sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O EXERCÍCIO DO JUÍZO EM NOSSO COTIDIANO







Segundo estudo do famoso Jean Piaget, o homem consegue atingir completamente seu juízo moral com idade em torno dos 12 anos. O “juízo moral” é o conhecimento e prática das regras sociais. É claro que o Autor não inclui como primordial nestas “regras sociais”, o Decálogo. Ele analisa o problema moral sob enfoque natural. [1]
No entanto, após os 12 anos o ser humano vai procurar outras regras morais com que possa viver mais comodamente de acordo consigo mesmo. Enquanto o juízo moral lhe indica que as regras são aquelas que aprendeu na infância, que lhes foram ensinadas em sua casa, na escola e na comunidade em que viveu, a partir de certa idade ele vai ser tentado a criar suas próprias regras, suas normas, baseando-se num conceito de liberdade que lhe dá o direito de escolher a vida que quiser levar doravante. Tem sido esta a tentação mais comum no homem moderno. Fugindo do cumprimento da Lei Primordial, que é o Decálogo, e as regras de conduta ditadas pelo Cristianismo, o homem começa a elaborar seu próprio conceito de juízo moral.

É lícito julgar o próximo?
Fazer juízo é um ato comum dos homens, e todos nós o fazemos cotidianamente sem mesmo o perceber. Muitas vezes expomos aos demais os nossos juízos sob a forma de opinião, de parecer ou de sentença. Nem sempre tal procedimento é mal, devendo apenas termos cuidado para não cometermos juízos temerários e não fazermos falsos julgamentos. Antes de tudo, vejamos o que diz São Tomás de Aquino sobre a licitude do ato de julgar o próximo:
“O juízo é justo na medida em que é um ato de justiça. Ora, como do sobredito resulta, três condições se exigem para que um juízo seja um ato de justiça: primeiro, que proceda de uma inclinação justa; segundo, que proceda da autoridade do chefe; terceiro, que seja proferida pela razão reta da prudência. A falta de qualquer delas torna o juízo vicioso e ilícito. – De um modo quando vai contra a retidão da justiça. E, então, o juízo se chama “pervertido” ou “ injusto”. – De outro modo, quando julgamos daquilo para o que não temos autoridade. E, então, o juízo se chama “usurpado”. – De terceiro modo, quando falta a certeza da razão; assim, quando julgamos do que é duvidoso ou oculto, levados por leves conjecturas. E, então, chama-se o juízo “suspeitoso” ou “temerário”.

No final de seu pensamento, conclui São Tomás:
“Nem contudo, por isso, ao julgar os outros, nós nos condenamos, por atrairmos sobre nós um novo motivo de condenação; mas, ao condenar a outrem, mostremo-nos merecedores da mesma condenação, por um pecado igual ou semelhante”..[2]
Não é difícil entender o raciocínio. Os abortistas, por exemplo, fazendo um juízo parcial e errado sobre os que condenam o aborto dizem que estes últimos são hipócritas, pois, segundo eles, querem encobrir a situação em que se encontra uma mulher que aguarda um “filho indesejado”. No entanto, feito um juízo conforme as regras morais cristãs, os abortistas é que se tornam hipócritas querendo encobrir sua vontade de eliminar a vida humana, de uma forma covarde e insana, com o pretexto de proteger a saúde ou a suposta “moral” da gestante. Eles julgam e acusam sem querer se submeter ao mesmo juízo. Um critério para se saber se a gente está fazendo um bom ou mau juízo é verificar se tal juízo é fruto do “juízo moral” da sociedade, as regras sociais cristãs, ou, pelo contrário, de nosso próprio juízo.
E assim são as pessoas hoje em dia. Possuem a capacidade de exercer seu juízo sobre si, sobre as demais pessoas e sobre toda a sociedade, mas o exercício desse juízo será feito de conformidade com suas normas e não com as regras que a sociedade lhes ensinou desde a infância.  Julgar é um ato perfeitamente normal na pessoa humana, mas o ato de julgar deve ser feito conforme as regras que Nosso Senhor Jesus Cristo deixou prescrito no Evangelho: “Não julgueis para não ser serdes julgados...”. Isto é, ninguém deve julgar os demais esperando não ser julgado da mesma forma e pelos mesmos motivos. É uma regra geral. E quem o faz? Para fazê-lo seria necessário praticar a santidade.
Vejamos o exemplo dos santos. Santa Teresinha do Menino Jesus (como todos os outros santos), quando era repreendida por uma falta que não havia cometido nunca procurava “se desculpar”, imaginando sempre que era mesmo capaz de haver cometido tal falta, mesmo estando inocente. São Domingos Sávio também era exímio nesse pormenor: nunca se desculpava das acusações que lhe eram feitas pelos colegas de escola, mesmo as injustas. E quem faz isso hoje? Pelo contrário, todos hoje procuram antes de tudo se desculpar e se dizer inocente perante um juízo ou acusação do próximo, muitas vezes até mesmo por faltas cometidas. Este tipo de comportamento é próprio daquele que elegeu para si mesmo um juízo moral baseado em regras próprias, que é o egoísmo e o amor-próprio. Trata-se de um comportamento corriqueiro no mundo de hoje.
Há uma falta cometida. Uma pessoa que tem autoridade sobre o grupo pergunta: quem fez isso? Vários, ao mesmo tempo, levantam logo a mão, dizendo: não fui eu! Não, eu não cometo tal falta porque sou perfeito! Não me acuse, não faça julgamento sobre mim! E muitas vezes o erro foi cometido exatamente por aquele que mais se desculpou. Mas, aí nesse caso já é uma ação de quem é renitente no erro e tem medo da censura pública: “medo da censura pública” é um comportamento que leva a maioria das pessoas a mentir e negar que cometeu suas faltas. Por que existe tal medo? É porque, ao atingir certa liberdade na prática do juízo moral, a pessoa não quer expor-se ao juízo moral que há na sociedade em que vive, o único juízo que ele admite é o de si mesmo. Submeter-se ao juízo dos outros é humilhar-se, é reconhecer que tem defeitos que os outros provavelmente não têm. Este tipo de humilhação é o pior de todos. Os moralistas católicos chamam isso de “respeito humano”, um tipo de receio da censura pública que leva o homem a esconder até seus pecados perante o Confessor.
Por causa deste medo da censura pública, de se submeter ao juízo moral dos outros, um homem é capaz de ir para a guerra, pois teme ser tido como covarde. No entanto, esse mesmo medo o faz esconder atos que mancham sua alma e o tornam desonesto, mesmo secretamente, imaginando que aquilo bem pode se tornar de domínio público.

