A reverência devida aos mortos



O homem tem necessidade de reverenciar seus mortos?


Realmente, não há dor maior do que a da morte. Para o que falece é uma só, embora muito maior do que as dos demais. Para os que ficam, especialmente, são dores e mais dores que se repetem anos a fio. Mas para aqueles que sabem que o morto foi um justo, é de alegria aquele momento, como ocorreu com o personagem bíblico Tobias, o qual “tendo vivido noventa e nove anos no temor do Senhor, sepultaram-no com alegria” (Tobias 14, 16).
Num dos textos sagrados a morte é vista assim:
“Ó morte, quão amarga é a tua memória para um homem que tem paz no meio das suas riquezas, para um homem tranqüilo e afortunado em tudo, e que ainda se encontra em estado de tomar alimento!
Ó morte, que doce é a tua sentença para um homem necessitado, e que se acha falto de forças, para o de idade já decrépita, e para o que está cheio de cuidados, e para o que se vê sem esperança, e quem falta a paciência!
Não temas o decreto da morte. Lembra-te do que existiu antes de ti, e do que virá depois de ti. É um decreto que o Senhor pronunciou para todos os mortais” (Eclesiástico 41, 1-5).
Se a dor é tão grande, se os que ficam vivos sofrem tanto, como se explicar a necessidade de se fazer homenagens e reverências aos mortos?
Há diferença entre reverenciar e homenagear. A homenagem é um preito de reconhecimento devido àquela pessoa, que tem méritos por causa do que foi ou do que realizou em prol da sociedade ou de seus familiares. A reverência se distingue da homenagem porque se destina: a) prestar honrarias; b) cultuar a figura da pessoa; c) tratar com respeito; d) venerar com atos públicos a pessoa falecida.
Assim, as homenagens geralmente são prestadas apenas no momento do sepultamento (discursos laudatórios, placas, faixas,etc.), enquanto que as reverências são aquelas que se perpetuam, ou na sepultura (através de dizeres nela inscritos), nas visitas constantes que se farão futuramente e pelo caráter cerimonioso destes atos. Daí a necessidade da sepultura, onde se perpetuam os sinais vivos destas homenagens e reverências.
Segundo a Sagrada Escritura, um homem sem sepultura se equipara a um aborto: “Se um homem tiver um cento de filhos, viver muitos anos, contar numerosos dias de vida, sua alma se não utilizar dos bens que possui e se vier a ser privado de sepultura, deste homem não duvido afirmar que um aborto vale mais do que ele...” (Eclesiastes 6, 3).
Um sepultamento envolve diversos tipos de modalidades de reverências: arranjos de flores, como crisântemos (os mais baratos e que duram mais), lírios, e girassóis; coroas fúnebres; faixas com dizeres encomiásticos; músicas e orações; epitáfios (geralmente feitos de bronze) que se destinam a durar o mais possível com uma mensagem de louvor ao falecido e, enfim, uma série de homenagens nas quais se quer deixar patente a todos quanto o falecido era tido em boa fama.


1. Como se faziam reverências aos mortos na antiguidade clássica


A reverência aos mortos dada pelos antigos é fato inconteste, registrado em inúmeros documentos históricos da humanidade. Os egípcios chegavam a exagerar na preparação dos túmulos de seus mortos. No entanto, por causa de certas superstições, ou mesmo de influências de necromantes e agoureiros, os locais dos mortos eram mantidos bem longe das cidades. Lá, onde só haviam sepulturas, honravam-se os mortos e lhe prestavam cultos. Geralmente, é destes locais (tidos como “sagrados” em algumas culturas) que se extraem estudos modernos da arqueologia. Havia, inclusive, uma crença entre os romanos de que se deveria manter afastado os mortos a fim de que não voltassem ao convívio dos vivos. Na Roma antiga era proibido por lei que se enterrassem os mortos dentro da cidade. O termo latino “funus” significava ao mesmo tempo o corpo morto, o funeral e o homicídio, enquanto que “funestus” queria dizer a profanação provocada por um cadáver. Já a palavra “múmia” quer dizer betume (ou asfalto), substância com que os egípcios embalsamavam seus defuntos. O betume era uma substância de capital importância para os povos antigos, profusa na região das famosas “cinco cidades” comandadas por Sodoma junto ao Mar Morto (Gen 14, 10), e talvez pelo seu uso em embalsamamento (ou como combustível para alimentar fogo ou iluminação) tenha sido motivo de guerras entre aqueles povos.
O costume de enterrar os mortos longe das cidades era tão arraigado entre os romanos que São João Crisóstomo chegou a dizer: “Vela para que jamais se erga um túmulo dentro da cidade. Se depositassem um cadáver no local onde dormes e comes, o que tu não farias! Entretanto, depositas os mortos não onde dormes e comes mas sobre os membros de Cristo”. Quer dizer, deve se sepultar os mortos nos lugares mais dignos possíveis, evitando-se, porém, que sejam enterrados onde moram os vivos.
É evidente que as cidades dos mortos, os cemitérios ou equivalentes, não podem simplesmente ficar incrustados dentro das cidades dos vivos, têm que manter requisitos especiais que os distingam e se faça ver o que são. Com as normas mais recentes sobre o uso do local dos mortos, erguem-se cemitérios dentro das cidades sem que causem problemas na população, como maus cheiros ou situações macabras.


