meninas judias, de famílias pobres, com o intuito de instruí-las e educá-las na fé cristã. Para viabilizar o projeto, contaram com a ajuda de duas senhoras que tinham acabado de fechar uma instituição de ensino conhecida pela educação esmerada de meninas da alta sociedade francesa. Mais tarde, por influencia de um padre, surge a idéia de fundar um colégio. Várias famílias da aristocracia insistiam para que suas filhas estudassem no lugar. E foi assim que se fundou o Colégio Sion de Paris (que D. Maria Eugênia conhecia muito bem), primeiro de uma longa série que acabou se espalhando pelo mundo. Coube à Condessa Monteiro de Barros entabular negociações com aquelas freiras para abrir um colégio no Brasil, obtendo completo êxito.

Madre Francisca de Jesus viveu grande parte da sua vida já no início do século XX. No entanto, toda a sua educação é oriunda ainda dos reflexos da “Belle Époque”.  Nasceu a 27 de março de 1877, no Rio de Janeiro. Era a penúltima dos dez filhos do barão e baronesa do Rio Negro. Desde criança, alimentou uma religiosidade profunda e mesmo mística. Era muito jovem quando seus pais se estabeleceram em Paris, onde aprimorou mais ainda sua já refinada educação.  Tinha pouco mais de quinze anos de idade quando foi inspirada por Deus a fazer, de uma forma particular, votos de perpétua virgindade. Isto lhe custou lutas ingentes, tanto com sua família como até mesmo com seu confessor, pois todos desejavam ardentemente que ela aceitasse um vantajoso casamento. Esta luta durou mais de 14 anos, quando então seu pai a dispensou para seguir a vida religiosa.

No entanto, não lhe era propício o ingresso numa ordem religiosa. Madre Francisca tinha sonhos mais altos de uma vocação maior, a de ser uma fundadora.  E esta graça brilhou para ela quando fez uma viagem ao Brasil, em 1909: em seu retorno, procurou ousadamente uma audiência com o Papa (São Pio X), pedindo-o conselho sobre seu plano de fundar uma congregação religiosa dedicada exclusivamente à prece e imolação pelo Santo Padre. Apesar de todos os pareceres contrários, tanto de familiares quanto de seu confessor, conseguiu a sonhada audiência com o Papa, realizada no dia 13 de dezembro de 1910.

Para surpresa de todos, o Papa recebeu-a benignamente em audiência particular, assistida pelo Cardeal espanhol Vives y Tuto. Mais uma surpresa esperava a todos: o Papa não só aprovou seu plano como a encorajou e exprimiu-lhe o desejo de que sua congregação fosse instalada ali mesmo em Roma, e que as intenções de suas imolações e orações fossem não só pelo Santo Padre mas por todos os sacerdotes da Igreja.

Obtida a anuência do Papa, Madre Francisca deu início à sua congregação, que teve o nome de “Companhia da Virgem”. Ela pretendia fundar uma Ordem que fosse como que o ramo feminino da Companhia de Jesus. Após anos de ingentes esforços, finalmente em 1918 seu pequeno grupo de religiosas adquire a primeira casa de recolhimento e a 12 de junho de 1921 era fundado o primeiro mosteiro da nova Congregação, situado em Roma como pediu o Papa. Seguiu a Regra de São Bento. Atualmente, tem um mosteiro no Brasil, em Petrópoles.

Tal foi a grandeza da Obra realizada por Madre Francisca de Jesus que sua vida mereceu uma hagiografia escrita pelo grande teólogo Reginaldo Garrigou-Lagrange, um dos expoentes da luta contra o Modernismo e seu último diretor espiritual, onde também o Autor transcreve os escritos místicos da Madre, considerada uma vítima expiatória pelo papado.  [1]

Deixou escrito para suas filhas espirituais alguns conselhos sobre a Virgindade Consagrada.

