domingo, 24 de fevereiro de 2019

CONFIANÇA FILIAL EM NOSSA SENHORA





Plínio Corrêa de Oliveira

Estamos na novena da Bem-Aventurada Virgem Maria Auxílio dos Cristãos. São tantos os pontos de vista sob os quais Nossa Senhora é o Auxílio dos Cristãos, que quase a gente poderia fazer uma enciclopédia sobre esse tema. Mas tenho a impressão de que há um aspecto que poderíamos muito bem considerar e que, a meu ver, é a parte mais viva da devoção a Nossa Senhora.

A devoção viva a Nossa Senhora começa, em geral, por um auxílio d’Ela que faz despontar nas almas uma aurora de confiança

Em geral, todo mundo que tenho visto ter uma verdadeira devoção viva a Nossa Senhora, a devoção começa numa espécie de bons ofícios de Nossa Senhora para com a pessoa.
A pessoa se vê em apuros – ora espirituais, ora temporais, ora uma coisa e outra – e pede a Nossa Senhora para deles ser salvo. E Nossa Senhora, ao mesmo tempo que salva a pessoa de tais dificuldades, opera algo na alma, na ordem imponderável e na ordem da graça, que a pessoa adquire como que uma vivência da condescendência maternal, risonha, afável, bondosa de Nossa Senhora e com isso fica com a esperança viva de que em outras circunstâncias difíceis será atendida de novo.
Esse "pede-pede" de todas as graças – sobretudo a do amor a Deus, que é a que se deve mais suplicar – acaba indo num crescendo de tal maneira que Nossa Senhora vai se tornando mais exorável, mais materna, de uma assistência mais meticulosa, à medida que a pessoa vai crescendo nessa espécie de vivência, desta espécie de providência risonha e afável dEla para com cada um.
De tal maneira que as pessoas, às vezes, acabam pedindo a Nossa Senhora verdadeiras bagatelas, coisinhas que são insignificantes e que Ela dá como uma mãe deseja dar aos filhos coisas grandes e pequenas, e que tem um sorriso particularmente afetuoso para as coisas pequenas que se lhe pedem.
Há aí uma espécie de aurora da confiança, de aurora da verdadeira compreensão de quais são as nossas relações com Nossa Senhora, e ainda que a alma passe por provações muito longas, muito duras, períodos de aridezes, períodos de dificuldades, algo disso fica. É como uma luz que acompanha a pessoa a vida inteira, inclusive nos últimos e mais amargos transes da morte.
Eu recomendaria muito que fizessem isso: peçam a Nossa Senhora pelo menos a graça dEla, por meio de algumas concessões, colocá-los nesta via, que é toda amorosa, toda especial, desses pequenos pedidos, dessas pequenas condescendências, dessa espécie de intimidade com Ela. E em que, às vezes, Ela até faz conosco o seguinte: pedimos uma coisa que não está em Seus desígnios conceder, porque é uma prova pela qual temos que passar e Nossa Senhora quer que seja desse modo. Pois bem, Ela não dá o que a gente pede, mas nos concede uma força para suportar o que vem, que é muito maior do que supúnhamos. E, depois de tudo, acaba dando alguma outra coisa melhor do que aquela que a gente pediu.

As lendas medievais apresentam o verdadeiro aspecto de Nossa Senhora
Aqueles devocionários medievais e aquelas lendas sobre a devoção a Nossa Senhora na Idade Média, algumas verdadeiras e outras imaginadas, apresentam esta espécie de graça, de gentileza de Maria Santíssima no trato com as almas e de modo indizivelmente ameno, interessante.
Não nos interessa saber se o fato é verdadeiro quanto aos homens que teriam participado dele, porque é verdadeiro quanto a Nossa Senhora, mostra um aspecto verdadeiro dEla. Portanto, embora sejam lendas, como são teológicas e mariais, fazem-nos sentir bem quem é Nossa Senhora.
Lembro-me, a tal propósito, um fato que, se não me engano, está nas "Glórias de Maria", de Santo Afonso de Ligório.
Uma pessoa, na Idade Média tinha uma vontade enorme de ver Nossa Senhora e dava tudo para obter isto, ainda que tivesse de ficar cego. Então, teve uma inspiração, ou veio um Anjo, que lhe fez saber que se ele aceitasse depois a cegueira durante a vida inteira, teria a graça de ver Nossa Senhora. Ele aceitou. Nossa Senhora lhe apareceu numa formosura resplandecente, imensamente bondosa, régia, condescendente, com que ficou extasiado. Quando a visão se dissipou, verificou que estava cego de um olho, não dos dois. Então, ficou com aquela nostalgia de Nossa Senhora...
Novo pedido e a pergunta: você consente em ficar cego do outro olho? - Ele ficou naquela dúvida... "Consinto! Eu tenho tanta vontade de vê-La mais uma vez, que eu consinto em ficar cego do outro olho!" Então Nossa Senhora lhe apareceu, falou com ele, e quando a visão se dissipou, estava com os dois olhos em perfeito estado...
Eu não me interesso em saber se o fato é verdadeiro, porque o que eu sei é que Nossa Senhora é assim! Ou seja, Ela pode nos fazer passar por um certo apuro para provar o amor e portanto tirar uma vista, fazer passar por estas angústias, mas em última análise Ela acaba sorrindo e, embora passando pelas necessárias provações, tudo se termina com um Seu sorriso.
Um outro caso muito mais conhecido, que todos certamente se lembram, mas é apenas pelo prazer de mencioná-lo: é o famoso jogral de Notre-Dame. Um homem que sabia a arte dos jogos, e não sabia outra coisa senão, digamos, jogar com cinco bolas de madeira nas mãos, qualquer coisa desse tipo. Ele, não sabendo fazer outra coisa para Nossa Senhora, querendo agradá-lA, numa igreja vazia, numa hora em que não havia ninguém, pôs-se a fazer os seus jogos, e Nossa Senhora apareceu sorrindo, demonstrando como aquilo Lhe havia agradado.