A cremação dos cadáveres


A cremação é um dos processos mais antigos praticados pelo homem. Em algumas sociedades este costume era considerado corriqueiro e fazia parte do cotidiano da população, por se tratar de uma medida prática e higiênica. Alguns povos utilizavam a cremação para rituais fúnebres: os gregos, por exemplo, cremavam seus cadáveres por volta de 1.000 A.C. e os romanos, seguindo a mesma lista de tradição, adotaram a prática por volta do ano 750 A.C. Nessas civilizações, como a cremação era considerada um destino nobre aos mortos, o sepultamento por inumação ou entumulamento era reservado aos criminosos, assassinos, suicidas e aos fulminados por raios (considerada até então uma "maldição" de Júpiter). As crianças falecidas mesmo antes de nascerem os dentes também eram enterradas.
No Japão, a cremação foi adotada com o advento do Budismo, em 552 D.C, importado da China. Como em outras localidades, ela foi aceita primeiramente pela aristocracia e a seguir pelo povo. Incentivados pela falta de lugares para sepultamento, pois o Japão possui pouquíssimo espaço territorial, os japoneses incrementaram significativamente a prática. Em 1867, foi promulgada uma lei que tornava obrigatório incinerar as pessoas mortas por doenças contagiosas para um controle sanitário eficaz e eficiente, bem como para racionalizar e obter melhor uso da terra. Os cidadãos passaram a considerar normal cremar todos os mortos e todas as religiões passaram a recomendá-la.


2. Como se faziam (ou fazem) algo semelhante entre os indígenas;


É evidente que por causa de seu grande atraso cultural nossos silvícolas não conheciam e nem conhecem meios adequados para sepultar ou reverenciar seus mortos. Grande parte de indígenas enterram seus mortos em vasos de barro especialmente feitos para tal fim. Juntamente com o cadáver ficam seus pertences. No entanto, perante o corpo inanimado prestes a ser enterrado, algumas tribos tinham comportamento diferente e procuravam saciar seus instintos antropofágicos. O padre Simão de Vasconcelos diz que alguns índios melhoram a sepultura “porque os metem em suas entranhas”. E o fazem da seguinte forma:
“Tiram o corpo do defunto a um campo, acompanhado de todos seus parentes; e chegados ali, tiram-lhe as entranhas os feiticeiros e agoureiros mais veneráveis; e logo vão repartindo em partes, a cada qual aquela que lhe cabe, segundo o grau maior ou menor de parentesco. Estas partes torram ao fogo certas velhas... torradas elas, cada um come aquela que lhe coube com grande sentimento: e têm para si que é sinal de maior amor que podem ostentar nesta vida aos que se ausentam para a outra, o dar-lhes sepultura em seus ventres e incorporá-los em suas entranhas...”
Estes costumes antropofágicos hoje não existem mais. No entanto, nada melhorou com relação aos métodos de sepultamento, em geral muito pobres e com poucas reverências, a não ser quando as velhas índias fazem um coro de carpideiras acompanhando o defunto, o qual sempre segue para a sepultura numa rede.

3.O sentido da reverência aos mortos entre os cristãos:


a) no Antigo Testamento


Nas Sagradas Escrituras, as primeiras informações sobre as homenagens fúnebres ou reverências aos falecidos são escassas e de sentido ainda rústico. Mas há uma causa para isso. É que os povos antigos tinham uma fortíssima tendência para a idolatria, e quando seus patriarcas ou reis morriam procuravam perpetuar suas memórias através de adoração idolátrica. Assim, enquanto no Egito se erigiam faustosos túmulos para os Faraós, entre os hebreus as cerimônias fúnebres (especialmente dos Patriarcas) ainda eram feitas com simplicidade: a razão era justamente para se evitar de cair no mesmo erro dos egípcios, que idolatravam seus mortos, especialmente os faraós. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Abraão, enterrado numa rústica caverna (Gên 25, 7-11). Na mesma caverna foram sepultados os patriarcas Isaac e Jacó, além das esposas Sara, Rebeca e Lia (Gên 49, 29-32). Pode-se dizer que aquela caverna tornou-se um jazigo de família. O patriarca José do Egito, filho de Jacó, não foi sepultado no mesmo “jazigo” mas “num caixão do Egito” (Gên 50, 25), isto é, num sarcófago, o que significa que houve uma reverência especial para ele pelo que representava perante aquele povo (o egípcio). Como se sabe, embora fosse hebreu José tornou-se governante e personalidade importante entre o povo do Egito.
O maior mistério ocorreu com o sepultamento de Moisés: “Moisés, servo do Senhor, morreu ali na terra de Moab, segundo a ordem do Senhor; e o sepultou no vale da terra de Moab, defronte de Fegor; nenhum homem soube até hoje o lugar do seu sepulcro...” (Deut 34, 5-6). Não se sabe o lugar de seu sepulcro, seja uma caverna ou qualquer lugar o mais recôndito possível, pois se viessem a saber poderiam levar seu culto à idolatria. Como diz as Escrituras houve muito pranto com a morte de Moisés, talvez muitas orações, muitos rituais de homenagens a ele, mas o fato de não se vislumbrar sua sepultura talvez tenha evitado que o povo hebreu praticasse a idolatria, como era comum ocorrer no Egito de onde vinham. A altercação que o demônio teve com São Miguel sobre o corpo de Moisés, de que fala São Judas em sua Epístola (1, 9), deve ter sido exatamente com a intenção de lhe dar um sepulto grandioso e com isso despertar a idolatria entre os hebreus.
Josué teve seus ossos trazidos e sepultados em lugar apropriado – quer dizer, em jazigo da família (Josué 24, 32). Sansão também foi enterrado em sepultura comum dos familiares (Juízes16, 31), assim como o último dos Juízes, Samuel (I Sam 25, 1). O grande rei Davi também recebeu as homenagens e reverências merecidas, tendo sido enterrado em sua cidade (Belém), quer dizer, entre seus familiares (I Reis 2, 10-11), assim como seu filho Salomão (II Crônicas 9, 31).
A partir daí a Sagrada Escritura sempre se refere aos sepultamentos dos reis de Israel como se tivessem ocorrido “na cidade de Davi”, isto é, Belém. O rei Asa foi enterrado lá (II Crôn 16, 14), embora em sepulcro que o mesmo mandara fazer para si. O rei Ezequias foi enterrado na mesma localidade, referindo a Bíblia que “todo povo de Judá e todos os moradores de Jerusalém celebraram os seus funerais...” (II Crôn 32, 33). Um de seus sucessores, o rei Josias, já é enterrado num mausoléu (II Crôn 35, 24-25), demonstrando um progresso do povo hebreu no combate à idolatria e a construção de monumentos funerários para seus reis sem perigo para sua fé.
Tal era a importância dada ao sepultamento de seus mortos que a Sagrada Escritura o menciona como principal virtude de Tobias (Tob 1,20). No cativeiro da Babilônia, onde vivia com os de sua tribo (Neftali, do reino de Samaria) os corpos dos hebreus mortos eram jogados fora das muralhas da cidade a fim de serem devorados pelas aves de rapina: o perverso rei proibia que se enterrassem os corpos dos israelitas, e quem o fizesse era severamente punido. Certo dia, Tobias estava sentado à mesa para o jantar quando veio seu filho e lhe disse que haviam deixado na praça o corpo de um israelita morto: sem titubear o velho Tobias levantou-se imediatamente da mesa, foi buscar o cadáver e o ocultou até à noite, quando o enterrou dignamente (Tob. 2, 37).
Assim, ao longo dos anos foi se solidificando entre o povo eleito a idéia da reverência devida aos mortos. Mas foi já no tempo dos Macabeus que o costume firmou-se:
“Simão mandou buscar os ossos de seu irmão Jônatas e sepultou-se em Modin, que era a cidade de seus pais. Todo Israel tomou grande luto pela sua morte e pranteou-o durante muitos dias. Simão levantou sobre o sepulcro de seu pai e de seus irmãos um alto monumento, que se via de longe, cujas pedras eram polidas por detrás e por diante. E levantou sete pirâmides, uma em frente da outra, a seu pai, a sua mãe e a seus quatro irmãos. Pôs-lhes ornatos e à roda delas colocou grandes colunas; sobre estas colunas, troféus de armas para memória perpétua, e ao pé das armas, navios esculpidos, que fossem vistos de longe por todos os que navegavam pelo mar. Tal é o sepulcro que levantou em Modin, o qual ainda hoje existe”. (I Mac. 13, 25-30). A cidade de Modin era a terra natal dos Macabeus, situada numa região montanhosa da Judéia, e onde Judas Macabeus acampou seu exército (II Mac 13, 14) em memorável batalha. Em plena guerra, mesmo sabendo que alguns soldados mortos estavam em estado de pecado, Judas mandou rezar por eles, fazendo expiação pelos pecados e lhes dando dignas sepulturas (II Mac 12, 38-40).
O sepultamento pode ser decorrente de boa ou má fama. Quem teve boa fama em vida deverá naturalmente ser reverenciado pelos que lhe sucederam na vida. Mas quem teve má fama, o mais provável é que não receba homenagens e reverências, ou nem sequer sepultura. Exemplos de má fama tivemos com o primeiro rei de Israel, Saul, que prevaricou e cujo corpo foi queimado juntamente com os de seus soldados (I Sam 31, 11-12), e também com a feiticeira Jezabel, cujo corpo foi comido pelos cães (II Reis 9, 36). O mesmo destino teve outros que morreram na má fama, como Senaquerib, o rei Og, Herodes, enfim, todos aqueles que morreram em decorrência de sua apostasia e foram punidos com mortes horríveis e sem direito a sepultura.
E que dizer dos corpos de alguns dos primeiros mártires cristãos, lançados às feras, queimados, entregues aos cães ou deixados aos abutres, sem qualquer direito à sepultura? Segundo Eusébio de Cesaréia, durante a quarta perseguição aos cristãos movida por Marco Aurélio (século II), jogaram aos cães os corpos dos que foram asfixiados nas prisões e se mandou vigiar cuidadosamente os cadáveres, dia e noite, a fim de que não fossem sepultados. Mesmo neste caso pode-se dizer que o ato revela uma punição decorrente da “má fama”. Quer dizer, ser cristão para aquele povo pagão redundava em má fama, haja vista que a nova religião era odiada e tida como aviltamento da pessoa humana. Embora isto não fosse verdade, no entanto era esta a idéia que ainda vicejava entre os pagãos. Ser cristão só passou criar boa fama entre o povo alguns séculos depôs.