O juízo e a Fé
Qual o critério para se saber, de antemão, que estamos fazendo um juízo correto? Há vários critérios, mas o principal é que tal juízo seja proveniente da Fé. A opinião pessoal é volúvel, instável, trata-se de um juízo parcial e sem o condão da certeza. Já a Fé, não; quem tem Fé é porque está de posse da Verdade e da certeza, não temendo errar em emitir seu juízo. Julgar com Fé, pois, é julgar corretamente. Tal julgamento não é feito como decorrência de uma moral particular, de uma preferência pessoal, mas de uma graça divina, pois quem tem Fé está de posse do próprio Deus e emite se juízo em co-regência com Ele.
A Fé é uma certeza inabalável, trata-se, portanto, da posse plena da Verdade. É um dom divino. Mas, há outros tipos de fé, como aquela que nos faz crer nas pessoas. Assim, uma autoridade, como um pai ou um professor, ao ministrar a educação a seus pupilos lhes transmite uma confiança semelhante a uma certa fé, o que faz com que acreditem nele sem medo de errar. Para vivermos em sociedade é necessário exercitarmos costumeiramente este tipo de confiança nas pessoas, crendo em seus juízos. De algum modo, tais autoridades ao emitir seus ensinamentos o fazem como se fosse o pronunciamento de vários juízos sobre a matéria do ensino. Aí, nesse caso, tais juízos são perfeitos porque provêm de uma autoridade que ensina as regras morais vigentes na sociedade, especialmente se forem cristãs. E quando os filhos ou alunos transmitem tais ensinamentos, não na forma de opinião, mas de juízo, aos demais, emitem um juízo correto.
Assim, há dois graus na emissão do juízo humano: o primeiro passo pode ser sua opinião, depois vem o juízo acompanhado da Fé.  Ou a Fé propriamente dita, baseada na crença em Deus e na sua Religião, ou a fé simples comparada com a confiança nas pessoas ou no meio social em que vivemos.

Na opinião há mais dúvida do que certeza
As pessoas cotidianamente emitem opiniões, espécies de sentenças, aceitando ou repudiando aquilo que está sob seu julgamento. Mas, emitir opinião simplesmente não basta para fazer juízo e ter certeza, pois nossa opinião é falha e cheia de amor-próprio. São Tomás de Aquino diz que o homem não deve ter somente opiniões, mas fé, pois esta é firme e inabalável enquanto nossas opiniões são vulneráveis e cheias de erros. Daí o erro de Descartes e seus seguidores em eleger a dúvida como ponto de partida da certeza. O ponto final de um perfeito juízo deve, pois, ser conseqüência de nossa Fé, e esta é uma certeza inabalável.[3]


[1] Ver “O Juízo Moral na Criança”, de Jean Piaget, Summus Editorial, 4ª Edição.
[2] Summa, Questão LX, Art. II (tradução de Alexandre Correia), edição da Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes – Universidade Caxias do Sul – Livraria Sulina Editora),
[3] São Tomás escreveu alguma vez que na opinião não havia assentimento: “dubitans non habet assensum... similiter nec opinans”. De Verit, q. XIV, a I. Cfr. III Sent. dist. 23, q. 2, a 2, sol. 1. Ambas estas obras são trabalho de juventude. Nas posteriores, o santo afirma explicitamente a existência de uma adesão, posto que destituída de firmeza, no espírito de quem opina. Cfr. S. Theol. 2, 2ae q. 1 a 4; q. 2, a.
“A opinião é uma adesão mesclada de dúvida e, por isso, mais ou menos vacilante e inconstante”. E. Boirac, ‘Cours élémentaire de philosophie”, Logique. c. V, Paris, 1900, p. 287. « De ratione opinionis est quod id quod est opinatum, existimetur possibile aliter se habere ». S. Tomás, Summa II, Iiae, q. 1, a. 5, ad 4m.


segunda-feira, 24 de setembro de 2018

NOSSA SENHORA DAS MERCÊS






(Comentários de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre a Santíssima Virgem Maria)

Hoje é festa de Nossa Senhora das Mercês, e temos duas fichas que se completam a esse respeito. A primeira é "As Ordens resgatadoras" de Dom Guéranger:

“A diferença da Ordem da Santíssima Trindade (Trinitários), que a precedeu de vinte anos...”

Ou seja, uma outra Ordem de resgate de cativos presos pelos mouros.

“...a Ordem da Mercê fundada, por assim dizer, em pleno campo de batalha contra os mouros, contou mais cavaleiros do que clérigos em sua origem.”

Quer dizer, mais guerreiros do que sacerdotes concorreram para a fundação dessa Ordem.

“Ela foi nomeada Ordem Real, Militar e Religiosa de Nossa Senhora da Mercê para a redenção dos cativos. Seus clérigos se entregavam mais especialmente ao ofício do coro nos conventos; os cavaleiros vigiavam as costas e se desempenhavam da missão perigosa do resgate dos prisioneiros cristãos.”

Os senhores estão vendo que bonito equilíbrio de coisas: o clérigo é feito sobretudo para rezar pelos cavaleiros. Naturalmente, tinha alguns outros serviços espirituais. Mas a principal missão era a de orar pelos guerreiros. Então rezavam no ofício divino. E os cavaleiros lutavam, aproveitando assim as orações e os méritos acumulados pelos clérigos para eles.

Essa é uma idéia que sempre me foi muitíssimo simpática: uma verdadeira Ordem religiosa que tivesse um ramo puramente contemplativo a rezar e a expiar por aqueles que se consagram à ação, e dar assim à ação uma fecundidade especial. Sempre fui muitíssimo admirador de uma idéia assim.

São Pedro Nolasco, guerreiro que vai para a sepultura com sua couraça e sua espada

“São Pedro Nolasco, que foi o primeiro comendador geral ou Grão Mestre da Ordem, por ocasião do encontro de seus preciosos restos, foi ainda encontrado na sepultura armado de couraça e de espada.”

Os senhores considerem que coisa linda: o primeiro geral dessa Ordem, um guerreiro leigo, que vai para a sepultura com a couraça e a espada de sua batalha, disposto a assim comparecer para o julgamento de Deus. Isso é uma verdadeira maravilha, a idéia do guerreiro católico.

Que linda relíquia seria se pudéssemos ter para nossa capela a couraça e a espada de São Pedro Nolasco. Ou, digamos, uma cópia fiel que tivesse sido tocada na original e, assim, fosse uma relíquia indireta. Isto já seria uma verdadeira maravilha.

Sob a indicação de Nossa Senhora, surge a Ordem dos Mercedários

Há alguns dados complementares sobre a Ordem das Mercês:

“A Igreja instituiu a festa de Nossa Senhora das Mercês por causa da Ordem religiosa fundada a conselho de Nossa Senhora para resgate dos cativos. Estando os cristãos escravizados pelos mouros na Espanha, parece que Deus compadeceu-se daqueles infelizes, expostos a perder a fé e a inocência e sujeitos a toda espécie de maus tratos.”