O ponto de partida para uma devoção viva a Nossa Senhora: uma confiança filial n’Ela
Assim também nós: ao apresentarmos nossas oferendas a Nossa Senhora, por pequenas que sejam, devemos fazê-lo com inteira confiança de que Ela condescenda com isto.
Se não fizermos assim, vai acontecer que nossa devoção para com Ela nunca será perfeitamente verdadeira. Devemos ter para com Nossa Senhora uma espécie de aisance, de desembaraço, de intimidade de filho que às vezes até quando contrista a Ela, se Lhe apresenta com toda a confiança, certo de obter Seu auxílio e Seu sorriso.
É este o ponto de partida inefavelmente suave de uma devoção viva a Nossa Senhora.
Estou longe de dizer que isto basta. A pessoa, na medida em que seus recursos intelectuais permitam, deve estudar os fundamentos da devoção a Nossa Senhora, deve tê-los raciocinados, armados de maneira a representar uma convicção profunda, baseada no dogma. Não há dúvida. Mas uma coisa é a formação intelectual, outra é a vida de devoção. Ambas se completam. Esta união é magnífica! Isto explica exatamente que um tão grande Doutor da Igreja, como Santo Afonso de Ligório, tenha escrito seu livro "Glórias de Maria", ilustrando várias teses doutrinárias com fatos concretos.
De maneira que não é mal que nesta noite de preparação da novena de Nossa Senhora Auxiliadora – nós que rezamos a Ela todos dias e que temos Sua imagem em nossa capela – recordemos disto para Lhe pedir que nos dê essa graça desta doçura especial na devoção, que é uma espécie de flor do catolicismo de que, por exemplo, uma alma protestante não é capaz.

(Santo do Dia, 18 de maio de 1964)



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

A palavra final da Igreja sobre o sacerdócio masculino







A fim de dar uma palavra final sobre o assunto, também tratado por Paulo VI através da Declaração “Inter Insigniores” , em 15.10.1976, o Papa João Paulo II publicou uma Carta Apostólica, sob o título de “Ordinatio Sacerdotalis”, cujo teor reproduzimos abaixo:
“1. A ordenação sacerdotal, pela qual se transmite a missão, que Cristo confiou aos seus Apóstolos, de ensinar, santificar e governar os fiéis, foi na Igreja Católica, desde o inicio e sempre, exclusivamente reservada aos homens. Esta tradição foi fielmente mantida também pelas Igrejas Orientais.
Quando surgiu a questão da ordenação das mulheres na Comunhão Anglicana, o Sumo Pontífice Paulo VI, em nome da sua fidelidade ao encargo de salvaguardar a Tradição apostólica, e também com o objetivo de remover um novo obstáculo criado no caminho para a unidade dos cristãos, teve o cuidado de recordar aos irmãos anglicanos qual era a posição da Igreja Católica: “Ela defende que não é admissível ordenar mulheres para o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais. Estas razões compreendem: o exemplo – registrado na Sagrada Escritura – de Cristo, que escolheu os seus Apóstolos só de entre os homens; a prática constante da Igreja, que imitou Cristo ao escolher só homens; e o seu magistério vivo, o qual coerentemente estabeleceu que a exclusão das mulheres do sacerdócio está em harmonia com o plano de Deus para a sua Igreja”[1]
Mas, dado que também entre teólogos e em certos ambientes católicos o problema fora posto em discussão, Paulo VI deu à Congregação para a Doutrina da Fé mandato de expor e ilustrar a este propósito a doutrina da Igreja. Isso mesmo foi realizado pela Declaração “Inter Insigniores”, que o mesmo Sumo Pontífice aprovou e ordenou publicar.
2. A Declaração retoma e explica as razões fundamentais de tal doutrina, expostas por Paulo VI, concluindo que a Igreja “não se considera autorizada a admitir as mulheres à ordenação sacerdotal”.  A tais razões fundamentais, o mesmo Documento junta outras razões teológicas que ilustram a conveniência daquela disposição divina, e mostra claramente como o modo de agir de Cristo não fora ditado por motivos sociológicos ou culturais próprios do seu tempo. Como sucessivamente precisou o Papa Paulo VI, “a verdadeira razão é que Cristo, ao dar à Igreja a Sua fundamental constituição, a sua antropologia teológica, depois sempre seguida pela Tradição da mesma Igreja, assim o estabeleceu”
Na Carta Apostólica “Mulieris dignitatem”, eu mesmo escrevi a este respeito: “Chamando só os homens como seus apóstolos, Cristo agiu de maneira totalmente livre e soberana. Fez isto com a mesma liberdade com que, em todo o seu colmportamento, pôs em destaque a dignidade e a vocação da mulher, sem se conformar ao costume dominante e à tradição sancionada também pela legislação do tempo”.
De fato, os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos atestam que este chamamento foi feito segundo o eterno desígnio de Deus: Cristo escolheu os que Ele quis (cfrs. Mc 3,13-14; Jo 15, 16; ) e fê-lo em união com o Pai, “pelo Espírito Santo”  (At 1,2), depois de passar a noite em oração (Lc 6, 12). Portanto, na admissão ao sacerdócio ministerial, a Igreja sempre reconheceu como norma perene o modo de agir do seu Senhor na escolha dos doze homens que Ele colocou como fundamento da sua Igreja (Ap 21, 14). O mesmo fizeram os Apóstolos, quando escolheram os seus colaboradores que lhes sucederiam no ministério.  Nessa escolha, estavam incluídos também aqueles que, ao longo da história da Igreja, haveriam de prosseguir a missão dos Apóstolos de representar Cristo Senhor e Redentor.
3. De resto, o fato de Maria Santíssima, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, não ter recebido a missão própria dos Apóstolos nem o sacerdócio ministerial, mostra claramente que a não admissão de mulheres à ordenação sacerdotal não pode significar uma sua menor dignidade nem uma discriminação a seu respeito, mas a observância fiel de uma disposição que se deve atribuir à sabedoria do Senhor do universo.
A presença e o papel da mulher na vida e na missão da Igreja, mesmo não estando ligados ao sacerdócio ministerial, permanecem, no entanto, absolutamente necessários e insubstituíveis. Como foi sublinhado pela mesma Declaração “Inter Insigniores”,  “a Santa Madre Igreja auspicia que as mulheres cristãs tomem plena consciência da grandeza de sua missão: o seu papel será de capital importância nos dias de hoje, tanto para o renovamento e humanização da sociedade, quanto para a redescoberta, entre os fiéis, da verdadeira face da Igreja”. Os Livros do Novo Testamento e toda a história da Igreja mostram amplamente a presença na Igreja de mulheres, verdadeiras discípulas e testemunhas de Cristo na família e na profissão civil, para além da total consagração ao serviço de Deus e do Evangelho.  “A Igreja defendendo a dignidade da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por aquelas que – fiéis ao Evangelho – em todo o tempo participaram na missão apostólica de todo o Povo de Deus.  Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja”.
Por outro lado, é à santidade dos fiéis que está totalmente ordenada a estrutura hierárquica da Igreja.  Por isso, lembra a Declaração “Inter Insigniores”, ‘o único carisma superior, a que se pode e deve aspirar, é a caridade (I Cor 12-13). Os maiores no Reino dos céus não são os ministros, mas os santos”.
4. Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia atualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribuindo-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal.
Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence á própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (Lc 22, 32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja.
Invocando sobre vós, veneráveis irmãos, e sobre todo o povo cristão, a constante Judá divina, concedo a todos a Bênção Apostólica.
Vaticano, 22 de maio, Solenidade de Pentecostes, do ano de 1994, décimo sexto de Pontificado”.