Os informes acima buscamos num resumo do texto de Garrigou-Lagrange feito pelo Dr. Plínio Corrêa de Oliveira.[2]



[1] Vide “Madre Francisca de Jesus”, de Reginaldo Garrigou-Lagrange, Editora “Santa Maria”, 1932

[2] Legionário, 381, de 31 de dezembro de 1939 e revista “Dr. Plínio” n. 299, de fevereiro de 2023




sábado, 11 de fevereiro de 2023

A RAINHA QUE PLANTOU AS RAÍZES DA BRASILIDADE

 




          A revista “Dr. Plínio” deste mês (n. 299 – fevereiro de 2023) publica algumas conferências de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre a psicologia do brasileiro, tema que ele abordou em várias ocasiões. Na capa da revista está estampado o teor delas: “O Brasil e sua vocação à santidade”. Alguns observadores dessa nossa mentalidade andaram notando, inclusive o próprio Dr. Plínio, que a maior parte provém de nossa origem portuguesa. Alguns cronistas comentam que essa bondade maravilhosa do povo português começou a tomar corpo no reinado de Dom João I (século XIV), quando veio morar na corte a princesa inglesa D. Filipa de Lencastre, a qual foi absorvida completamente por nosso povo.

Eis o papel de uma grande dama católica na formação das elites e, como consequência, na mentalidade de dois povos.

Logo que D. João I consolidou a monarquia portuguesa (séc. XIV), tratou de realizar o seu casamento, pois o trono precisava de uma rainha para que o aspecto familiar fosse mais destacado em seu reinado. O duque de Lencastre, ou Lancaster, era o quarto filho do rei da Inglaterra, Eduardo III. Nascido em  1340 e batizado com o nome de Jonh of Gaunt, era casado com a princesa D. Constanza, herdeira do trono de Castela. Dotado de fina educação religiosa, militar e política, tornou-se um dos maiores aliados de Portugal na época do Condestável Nun'Álvares Pereira. Em 1387, num grande acordo político entre Portugal e Inglaterra, é realizado o casamento de D. João I com a filha do duque de Lencastre, D. Filipa. Os historiadores portugueses são unânimes em reconhecer que este casamento reforçou os laços de entendimentos e aliança entre Portugal e Inglaterra, e fez rainha de Portugal e mãe e educadora da mais extraordinária geração de príncipes que algum dia tivemos, uma mulher excelsa, que muito havia de influenciar a vida da sociedade portuguesa, ajudando a encaminhá-la nos caminhos da virtude e do saber.

D. Filipa foi a grande colaboradora do rei na obra de restauração da sociedade portuguesa. Era necessário formar uma nobreza nova, uma nova classe de dirigentes, com aqueles que se tinham revelado portugueses dignos, fiéis, na crise que se passara com a morte do Rei D. Fernando. Uma parte da nobreza que vinha da primeira dinastia estava corrompida, nos costumes e nos ideais, e não se dispunha a ajudar D. João na empresa de abrir novos alicerces à vida nacional. Muitos deles, inclusive, haviam apoiado à causa contrária ao Mestre de Avis. Dom João I queria, assim, formar à sua volta uma nova elite, mas com os vassalos que se haviam distinguido pelos seus serviços e tinham ideais religiosos e patrióticos afins com o rei e com Dom Nuno Álvares Pereira.

 

Bondade e virtudes católicas trazidas por herança

Segundo os cronistas, a nova rainha não tinha muita beleza física, mas era verdadeiramente uma digna filha de Branca de Lencastre  - mulher meiga e encantadora. D. Filipa possuía, conforme o cronista Fernão Lopes, "todas as bondades que à mulher de alto valor pertencem".

Como as mulheres piedosas de seu tempo, D. Filipa entregava-se a infindáveis práticas religiosas. Recitava todas as manhãs as Horas Canônicas, segundo o rito da catedral de Salisbury. Às Sexta-feira não falava a ninguém sem ter antes recitado todo o saltério. Jejuava freqüentemente e lia as Sagradas Escrituras em "convenientes tempos". A piedade de D. Filipa não era, porém, formalismo vazio: acompanhava-a uma bondade prática e luminosa que aquecia e alegrava todos os que a rodeavam. Não fazia coisa alguma com rancor nem ódio, pois todas as suas obras eram feitas com amor de Deus e do próximo. Governava a sua casa com uma dignidade afável, sem nada de altivez. Todos a tinham como uma pessoa simples e amável, muito dedicada ao trabalho mas sem deixar também de divertir-se com os jogos das suas jovens damas de honra.

Seu espírito prático, desprendido e dedicado à Causa da Religião e do Pátria, a fez adaptar-se rapidamente ao novo país. Oriunda da corte inglesa, vindo morar num país completamente diferente, tanto no que se refere à língua quanto aos costumes, inserida numa corte pouca afeta ao luxo e à riqueza, de tal forma acostumou-se com tudo que logo conquistou os corações de seus súditos, e nunca foi considerada pelos portugueses como uma "rainha estrangeira".

