sábado, 29 de junho de 2019

SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI A MINHA IGREJA




SUPER HANC PETRAM AEDIFICABO ECCLESIAM MEAM

Plínio Corrêa de Oliveira

Hoje é a festa de São Pedro e São Paulo. Estamos festejando o 19º Centenário do martírio dos dois Apóstolos.
A respeito dos apóstolos São Pedro e São Paulo, D. Guéranger, no Année Liturgique, tem essas palavras:
“Pedro e Paulo não cessam de ouvir a prece de seus devotos. O tempo não diminuiu seus poderes, e mais no Céu que outrora na terra, a grandeza dos interesses gerais da Igreja não os absorve a ponto de negligenciarem o menor dos habitantes dessa gloriosa cidade de Deus, da qual foram e permanecem príncipes. Um dos triunfos do inferno em nossa época foi o de ter adormecido, nesse ponto, a fé dos justos. É preciso insistir para terminar esse sono funesto, que nos levará ao esquecimento de que o Senhor quis confiar a homens o cuidado de continuar a Sua obra e representá-lo visivelmente na terra.
Santo Ambrósio exalta a ação apostólica sem cessar eficaz e viva da Igreja, exprime com delicadeza e profundidade o papel de Pedro e Paulo na retificação dos eleitos. A Igreja, diz ele, é um navio onde Pedro deve pescar e nessa pesca ele recebe ordens de usar ora a rede, ora anzol. Grande mistério, porque essa pesca é toda espiritual. A rede protege, o anzol fere, mas a rede é multidão, o anzol o peixe solitário. O bom peixe não repele o anzol de Pedro; ele não mata, mas consagra. Preciosa ferida a sua, que no sangue faz encontrar a moeda necessária ao pagamento do tributo do apóstolo e mestre.
Alusão ao fato do Evangelho.
Então, não te subestimes porque teu corpo é fraco; tens da tua boca do que pagar para Cristo e sua Igreja e para Pedro.
Porque um tesouro está em nós: o Verbo de Deus. A confissão de Jesus o põe em nossos lábios. É por isto que Ele diz a Simão: Vai ao mar alto, isto é, ao coração do homem, porque o coração do homem em seus recônditos é como as águas profundas. Vai ao mar alto, isto é, a Cristo, porque Cristo é o reservatório profundo das águas vivas no qual estão os tesouros da sabedoria e da ciência.
Todos os dias Pedro continua a pescar. Todos os dias o Senhor lhe diz: vai ao mar alto. Mas parece-me ouvir Pedro: Mestre, trabalhamos toda a noite, sem nada conseguir. Pedro sofre em nós quando nossa devoção é trabalhosa.
Paulo está também em luta. Vós o ouvistes hoje dizendo: Quem está doente sem que eu também não esteja doente? Fazei de forma tal que os apóstolos não tenham que sofrer por vossa causa”.
São muito bonitas as palavras e poderíamos fazer um comentário sobre cada uma delas. Uma é essa primeira parte, essa referência interessante de D. Guéranger de que a Providência permitiu que a fé dos justos se tornasse sonolenta quanto ao papel que do alto do céu São Pedro e São Paulo desenvolvem para o bem da Igreja Católica e para a salvação das almas.
É curioso, mas a devoção aos Apóstolos caiu muito, exceção feita a São Judas Tadeu, que era exatamente um Apóstolo quase desconhecido e havia assim da parte de algumas pessoas uma espécie de estranheza instintiva: não sabiam se não era Judas - não o Santo - representado com outra massa no Colégio Apostólico. Com essa exceção, a devoção aos outros Apóstolos caiu muito.
E essa queda é tudo quanto se possa imaginar de menos razoável, porque é evidente que a missão desses Apóstolos não diminui com o tempo. Pelo contrário, deve-se entender que essa missão se mantém íntegra até o fim dos tempos. Porque não foram apóstolos apenas de uma época, não foram apenas pessoas que salvaram as almas numa ocasião, mas são os que estão logo depois de Nosso Senhor Jesus Cristo e que contêm em seu apostolado todas as épocas, porque fizeram uma espécie de implantação da Igreja nos lugares onde Ela depois floresceu.