[1]              Carta ao Arcebispo de Cantuária, datada de 30.11.75.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O SENADO E SUAS REMOTAS ORIGENS





A expressão “senado” tornou-se mais conhecida quando da criação de tal elite de notáveis pelos romanos, em torno do século VI a.C. O termo vem do latim “senatus”, que significa “conselho de anciãos”. Era a mais remota assembléia política da antiga Roma, copiada talvez do que ocorria nos povos antigos que tinham tais conselhos em seus reinos. Essa prática era comum nos povos do Mediterrâneo, que procuravam às vezes imitar uns aos outros em costumes, leis e regimes políticos, embora de formas precárias.
O senado tenha surgido pela primeira vez na História com Moisés (século XV a.C.) ao criar o conselho de “anciãos do povo”, composto de 70 notáveis figuras escolhidas pelo próprio Moisés e sob inspiração divina:

“O Senhor disse a Moisés: junta-me setenta homens entre os anciãos de Israel, que tu souberes serem anciãos do povo e mestres; e os conduzirás à porta do tabernáculo da aliança, e ali os fará esperar contigo, para que eu desça e te fale, e tome do teu Espírito e lho darei a eles para que sustentem contigo o peso do povo, e não sejas tu só o agravado. (Num 11, 16-17). 
Mas, Moisés não foi pioneiro mundial somente na criação do Senado, mas também na descentralização do poder, delegando a assessores vários encargos que vinha assumindo.  Antes disso, e após ser recebido com alegria por Moisés, seu sogro Jetro lhe deu os seguintes conselhos:

Sê mediador do povo naquelas coisas que dizem respeito a Deus, para lhes expores os pedidos que lhe são dirigidos, e para ensinares ao povo as cerimônias e o modo de honrar a Deus, o caminho por onde devem andar e as obras que devem fazer. Mas escolhe entre todo o povo homens capazes e tementes a Deus, nos quais haja verdade e que aborreçam a avareza; faze deles tribunos, centuriões e chefes de cinqüenta, e de dez homens, os quais julguem o povo em todo o tempo, e te dêem conta das coisas mais graves”.(Ex 18, 19-23)

Quer dizer, Moisés deveria dividir sua regência em duas partes: numa delas ocuparia o cargo de co-regente de Deus, aplicando suas ordens e suas leis; “Sê mediador do povo naquelas coisas que dizem respeito a Deus”. E na outra transmitiria a auxiliares vários encargos de regência, como a seguir passa a enumerar Jetro. Estava sendo posto em prática o sistema de regência participativa, através dos co-regentes. Alguns historiadores creditam aos romanos o pioneirismo na técnica de criar grupos de homens chamados decúrias (dez), centúrias (cem) ou milícias (mil), para mais facilmente serem conduzidos em suas guerras, mas na realidade o pioneiro foi Moisés sob orientação de Jetro. A novidade dos romanos foi a legião, composta de seis milícias. E concluía Jetro: “Desta sorte o peso que te oprime será mais leve, sendo repartido com outros
Prontamente Moisés seguiu os conselhos de seu sogro. Voltando-se para o povo disse-lhes:

Eu só não posso reger-vos, porque o Senhor vosso Deus vos multiplicou, e sois hoje tão numerosos como as estrelas do céu... Eu só não posso atender aos vossos negócios, trabalhos e questões. Dai-me dentre vós homens sábios e experimentados, e de vida provada nas vossas tribos, para que eu os constitua vossos chefes...E eu tomei das vossas tribos homens sábios e nobres, e constituí príncipes, tribunos e chefes de cem, de cinqüenta e de dez que vos instruíssem em todas as coisas...”(Deut. 1, 10-15).

Era estabelecida uma forma inédita de reger os homens, a qual era desconhecida pelos egípcios, onde Moisés tinha crescido e aprendido todas as ciências da época. Esta forma de reger só foi posta em prática após Moisés receber de Deus os 10 Mandamentos, pois o conhecimento da Lei era necessário para que os homens se tornassem co-regentes da vontade divina. Portanto, tratava-se de algo inspirado por Deus.













segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A GRANDE LIÇÃO DE LOURDES







(COMENTÁIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)

Dentre os inúmeros relatos das aparições de Nossa Senhora em Lourdes, muito significativo é o de um funcionário público dessa localidade dos Pirineus. Sem fugir ao costume de seu tempo, era ele um homem cético para com as coisas de Deus e da religião, até o momento em que a Providência determinou tocar sua alma e o levou a presenciar um dos colóquios de Santa Bernadette com a Imaculada Conceição. Seu testemunho, de insuspeitada franqueza, é uma das eloqüentes provas da autenticidade dessas aparições. Eis um bonito trecho de sua narrativa:
De repente, como se um raio a houvesse tocado, ela (Bernadette) teve um sobressalto de admiração e pareceu nascer para uma segunda vida. (Umaluminosidade especial) a envolvia toda. Espontaneamente, sem cálculo, com um movimento maquinal, os homens que lá estávamos tiramos nossos chapéus e nos inclinamos como as mais humildes mulheres. A hora das objeções passara e, a exemplo de todos os que assistiam a esta cena celeste, olhávamos da moça estática para o rochedo, do rochedo para a moça.
Sorridente ou séria, Bernardette aprovava com a cabeça, ou parecia mesmo interrogar. Quando a Senhora falava, ela estremecia de felicidade. Quando, ao contrário, era ela que fazia ouvir suas súplicas, humilhava-se e se comovia até as lágrimas. Comumente, a vidente terminava suas preces por saudações dirigidas à Senhora invisível. Eu conhecia o mundo talvez até demais. Encontrara já pessoas que eram modelos de graça e distinção, mas jamais vi alguém saudar com a graça e distinção de Bernardette. Ao terminar a visão, porém, voltamos a ter diante de nós somente a figura amável, mas rústica, da filha dos Soubirous.
Após a cena que acabo de descrever, eu me sentia como um homem que acabou de sonhar e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim, e um mundo de pensamentos me agitavam a alma. A Senhora do rochedo  ocultava-se bem, mas eu sentira a sua presença, e estava convencido de que o seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando como eu, o homem das ironias e das presunções, tivesse sido admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu”.

O cético acreditou e se converteu

Por suas comovedoras palavras, entende-se que esse homem, todo embebido de orgulho e ceticismo, foi ali objeto de uma graça insigne e se converteu. Tinha ele se dirigido à gruta . segundo confessa . mais disposto a se divertir do que a acreditar nas aparições. Porém, ao reparar nas atitudes de Santa Bernadette durante os diálogos com Nossa Senhora, teve ele, por uma intuição psicológica direta, a noção de que a Interlocutora da menina realmente existia. Ela não podia ser uma abstração, algo tirado do vácuo, uma fantasia. A jovem camponesa estava falando com alguém, e seu modo de proceder tinha todas as características objetivas de quem entabula uma conversa com outra pessoa. De maneira que era inimitável a autenticidade da cena. E, portanto, a Santíssima Virgem existia, e estava ali presenteO cético acreditou e se converteu.

Enobrecida no trato com Nossa Senhora

 Não deixa de ser muito interessante um dos indícios que ele aponta da veracidade das aparições, ou seja, a também inimitável distinção de atitudes da vidente, no momento dos colóquios.
Santa Bernadette era uma moça rústica. Quem a vê nas fotografias, nota tratar-se fundamentalmente de uma camponesa. Pois bem, apesar disso, ao estar  com Nossa Senhora, ela Lhe falava e A cumprimentava com uma elegância extraordinária. Tanta que o funcionário público declara não ter conhecido pessoa . e ele privara com muitas . mais distinta que Bernadette. Porém, terminando a visão, ela voltava a ser a filha dos camponeses Soubirous.
Quer dizer, era uma nobreza comunicada a ela pelo contato com Nossa Senhora. Passada a aparição, ela mudava de jeito. Seria mais ou menos como se uma pessoa de condição muito modesta fosse chamada a conversar com a rainha da Inglaterra e, nesse encontro, tivesse atitudes e maneiras mais finas do que no seu cotidiano. Haveria uma espécie de filtração dos predicados da rainha para a pessoa com quem ela se dignou estabelecer uma interlocução. O mesmo se dava nas aparições de Lourdes.