Os senhores sabem que os cristãos que eram aprisionados pelos mouros eram reduzidos à condição de escravos, e naturalmente não tinha socorro religioso nenhum. Podem imaginar uma terra de imoralidade, de promiscuidade, o desespero de um homem desses que cometesse um pecado e que não tivesse padre para se confessar? "Tenho ou não tenho atrição? Minha atrição não perdoa o meu pecado; terei um padre para me perdoar esse pecado na hora de minha morte? Como é que vai ser isso?..."

Os senhores podem imaginar toda a aflição e as quedas que tal situação deveria acarretar...

Depois, a coisa pavorosa é que os pagãos antigos, abusando do poder que tinham sobre os escravos, praticavam com eles toda espécie de imoralidades, de maneira que os cristãos ficavam expostos às piores coisas.

Então, a compaixão cristã se concentrou sobre eles e daí, sob a indicação de Nossa Senhora, a fundação de uma Ordem religiosa especialmente dedicada a isso.

“Depois de São Pedro Nolasco, São Raimundo de Penaforte e Jaime, rei de Aragão, verificaram que cada um tinha tido a mesma visão...”

Que coisa linda! É sempre as coisas poéticas de Nossa Senhora. Ela que aparece ao rei de Aragão, a um pensador – como era São Raimundo de Penaforte –, a um guerreiro como São Pedro Nolasco, e aos três recomendou a mesma coisa. Eles se encontram: "Olha, eu tive... Olha, eu também tive etc. Então vamos fundar a Ordem, nascida diretamente do sorriso de Nossa Senhora." Uma verdadeira maravilha, não é?

“Então, não duvidaram mais e resolveram fundar a Ordem a que dão o nome de Ordem de Nossa Senhora das Mercês para resgate dos cativos.”

Ter uma devoção muito filial e muito confiante em Nossa Senhora

Nossa Senhora das Mercês ─ “mercê” é uma graça, um favor ─ é Nossa Senhora dos favores.

A Igreja, por assim dizer, não tem invocações suficientes para nos inculcar a idéia dessa liberalidade de Nossa Senhora, disposta a todo momento a nos dar graças excelentes, e a nos convidar por aí a pedi-las e a amar Nossa Senhora por ser tão boa assim.

Então que essa invocação nos sirva para abrir a alma a esse tipo de relação muito filial e muito confiante com Nossa Senhora, e que esses guerreiros julgaram essencial tê-la.

Embora a "heresia branca" (nota: expressão utilizada pelo conferencista para designar uma atitude sentimental que se manifesta sobretudo em certo tipo de piedade adocicada e uma posição doutrinária relativista que procura justificar-se sob o pretexto de uma pretensa "caridade" para com o próximo) tenha uma porção de coisas risonhas e abobadas, de fato não é nem um pouco "heresia branca” se confiar ao sorriso de Nossa Senhora, e ter uma confiança toda especial em Sua misericórdia risonha.

Não eram "heresia branca" nenhum desses santos. E, menos do que os outros ainda, seria difícil vê-lo em São Pedro Nolasco, guerreiro que é enterrado com sua couraça e sua espada...

Assim fica essa indicação para hoje.

 



(Conferência, “Santo do Dia”, 24 de setembro de 1965)





sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O PECADO DE ADULTÉRIO E O CORPO MÍSTICO DE SATANÁS



O corpo místico de Satanás





Em rigor, Corpo Místico é apenas a Igreja, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo como continuação d’Ele mesmo. Ela é um Corpo porque constituída de pessoas humanas, portanto de uma sociedade inteira de pessoas, e é Místico porque tem natureza sobrenatural e é alimentado pelas graças divinas. Diz-se, assim, que o Corpo Místico de Cristo é a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana.  Este Corpo Místico é assim chamado porque Nosso Senhor fundou a Sua Igreja com características mais místicas do que terrenas, mais sobrenaturais do que naturais. Segundo São Paulo, Ele é a Cabeça dessa Igreja e nós, como seus membros, somos o Corpo, portanto, a continuidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
“Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo Espírito. Assim, o corpo não se consiste em um só membro, mas em muitos” (I Cor 12,12-14).