Como todas as jovens bem educadas de seu tempo, D. Filipa entrou para o estado de casada perfeitamente preparada para cumprir rigorosamente todos os seus deveres. O próprio rei ficou encantado com a esposa, admirando-lhe todas as virtudes. Logo nasceu entre ambos grande e fervoroso afeto. Entregou-se o rei totalmente à sua leal esposa e se deixou levar por sua piedade fervorosa, que terminou por fazer dele um marido exemplar.

Tudo mudava na corte. Tudo caminhava para uma regeneração moral de toda a sociedade. E o exemplo vinha de cima, dos reis. Desaparecera todo o relaxamento e corrupção que antes imperava. Em lugar do efeminado Fernando havia o enérgico João; em vez da escandalosa Leonor, havia agora uma rainha exemplar, sem mácula, enquanto os outros nobres eram eclipsados pela figura ímpar do Condestável Nun'Álvares Pereira.

 

Família católica autêntica, uma sociedade de admiração mútua

Era comum entre príncipes de certas coroas medievais as contendas, que levavam sempre a rebeliões entre si e a golpes contra irmãos e os próprios pais. Em Portugal e Castela houve vários casos. Na casa de D. Filipa e D. João, a convivência era realmente original. Longe de formarem um grupo de rivais, os jovens príncipes constituíam uma sociedade de admiração mútua. Não só isso, adoravam-se uns aos outros, nunca tendo nascido entre eles qualquer vestígio de ciúmes ou invejas.

Muitos diziam que o rei era afortunado em possuir tais filhos. Pode ler-se, observa um cronista, "de um rei que tinha um bom filho obediente, mas ter cinco filhos - todos obedientes - parecia bom de mais para ser verdade!".

A obediência era a virtude mais admirada por aquela geração. No entanto, os filhos eram tratados com tanta brandura pelo pai, que um deles afirmou nunca haverem recebido dele qualquer ferimento, açoite, ou palavra rude. A obediência dos filhos era, pois, oriunda do amor paterno muito mais do que pelo temor ou reverência filial.   Os filhos de D. João foram criados juntos numa atmosfera glorificada pela piedade mística de sua mãe, fortalecida pelo pai soldado e amigos guerreiros, e tornada intelectual pela sua própria paixão pelos livros.

O mais velho dos filhos, D. Duarte, era ponderado e erudito, talvez mais talhado para a vida acadêmica do que para o trono. Foi o herdeiro e sucessor. Dom Henrique, conhecido como "O Navegador", era o mais prometedor dos filhos por sua grande capacidade e discernimento. Tal foi o seu gigantismo que se destacou de todos os seus irmãos, que no entanto foram brilhantes. Dom Pedro parece ter sido o espírito orientador, mais prático do que Dom Duarte e mais prendado. Foi mais estadista do que o irmão mais velho. Os mais novos, Dom Fernando morreu mártir entre os mouros, e D. Isabel casou-se com o duque de Borgonha.

 

Dar e ouvir conselhos, uma prática de virtudes

É espantoso como as pessoas daquele tempo gostavam de exortações. Ser aconselhado e advertido não nos dá nenhum prazer, mas naqueles tempos uma pessoa séria não pensava assim. Um exemplo eram as exortações que faziam entre si Dom Pedro e Dom Duarte. A quantidade de sábios conselhos que estes dois irmãos prodigalizavam um ao outro seria de molde a causar desuniões se ocorressem no mundo moderno. Mas este hábito não existe somente entre estes dois irmãos, mas entre pais e filhos, e entre os outros irmãos uns com os outros.

 

Como único temor o pecado

O filho mais novo de D. Filipa, Fernando, quase lhe custou a vida, deu trabalho para nascer, e por algum tempo mostrou poucas possibilidades de viver. No entanto, sobreviveu e veio a se tornar num jovem sossegado e meigo, cuja "conversação angélica" todos apreciavam. Não tendo a vitalidade dos irmãos, não tinha gosto pelos exercícios violentos com as armas, vivia para a Religião e para os estudos. Tinha uma "mui grande e nobre livraria" e a sua capela estava belamente ordenada, "segundo os costumes de Salisbury". Sua divisa era "Le bien me plait". Estes infantes meio ingleses tinham suas divisas escritas em francês, língua da sociedade culta e aristocrática da época.