b) no início do cristianismo


O Santo Sepulcro


Todas as normas de sepultamento do período de início do cristianismo não eram ainda uniformes, não seguiam um procedimento comum. A causa era porque, diante das perseguições, os cristãos no início não podiam reverenciar como queriam seus mortos. Das catacumbas, o cemitério pagão dos romanos, eles podiam colocar seus defuntos em qualquer outro lugar, para onde sempre seguiam levas de devotos para reverenciá-los, especialmente se fossem dos mártires.
Com o surgimento da Civilização Cristã se foi aos pouco institucionalizando as regras de reverenciamento e homenagem aos mortos. E tais princípios e normas se espalhavam pelo resto mundo, chegando a influenciar outros povos.
No ano 130, o imperador Adriano manda cobrir com terra o Santo Sepulcro e construir em cima um templo a Vênus. Santa Helena, a mãe de Constantino, visita Jerusalém no ano 326 e, mandando fazer escavações, descobre o Gólgota e as três cruzes (a de Cristo foi descoberta por causa dos milagres ocorridos ao se tocar nela). Constantino manda construir ali, então, a igreja do Santo Sepulcro. No ano 614 a igreja é destruída pelos persas, mas logo reconstruída pelos bizantinos. Estamos numa época em que a prática de se reverenciar os mortos com sepulturas suntuosas e dignas começava a se espalhar pela Europa cristã. Era preciso que o Santo Sepulcro também se tornasse um local cheio destas reverências e digno do Quem fora sepultado. Em 638 Jerusalém é tomada pelos muçulmanos, que não tinham a mesma prática, pois até mesmo a sepultura de seu fundador, Maomé, até hoje não tem um monumento que lhe preste reverência. No início de seu domínio aceitam certa tolerância com os cristãos, mas a partir do século X movem-lhes perseguições, quando o califa fatímida Al-Hakim manda destruir todas as igrejas católicas no ano 1099, inclusive a do Santo Sepulcro. Foi este um fator determinante das Cruzadas. Os muçulmanos detestavam, por princípio, que se fizessem reverências aos mortos, e não toleravam especialmente que esta reverência mortuária se realizasse logo no túmulo de Jesus Cristo.


c) no período da Civilização Cristã


Foi o período em que se deu maior importância à reverência devida aos mortos, especialmente na Idade Média, quando a religiosidade era marcante em toda a sociedade. Mesmo após aquele período, ainda se vê exemplos de verdadeira sacralidade na reverência que se prestava aos mortos, especialmente se os mesmos tivessem sido pessoas importantes na sociedade. Veja-se, por exemplo, o relato do simples traslado dos corpos reais no século XVI.