Compreendemos, portanto, que a devoção a eles é mais do que razoável. E devemos ver nessas palavras de D. Guéranger uma ocasião para nos recomendarmos a eles, pedirmos graças a eles, de maneira tal que sejamos atendidos e com esse atendimento se afervore nossa devoção. Esta é a primeira consideração.
Há uma outra consideração: é uma comparação entre a pesca milagrosa e o papel de São Pedro e São Paulo. Parece-me interessante notar aqui aquela distinção entre apostolado de rede e apostolado de anzol, que costumamos usar em nossa linguagem. Apostolado de rede são certas campanhas gerais que se destinam a atrair muita gente.
Apostolado de anzol, ou de pinça -- o anzol não é senão uma pinça aquática -- é feito para pegar este ou aquele ou aquele outro. E assim temos duas modalidades de apostolado aqui expressas. Ele fala a respeito do apostolado de rede e depois do anzol, e quando fala do anzol tem palavras muito bonitas. O anzol fere, machuca a boca do peixe, mas com o sangue com que o peixe se apresenta, vem o pagamento da conversão.
Isto quer dizer que muitas vezes há conversões duras, conversões ao longo das quais a pessoa sofre, sangra, mas essas conversões feitas com sangue vêm trazendo consigo o preço de si mesmas. O sangue paga a dívida daquele que deve ser convertido. Esse é um tipo de conversão e é uma conversão que se opera por meio da dor.
Mas há outro tipo de conversão que se opera de um modo mais largo, de modo menos dolorido, que é pela rede. Pega-se um mundo de gente, e a ação da misericórdia é mais palpável. Então, vê-se aí um grande número de pessoas convertidas, e convertidas com pouca dor.
Os senhores têm exemplo maravilhoso disso na Idade Média, onde se notava que pela conversão dos reis, de certos reis, nações inteiras se convertiam. O reino dos francos, por exemplo, o reino dos poloneses e assim outros reinos, os reinos ânglicos, etc. O reino inteiro se convertia. É claro que não se podia imaginar que cada um daqueles homens passasse por um drama horroroso até se converter. Mas era a rede que era deitada e que trazia um mundo, uma multidão de peixes para dentro da Igreja Católica.
Uma outra referência bonita é a que diz aqui a respeito de não conseguir nada. São Pedro e São Paulo sempre tiveram enorme dificuldade em seu apostolado e depois tiveram resultados extraordinários. Não foram apostolados fáceis, não foi apostolado tipo happy end, certo tipo de apostolado, falso apostolado, como fazem certos liturgicistas.
Essa gente gostava de contar: foi a uma fábrica, e falou com fulana. “Amigos, bom dia”, e todos responderam “bom dia”. E daqui a pouco toda a fábrica estava convertida...
É o contrário que acontece. É apostolado difícil, apostolado pedregoso, em que a gente deve continuamente pedir a Nossa Senhora que nos alcance a bênção de Deus para nosso apostolado. Sem esse auxílio especial, esse apostolado tão pedregoso não rende nada.
Há uma bonita prece do Cardeal Merry del Val, em que ele pede para ter sempre em mente que Deus estava na origem do apostolado dele - quer dizer, é quem lhe tinha dado as graças, quem lhe tinha dado a idéia, quem lhe tinha dado os meios para iniciar. Deus estava no meio, porque era a ação de Deus, obtida pelas preces de Nossa Senhora, que determinava os auxílios que faziam progredir o apostolado, e Deus era o fim do apostolado, Aquele a quem o apostolado deve servir.
Devemos nos lembrar disso. Se tivermos isso bem em mente, estaremos fazendo como São Pedro, que pediu o auxílio de Deus e a rede estalou de tão cheia. Se não tivermos isto em mente nosso apostolado corre o risco de ser minguado, corre o risco de ser um apostolado ilusório. Por quê? Porque exatamente a graça de Deus não veio. Então, a referência à pesca milagrosa vem muito a propósito para termos isto em mente; para termos, ao longo de nosso apostolado, aquela humildade, aquele espírito sobrenatural, para compreendermos que de nós para nós não somos coisa nenhuma e que na ordem sobrenatural não conseguimos nada; na própria ordem natural precisamos o auxílio de Deus.