Dom Duarte e Dom Pedro foram os companheiros de infância de Dom Henrique, pois tinham quase a mesma idade. Formavam um trio harmonioso, e a intimidade que ligava os dois mais velhos parece que não melindrava o mais novo. Dom Henrique era mais reservado e não confiava sua alma a ninguém. Dom Duarte chegou até a publicar um livro, "Leal Conselheiro", onde falava de suas confidências e de sua família. Dom Henrique não se prestou a escrever nada sobre si mesmo, todos seus segredos foram levados para o túmulo.

Apesar da disparidade de temperamento, todos os irmãos tinham cada um ânimo de soldado e nada temiam. Sim, temiam uma única coisa, segundo nos revela o cronista Zurara, era o pecado. Todos haviam aprendido com a mãe a cumprir todos os mandamentos da Santa Madre Igreja e abraçavam um misticismo religioso profundo e sincero. Além das mesmas práticas já aprendidas no convívio com a mãe, das rezas diárias e da freqüência aos sacramentos e às Missas, jejuavam costumeiramente e carregavam consigo dolorosos cilícios, com o que venciam galhardamente as tentações.

 

Afastai os nossos filhos dos jogos e os metais em trabalhos e perigos!

D. João I preparava o exército para a primeira investida militar fora do país: iam invadir Ceuta. Nem o rei nem a rainha se manifestavam sobre a presença dos filhos no exército. Mas eles o desejavam. Primeiramente procuraram a mãe, para junto dela conseguir anuência.  Os astutos jovens não disseram a ela que o pai já sabia de seus planos, mas pediram-lhe graciosamente que se servisse de sua influência junto do rei para que lhes fosse garantido a autorização para embarcar na empresa guerreira.  Queriam ser armados cavaleiros com honras militares, como era comum entre os medievais.

D. Filipa recebeu-os muito bem, pois compreendia que seus filhos precisavam conquistar as esporas de ouro com valor e heroísmo.  Quando eles acabaram de falar, ela lhes respondeu: "Bem, é verdade que vos tenho assim aquele amor que qualquer mãe deve ter a seus filhos. Porém, tratando-se de semelhantes feitos eu nunca vos poderia privar vossas boas vontades, antes vos ajudarei a elas com todas minhas forças e poder". E mandou perguntar logo a Dom João se estava desocupado e a podia receber naquele momento.

Na presença do rei, disse: "Senhor, eu vos quero pedir uma coisa que é muito contrária para requerer mães para filhos, porque comumente as mães pedem aos pais que afastem seus filhos dos trabalhos e perigos, tendo sempre grande receio de quaisquer danos que lhe possam acontecer. Eu tenho intenção de vos pedir que os afaste dos jogos e das folganças e os metais em trabalhos e perigos. Vossos filhos e meus vieram hoje a mim e me contaram todo o feito que tinhas passado acerca da cidade de Ceuta, pediam que me aprouvesse a vos falar disso, e vo-lo requerer da sua parte e da minha. Eu, Senhor, não queria por nenhuma forma, pois Deus por sua graça quis lhes dar disposição do corpo e do entendimento, que eles por seu trabalho falecessem de conseguir os feitos daqueles..."

O rei atendeu benignamente ao pedido. Mas disse para a rainha que ele também tinha um pedido a fazer: era que ela era quem deveria dar a autorização para que eles fossem para a guerra, nisto incluindo o próprio rei. D. Filipa  ficou aterrada. Não esperava que o rei, seu esposo, lhe fizesse tal pedido. Mas como se tratava de "serviço que seria para Deus fazer o seu santo nome ser adorado entre infiéis" aprovou o pedido, mesmo sabendo que pai e filhos se exporiam a perigo de vida.,

 

Façais vossos filhos cavaleiros com espadas que lhes darei com minha bênção

Quando os preparativos para a partida se iniciaram, a rainha orava cotidianamente na igreja de Sacavém. Ajoelhava-se todos os dias, de manhã cedo até o meio-dia, e depois voltava à tarde e rezava até altas horas da noite. Sentia uma grande dor em ver partir para a guerra seu esposo junto com os filhos, embora estivesse plenamente de acordo.