Lúcifer, o chefe dos demônios, cuja pretensão era que ele mesmo fosse o ser a se encarnar como homem e formar um corpo místico, sempre teve como objetivo copiar, macaquear, as coisas divinas e desta forma enganar os homens e levá-los a uma total perdição. Sempre com essa funesta pretensão, está em seus planos fundar também um corpo místico que seja algo parecido com Aquele fundado pela Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. O corpo místico do demônio, pois, existe: seria a igreja satânica. Mas, não de uma forma oficial como a Igreja Católica; não com características bem claras do satanismo; não tão visível, mas um corpo místico obscuro, invisível, secreto, sem uma denominação própria para não chamar a atenção.
Dir-se-ia que é impossível que existam dois corpos místicos: o de Jesus Cristo e o de satanás. De um certo modo, apenas o Corpo Místico de Cristo é autêntico e preenche os requisitos de um verdadeiro corpo místico; enquanto que o do demônio, embora possa ser chamado como tal por assimilação, não é um verdadeiro corpo místico, pois as qualidades do mesmo são obscuras e secretas e não possui os requisitos essenciais para tanto. Desta forma, a designação de corpo místico de satanás, aqui dada, é por assimilação ao verdadeiro Corpo Místico, que é o de Cristo, e não por ser verdadeiro.
Assimilação de que modo? Assimilar é se assemelhar, se parecer com algo em um ou mais aspectos. Poderíamos classificar essa assimilação em dois aspectos principais: a) a institucionalização; b) o fim a que se destina. Quanto à institucionalização, dir-se-ia que não há assim tanta assimilação, pois nunca satanás fundou uma igreja, pelo menos oficialmente, como o fez Jesus Cristo. No entanto, como se trata de algo secreto, não visível, isto é, um corpo místico inteiramente contrário ao de Cristo, essa institucionalização poderia ter ocorrido de uma forma reservada sem que os homens o soubessem. Mas, como não se sabe que a mesma já ocorreu poderá alguém dizer que nesse particular não há nenhuma assimilação.
Não, não foi feita uma fundação formal, mas pelos fatos ocorridos na História da humanidade poderemos deduzir que essa igreja satânica foi, verdadeiramente, criada. Quando e como? Não se sabe, e talvez nunca chegue a se saber. O que se deduz que ela tenha sido criada é sua ação perante os homens: há séculos que homens se congregam secretamente para combater o Corpo Místico de Cristo através de agremiações, de braços místicos armados em conluios secretos e, para tanto, contam com auxílio de forças preternaturais poderosas. A existência dessas organizações com ares de corpo místico satânico é incontestável, elas existem há muitos séculos. Quando deu-se seu início, sua criação, não se sabe exatamente. Talvez tenha sido já quando Elias combateu os chamados falsos profetas que seguiam a bruxa Jesabel e o Rei Acab, ou tenha sido a partir daí que surgiu o embrião desse corpo místico, a ponto de Deus haver poupado Santo Elias e o tenha colocado vivo no Paraíso a fim de voltar para os combates no fim do mundo. 
Mas há uma outra assimilação que não deve ter ocorrido naqueles tempos. Trata-se da assimilação quanto à finalidade. O fim de ambos os corpos místicos é a adoração de seus fundadores e construção de um reino: o de Cristo visa adorá-Lo e glorificá-Lo e a implantação de Seu Reino, e o de satanás também visa a adoração a Lúcifer e o império de seu reino. É provável que até a vinda de Cristo não tenha sido definida ainda tal finalidade no corpo místico de satanás, pois foi com este fim que o demônio tentou Jesus no deserto. Quer dizer, ele pretendia naquele momento iniciar alguém que o adorasse e depois espalhasse esta novidade entre os homens. Era necessário que alguém o adorasse para que tal finalidade fosse estabelecida em sua “igreja”. Então, quando isso se deu início?  É provável que no período de 5 séculos de Revolução, quando, finalmente se erigiu a igreja de satanás e se propagou o seu reino.
Desde a Antiguidade até à Idade Média havia na humanidade a adoração de ídolos, mas nunca se falou em adorar o próprio demônio. Com o advento da Revolução, após a Idade Média, foi-se, aos poucos, sendo pregada aos homens a adoração de satanás. De inicio, não de uma forma explícita e declarada, para não assustar. Mas, aos poucos, os homens foram admitindo esta finalidade até que no século XX ela se tornou mais clara e aceita por muitos.  Vivemos, pois, numa época em que o corpo místico de satanás já cumpre dois requisitos de assimilação macaqueada com o de Cristo: sua institucionalização (embora não explícita e formal) e sua finalidade.
Mas há outros requisitos. Um deles é a mística. O corpo místico ou a igreja de satanás tem sua mística, não se trata de algo meramente físico e material, composto só de homens, seus objetos, seus locais, seus prédios, etc., mas de uma instituição que tem rituais, iniciações, segredos, poderes metafísicos e preternaturais, com os quais rege as ações de seus membros. Nem é preciso falar da mística da Igreja, toda ela visível e estuante de vitalidade, através dos santos mistérios, dos rituais, dos sacramentos, da adoração divina, etc. A Igreja Católica, o Corpo Místico de Cristo, é uma instituição essencialmente mística e divina, mas de uma forma visível, enquanto o de satanás existe de uma forma secreta.

Os pecados contra a natureza e o adultério
Quando o pecado é cometido só por uma pessoa, caracteriza-se um delito individual, mas o cristão não se separa do Corpo Místico, sendo considerado um membro doente ou defeituoso e ainda ligado ao Corpo principal. Com o arrependimento e a  penitência feita, consumados numa confissão bem feita a um sacerdote, o membro volta à normalidade em seu Corpo.
Diferente é quando se comete um pecado social, isto é, peca-se não sozinho, mas com alguém ou com a sociedade em que vive. Quer dizer, o chamado “pecado social” pode se caracterizar quando se peca com alguém ou participa do pecado coletivo de toda a sociedade, um pecado comum a todo o corpo social, por exemplo, apoiando o socialismo, o comunismo, leis abortistas, o próprio adultério público, etc. Nestes casos de pecados coletivos, tão mais graves contra Deu, a pessoa poderá passar a pertencer, embora sem consciência do fato, ao corpo místico de satanás, pois está em atitude militante contra o Corpo Místico de Cristo. Por causa disso a Igreja excomunga oficialmente aqueles que cometem certos pecados sociais graves, e essa excomunhão separa oficialmente a pessoa do Corpo Místico de Cristo, e, ipso facto, o leva a fazer parte do corpo místico de satanás.
Qual é a diferença? É que o pecado coletivo, nesse caso, não é apenas um ato de rebeldia individual contra Deus, mas um ato coletivo, fazendo parte de uma espécie de conjuração formada por duas ou mais pessoas (ou toda uma sociedade) em união com o tentador que faz parte também daquele pecado. Então, a primeira célula de um corpo místico de satanás começa com duas pessoas, e passa a tomar vulto e aumenta ao inseri-las no restante dos pecadores comuns a eles.
Quanto ao adultério, ele representa tanto um pecado comum a duas pessoas quanto à toda sociedade. No primeiro caso isso se dá quando a traição não é pública, é reservada. No segundo é quando o caso é público e corrobora um pecado social coletivo em que todos aprovam aquele tipo de atitude. Num e outro caso a pessoa,  embora não seja excomungada, passa a colaborar com a construção do corpo místico de satanás, embora possa pertencer ainda ao Corpo Místico de Cristo. Fica numa situação anômala, estranha, em que faz de um corpo e produz efeitos para outro. Também nesta situação a pessoa pode se arrepender, fazer penitência e voltar à normalidade no Corpo Místico de Cristo.
Mas, é preciso tomar cuidado, pois se ficar cometendo amiúde tais tipos de pecados o corpo místico de satanás vai exigir que ela faça mais para seu crescimento. Estes são os casos em que vários pecadores públicos fazem apologia declarada e formal em prol do adultério, da fornicação, da promiscuidade sexual, do homossexualismo e de tantos outros pecados contra a natureza. Quando ocorrer de não somente praticarem tais pecados, mas os divulgarem á toda a sociedade, transformando-se em ativistas dos mesmos, aí, sim, as pessoas passam a fazer parte oficialmente do corpo místico de satanás. Estão incluídos neste maldito corpo místico todos os ativistas que atuam contra os princípios morais cristãos, contra a família, e promovem a promiscuidade sexual e moral na sociedade. Também podem pertencer a tal maldito corpo místico aqueles que têm obrigação de combater a favor do Corpo Místico de Cristo, mas, pelo contrário, causam embaraços ou até opõem graves obstáculos ao seu crescimento social.


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

NOSSA SENHORA DE LA SALETTE






No livro de Pie Régamey, “Les plus beux textes sur la Vierge” (Éditions La Colombe, Paris, 1946, pp.387 ss.) vem um depoimento feito por Mélanie Calvat, que é a menina que teve a visão de Nossa Senhora de La Salette, em 19 de setembro de 1846:

“A Santíssima Virgem era alta e bem proporcionada. Parecia tão leve que um sopro poderia atingi-la. Entretanto, Ela permanecia imóvel e inalterável.