Então, nos recomendarmos a Nossa Senhora, que é a Medianeira onipotente, para que Ela nos alcance - porque nossas preces sem Ela de nenhum modo alcançariam porque não merecemos. Então, tudo isto redunda na glória de Nossa Senhora e no desejo de nos acercarmos cada vez mais a Ela, como sendo nossa Mãe muito afável, mas onipotente enquanto suplicante, Aquela cuja oração pode tudo e que nos pode alcançar tudo aquilo que devemos desejar.

(Legionário, 25 de junho de 1944, n. 610, 1ª página)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

SINAL DA PROVIDÊNCIA PARA PROMOVER A DEVOÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS? - O INCÊNDIO DO SANTUÁRIO DE BOM JESUS DA LAPA






No dia 1º de maio de 1903 um incêndio destruiu quase que completamente tudo o que havia dentro da gruta original de Bom Jesus da Lapa. Coincidentemente havia chegado na cidade um grupo de protestantes americanos, que foram logo tidos como suspeitos pela população porque andaram pregando heresias contra o culto das imagens, etc. Evadiram-se da cidade com medo da população ou, quem sabe, da própria justiça.
Em Salvador, o fato foi visto como sinal da Providência para animar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, ainda sem muito fervor, segundo alguns, e também por que uma Imagem do mesmo saiu ilesa do incêndio.
Sobre o incêndio ocorrido na gruta de Bom Jesus da Lapa em 1º de maio de 1903, escreveu o padre espanhol Turíbio Villaronga Segura, autor de um livro histórico sobre o Santuário, escrito em 1937, “Bom Jesus da Lapa – Resenha Histórica” (Editora Ave Maria, São Paulo):
“O pavoroso incêndio que, segundo as informações recolhidas, originou-se no depósito de cera, mais provavelmente por alguma negligência, serviu para engrandecer e aumentar o Santuário. Antes do incêndio, a Gruta era escura: depois ficou clara. O teto ou abóbada era baixa; depois alteou-se. O altar-mor estava onde agora começa o presbitério: depois alongou-se mais cinco metros. “A atmosfera era corrompida, úmida e quente”, como escreveu o Engenheiro Helfeld na as visita em 1853: depois ficou ventilada e higienizada. Existiam aos lados duas vulgares e encaliçadas paredes de tijolos que tomavam espaço diminuindo a magnificência e beleza do maravilhoso recinto e que faziam o mesmo efeito ao gosto artístico dos visitantes que duas pistolas nas mãos de um santo: depois da remodelação, foi suprimido tão antiestético aditamento. A divina Providência sabe escrever direito com linhas tortas e tirar bens do que nós julgamos males!  (págs. 178/179)
Um fato que o Autor comenta no livro e não o refere nesse texto (o Arcebispo faz referência a ele, de passagem), foi que o desmoronamento de uma grande pedra (ocorrido no dia seguinte ao incêndio) fez aparecer uma outra gruta do interior da montanha, sendo esta muito maior do que a antiga. Hoje, ao visitar o Santuário, penetra-se nela pela antiga gruta, mas logo a seguir o romeiro entra na segunda, bem grande, espaçosa e alta, onde se celebram Missas com mais conforto e onde estão expostos mais elementos devocionários.


CARTA PASTORAL DE D. JERÔNYMO THOMÉ DA SILVA
Arcebispo Metropolitano de S. Salvador da Bahia e Primaz do Brasil
Sobre o incêndio da Gruta do Senhor Bom Jesus da Lapa na noite de 1° de maio de 1903
D. Jerônymo Thomé da Silva, por Mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Arcebispo Metropolitano de S. Salvador da Bahia e Primaz do Brasil, etc.
Ao venerando Cabido, aos Reverendo Párocos, Sacerdotes e todos os fiéis desta nossa Arquidiocese, Saúde, Paz e Bênção em Jesus Cristo, nosso Mestre e Redentor.

Irmãos e Filhos muito amados:
Surpreendido na manhã do dia 6 de maio próximo findo, pelo conteúdo de um telegrama comunicando-nos que voraz e casual incêndio reduzira a cinzas a Gruta do Senhor Bom Jesus da Lapa, Santuário venerado há mais de dois séculos pelos fiéis desta e outras dioceses do Brasil, tínhamos o imperioso dever de transmitir-vos logo tão triste notícia.
Era mister, porém, que o fizéssemos circunstanciadamente; e, como para isto necessitamos de informações mais detalhadas, somente agora é que podemos cumprir o doloroso encargo.