Há muitos anos que D. Filipa não gozava de boa saúde. Sabendo disto, Dom João evitava lhe falar da viagem, de tal forma que ela imaginava já que haviam desistido da idéia. Um dia, porém, o rei chega em sua presença e confirma a data da partida. A rainha sente profundamente. De tal forma sentiu o choque que  ficou abalada, provocando o choro de suas aias.  Dirigindo-se para elas, disse: "Amigas, não tendes porque chorar, porque o choro em tais casos não é coisa que aproveite, antes vos rogo que usemos do que nos é propício, isto é, encomendarmo-nos a Deus este feito muito afincadamente fazendo tais obras e bens, porque merecemos ser ouvidas, e isto é melhor que derramamento de lágrimas..."

Dirigindo-se ao rei, seu esposo, diz: "Eu vos peço por mercê... que vos façais vossos filhos cavaleiros na minha presença, ao tempo de vosso embarque com largas espadas que eu lhes darei com minha bênção". Dom João prometeu alegremente, e D. Filipa encontrou algum alívio em mandar vir de Lisboa as três mais belas espadas que lá se pudessem fazer.

Depois, entregou-se inteiramente às orações e ao jejum.  No mesmo dia em que Dom João a deixou na igreja, onde rezava, caiu ela doente. Todos julgavam que estava enfraquecida por causa dos jejuns e abstinências. Quando voltaram para a armada, receberam a notícia que fossem até à rainha com urgência. Não haviam dúvidas, era a peste.  Os dois irmãos menores foram afastados, enquanto os outros se reuniram à volta da mãe juntamente com o pai. O pobre do rei estava aflito, cheio de dor, não comia nem bebia, e os filhos velavam cuidando da mãe prestes a morrer, porque a peste não tinha cura.

D. Fililpa estava tranqüila e resignada, como manda o verdadeiro espírito cristão. Não tinha esperanças de melhora, sabia que estava chegando o seu fim. Virando-se para os filhos, diz: "Deus sabe o tamanho desejo que tive de ver a hora em que vós fostes armados cavaleiros, e para isso mandei fazer e guarnecer três espadas, e pois a Deus apraz que eu neste mundo não veja tamanho prazer, ele seja louvado por tudo". Indaga logo depois: "As espadas já estão prontas?". Como a resposta foi negativa, disse que dessem ordens em Lisboa para que as acabassem logo e as trouxessem.

Em seguida, a moribunda pegou uma cruz de madeira e a partiu em quatro partes, entregando cada uma a seu marido e aos três filhos ali presentes. No dia seguinte chegaram as três espadas. Deu a maior a Dom Duarte, dizendo: "Meu filho, porque Deus vos quis escolher entre vossos irmãos para serdes o herdeiro destes reinos... eu vos dou esta espada... que vos seja espada de justiça para regerdes os grandes e os pequenos destes reinos depois de a Deus aprouver que sejam em vosso poder, por falecimento do rei vosso pai, e vos encomendo seus povos, e vos rogo toda fortaleza sejais sempre sua defesa não consentindo que lhes seja feito nenhum agravo, mas a todos cumprimento de justiça. E vedes, filho, quando digo justiça, justiça com piedade, pois a justiça que em alguma parte não é piedosa é chamada crueldade".

Dom Duarte ajoelhou-se e beijou a mão da mãe, prometendo lembrar-se de suas palavras durante toda a vida. Em seguida, a mãe chama os outros dois filhos, D. Pedro e D. Henrique, entregando a cada um sua espada, juntamente com sua bênção: Eu vos dou esta espada com a minha bênção com a qual vos recomendo e rogo que queirais ser cavaleiro.

D. Filipa nunca perdeu a lucidez enquanto a doença seguia o seu curso, e teve muito mais o que dizer aos filhos antes de os deixar. Com a aproximação de sua morte, Dom João começou a se inquietar e os filhos pediram que ele não assistisse o desenlace fatal. Os filhos lamentavam que ela morresse naquele momento, quando se preparavam para uma importante batalha, aquilo que ela mesmo tanto desejara. Ao que D. Filipa respondeu: "Eu subirei ao alto, e do alto vos verei, e a minha doença não turvará a vossa viagem. Partireis pela festa de Santiago".

Dom João ainda insistiu em querer assistir os últimos momentos de sua esposa, mas foi instado pelos seus conselheiros e por Dom Duarte que saísse.  Despediu-se assim ele com o coração partido e afastou-se a cavalo. D. Filipa ficou com seus filhos e na presença deles morreu tranqüilamente com um sorriso no rosto. A alma de uma santa mãe subia aos céus e deixava aqui na terra os frutos de sua vida: a gloriosa epopéia de seus filhos que abismaram o mundo. Era o dia 19 de julho de 1415.