Primeira gota de uma inundação de graças

Outro fato interessante a salientar é a própria conversão desse homem. Ele diz que saiu da gruta ao mesmo tempo humilhado e pasmo, pois não podia crer que alguém tão cheio de dúvidas e ceticismo como ele houvesse sido tão bem tratado por Nossa Senhora. Na verdade, deu-se um milagre gratuito em favor dele, uma vez que o convertido de nenhum modo merecia ter esta espécie de visão indireta da Virgem Imaculada. E, com o simples reflexo da presença d’Ela sobre a figura de Santa Bernadette, Maria comoveu a alma desse homem e acabou com todos os seus orgulhos.
Pela expressão curiosa dele, vê-se que seu pensamento é o seguinte: ”Eu era muito presunçoso, estava contra-indicado para receber essa graça, mas agora me sinto tocado por ela. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, de modo que não se possam recusar a abrir!”.
Foi, portanto, uma obra maravilhosa feita pela graça na alma desse homem, precursora do que se realizaria com tantos milhares e milhares de almas que passariam por Lourdes e seriam colhidas pelo milagre. E de tantas outras que, mesmo longe da gruta de Massabielle, se converteriam ouvindo falar dos prodígios ali operados por Nossa Senhora. Foi a primeira gota de uma  verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, iniciando-se em 11 de fevereiro de 1858.


Preciosos ensinamentos

Esses, como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento.
Até nossos dias, vemos manifestarem-se em Lourdes algumas atitudes de Nossa Senhora . e da Providência, com quem Ela vive em íntima união . diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, essas atitudes têm sua razão de ser, apesar de parecerem até contraditórias.
De um lado, chama a atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos físicos dos homens. Numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende seus rogos e pratica milagres para lhescurar os corpos.
Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.
Mas existe outra realidade em Lourdes, não menos significativa: são os inúmeros doentes que de lá voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?
Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem. É por meio das provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, não compreende absolutamente nada. É por essa forma que, via de regra, os homens alcançam a bem-aventurança eterna.
E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de 8º sacramento.
Ora, Nossa Senhora agiria contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está que, para determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura.

Estupendos milagres morais

Como Mãe que ajuda os filhos a carregar seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares de origem imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e de contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados.
Há mesmo o fato de não poucos doentes, vindos dos mais distantes países da terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão da própria cura, em favor daquelas. Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. É um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor de Deus. Milagre moral, arrancado ao egoísmo humano; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.
Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das  freiras do convento carmelita de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que eles vão ali suplicar. Nunca pedem sua própria cura, e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Padecem horrores, levam às vezes uma vida inteira de sofrimentos ou morrem de uma morte prematura, com esse intuito especial de fazer bem a outras almas.
Quando deitamos um olhar no mundo a nosso redor e consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor-próprio, que constituem um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas em Lourdes. Esses atos demonstram que a primordial intenção de Nossa Senhora é produzir esses milagres de caráter moral que conduzem as almas ao Céu.
Pois Nossa Senhora não seria Ela, se aparecesse em Lourdes para fazer bem aos corpos que perecem, e não o fazer às almas imortais. Nem seria verdadeiro esse amor d’Ela aos homens, se não tivesse por principal objetivo levá-los ao amor de Deus. Porque nada de melhor para nós se pode desejar.

O grande ensinamento de Lourdes

Então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante. Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso, se for preciso.
Alguém objetará: .”É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.
Encontramos a resposta na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Pai Eterno: “Se for possível, afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”.
O resultado é que veio um Anjo consolar Nosso Senhor.
Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, que elas sejam afastadas de meu caminho. Porém, seja feita a superior vontade de Deus e não a minha. E a exemplo do que ocorreu com Jesus no Horto, a graça nos consolará também, nas provações que Maria Santíssima nos enviar.
Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.
(Revista “Dr. Plínio”, nº 23, fevereiro de 2000).



AS APARIÇÕES DE LOURDES E A MEDIAÇÃO UNIVERSAL DE NOSSA SENHORA







(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)