O telegrama a que aludimos, Irmãos e Filhos muito amados, era concebido nos seguintes termos:
“Lapa, 2 de Maio – Exmo. Sr. Arcebispo. – Bahia.
Fatalidade! Voraz incêndio casual, ontem para hoje, reduziu cinzas Gruta Bom Jesus, salvando-se apenas imagem Coração de Jesus. Entulho pedras desabadas todo teto impede sabermos sorte Imagem Padroeiro. Providencio minuciosamente. Aguardo urgentes ordens”.
Estava o telegrama assinado pelo Revmo. P. Agostinho Garrido, Capelão do Santuário, e fora-nos enviado pela Estação de Caetité, por intermédio do Revmo. Cônego Tobias Pereira Coutinho, Vigário Forâneo da região do Alto S. Francisco.
Tristemente impressionado, respondemos sem perda de tempo, ordenando ao Vigário Forâneo que se dirigisse, quanto antes, à vila da Lapa para dar as providências necessárias.
A fatal notícia, da qual se ocupou a imprensa desta capital com a rapidez do raio ecoou logo por toda a parte, produzindo a consternação e a dor no ânimo dos fieis.
O incêndio ocorrido no Santuário do Bom Jesus da Lapa, na noite de 1° de Maio próximo findo, continua a ser até hoje um mistério.
Tinha sido a gruta recentemente pintada e preparada às solenidades do culto. Na manhã do dia 1º de Maio, primeira sexta-feira do mês, os fiéis se haviam reunido diante do altar do Sagrado Coração de Jesus para lhe tributarem as homenagens de seu amor. Onde quer que viceje a mimosa planta do Apostolado do Oratório, que tanto embeleza e alegra o jardim da Igreja, sempre a primeira sexta-feira de cada mês é um dia privilegiado, em que as almas amantes de Jesus lhe oferecem perfumadas fibras de virtudes.
À tarde do referido dia, não houve cerimônia de espécie alguma na Gruta; nenhuma luz ardia, nem mesmo a lâmpada do Santíssimo Sacramento, que, havia cinco meses, deixou de ser ali conservada.
Acresce que, quando, à hora do costume, fechou-se a Gruta, não se notou coisa alguma que pudesse fazer recear qualquer sinistro, e todas as precauções possíveis estavam tomadas para evitar desastre de qualquer natureza.
Reinava, irmãos e filhos muito amados, a maior paz e tranquilidade no ânimo de todos os habitantes da vila da Lapa, quando, pelas quatro e meia da madrugada do dia 2 de Maio, é o Capelão sobressaltado com a notícia do incêndio da Gruta. Sem demora, e à toda pressa, encaminha-se para o Santuário; abre a porta; e fica atônito vendo que a maior parte do que havia de madeira estava entregue às chamas!
Horroroso espetáculo! Do teto desprendiam-se enormes pedras, produzindo medonho estampido.
A Gruta parecia estremecer. Tal comoção sentiu o Zelador, que de súbito emudeceu, recobrando a fala quatro dias depois; mas não ficou louco, como alguém erradamente escreveu.
Duas vezes o Capelão tentou entrar, e duas vezes foi obrigado a retroceder  quase asfixiado pelo denso fumo e calor insuportável. Dado o sinal de incêndio, a população acudiu toda tomada de espanto e terror.
Todos queriam invadir o Santuário para prestar os seus serviços; mas o perigo era imenso.
Depois que saíra bastante fumo e diminuíra a intensidade do calor, puderam algumas pessoas juntamente com o Capelão, transpor o limiar da Gruta. Deram-se por esta ocasião fatos admiráveis.
Desde o momento em que se pude penetrar no interior da Gruta, tratou-se de retirar logo a Imagem do Sagrado Coração de Jesus, que felizmente salvara-se das chamas. O povo, Irmãos e Filhos muito amados, o povo, cheio de fé e de uma coragem inaudita, afrontava o perigo, levando bacias com água para extinguir o fogo. Por todas as partes era uma verdadeira chuva de pedras, e algumas bem pesadas, esmagavam as bacias que os fiéis tinham em suas mãos, sem, entretanto, produzirem a menor lesão nas mesmas pessoas. Muitas das pedras que desabaram do teto eram cortantes como navalhas, e, pela ação do fogo, se haviam tornado incandescentes.