Simples traslado dos corpos reais para o “Real Monasterio San Lorenzo” ou “El Escorial”:


“Em conseqüência desta ordem, fez-se a trasladação dos corpos reais, e tanto o conduzi-los como o recebe-los se fez com toda a pompa e solenidade possível. Desde Madrid vieram acompanhados pelo caminho de um crescido número de religiosos de todas as ordens, de toca a Capela Real, dos já citados bispos de Salamanca e Zamora, dos duques de Arcos e Escalona, do esmoleiro-mor Dom Luís Manrique, e de Dom Rodrigo Manuel, capitão da guarda da cavalaria, com sua gente, com outros muitos empregados e serventes na casa do rei. Chegados ao mosteiro, fizeram formalmente a entrega ao prior e monges, que celebradas para cada um suas missas, vigílias e sermões, os colocaram no lugar que designava a carta do rei, que é uma pequena abóbada que ainda hoje se conserva sob o altar-mor da velha igreja. Em cada um dos caixões mortuários se pôs uma memória ou escrito que dizia assim:
- No féretro de dona Isabel de Valois:
Neste ataúde está a rainha dona Isabel, terceira mulher do rei Dom Felipe nosso senhor, segundo deste nome. Foi filha de Henrique II e de dona Catarina de Médicis, reis de França, a qual morreu na vila de Madrid, na casa real, a 3 de outubro, véspera do bem-aventurado São Francisco, ano de 1568. Seu corpo foi depositado no mosteiro das Descalças e dali foi trasladado a este mosteiro de San Lorenzo el Real, a 7 de junho de 1573.
- No do príncipe Carlos:
Neste ataúde está o corpo do sereníssimo príncipe Dom Carlos, filho primogênito do mui católico rei Dom Felipe II deste nome, nosso senhor, fundador deste mosteiro de San Lorenzo el Real, filho da princesa Dona Maria, sua primeira mulher, o qual morreu na vila de Madrid no palácio real, vigília do Apóstolo Santiago, a 24 dias do mês de julho de 1568, aos 23 anos de idade. Nasceu à 9 de julho de 1545 na vila de Valladolid. Foi depositado seu corpo na dita vila de Madrid, no mosteiro das monjas de Santo Domingo el Real, e dali foi trasladado para este mosteiro, por ordem do mesmo rei seu pai, a 7 de junho de 1573.
Logo que foram depositados os dois cadáveres acima ditos, quis o rei que também os dos monges que tinham morrido, viessem a seu enterro, que era os das pequenas clausuras que já estavam concluídas. Tiraram os ossos, e com toda solenidade e cantando o ofício de defuntos foram trasladados. Então a casa e a igreja da vila se arranjou o melhor que pôde e se transferiu para ela o hospital dos operários, para que estivessem com mais conforto e comodidade; sinalando-lhes também para campo santo o que havia servido para os monges, e que disse está agora entre o jardim e a vila del Escorial.
Depois destas trasladações veio toda a família real ao novo edifício para o qual já se havia arrumado na parte do palácio algumas habitações. A rainha Dona Maria estava no último Mês de gravidez, e no dia de São Lourenço se sentiu fortemente acometida de dores. Quis no momento partir de Madrid, e com efeito se pôs a caminho; mas a indisposição foi crescendo de ponto, que teve de ficar no povoado de Galapagar, onde, na noite do dia 12 deu à luz um infante, ao qual puseram por nome Carlos Lorenzo. O rei recebeu muito prazer com o nascimento deste menino; mas como sempre ao estremo do gozo se encontra comumente o pranto, o turbou a enfermidade da rainha de Portugal dona Joana, irmã de Felipe II. Foi progressivamente agravando-se, e a 8 de dezembro deste ano de 1574, pagou o comum tributo num dos aposentos do Escorial. Se lhe fizeram as exéquias com a solenidade possível, e depois um luzido acompanhamento a conduziu ao mosteiro das Descalças Reais de Madrid, que esta ilustre rainha havia fundado, e onde havia preparado seu enterro. Os reis sumamente aflitos, retiraram-se ao Pardo para terminar o inverno, segundo tinham costume”.


Outros traslados:


As instalações do “El Escorial” ainda eram um pouco precárias para o que almejava Felipe II. Mesmo assim procurou realizar os traslados de outros corpos da forma mais pomposa possível:

“...em frente da agora chamada porta das cozinhas, que então era a única por onde se entrava à parte já edificada, e a dez passos de distância, construiu-se um amplo estrado de vinte e oito pés quadrados, ao qual se subia por três espaçosas grades que lhe rodeavam, e que o mesmo que o tablado estavam cobertas de veludo negro com franjas de ouro. Nos quatro extremos se erguiam quatro colunas com suas bases e capitéis, todas cobertas de brocado, que sustentavam um amplo pavilhão ou dossel da mesma rica tela, com suas goteiras, e franjas preciosas, que o faziam tão vistoso como digno. Debaixo deste pavilhão, e no centro do tablado, havia um túmulo em forma de mesa, de cinco pés de largura por 19 de largura, também coberto de brocado. A partir deste tablado, até dar volta à fábrica, se havia colocado um espaçoso palanque de madeira, tanto pelo decoro, como porque a muita gente da fábrica e povos circunvizinhos não se acotovelassem em demasia.
Ao mesmo tempo, dos diversos pontos da Espanha, onde estavam depositados os corpos reais, saíam fúnebres cortejos, que com muito acompanhamento de eclesiásticos e cavaleiros, com toda a pompa possível, e fazendo gastos enormes, se dirigiam em solene procissão ao Escorial. Os primeiros que chegaram foram o bispo de Jaen e o duque de Alcalá, que vinham encarregados dos restos mortais do imperador e imperatriz, da princesa Dona Maria, e de Dona Leonor, rainha de França, e dos infantes Dom Fernando e Dom Juan. Chegaram ao povoado de Valdemorillo no dia 2 de fevereiro, passaram ali a noite descansando, e no dia seguinte partiram para o mosteiro. Depois do meio dia o clamor dos sinos anunciou a proximidade da comitiva, e o vigário revestido com os ornamentos sagrados, acompanhado do diácono e do subdiácono, e seguido da comunidade, saiu até o lado oposto do palanque, de onde voltaram para o tablado que acima se falou. Enquanto apeavam os féretros das liteiras e os colocavam sobre o túmulo alto, a comunidade cantou os responsos de costume, o capitão de cavalaria Dom Rodrigo colocou-se com sua guarda aos lados da porta, e os demais se colocaram em filas. Entraram nos claustros, onde estavam preparados outros dois túmulos, nos quais descansavam os féretros segundo iam chegando, enquanto cantavam um responso. Deste modo chegaram à igreja provisional, que estava toda enlutada com veludo negro, por todo derredor da parede havia uns bancos para os eclesiásticos; em frente outra fila para os cavaleiros, e junto ao altar-mor outros assentos para os bispos. Os cadáveres iam conduzidos pelos grandes e monteiros, pela seguinte ordem: primeiro os dos infantes; seguiam as duas rainhas; ao final o imperador e sua esposa, que pela mesma ordem foram colocados num túmulo levantado na meio da igreja, coberto de ricos panos negros. A comunidade subiu ao coro, para cantar as vésperas de defuntos, com as quais concluiu o ofício deste dia”.
(“História del Real Monastério de San Lorenzo”, chamado comumente de El Escorial – cap. III, págs. 28/29)

 
4. Como é feito hoje


Muito tempo já decorreu e muita coisa mudou na sociedade, especialmente na ocidental e cristã. E especialmente no que diz respeito à reverência aos mortos, a mudança é radical.
Há três tipos de enterros, ou féretros, nos dias de hoje: primeiramente há aqueles que enterram seus mortos com desejo de reverenciá-los satisfatoriamente (como é natural), providenciando túmulos e homenagens à altura daquilo que julgam merecer o falecido; em segundo lugar há os que desconsideram qualquer reverência aos mortos e não dão qualquer importância ao enterro, fazendo-o da forma mais simples possível; por último, há aqueles que consideram nem haver necessidade de enterro ou coisa semelhante, procurando então um moderno recurso de se ver livre dos cadáveres, seja pela incineração ou cremação, ou outro recurso semelhante.
Há pessoas (e hoje são muitas) que, ao serem abordadas sobre que destino dar a seu cadáver após a morte, dizem sempre que podem jogar no mar, queimar, dar qualquer destino, pois pouco lhe importa, já que estando morto nada mais vale. É verdade, nada mais vale. Mas há algo que ele deixou que vale muito, que é sua memória, se foi boa. E esta deve ser reverenciada pelos que ficaram vivos. Por isso, recomenda-se não somente que seja enterrado dignamente, mas que lhe seja feita uma homenagem através de um túmulo ou coisa semelhante.
No entanto, ainda há uma forte tendência em reverenciar seus mortos em certa camada da população. De tal forma que se chega ao exagero, com féretros faustosos e cheios de homenagens ricas em detalhes. Fazem-se discursos laudatórios, a vigília do cadáver é regada a uísques e coisas pomposas, cantam-se as músicas que lhe lembram o passado, tudo isso com o objetivo de ressaltar a figura do morto. Se for um cantor ou artista famoso, seus fãs acodem em profusão com braçadas de flores, faixas, etc., e ninguém pode impedir que se façam homenagens, mesmo as mais extravagantes possíveis.


5. O desvirtuamento da reverência devida aos mortos por causa da idéia materialista moderna: a cremação pagã, os cemitérios igualitários, etc.