 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A ESTRATÉGIA APOSTÓLICA DE PIO IX

 



Muitos foram os comentários de caráter litúrgico e piedoso que se fizeram a respeito da data da Imaculada Conceição. Entretanto, uma das reflexões que o assunto suscita ficou completamente de lado. Cumpre recordá-la porque ela conserva, em nossos dias, uma atualidade palpitante.

Não é fácil, para quem vive em nossos dias, ter uma idéia da devastação que o racionalismo e o modernismo fizeram na sociedade européia e americana, em todo o decurso do século XIX.

O espírito humano, profundamente trabalhado pelos materialistas, pelos revolucionários de todos os matizes, sentia dentro de si uma revolta ardente contra o sobrenatural que o levava a repelir tudo quanto não pudesse cair diretamente sob a ação e o controle dos sentidos. Por isto mesmo, todas a religiões, e principalmente a Católica, na qual o sobrenatural se patenteia de forma visível e autêntica, foram como que postas de quarentena pela opinião pública. E todos os espíritos procuravam, tanto quanto possível, libertar-se da crença em uma ordem de fenômenos que não se enquadrasse rigorosamente dentro das leis da natureza.

A bem dizer, talvez nove décimos da opinião européia estava eivada de racionalismo e de modernismo. Evidentemente, essa contaminação não era igualmente extensa nem igualmente profunda em todos os espíritos. No entanto, mais visível em uma, menos em outros, ela tinha se insinuado de tal maneira que, mesmo entre os católicos leigos os mais eminentes, se podia notar uma ou outra infiltração daquelas tremendas formas de heresia.
Quatro eram as posições principais tomadas pela opinião pública perante a grande crise religiosa da época:

1 - aqueles que, corroídos a fundo pelo vírus racionalista e modernista, tinham sido atirados aos extremos da irreligiosidade, isto é ao ateísmo radical seguido de um anti-clericalismo militante e não raras vezes sanguinário;

2 - aqueles que, sem ter a coragem de romper com toda e qualquer convicção religiosa, estavam explicitamente colocados fora da Igreja, admitindo tão somente um espiritualismo ou um cristianismo vago, largamente acomodado aos princípios modernistas e racionalistas;

3 - aqueles que, sem ter a coragem de romper com a Igreja nem com o espírito do século, proclamavam-se católicos, mas sustentavam seu direito de professar, em um ou outro ponto, doutrinas contrárias às da Igreja;

4 - aqueles que, sem ter a coragem de sustentar que divergiam da Igreja e muito menos de se separar dela, procuravam, entretanto, interpretar capciosamente a doutrina católica, de forma a lhe alterar em alguns pontos o conteúdo autêntico e tradicional, e acomodá-lo com os erros da época.

A dizer a verdade, os que estavam inteiramente fora dessa classificação, os que haviam rompido inteiramente com o espírito do século e que se conservavam sem nenhuma jaça de racionalismo ou de modernismo eram tão poucos que podiam ser contados pelos dedos, nas fileiras do laicato, especialmente nos círculos intelectuais e sociais elevados.

O aspecto que a Igreja apresentava era, então, a de um imenso edifício que se esboroa aos pedaços. De seus milhões de filhos, pouquíssimos conservavam seu autêntico espírito. Na sua quase totalidade, eles conservavam apenas réstias de Fé, como o horizonte do crepúsculo, que conserva réstias de luz, vestígio derradeiro de um dia que está chegando ao seu fim. E a noite completa não haveria de tardar.

À vista disto, como deveria agir a Santa Igreja?

As opiniões estavam divididas e, efetivamente, o assunto era dos mais delicados.

Por um lado, uma reação clara e definida haveria de gerar uma imensa oposição, arrastando para a heresia explícita e categórica muitos espíritos que ainda se achavam ligados, mais ou menos, à Igreja Católica. Por outro lado, entretanto, se não se opusesse um dique formal e categórico à onda da heresia, que ia subindo, seria inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os desastres assumissem proporções tais que a Igreja viesse a conhecer os mais tristes e mais angustiosos dias de sua existência.

Pio IX optou por um gesto de energia, e resolveu convocar o Concílio do Vaticano, a fim de estudar e de decidir sobre a infalibilidade papal e o dogma da Imaculada Conceição. Um grande e largo gesto de audácia da Igreja enfrentava, pois, o espírito do século, em um desafio que parecia louco. Realmente, falar em dogmas naquela época já era uma temeridade. Definir dogmas novos, temeridade maior. E definir como dogmas exatamente a Imaculada Conceição e a Infalibilidade papal, em uma época tremendamente racionalista e democrática, parecia uma verdadeira loucura.