“Sua fisionomia era majestosa, imponente, mas não imponente como são as grandes da terra. Ela impunha um temor respeitoso, ao mesmo tempo que sua majestade impunha respeito entremeado de amor.

“Ela atraía. Ao seu redor, como em sua pessoa, tudo inspirava majestade, esplendor, magnificência de uma rainha incomparável. Ela parecia bela, clara, imaculada, cristalina, celeste. Parecia-me também como uma boa mãe cheia de bondade, amabilidade, amor para conosco, compaixão e misericórdia”.

Era o caso de dizer que essa pastorinha analfabeta mereceria entrar na Academia Francesa de Letras por esta descrição. Porque é admirável! Daqui a pouco vamos... Eu leio a ficha toda e depois fazemos o comentário.

“Lágrimas - A Santa Virgem chorava durante quase todo o tempo que me falou. Suas lágrimas corriam lentamente, uma a uma, até seus joelhos; depois, como fagulhas de luz, elas desapareciam. Eram brilhantes e cheias de amor.

“Eu quisera consolá-la para que Ela não chorasse. Mas parecia-me que precisava mostrar suas lágrimas para melhor mostrar seu amor esquecido pelos homens. As lágrimas de nossa terna Mãe, longe de enfraquecer seu ar de majestade de rainha e senhora, pareciam, ao contrário, embelezá-la, torná-la mais amável, mais radiante.

“Os olhos da Santíssima Virgem, nossa terna Mãe, não podem ser descritos por uma língua humana. Para deles falar, seria preciso um Serafim, seria preciso a própria linguagem de Deus, que formou a Virgem Imaculada, obra prima de seu poder.

“Os olhos da augusta Maria pareciam mil e mil vezes mais belos que os brilhantes, os diamantes e as pedras preciosas. Eram como a porta de Deus de onde se podia ver tudo aquilo que pode encantar a alma.

“Somente essa visão dos olhos da mais pura das Virgens seria suficiente para ser o Céu de um bem-aventurado. Seria suficiente para fazer uma alma entrar na plenitude da vontade do Altíssimo entre todos os acontecimentos que sucedem no curso da vida. Quem visse os olhos de Nossa Senhora, faria a vontade de Deus para sempre. Seria suficiente para impelir uma alma a contínuos atos de louvor, agradecimento, reparação e expiação.

“Somente esta visão concentra a alma em Deus e a torna como morta-viva, que olha as coisas da terra, mesmo as coisas aparentemente mais sérias, como brinquedos de criança. Ela só queria ouvir falar de Deus, daquilo que se refere à sua glória.

“O pecado é único mal que ela vê sobre a terra e por causa dele ela morreria de dor se Deus não a sustentasse”.

É uma verdadeira beleza o que diz cada um desses pontos a respeito da aparência de Nossa Senhora. Há várias ideias neles simbolizadas.

A ideia primeira é a de um ente completamente celestial, que está inundado de valores sobrenaturais e de graças, como compete Àquela que um anjo chamou de “graça plena”. A primeira idéia é, então, da sobrenaturalidade.

A segunda é de uma majestade régia, que se exprime n’Ela toda e que se irradia em torno d’Ela.

A terceira é uma bondade incomensurável, uma pena, uma misericórdia, uma condescendência, um expandir afavelmente todos os seus dons sobre os outros, para fazer os outros participarem desses dons. É uma coisa que parece contraditório com a majestade, mas que, pelo contrário, é o corolário indispensável da majestade: é essa efusão incomparável da bondade, que está em Nossa Senhora.

Todos os traços dados na descrição são feitos para simbolizar isto.

A Santíssima Virgem era alta e bem proporcionada

A altura é um apanágio da majestade. Tanto é que aos príncipes, que não são reis, se diz Vossa Alteza. É evidente que não é altura física. Mas a altura física é uma imagem física da altura nos outros sentidos. E, portanto, não era necessário, mas convinha, entretanto, uma altura bem proporcionada. Porque a altura bem proporcionada é o contrário da altura monolítica, acachapante, esmagadora. E o que torna a altura exatamente condescendente, e por assim dizer acessível, é a perfeição de suas proporções. É o encaixe de várias coisas pequenas nela, com graça e harmonia, que tornam essa altura variegada. É uma unidade na variedade.

Então essa perfeição das proporções de Nossa Senhora, quase que é um “contraforte” daquilo que a altura poderia ter de um pouco assustador.

“Ela parecia tão leve que um sopro poderia atingi-la”

Realmente, um ente inteiramente espiritual, no qual o corpo era completamente dominado pelo espírito e não sujeito, portanto, à lei da gravidade e à atração de terra. O sobrenatural n’Ela estava na sua plenitude.

“Ela impunha um temor respeitoso, ao mesmo tempo que sua majestade impunha respeito entremeado de amor”

Então, era um respeito que, de um lado incutia temor e, do outro lado, incutia amor. É a imagem da majestade verdadeira. É uma majestade que mete um temor reverencial, quer dizer, é um temor feito não do medo da chibata – que acessoriamente pode entrar –, mas é feito daquele medo de desgostar um tão alto ser. E, por outro lado, um amor que Nossa Senhora incutia pelo fato de ser quem era.

“Ela atraía”

A verdadeira majestade atrai. A verdadeira majestade não repele. Quando a gente vê uma majestade que repele é porque é uma falsa majestade.

Por exemplo, Napoleão tinha uma majestade que repelia; não tinha nada de majestade autêntica.

“Ao seu redor, como em sua pessoa, tudo respirava majestade, esplendor, magnificência de uma rainha incomparável”

O que havia em torno d’Ela? Um campo ordinário, com umas ervinhas, uma coisa qualquer. Mas Ela entrava ali e tudo se transformava num palácio. Por que? Porque Ela comunica Sua glória a tudo quanto está em torno d'Ela.

“Ela parecia bela, clara...”

É a claridade luminosa, sobrenatural...

“...imaculada, cristalina, celeste”.

É muito interessante ver a necessidade de juntar a idéia de cristalino para afirmar a pureza e o que havia de diáfano em Nossa Senhora. Algo da nobreza dos cristais aparece dentro disso.

E agora vem a corolário:

“Parecia-me também como boa Mãe, cheia de bondade, amabilidade, amor conosco, compaixão e misericórdia”.

Esta justaposição nos dá bem a idéia da majestade perfeita. Por isso São Bernardo, constituindo a Salve Rainha, pôs este paradoxo, logo no começo: Salve Rainha e logo depois: Mãe de Misericórdia. Sumamente Rainha, sumamente Mãe, e Mãe de suma misericórdia.