Pois bem, Irmãos e Filhos muito amados, coisa realmente admirável! Os fiéis caminhavam descalços por cima daquelas pedras sem se cortarem, nem se queimarem, sendo para notar que, decorridas vinte e quatro horas depois de apagado o fogo, já ninguém podia pôr as mãos ou os pés em cima das mesmas pedras, pelo calor que ainda conservavam.
“Meu Bom Jesus!” “Meu Bom Jesus!” era o grito lancinante do povo procurando, no meio do entulho, a veneranda Imagem do Senhor. Infelizmente se havia queimado, e apenas encontraram-se os raios, o resplendor e alguns fragmentos da mesma imagem carbonizados.
Imaginai, Irmãos e Filhos muito amados, a dor que dilacerava o coração daquela pobre gente! Choravam todos como crianças, não vendo a Imagem do Bom Jesus. Será castigo, meu Deus, perguntavam alguns, que será isto? Mistério, respondemos nós.
Em dois dias limpou-se a Gruta, tirando-se par mais de duzentas carradas de pedra. No Domingo seguinte depois da catástrofe, pôde o Capelão celebrar na Gruta o Santo Sacrifício da Missa, e dirigiu uma alocução ao povo sobre o infausto acontecimento, animando a todos, à vista das ocorrências havidas, a não esfriarem nos sentimentos de sua fé. Ao ato religioso assistiram mais de oitocentas pessoas, e durante e cerimônia, não houve o menor incidente.
Pela tarde, porém, do mesmo dia, por volta de duas horas, quando a Gruta estava fechada, sentiu-se de longe de caíra uma grande pedra, a qual parecia estar segura no teto.
Fatos desta ordem, Irmãos e Filhos muito amados, não podem deixar de impressionar a todos, até mesmo aos incrédulos, menos, porém, aos protestantes americanos, que são “dura cérvice et incircumcisis cordibus”  (Act Ap. VII, 51).
Quando toda a população mostra-se consternada, e o eco da dor repercute em todos os pontos onde chega a desoladora notícia, os protestantes, que já de certo tempo a esta parte haviam assentado suas tendas na vila da Lapa, exuberaram de prazer e lá estão explorando o lamentável fato, insinuando no ânimo do povo que a Gruta não era mais do que uma cavidade de pedras, e a Imagem e a Cruz do Bom Jesus, simples pedaço de madeira.
Como se insulta assim a crença de um povo! Quanta audácia e quanta impiedade!
Não; a Gruta do Santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa é mais do que uma cavidade de pedras.
Há grutas na terra que decantam as grandezas do Céu. A Gruta do Belém é o berço do Redentor da humanidade: ali nasceu Jesus Cristo, saudado pelos Anjos do Céu, adorado pelos homens da terra. A Gruta de Lourdes é o poético santuário de Maria, a terra bendita que a gloriosa Virgem escolheu para aparecer à humilde pastorinha Bernadette Soubirous, confirmando o dogma de sua Imaculada Conceição.
Ambas estas grutas são lugares sagrados, são objetos da maior veneração da cristandade.
A Gruta da Lapa é mais do que uma cavidade de pedras: é um Santuário construído pela mão da natureza, escolhido por um monge (o Padre Francisco Mendonça Marques) há mais de dois séculos, para ser o lugar de suas rigorosas penitências e expiações. A Gruta da Lapa é o santuário tradicional, onde a misericórdia de Deus se há manifestado, produzindo inúmeros prodígios em favor da triste e padecente humanidade; é um templo santificado pelas orações do povo cristão; pela celebração do Augusto Sacrifício da Missa e mais cerimônias da Igreja; é um santuário, enfim, onde os fiéis deste e outros Estados do Brasil, atraídos por fatos extraordinários, vão com religioso respeito cumprir suas promessas e implorar novas graças e bênçãos.

.Quem dirá, Irmãos e Filhos muito amados, que o retrato de um pai, ou de uma Mãe, seja simples pedaço de papel ou de tela, e a bandeira de uma nação, mero pedaço de pano? Dilacerai aquele retrato, queimai-o. Não será uma afronta a uma nação inteira, e que pode trazer graves consequências diplomáticas? E por que? A razão é óbvia. Aquele retrato recorda-nos um ente querido: um pai extremoso, uma mãe carinhosa. Aquela bandeira representa um país, uma nação, com seus costumes, com suas tradições e glórias.