Estamos na Novena de Nossa Senhora de Lourdes, de maneira que poderíamos acrescentar mais uma palavra a respeito dessa devoção.
Acho que dos muitos aspectos que essa devoção tem, um me parece que tem sido insuficientemente acentuado e é o seguinte: os senhores sabem que para o Reinado de Maria, uma verdade fundamental é a Mediação Universal de Nossa Senhora. Porque para Nossa Senhora ser verdadeiramente Rainha, é preciso  que Ela possa  junto a Deus tudo quanto Ela queira, pois é por esta forma que Ela governa o mundo.
Nossa Senhora, pela Sua própria natureza, - Ela tem uma natureza humana como a nossa - não tem mais poder sobre os astros, sobre os homens, do que nós temos. De maneira que, para ter o reinado de todo o universo, para ser a Rainha de todos os Anjos, a Rainha de todos os Santos, a Rainha de todos os homens, a Rainha de todo o mundo material e dominadora terribilíssima e completa do demônio, Ela precisa ter a graça de Deus. E é exatamente enquanto ponto de convergência de todas as graças de Deus que ela é Rainha. A onipotência de Nossa Senhora tem sido muitas vezes chamada, e muito adequadamente, onipotência suplicante, porque é por meio da súplica que Ela faz, que Ela pode tudo. Porque Ela pode tudo junto d'Aquele que pode tudo, é por isso que é Rainha. E, portanto, o Reinado de Nossa Senhora é o reinado das súplicas que Ela faz, do valor das orações que Ela oferece.
Portanto, a realeza de Nossa Senhora está numa conexão íntima com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. Ela é a Rainha de tudo porque todas as graças passam por Ela. Todas as graças que são dadas aos homens, são dadas pelas mãos d’Ela. Todos os pedidos que os homens fazem são apresentados por meio d’Ela. E se todos os santos e anjos do Céu pedissem algo que não fosse por meio d’Ela não obteriam. Ela sozinha, pedindo sem nenhum deles, obtém. De tal maneira o foco da predileção divina se concentrou por inteiro n’Ela. E depois, parte d’Ela de novo para toda a criação. É porque Ela é medianeira de todas as graças que Ela é onipotente. Há, portanto, uma espécie de correlação íntima entre uma coisa e outra.
Agora, as aparições de Lourdes se inserem numa série de aparições de Nossa Senhora no século XIX, que são as mais célebres dessas aparições e, debaixo de alguns pontos de vista, merecidamente as mais célebres. Essas aparições de Nossa Senhora no século XIX, que culminam com Fátima, culminam com a afirmação do Reinado de Maria. E a aparição de Lourdes, portanto, está num pontilhado de aparições que são como que, nas  noites extremas de nossos dias, uma clarinada do Reino de Maria, pontos alvos anunciando que o Reino de Maria virá.
Em Lourdes, em cada uma dessas aparições, seria muito interessante estudar a presença da idéia da Mediação Universal das graças e do Reinado de Maria. Em Lourdes, especialmente, se pode dizer debaixo de um título: Nosso Senhor poderia ter dado essa fecundidade estupenda de milagres a um santuário d’Ele.
Na França, por exemplo, há um santuário magnífico consagrando uma devoção estupenda a Ele, que é o Santuário de Paray-le-Monial, onde Nosso Senhor fez suas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque. Ele poderia perfeitamente fazer com que esses milagres se dessem lá, se dessem em todos os santuários consagrados a Ele. Mas Ele quis que a maior fonte de milagres que houve na História da Igreja, na História do mundo, fosse num santuário consagrado a Nossa Senhora. Quer dizer que Ele quis que aquelas curas todas só fossem obtidas sob a égide de Nossa Senhora, depois de uma aparição de Nossa Senhora, como uma graça de Nossa Senhora, e mediante um pedido feito a Nossa Senhora. Ou seja, Ele quis que todas essas curas estupendas passassem pelas mãos d’Ela.
Quis que passassem para que? Evidentemente para documentar o dogma, que ainda não é dogma, é verdade de fé, da Mediação Universal, para os homens compreenderem bem até que ponto Ela pode tudo. As piores doenças, os maiores males, os sofrimentos mais horrorosos Ela cura, toma as leis mais inflexíveis da natureza e as elimina. Ela vence tudo: uma pessoa que vê sem nervo ótico... Isso é um tal domínio de Nossa Senhora sobre a natureza, como mais não se pode imaginar! Bem, isto tudo é feito por meio d’Ela. Por que? Para mostrar que todas as graças vêm por meio d’Ela. E a presença de todas as graças nas mãos d’Ela para serem distribuídas, por sua vez, quer dizer que Ela é a Rainha do Céu e da Terra. E por Ela passa tudo.
Eu me lembro de uma cançãozinha religiosa, que se cantava  no meu tempo, em que havia um resto de piedade, e que dizia: “Salve, ó Mãe! Salve, ó Virgem Santíssima! Do universo portento e primor; mais esplêndida glória que a Tua, só tem Deus, do universo Senhor.” É piedosa a canção e realmente a conclusão é esta: mais esplêndida glória que a Tua só tem Deus, do universo Senhor.
Quer dizer, Nossa Senhora está infinitamente abaixo de Deus. E tudo quanto está abaixo de Nossa Senhora está incomensuravelmente abaixo d’Ela. É o que a perenidade das curas de Lourdes nos diz.
Há uma certa religiosidade um pouco dada a graças materiais, a pedir favores materiais, etc., etc., que desdenha os favores espirituais e que se impressiona muito com as graças materiais de Lourdes. Há quem não compreenda que os favores materiais que Deus dá são de fato favores. E favores que a gente deve pedir. Mas que só são verdadeiramente favores, na medida em que levam a nossa alma a desejar os favores espirituais, as graças para a alma. É por aí que verdadeiramente Deus atrai as almas para Ele, porque todos os favores tem este fim.
Não se pense que a cura de Lourdes é só porque Nossa Senhora tem pena do homem que é capenga, no sentido físico da palavra, e que Ela corrige o coxo. Ela tem pena do coxo, é claro. Ela tem gosto em corrigir a capenguice do coxo, é claro. Mas muito mais do que isto Ela quer fazer a ele um bem à sua alma. E serve-se de um milagre físico, para fazer bem à alma d’Ele e dos outros que vêem isto. E o bem que no caso está em vista é uma grande fé na verdade de que Ela é medianeira de todas as graças.
Eu digo isto porque nós tivemos, não me lembro bem se ontem ou anteontem, a cerimônia das velas de São Braz. Eu estava vendo aquele mundo de gente que vai lá para se proteger contra a dor de garganta. É claro que Nossa Senhora ama, preza, de nos livrar de um mal da garganta, nos casos em que esse mal não nos conduza para a salvação. Porque às vezes uma dor da garganta, e coisas piores do que isto, às vezes muita doença faz muito bem para muita gente. Se não houvesse doença na terra, o inferno estaria muitíssimo mais cheio do que está. Não é muito não, é muitíssimo mais cheio do que está. Portanto, não é qualquer doença que Nossa Senhora cura.
Mas quando é o caso de curar, Ela cura com amor materno, gosta muito de curar. Mas Ela cura para que? Para fazer sentir às pessoas a bondade d'Ela. E para lhes estimular o desejo de se curarem dos males, das doenças da alma, para adquirirem os bens da alma; é para isso que Ela faz. E é assim que a coisa deve ser vista. Realmente para a cura do corpo, considerando também em si a cura do corpo, mas visando, sobretudo, a cura da alma.
Essas são as considerações que na novena de Nossa Senhora de Lourdes eu podia fazer.