Depois passa a falar das lágrimas. Nossa Senhora chorava.

Mas há dois modos de chorar: há um modo de chorar cheio de fraqueza e há um modo de chorar cheio de sobranceria. A gente chora quando está abaixo da dor, mas pode chorar também quando está acima da dor.

Vamos ver como é o pranto de Nossa Senhora:

“A Santa Virgem chorava durante quase todo o tempo em que me falou. Suas lágrimas corriam uma a uma, lentamente, até seus joelhos”

Tudo isso é simbólico. Eram lágrimas que corriam lentamente indicando o domínio. Nada de descabelado, nada de convulsivo. Eram lágrimas como de uma rainha cheia de uma tristeza nobre, de uma tristeza serena. As lágrimas se sucedem umas às outras, chegam até o joelho para indicar o impulso com que elas são choradas, o fundo de alma que está nisso. Como para indicar que assim como as lágrimas lhe correm quase ao longo de todo o corpo, esta dor inunda toda a alma.

“Depois, como fagulhas de luz, elas desapareciam”.

As lágrimas de Nossa Senhora deveriam: cair na terra? ficar formando um bolinho misturado com terra? ou prosaicamente empapar o vestido dEla?

A gente pode compreender uma rainha com os hábitos úmidos e pesados de lágrimas? Não.

Então, esse desaparecer como faíscas é uma beleza. A lágrima que no último momento brilha, dá uma luz e é recolhida pelo Padre Eterno nos seus esplendores, é uma solução lindíssima para um problema que facilmente poderia se tornar prosaico.

“Eram brilhantes e cheias de amor”.

Também as lágrimas de uma tal rainha deviam ser luminosas. Não podiam ser lágrimas opacas. Não podiam ser lágrimas “terrosas”. Lágrima d’Aquela que é toda pura, só pode ser lágrima cristalina. E tinham um brilho de amor. A gente compreende que um certo brilho possa significar especialmente o amor. Vejam o mundo de tato que há em todas essas formulações. Como tudo isso é bem pensado.

“Eu quisera consolá-la e que Ela não chorasse, mas parecia-me que precisava mostrar suas lágrimas para melhor mostrar seu amor esquecido pelos homens.

As lágrimas de nossa terna Mãe, longe de enfraquecer seu ar de majestade de rainha e senhora, pareciam, ao contrário, embelezá-la…”

A verdadeira rainha é tal que ela tem uma beleza quando ela está alegre; outra beleza quando ela está triste; outra beleza quando ela está despreocupada. Em tudo são belezas especiais. Em Nossa Senhora as lágrimas davam uma beleza inconfundível, que é a beleza da dor da rainha. É um aspecto fisionômico próprio.

“…torná-la mais amável, mais radiante”.

Amável: quer dizer digna de amor. Mais irradiante: quer dizer mais a sua personalidade se expandia.

“Os olhos da Santíssima Virgem, nossa terna Mãe, não podem ser descritos por uma língua humana. Para deles falar, seria preciso um Serafim. Seria preciso a própria linguagem de Deus, que formou a Virgem Imaculada, obra prima de seu poder”.

A face é resumo do corpo. Os olhos são o resumo da face. Quer dizer, os olhos são a quintessência de toda a expressão do corpo. Então, como é que se exprimiria a alma de Nossa Senhora na parte de seu corpo santíssimo que é a mais expressiva? Realmente, é sublime, o próprio do sublime é não poder ser descrito por língua humana.

“Os olhos da augusta Maria pareciam mil e mil vezes mais belos do que os brilhantes, os diamantes e as pedras preciosas”.

Mais uma vez vem uma comparação que nos deve ser cara: comparar não só as lágrimas de Nossa Senhora, mas também os olhos dEla, com cristais, com pedrarias; de tal maneira o cristal é, na ordem da matéria, uma criatura excelente.

“Eram como a porta de Deus de onde se podia ver tudo aquilo que pode encantar a alma”.

A expressão é magnífica! Porque na Ladainha se diz: Janua Caeli, Porta do Céu. E, realmente, Nossa Senhora é a mais clara manifestação de Deus; mais do que qualquer Anjo. E quem olhar, portanto, os olhos de Nossa Senhora, olha a mais alta manifestação de alma de uma alma que é o espelho da justiça de Deus. Então, a gente compreende que é qualquer coisa totalmente inefável, indizível. Não se pode dizer o que seja a expressão de olhar de Nossa Senhora.

Mais transcendente somente o olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo! Se pensarmos nos mil olhares de Nosso Senhor, se acompanharmos as cenas do Evangelho pensando no olhar que Ele tinha na Ceia, só isso dá uma meditação dos Evangelhos superabundante, magnífica!

“Somente essa visão dos olhos da mais pura das Virgens seria suficiente para ser o Céu de um bem-aventurado”.

Fala da mais pura das virgens naturalmente porque chamou a atenção dela a pureza desse olhar. E como é que não poderia ser puríssimo? É um olhar “castificante” (que comunica castidade a quem Ela olha). Quem olhasse esse olhar, poderia ficar casto a vida inteira na hora, só porque seu olhar conseguiu fitar o olhar imaculadamente puro de Nossa Senhora! Seria suficiente para fazer uma alma entrar na plenitude da vontade do Altíssimo, entre todos os acontecimentos que sucedem no curso da vida. Quem visse os olhos de Nossa Senhora, faria a vontade de Deus para sempre. Seria suficiente para impelir uma alma a contínuos atos de louvor, agradecimento, reparação e expiação. Ou seja, bastaria isso para ter tanto o que louvar, tanto que expiar, tanto para reparar, tanto para dar ação de graças, que a vida inteira se passaria nisso.

“Somente esta visão concentra a alma em Deus e a torna como morta-viva, que olha as coisas da terra, mesmo as coisas aparentemente mais sérias, como brinquedos de criança”.

Quer dizer, depois que uma pessoa viu isso ela não dá importância a mais nada, e só dá importância a não pecar.

Isto posto, vamos pedir a Nossa Senhora de la Salette que nos dê uma impregnação de algo dessas graças em nossa alma. E que, sobretudo, tenhamos a apetência de ver os sagrados olhos d’Ela, o espelho de Sua Face, espelho de Seu Coração.

Que nós possamos, por esta forma, ter a apetência de ver os olhos de Nossa Senhora no Céu.

Imaginem que o Céu fosse só isto: durante a eternidade, sentirmos sobre nós, fixos, os olhos de Nossa Senhora, e os olhos divinos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mesmo se não houvesse mais nada e já teríamos matéria para sermos inundados de felicidade eternamente!