Qual seria a forma mais digna de nos despedir dos nossos mortos? Dando-lhes homenagens e uma sepultura digna ou, simplesmente, cremando seus corpos num forno? Aqueles que fazem tais cremações, sentindo uma espécie de remorso por ato tão indigno, sentem-se satisfeitos em realizar um cerimonial pós-morte de sentido duvidoso, como, por exemplo, espalhar as cinzas do defunto pelo quintal da casa onde morou, na sua rua, ou então pelos ares ou no mar como fazem alguns magnatas americanos (lá há um serviço milionário para jogar as cinzas no cosmo). Outros, como querem ainda guardar certa lembrança do falecido (com que objetivo? Futuras reverências?) guardam suas cinzas numa caixa metálica. De repente, aquela caixa metálica pode se tornar num relicário da família, pois ninguém a quererá olhar a não ser com ares de respeito e reverência (a não ser que o dito cujo tenha sido uma pessoa tão ruim que seus familiares o detestem).
Há no mundo moderno uma contradição evidente nesta matéria: as pessoas se ufanam de levar uma vida “ao natural”, apreciam e até veneram a ecologia, têm grande preocupação com uma alimentação natural e fogem da artificial; no entanto, quando morrem desejam que seu corpo seja descomposto não da forma natural, como soe acontecer, mas de forma artificial, num forno crematório.
Qual a razão desta contradição? É que as pessoas em geral detestam a morte e tudo o que a ela se relaciona, e querem se desfazer do cadáver o mais rápido possível. Esta pressa, talvez até mesmo sem o perceber, torna as pessoas desrespeitosas para com seus familiares falecidos. Em vez de deixar que os corpos se desfaçam naturalmente, da forma como nasceram e viveram, apressam o seu fim de uma forma artificial e antinatural.


6. A necessidade de ter os corpos na família para prestar homenagens e reverências:


É claro que além da necessidade de se prestar reverências aos mortos, a presença do corpo do falecido serve para várias finalidades práticas da vida civil: reconhecimento do cadáver, atestação do óbito e formalidades legais para se deixar para a família. Sem o corpo este processo burocrático fica mais difícil.
A Igreja, em sua sabedoria, recomenda, pois, preservar os corpos de seus filhos e colocá-los dignamente em sepulturas. Aqueles que merecem reverência especial, ou mesmo veneração pública como os santos, são colocados em monumentos especialmente dedicados à honra pública, em geral nos altares de igrejas para serem objetos de romarias, etc. É o caso, por exemplo, de centenas de corpos incorruptos de diversos santos espalhados pelo mundo, e colocados dentro de majestosos sarcófagos ou altares monumentais dedicados à veneração pública.


a) É muito comum a intensa busca dos corpos de pessoas mortas em desastres ou calamidades públicas, especialmente nos casos de acidentes de avião ou qualquer outro hoje tão comuns. Um caso recente foi o do voo 447 da Air France, que despencou no Atlântico numa viagem do Rio de Janeiro a Paris. Embora os corpos tenham caído no mar fez-se intensa busca para encontrá-los e entregá-los às famílias: Por que? Além de se cumprir as formalidades legais de que falamos acima, também para se prestar homenagens e reverências aos mesmos, apesar de alguns terem ilogicamente, após a posse dos corpos, incinerado seus mortos. Fatos semelhantes ocorrem em catástrofes naturais, quando procuram os corpos debaixo dos escombros (quer dizer, já estão enterrados, por que desenterrá-los para serem novamente enterrados?) com o único fim de entregá-los aos familiares. De modo geral, as famílias ficam inconsoláveis quando não são encontrados os corpos de seus parentes mortos nestas catástrofes. Eles necessitam destes corpos para as últimas despedidas e as reverências que devem ser prestadas ante o público.


b) O caso dos comunistas (até eles!) a procura dos corpos de guerrilheiros mortos no Araguaia há mais de 30 anos! De modo geral esta procura é de caráter político, mas os familiares alimentam a esperança de receber seus mortos já falecidos (mesmo que seja somente as ossadas) para lhes prestar homenagem e reverência. Foi o que ocorreu (este, um fato político) com o fracassado guerrilheiro Che Guevara, cujos ossos dizem ter achado (há dúvidas se são verdadeiros) e foram levados a Cuba e colocados num monumento. Monumento? Se fosse apenas uma sepultura seria uma homenagem, mas num monumento aí já passa a ser reverência. Quer dizer, até mesmo elementos ateus e materialistas percebem a importância de se reverenciar seus mortos. Na antiga Rússia Comunista havia um enorme monumento na Praça Vermelha de Moscou, e dentro dele o corpo embalsamado do ditador Lênin. A homenagem, é claro, não era autêntica, pois não foi feita pelo povo, ou sequer era desejada pelo mesmo, mas pelos asseclas do ditador, cuja finalidade era, obviamente, a reverência popular.
A reverência não é necessária para quem morreu mas para os que ficaram vivos, como os familiares; todos querem que a sociedade saiba que aquela pessoa teve um conceito social – e isto é honroso para a família e para os patrícios do falecido.