 ("Conferência", 04 de fevereiro de 1965)



domingo, 10 de fevereiro de 2019

A INCOMENSURÁVEL BONDADE DE NOSSA SENHORA


(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)


(Na gravura, os Mistérios Gloriosos do Rosário)
  
"Tenho esta ficha “Intimidade de duas mães”, extraída da Légende Dorée, de Jacques de Voragine:
 “Uma viúva tinha um filho único a quem queria muito. Sabendo que ele havia sido feito prisioneiro pelos inimigos, acorrentado e posto na prisão, ela ficou profundamente triste e, dirigindo-se a Nossa Senhora, por quem tinha devoção especial, pediu-lhe com insistência liberdade para seu filho.
“Passou-se um tempo e ela não viu o fruto de suas preces. Dirigiu-se, então, a uma imagem de Maria, na igreja. Ali ela disse: ´Santa Virgem, eu Vos supliquei a liberdade de meu filho e Vós não quisestes vir em socorro dessa mãe infeliz. Implorei vossa proteção para meu filho e me recusastes. Assim como meu filho foi levado, levarei o vosso e o guardarei como refém.
“Dizendo isso, aproximou-se, tomou a imagem do Menino do colo da Virgem, levou-a para casa, envolveu-a em linho sem mancha e, colocando-a num cofre, fechou-a à chave, contente por ter um tão bom refém como garantia da volta de seu filho.
“Na noite seguinte, Nossa Senhora apareceu ao rapaz, abriu-lhe a porta da prisão e lhe disse: - Dize à tua mãe, meu rapaz, que ela entregue meu filho, agora que eu entreguei o d’Ela.
“O rapaz foi encontrar-se com sua mãe, e relatou-lhe a miraculosa libertação. A mãe, radiante de alegria, apressou-se a entregar o Menino Jesus a Nossa Senhora. – Eu Vos agradeço, Celestial Senhora, por me restituirdes o filho; em troca, restituo o vosso”.
  Alguém poderá perguntar se o fato é verídico. Eu diria que é abaixar o nível fazer essa pergunta. Porque não importa que o fato seja verídico, o importante é que ele seja possível. O importante é saber se, de acordo com o que a doutrina católica nos ensina sobre Nossa Senhora e sobre as relações especiais de uma mãe com seu filho aqui na Terra, esse fato poder-se-ia ter passado. Isso nos fala a respeito de Nossa Senhora. Ensina-nos, então, a verdadeira impostação de nossa alma perante Ela.
Trata-se de um caso que ensina uma extraordinária confiança em Nossa Senhora, uma extraordinária liberdade de ação em relação a Ela. Vamos dizer assim: se o fato foi verdadeiro, a gente pode dizer que Nossa Senhora quis retardar a libertação do rapaz para provocar a mãe a tomar essa santa liberdade em relação a Ela. E desta maneira mostrar como quer ser tratada por nós.
É preciso distinguir aqui o caso originário do que poderia ser a caricatura d’Ele. Essa mãe, segundo o caso, não tomou o Menino Jesus como represália. Não foi uma vingança. Seria uma blasfêmia, caso ela tivesse dito: “Já que meu filho está sofrendo, eu vou fazer sofrer o seu!” Isso seria uma vingança, seria uma blasfêmia. Mas ela o tomou propriamente como refém.
O que era um refém na Idade Média? Era uma pessoa que era dada como garantia de alguma coisa. Por exemplo, havia um tratado entre dois reis. O rei vencido dava o seu filho como refém, como garantia do cumprimento das cláusulas do tratado. Quando o tratado fosse cumprido, o filho do rei era solto. Se o tratado não fosse cumprido, o filho do rei podia passar – conforme as cláusulas – duras penas, eventualmente a pena de morte. Mas enquanto o tratado não era violado, o refém – por exemplo, no caso de dois reis – ficava na Corte do rei vencedor; ele fazia parte do cerimonial, tomava parte nos banquetes, nas cerimônias de protocolo entre os outros príncipes da Casa Real; ele viajava, era objeto de homenagens nas cidades onde passava, adquiria bens, às vezes até se casava. De maneira que o refém não era um prisioneiro no sentido moderno da palavra, mas era o indivíduo que representa apenas uma garantia, que não era tratado como inimigo, mas apenas como um homem que estava garantindo algo, e, portanto, como um hóspede de eleição, como um hóspede distinto.
Então, foi o que ela fez com o Menino Jesus. Ela tirou a imagem do Menino Jesus que estava no colo da imagem de Nossa Senhora, e envolveu-a num pano muito limpo. E trancou no cofre, que é o lugar onde se guardam as coisas preciosas. Ela teria agido, talvez, de modo ainda mais poético se a tivesse guardado no meio de flores. Mas, prisão por prisão, refém era no cofre. Nossa Senhora sorriu diante dessa candura. Nossa Senhora viu que essa mulher confiava na misericórdia d'Ela enormemente, a ponto de compreender que se tomasse a imagem do Menino Jesus com essa liberdade.
Então, coroou o fato por um ato de uma liberalidade, um ato de doçura, de uma suavidade extraordinária. Ela se aproximou da prisão, libertou o rapaz e mandou esse recado: “Vá dizer à sua mãe que libertei o filho dela. Agora, ela liberte o Meu Filho”. Quer dizer, colocando-se risonhamente, amavelmente, de igual para igual, numa atitude de afabilidade que nos indica a incomensurável bondade de Nossa Senhora.