Então, para nos dar um desejo do Céu, devemos pensar numa eternidade nesses olhos, contendo todas as variedades de expressão, todas as expressões de amor para conosco, de sublimidade, de grandeza de Deus, tudo isso pousado sobre nós a nos ver e a nos analisar, a se embeber em nós, e nós embebidos eternamente neles. Não precisaria mais nada para termos um imenso, um tão grande desejo do Céu, que seríamos propensos a fazer uma oração que um contra-revolucionário normalmente não deve pedir: o de morrer logo.


(Santo do Dia, 19 de setembro de 1966)

 




domingo, 9 de setembro de 2018

ÍNTIMA RELAÇÃO ENTRE COROMOTO E FÁTIMA






ÍNTIMA RELAÇÃO ENTRE COROMOTO E FÁTIMA

A história de Nossa Senhora de Coromoto é sumamente edificante e, para que se compreenda todo o seu alcance, farei algumas considerações preliminares.
Durante o Concílio, em 1962, os membros de nosso Movimento que estavam em Roma receberam de um bispo da Venezuela, da Diocese de Guanare, onde está o Santuário Nacional desse país, estampas representando Nossa Senhora de Coromoto.
A imagem chamou-me atenção, porque – embora não tivesse grande valor artístico, no que diz respeito à execução material – seu porte e a expressão do olhar tinham uma elevação régia, uma majestade especial. E uma majestade com inteira consciência de sua grandeza, com muita dignidade; e ao mesmo tempo sem nada de apropriativo, de fruitivo, de como quem dissesse: “Aqui estou eu, sou extraordinária.” O olhar indica que seu pensamento está posto em seres de algum modo superiores a Ela, os anjos, no Céu ou no próprio Deus Nosso Senhor. É a imagem de uma Rainha, ao mesmo tempo contemplativa e mística de primeira categoria, e que considera todas as coisas da Terra através de altíssima luz.  Por causa disso, pus a estampa em minha carteira, e dali nunca mais retirei. Das imagens de Nossa Senhora por mim conhecidas, essa é talvez uma das que mais me falam à alma.
Embora eu já tivesse ouvido falar várias vezes de Nossa Senhora de Coromoto, nunca soube de detalhes de sua história. Só recentemente vim a conhecê-los, e tocou-me enormemente imaginar uma imagem tão majestosa sendo o veículo para tanta misericórdia. Através dela se tem a verdadeira idéia de majestade unida à misericórdia. É uma Rainha com fisionomia extremamente elevada e nobre, com porte muito digno e olhar pairando nas mais altas paragens do espírito, e ao mesmo tempo cheia de uma misericórdia inefável. A misericórdia não é demagógica, vulgar, uma condescendência com o pecado, uma afabilidade criminosa em relação ao mal, mas um ato de bondade generoso, gratuito, de quem converte o vence o mal, que vem muito de cima, mas entra a fundo e é capaz de toda espécie de regenerações.
Há um sacrossanto contraste entre a majestade e a misericórdia. Não há verdadeira majestade sem misericórdia, nem verdadeira misericórdia sem majestade.
A história do índio Coromoto, ao qual apareceu a Santíssima Virgem, fez-me lembrar as aparições de Nossa Senhora a um índio em Guadalupe, no México. A Mãe de Deus tratou-o com uma ternura especial, uma bondade, como não se vê nas outras aparições – mesmo em Fátima, onde Ela se manifestou tão condescendente e bondosa. Esse índio sentia tanta liberdade para com Nossa Senhora que, em vez de chamá-la “minha Rainha”, tratava-A de “minha filhinha”. E a Santíssima Virgem tomou tão bem esse tratamento, que uma ampliação fotográfica recente da imagem de Guadalupe mostra que na pupila dos olhos de Nossa Senhora está a figura do índio, tornando-o imortalizado aos olhos d’Ela. Estar na menina dos olhos significa ser o centro da atenção, do cuidado, e isto realizou-se ao pé da letra.
Tudo isso levou-me também a pensar a respeito do que disse Santo Antonio Maria Claret, após assistir as últimas sessões do Concílio Vaticano I, há cem anos atrás. Vendo, já naquela época, os sinais de desagregação da Europa, afirmou querer morar na América, porque aqui floresceriam santos maiores do que os surgidos na Europa. Essa afirmação me pareceu extraordinária.
Há mais. Antes de ser confessor da Rainha da Espanha, Isabel II, Santo Antonio Maria Claret tinha sido Arcebispo de Santiago de Cuba, e saíra deste país por ser perseguido pelos inimigos da Igreja, apesar de seu apostolado com a população do lugar, em favor da qual ele praticara magníficos milagres. No navio que o conduzia, predisse o futuro próximo de Cuba, sua separação da Espanha e submissão aos Estados Unidos. E apresentava isso como uma série de apostasias e castigos. Naturalmente, uma apostasia causa outra, e por fim se chegou à atual e miserável situação de Cuba.
Parecia-me curioso que ele, falando de Cuba com tal energia e precisão, previra tanta santidade na América Latina. Isso significava a presença de um grande perdão e uma imensa misericórdia, ao lado do abismo representado pelo anúncio dessa severidade.
E, afinal, como a santidade tem sua origem, sua causa primeira, numa misericórdia de Deus para conosco, eu achava muito razoável que houvesse esse nexo entre a profecia de Santo Antonio Maria Claret, de um lado, e de outro o fato de Maria Santíssima ter-Se manifestado tão carinhosa, condescendente, em relação a esse índio do México. Nossa Senhora de Guadalupe foi proclamada pela Santa Sé Patrona da América Latina e, evidentemente, esse índio representava, para o olhar d’Ela, a América Latina inteira, e todos nós somos simbolizados por esse índio. De certo modo, pode-se dizer que cada um de nós está na menina dos olhos da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.