Por isto mesmo, uma imensa celeuma se levantou nos próprios arraiais católicos quando a deliberação do Pontífice foi conhecida. Discutiu-se amplamente. E, para ser objetivo, manda a verdade que se diga que a oposição foi tão forte que a quase totalidade dos Bispos franceses se opôs claramente à definição daquelas duas verdades de Fé.

Por que isto? Porque discordassem delas? Não. Mas porque achavam que o espírito transviado do século XIX só poderia ser atraído ao redil por um largo sorriso de concessão e de tolerância; que não é com golpes de audácia mas com uma invariável brandura, que se consegue a conversão das massas; que seria loucura das mais declaradas, procurar desafiar o espírito público. Realmente, com esta atitude ousada, todos se irritariam e se confirmariam no erro. Seria necessário contemporizar e conquistar pela persuasão e pela doçura. Só esta tática é que seria viável.

No Concílio do Vaticano, reuniu-se a Santa Igreja através de seus Bispos, iluminados pelo Espírito Santo, e além da questão doutrinária, este grande problema de estratégia foi discutido. A bem dizer, era talvez a primeira ocasião em que este problema estratégico se apresentava ao exame do Episcopado com tanto vigor, depois do Concílio Tridentino.

Os fatos pareciam dar inteira razão aos Bispos de opinião diversa da do Papa. Uma celeuma imensa se levantava pela Europa. As apostasias se multiplicavam. As discussões no Concílio eram longas e apaixonadas. Em última análise, ao lado da questão doutrinária se discutia o seguinte problema:

1 - um gesto de vigor tendente a preservar as massas do erro, conseguirá realmente imunizar os elementos não contagiados?

2 - esse gesto não terá como conseqüência exacerbar os espíritos que vacilam e levá-los à heresia?

3 - sobretudo, não produzirá ele o efeito de enraigar no erro indivíduos que poderiam talvez, pela persuasão, ser conduzidos à Verdade?

À primeira questão, o Concílio respondeu, “sim”. Às outras duas, “não”.
Foi este o significado da promulgação solene daqueles dois grandes dogmas.
Aparentemente, o Concílio errara. Continuava a irritação da incredulidade. O Arcebispo de Paris foi assassinado em plena Catedral por um indivíduo irritado pelo dogma da Imaculada Conceição. Rios e rios de tinta se gastaram para provar que o Concílio era retrógrado e obscurantista. Rui Barbosa escreveu seu famoso “O Papa e o Concílio”. A revolta contra a Igreja era franca e declarada...


Entretanto, os resultados esperados pelo Concílio não se fizeram esperar muito.

Em primeiro lugar, todos os católicos militantes deram sua adesão incondicional. No seio do povo, as verdades definidas pela Igreja foram aceitas graças ao vigor com que a Igreja as promulgara. Até nos círculos intelectuais, o vigor com que agira o Papa lhe atraiu o respeito geral, e todo o mundo começou a respeitar e se interessar por uma Igreja dotada de tal vitalidade. O racionalismo e o modernismo foram decaindo gradualmente. E, hoje em dia, a Igreja esmagou com sua vigorosa autoridade o dragão que ameaçou devorá-la no século XIX.

Evidentemente, ninguém pode negar o alcance deste acontecimento histórico. Erram os que condenam as manifestações vigorosas da Fé, e que julgam imprudente e contraproducente qualquer gesto de energia e de vigor combativo dos filhos da Luz contra os filhos das Trevas.

Aí está o triunfo formidável e definitivo de Pio IX a prová-lo. Ao que ficou dito acima, só uma ressalva temos que acrescentar. É que se o modernismo e o racionalismo foram enfrentados e esmagados na sua forma aguda, eles ainda se dissimulam sob a forma de mil erros diversos e precisam ainda ser vigorosamente combatidos. Foi para a extirpação destes e outros erros que Pio XI constituiu a Ação Católica. E a nós só nos cabe apoiá-la e prestigiá-la com todas as nossas forças, para que ela realize hoje o que já no século XIX realizou o magnífico golpe de Fé do Papa Pio IX.

(Plínio Corrêa de Oliveira – Legionário, 11 de dezembro de 1938)