 Eu volto a dizer: não me interessa saber se o caso é verídico. O que importa é saber que, segundo a doutrina católica, ele podia ter-se dado. E, diz Santo Tomás de Aquino, aquilo que tanto pode dar-se quanto não se dar, de vez em quando pode acontecer. Como é um caso singular, eu não posso dizer que tanto se pode dar quanto não dar. Não é um caso que fica cinqüenta a cinqüenta. É um caso raro. Mas os casos raros por vezes sucedem. O que quer dizer que nós devemos também agir, com Nossa Senhora, dessa maneira: com muita liberdade, com muito respeito, com muito desembaraço, confiando na misericórdia d’Ela.
Eu já contei mais de uma vez este fato que, entretanto, vem a propósito. Santa Teresa de Jesus, fazendo uma viagem, passou sobre uma pinguela, que é uma ponte feita por uma só árvore e que se lança, em geral, sobre o abismo. Portanto, perigoso, porque a forma da árvore é arredondada, cilíndrica. É preciso saber atravessar bem. E quando ela passava pela pinguela – esse fato é histórico, se narra nas suas biografias – ela derrapou e foi caindo para o abismo. Quando ela ia caindo, Nosso Senhor apareceu-lhe e sustentou-a. Ela então perguntou: “Meu Senhor, por que consentistes que eu escorregasse?” Quer dizer, que eu tomasse esse susto? Os senhores estão vendo a liberdade! Nosso Senhor deu a resposta: “Assim eu trato meus amigos”. Ela respondeu: “Por isso tendes tão poucos!”
Ela está disposta a receber tudo de Nosso Senhor. E morreu dardejada por um dardo de amor a Deus, algum tempo depois de ter o coração transverberado por um serafim. Ela morreu, portanto, de algum modo vítima de amor, mas, por assim dizer, gracejando com Deus, dizendo para Deus coisas amáveis. O que mostra bem qual é o ambiente espiritual próprio da Igreja Católica. Ao mesmo tempo sublime, sacral, impregnado das mais elevadas cogitações, ensinando-nos que entre Deus e nós há uma distância infinita; que entre Nossa Senhora e nós há uma distância incomensurável, mas depois mostrando-nos aquilo que seria a verdade oposta – não contraditória –, que vem em outro sentido. Quer dizer, esse Deus tão grande, essa Rainha incomensuravelmente superior, que condescende em ter esse contato conosco, esse convívio conosco etc.
Por aí se vê como essa historieta medieval procura apresentar, à maneira de uma parábola, um fato que nos dá um profundo ensinamento a respeito de Deus, de Nossa Senhora e do ambiente espiritual da Igreja Católica. Sente-se aí o equilíbrio da Igreja Católica e pode-se perceber a diferença de clima entre a Igreja Católica e as outras religiões. É só passar em frente a uma igreja protestante. Não precisa entrar. Eu todos os dias passo em frente a uma igreja protestante, perto de um convento de freiras concepcionistas. Gélida, fria! A gente tem certeza que se entrar lá é uma carranca, é uma má catadura, é uma coisa incrível!
Os ofícios e a liturgia da igreja cismática são muito bonitos, mas sempre com um fundo de melancolia grossa, pesada, uma tristeza, uma sensação de exílio, uma coisa insuportável. Na Igreja Católica, pelo contrário, nota-se uma elevação muito maior do que a carranca protestante – um sorriso; uma elevação maior do que na igreja cismática – um sorriso que na própria igreja cismática não se encontra. Preste-se atenção nas imagens das igrejas cismáticas. As que eu tenho visto, não sorriem. Nossa Senhora está sempre com um ar triste, pegando um Menino triste também, uma tristeza um pouco fatalista, que está dentro da índole da religião cismática. Com a Nossa Senhora da Igreja Católica dá-se o oposto. Por exemplo, a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima, com suas mil fisionomias, todas elas comportando, de vez em quando, certo sorriso, significando a passagem da afabilidade, da gentileza, da bondade, que completa o espírito católico.
Isso se nota também na época que teve em mais alto grau o espírito católico, que foi a Idade Média. Época que construiu catedrais imponentíssimas, a época por excelência do protocolo, da solenidade, da dignidade. Entretanto, ela nos apresenta Nossa Senhora tão risonha, tão afável, e tantos fatos indicando esse comércio gentil, amável, de Deus com os homens, que constituem o complemento. Assim como na catedral medieval havia a pedra austera e o vitral, que era uma jóia, assim também havia a serenidade dos princípios, a serenidade da doutrina, e a bondade de Deus, de Nossa Senhora iluminando a alma dos fiéis. São os contrastes harmônicos de que se faz toda a perfeição".

(Plínio Corrêa de Oliveira – Conferência a seus discípulos, em 09 de julho de 1973)