Do mesmo modo, a imagem do Bom Jesus representa a Cristo, Filho de Deus vivo, e Rei imortal dos séculos, o Redentor da humanidade, nosso Pai, nosso Mestre e o melhor amigo.
A Cruz é a bandeira do Cristianismo, é o lábaro de uma crença que venceu no mundo. A Cruz regenerou o homem. As sociedades se elevam quando a invocam; se perdem quando a esquecem. A Cruz, e somente a Cruz, é que forma a nobreza do caráter, a grandeza do espírito e a energia do patriotismo.
Inspirado nestes sentimentos foi que o monarca da Alemanha, em junho do ano passado, assim encerrou um seu discurso em Aguisgran: “Cada vez me vanglorio mais de ter colocado o império, o povo, o exército, a minha própria pessoa e a dinastia sob a proteção da Cruz, sob os auspícios d’Aquele que disse: - “O céu e a terra passarão; a minha palavra, porém, não passará”. Ninguém de bom senso dirá que o Imperador Guilherme tivesse colocado aquela grande, culta e poderosa nação sob a proteção de um pedaço de madeira. Seria ridículo.
O desastre da Gruta, Irmãos e Filhos muito amados, não terá as consequências que alguns supõem, e que os inimigos da Religião desejam. Antes de tudo, convém tornar público e notório que a Gruta do Bom Jesus da Lapa, a qual se acha na fralda de um majestoso e elevado morro, e que tem um quarto de légua em circunferência, não desapareceu com o incêndio, como talvez alguém tenha acreditado, por causa de telegramas passados em momentos de confusão; pelo contrário, ela agora é mais ampla e espaçosa e comporta maior número de pessoas que outrora.
As obras de reconstrução no interior do Santuário prosseguem em grande atividade, para que, na próxima festa, a 6 de agosto, esteja a gruta toda asseada e adornada. Outros trabalhos de maior monta far-se-ão depois da festa.
Esperamos que o povo brasileiro, especialmente os queridos filhos da Bahia, amantes de suas tradições e da fé que lhes legaram seus antepassados, contribuirão generosamente com suas esmolas para as despesas necessárias ao reparo das ditas obras. O Santuário, Irmãos e Filhos muito amados, não dispõe de meios para fazer face a essa despesa. Suas rendas têm sido escrupulosamente aplicadas na construção de um Colégio que ali deliberamos fazer em benefício da infância.
Rogamos, portanto (e encarecidamente o fazemos), aos Revmos. Párocos, Capelães de Casas Pias, Diretores do Apostolado da Oração, da Guarda e de Honra do Sagrado Coração de Jesus e aos demais Sacerdotes que se inflamam de zelo pela glória de Deus e de nossa Religião, promovam, para o mencionado fim, uma subscrição entre os fiéis e pessoas de sua amizade. Não haverá uma só família católica que deixe de atender as nossas rogativas. Cada um dê o que puder; o rico, como rico; o pobre, como pobre. Óbolo, qualquer que ele seja, grande ou pequeno, será sempre um público e solene testemunho de nossa fé e amor ao Bom Jesus. Estão autorizados a receber as ofertas os Revmos. Srs. Cônego Secretário do Arcebispado, Capelão do Santuário da Lapa e os Vigários Forâneos do Alto São Francisco e de Sergipe. O culto do Bom Jesus da Lapa há de continuar com o mesmo fervor, e a festa ano se fará com mais pompa e solenidade. Outra imagem igual em tudo à primeira (da qual temos a fotografia), por ordem nossa, já se está preparando nesta cidade, e terá os mesmos raios e o resplendor encontrados nas ruínas do incêndio.[1]
A nova Imagem deverá seguir no dia 1º do próximo mês de julho para ser colocada na Gruta. Estamos certos de que a fé Cristã não abandonará aquele lugar sagrado; e muito desejamos que este ano a romaria dos fiéis seja mais numerosa. Ali está, Irmãos e Filhos muito amados, a Imagem do Sagrado Coração de Jesus salva do incêndio, chamando a todos; Venite ad me omnes, e prometendo-nos conforto e alento para os nossos males e misérias. Sim, naquele Santuário os aflitos continuarão a encontrar a consolação; os pecados a justificação; os fracos, a força; os tíbios, o fervor; e os justos, a perfeição.