7. A questão da boa e da má fama.


Quando vivemos, todos nós temos o maior cuidado com nossa boa fama. Esta boa fama é também respeitada e até propalada por nossos familiares. A família geralmente se orgulha de ter um filho com boa fama. E esta não morre com a pessoa, ela permanece mesmo depois quando morremos. Daí os escritores chamarem os membros das academias de letra de “imortais”, isto porque eles julgam que seus escritos lhes legaram uma boa fama, de tal forma que os fazem ficar imortais aos olhos do público.
A Sagrada Escritura diz “Tem cuidado da tua boa reputação; porque esta será para ti um bem mais estável do que mil tesouros grandes e preciosos. A boa vida tem somente certo número de dias; mas o bom nome permanecerá para sempre.” (Eclesiástico 41, 15-16). Quem discorda desta suprema verdade?


a) a Fama


Em geral entende-se por fama a “opinião boa ou má que se tem comumente de uma pessoa”. Se sua conduta honrada é inatacável aparece manifesta entre os demais, adquire entre os que convive uma “boa fama” ou “boa reputação”; se, pelo contrário, é do domínio público sua conduta imoral ou escandalosa, adquire então uma “má fama”. Em seu sentido próprio, a fama verdadeira é a boa.
O direito à boa fama é natural ao homem. Todo homem tem direito natural a sua boa fama, já que ninguém há de ser considerado como tal enquanto não se demonstre que o é. De modo que a injusta difamação do próximo constitui um pecado contra a justiça estrita, que obriga, por conseguinte, a restituir ou reparar o dano moral causado ao ofendido.
Há um ditado que diz: “Não se deve falar mal dos mortos..” Por algumas razões: primeiro porque tudo o que se diz dos mortos vai servir de exemplo para os vivos - caso se fale de seus defeitos, verdadeiros ou não, só servirá para servir de maus exemplos. Mas se houver algo justo a falar dos mortos por mal proceder enquanto viviam, isto deve ser feito com caridade e para ensinar aos vivos como evitar aqueles procedimentos errados. De outro lado, estando o morto na eternidade e na presença do supremo Juiz, falar mal dele neste mundo pode ser maléfico para sua alma que está prestando contas a Deus. É como se a gente funcionasse como o acusador, que não é nossa função.


b) a Honra


Se entende por honra o “testemunho da excelência de alguém”. O qual pode dar-se de três maneiras: ou com palavras, ou com fatos (reverências, inclinações, etc.), ou com as coisas exteriores (obséquios, estátuas, dando seu nome a uma praça, etc.). Ante Deus, que escuta os corações, é suficiente o testemunho da consciência, porém ante os homens se requerem os sinais exteriores.


c) a quem se deve honrar e reverenciar


Note-se a diferença entre a honra e a fama. A honra é a testificação da excelência alheia; a fama é a opinião pública dessa excelência. A honra se exibe ao presente; a fama se refere ao ausente. A honra se quebra com a contumélia, que consiste na injúria verbal ou real lançada contra o próximo em sua presença. A fama se quebra principalmente com a calúnia e a detração, que recaem de si sobre o próximo ausente. É mais comum, pois, que seja ofendida a fama do falecido do que o que está vivo. No entanto, tendo o falecido boa fama entre os seus se exige dos mesmos que o respeito devido pelo morto lhe preste reverências e se testifique publicamente quem ele era ou representava para a sociedade em que viveu.
Aos maus Deus não quer que seja dado honrarias em seus sepultamentos. Na história de Santa Brígida da Suécia conta-se o caso de um abade, da ordem cisterciense, que enterrou uma pessoa que fora excomungada. Quando estava rezando a oração correspondente sobre ele, a Senhora Brígida, em uma visão espiritual, escutou isso de Nosso Senhor: “Ele usou o seu poder e o enterrou. Pode estar segura de que o próximo enterro depois deste será o seu, pois pecou contra o Pai, que nos disse para não mostrarmos imparcialidade nem honrarmos injustamente os ricos. Por um favor próprio pereceu novamente, pois este homem honrou uma pessoa indigna e o exaltou entre os dignos, coisa que não deveria ter feito. Ele também pecou contra meu Espírito, que é a comunhão e a comunidade dos justos, ao enterrar um homem injusto como sendo justo. Pecou contra mim, também, Eu, o Filho, porque eu disse: ‘Aquele que me recusar, será recusado por mim.’ Este homem honrou e exaltou alguém que minha Igreja e meu vigário haviam repudiado”. O abade se arrependeu ao tomar consciência destas palavras e morreu quatro dias depois.
Aquele que viveu na má fama não deve, pois, merecer reverências e honrarias depois de morto, pois além de sua vida pregressa servir de modelo para a prática do mal, as honrarias que lhe fazem será uma afronta aos bons e a Deus.