Apesar da extrema maldade do índio, Maria Santíssima manifesta sua inesgotável misericórdia
Essas considerações estavam reunidas em meu espírito quando soube do fato ocorrido em Guanare, Venezuela, com o índio Coromoto, em seus detalhes. Através destes, se vê que é impossível a um homem levar mais longe a obstinação no mal, e inimaginável por nós que a Mãe de Deus chegasse a  extremo sua “obstinação” em convertê-lo. Realmente é a última palavra em matéria de condescendência: depois de o índio ter querido flechar e golpear Nossa Senhora, Ela fez um milagre, deixando nas mãos dele um pergaminho com sua imagem, e depois o converteu! Não se pode excogitar misericórdia mais excelsa, mais excelente, do que essa.
Alguém poderia observar que o pecado dos que mataram Nosso Senhor Jesus Cristo foi um pecado maior do que o desse índio, tentando agredir a Santíssima Virgem. Tudo quanto toca à Pessoa Divina de Nosso Senhor Jesus Cristo ultrapassa qualquer dimensão e não pode ser comparado com absolutamente nada. Porém é preciso considerar que em sua Paixão Jesus estava na prostração, na humilhação própria à sua natureza humana. Nossa Senhora, em Guanare, Se apresentou em visão, de forma esplendorosa, mostrando-Se superior a tudo quanto o índio conhecia, e de uma maneira evidente, como Nosso Senhor não fez com seus verdugos. Apesar disso, a maldade dele foi tão grande que tentou agredi-La. Não afirmo ter sido isso mais grave do que o deicídio, mas, sob certo aspecto, revela uma dureza de alma ainda maior. Pois bem, para esse homem, a Mãe de Deus manifestou tanta bondade e misericórdia.

“À sua bondade soberana ninguém resiste”
Que ensinamentos retiramos desse fato? Antes de tudo, para Nossa Senhora a maldade humana não consegue opor obstáculos decisivos. De um jeito ou de outro, se a Santíssima Virgem quer mesmo, e até o fim, Ela acaba vencendo a maldade humana. Portanto, se em determinado momento da História da Humanidade Nossa Senhora quiser praticar um ato de generosidade excelso em relação a um homem, ou a uma série de homens, Ela poderá fazê-lo e vencerá, porque à sua bondade soberana ninguém resiste.
A Santíssima Virgem é soberana em tudo, inclusive em sua bondade. Querendo, Ela derruba todos os obstáculos, como Rainha cheia de suavidade, de tal maneira que ume pessoa, liberta dos grilhões do vício, dos apegos maus, realiza o verdadeiro livre arbítrio, o qual consiste em se confiscado por Nossa Senhora. Trata-se de um verdadeiro confisco, porém a Mãe de Deus quando confisca, liberta. Ela não cobre o indivíduo de algemas, mas torna-se sua senhora, e ele torna-se senhor de suas más inclinações, de seus vícios, de seus pecados, de tudo quanto impede que sua alma voe para o bem. Essa é a própria substância da definição do livre arbítrio, segundo a Doutrina Católica.

A misericórdia de Nossa Senhora se estende aos povos e às instituições
Outra lição muito importante que decorre das aparições da Virgem Maria ao índio Coromoto é a seguinte: se Nossa Senhora fez isso com esse homem, não poderá realizá-lo com as pessoas de um continente, ou de uma parcela da Humanidade, especialmente suscitada para ser d’Ela, e para seu futuro reino? Maria Santíssima não tem o poder de provocar a conversão da América Latina? Pobre América Latina, tão endurecida, opaca e apagada na Fé que recebeu, na pureza e elevação dos costumes que já não possui; tão longe das esperanças dos santos e dos missionários que vieram cá, para fazer um novo reino de Deus, a fim de compensar, no balanço das coisas entre a Terra e o Céu, o que a Santa Igreja estava perdendo com a apostasia protestante! Essa conversão não ocorrerá de um momento para outro?
Por fim, voltamos nossos olhos para nosso Movimento.
Vendo as coisas bem de frente, tendo Nossa Senhora desígnios sobre nosso Movimento e sua atuação na América Latina, não é bem verdade que o episódio de Coromoto, a graça desse perdão, que dulcifica qualquer dureza e vence qualquer ingratidão, precisa começar dentro de casa? E que devemos pedi-la para nós e para toda essa parte da Humanidade, aonde Nossa Senhora quis fazer esse milagre extraordinário? E não é verdade também que, apesar de todas as nossas fraquezas e infidelidades, temos razões especialíssimas para confiar, e nunca devemos consentir num pensamento de desespero, à vista de uma graça tão extraordinariamente grande?
Aqui está o ponto central da meditação a respeito de Nossa Senhora de Coromoto, que visa mais especialmente nosso Movimento – porque tem uma missão muito em ordem a isso – e, dentro dele, cada um de nós. Mas essa meditação deve também ter em vista a América Latina, como sendo especial protagonista do dia de amanhã, no Reino de Maria.

Coromoto e Fátima: íntima relação
Finalmente, podemos nos perguntar qual a relação de tudo isso com as profecias de Fátima. São os mistérios de Nossa Senhora... A realização das promessas da Virgem de Fátima purificará e preparará as almas para o Grand Retour (*). Quando ele vier, receberemos a graça da misericórdia, da conversão completa.
Com esta visualização, temos um grande enriquecimento para o conjunto de nossas concepções sobre o futuro da História, isto é, a idéia do Grand Retour fundada num milagre extraordinário como foi o de Guanare. É um fato concreto que nos dá uma esperança especial e nos explica emalgo como vai ser o Grand Retour.
Poder-se-ia objetar que não foram apresentadas provas que demonstram a veracidade da história de Nossa Senhora de Coromoto. A prova é: em Guanare está o pergaminho contendo a imagem, com base na qual foi tirada essa estampa que estou comentando, colocada num belíssimo relicário de ouro. Todo o povo, desde quando ocorreu o milagre, vai venerá-lo, indicando assim que já naquele tempo se espalhou sua fama; foi, portanto, admitido por todos os que conheciam aquele índio e sua família, que os fatos relacionados à imagem e a eles eram reais. E essa versão e essa crença foram conservadas através das gerações.
Mas, para mim, isso que poderia ser uma prova histórica muito boa é de pouca importância. O importante é saber que Nossa Senhora é assim, conforme nos ensina a Doutrina Católica. Portanto, ainda que as aparições de Nossa Senhora de Coromoto não tivessem acontecido, elas são reais na sua substância: a misericórdia de Maria Santíssima pode chegar até lá. Se pedirmos, seremos atendidos.
E, para esse efeito, poderíamos fazer uso da seguinte jaculatória: “Nossa Senhora de Coromoto, cuja misericórdia a dureza do coração do índio pecador não conseguiu deter, tende pena de mim, entretanto tão pecador e tão endurecido”.

(Plinio Corrêa de Oliveira, conferência de 16/7/72- Extraído da revista “Dr. Plínio” n. 139, de outubro de 2009, págs. 19/23)

 (*) Na revista “Dr. Plínio” n. 86, de maio de 2005, está explicitado o que seja o “Grand Retour”, ou “Grande Retorno” em português, ao seio da Igreja.: “Uma conversão completa, um total repúdio a todo o mal que havíamos feito, e um amor inteiro às virtudes e a todo o bem que éramos chamados a praticar e a realizar. Em suma, um vôo à santidade, que abarca o perfeito amor a Deus e ao próximo, com o deliberado propósito de extinguir a Revolução sobre a face da Terra”.