Senhor Bom Jesus da Lapa, se foi mão perversa que ateou o incêndio em vosso Santuário, perdoai ao celerado inimigo. Vosso Coração é um oceano de misericórdia, cujas águas apagam os maiores crimes da humanidade. Tende compaixão, Senhor, daqueles que, dominados pelo erro, principalmente do protestantismo, vos perseguem e vos insultam. Conduzi os inimigos de vosso nome ao porto da verdade e à unidade da fé, para que haja um só rebanho e um só pastor. Volvei, ó Bom Jesus da Lapa, um olhar propício sobre o Brasil, sobre as famílias católicas e todo o povo desta amada Diocese da Bahia. Somos vossos filhos; queremos sempre Vos pertencer. Na medida de nossas forças trabalharemos para que continue o vosso culto na prodigiosa Gruta da Lapa. Permitistes,  ó Bom Jesus, que a Sagrada Imagem de vosso amantíssimo Coração escapasse ao furor das chamas, para que tivéssemos um lenitivo à nossa imensa dor. Deixai, ó Bom Jesus da Lapa, que de vosso amabilíssimo Coração desça agora uma bênção sobre nós:
“Benedicto Dei Omnipotentis Patris et Filii et Spiritus Sancti descendat super vos et maneat semper”.
A todas as pessoas que rezarem devotamente a oração supra, concedemos quarenta dias de Indulgência; e oitenta dias a todos os que visitarem o Santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa no dia da sua festa e na oitava seguinte.
Esta Carta Pastoral será lida nas Igrejas de todos os Conventos, Recolhimentos e Asilos deste Arcebispado, e por ocasião da Missa Conventual, em todas as Matrizes e Curatos, devendo depois ser arquivada na forma do estilo.
Dado nesta cidade de S. Salvador da Bahia, em o Paço Arquiepiscopal, sob o nosso sinal e selo de nossas Armas, aos 19 de junho de 1903, Festa do Sagrado Coração de Jesus.
Jerônimo, Arcebispo da Bahia.
Cônego Francisco de Assis Casto, secretário!.









[1] Estes raios  e esplendor são de ouro, como alguém disse.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

COMENTÁRIOS DE SÃO BERNARDO SOBRE A ANUNCIAÇÃO A MARIA SANTÍSSIMA






Mais do que os castigos divinos, os Anjos têm sido portadores de muitas bênçãos para os homens. Uma delas foi a Anunciação. A mais importante das comunicações angélicas foi a que São Gabriel fez à Santíssima Virgem, a Anunciação, que é contada com encanto pela Legenda Dourada, com comentários de São Bernardo:
“Disse, pois, o anjo a Maria: “Deus te Salve, cheia de graça”. Comentário de São Bernardo: “Cheia da graça da divindade em seu ventre; da graça da caridade em seu coração; da graça da afabilidade em sua boca; da graça da misericórdia e da generosidade em suas mãos... Verdadeiramente cheia; e tão cheia, que de sua plenitude recebem todos os cativos, redenção; os enfermos, saúde; os tristes, consolo; os pecadores, perdão; os justos, santidade; os anjos, alegria; a Trindade, glória, e o Filho do homem a natureza de sua humana condição.
“O Senhor é contigo”. Contigo o Senhor enquanto Pai, que é quem engendra eternamente ao que engendra em seu seio; contigo o Senhor enquanto Espírito Santo, por cuja virtude concebes; contigo o Senhor enquanto Filho, ao que revestes com tua própria carne”
“Bendita entre todas as mulheres”. Segundo São Bernardo isto quer dizer: Bendita sobre todas e mais que todas as mulheres, posto que tu fostes Virgem, Mãe e Mãe de Deus.
“As mulheres estavam submetidas a uma destas três maldições: ou de opróbrio, ou de pecado ou de suplício. A de opróbrio afetava às que não tinham filhos; neste caso havia estado, por exemplo, Raquel, que a ela havia se referido quando disse: “O Senhor me livrou do opróbrio em que me achava”. A de pecado alcançava às que concebiam: esse é o sentido das palavras do Salmo 50: “Olha que em maldade fui formado e em pecado concebeu minha mãe”. A de suplício recaia sobre as parturientes, as quais, como se adverte no Gênesis, “parirão com dor”.
“Bendita foi e é Maria entre todas as mulheres e sobre todas as mulheres, porque somente ela esteve isenta destas maldições: em sua virgindade não houve opróbrio, posto que concebeu sem detrimento de sua integridade; em sua concepção não houve pecado, senão que, pelo contrário, concebeu em santidade;  nem houve tormento em seu parto, posto que pariu, não já sem dor, mas com inefáveis transportes de alegria.
“Com razão Maria foi chamada “cheia de graça”, porque, como observa Bernardo, em sua alma se deram quatro plenitudes, a saber: plenitude em sua humilde devoção, em sua santíssima pureza, em sua fé sem limites e na imolação de seu coração.
“Com razão também pôde dizer o anjo: “o Senhor é contigo”, porque a presença do Senhor em sua alma se acreditou sobejamente, disse o mesmo São Bernardo, com os quatro portentos celestiais de que Maria foi objeto: a santificação de seu ser, a saudação do anjo, a intervenção do Espírito Santo e a Encarnação do Filho de Deus.
“Com razão, igualmente, foi proclamada “bendita entre as mulheres”, posto que, como o citado São Bernardo nota, Deus concedeu a seu corpo estes quatro privilégios: virgindade absoluta, fecundidade sem corrupção, prenhez sem moléstias e parto sem dor.
 “Ela se turbou ao ouvir estas palavras e tratou interiormente de averiguar o significado que poderia ter tudo o que o anjo lhe dizia”.
“Este texto do Evangelho constitui um elogio do comportamento da Virgem, da atenção com que escutou o anjo, das disposições internas de sua alma e do discurso de seu pensamento. O evangelista pondera a modéstia com que acolheu aquela mensagem, ouvindo e calando, o pudor de seus sentimentos e a prudência de sua mente, posto que, raciocinando, tratou de buscar explicação ao que o anjo lhe dizia.
“A turbação de sua alma procedeu, não de ver ao angélico mensageiro – estas criaturas celestes eram-lhe já conhecidas, porque anteriormente já as havia visto muitas vezes -; proveio de ouvir o que estava ouvindo, porque até então nunca havia ouvido coisas semelhantes. A respeito desta turbação, eis aqui o que escreveu Pedro de Ravena: “Não se impressionou Maria por ver o anjo, que se apresentou perante ela sob uma aparência doce e normal, mas pelo estranho conteúdo de sua mensagem. A turbação chegou à sua alma, não através dos olhos do corpo, posto que o que via era muito agradável, mas através dos ouvidos, enquanto que o que estava ouvindo resultava-lhe inaudito”. Por sua parte, São Bernardo comenta: “Turbou-se por seu pudor virginal, porém não se alarmou, porque era mulher de notável fortaleza, nem se assustou, nem se calou, em silêncio refletiu, dando provas de admirável prudência e suma discrição”.
“O anjo lhe disse: “Não temas, Maria, porque encontrastes graças diante do Senhor”. “Encontrastes”, disse São Bernardo, “a graça de Deus, a paz para os homens, a destruição da morte e a restauração da vida”.
Conceberás em teu seio e darás à luz um filho a quem porás o nome de Jesus, que quer dizer Salvador, porque Ele salvará ao povo de seus pecados; esse filho será grande e chamado Filho do Altíssimo”. “As palavras anteriores”, comenta São Bernardo, “querem dizer: este Filho, que já é grande enquanto Deus, será também grande enquanto homem, grande enquanto doutor, e grande enquanto profeta”.
“Disse Maria ao Anjo: Como poderá ser isto se eu não conheço varão?”   Como poderá ocorrer tudo quanto dizes se eu me comprometi a não ter contato carnal com homem algum? Mediante tais palavras Maria declara que era Virgem em sua alma, em seu corpo e em seus propósitos com relação ao futuro.
“Observe-se que Maria pergunta. Quem pergunta é que tem alguma dúvida: logo duvidava. E se duvidava, como se explica que não incorresse em semelhante penalização imposta a Zacarias, de quem sabemos que por suas dúvidas foi castigado com a pena de ficar mudo? Pedro de Ravena responde a esta questão da seguinte maneira, e observemos que em suas palavras se contêm, não uma senão quatro respostas: “Aquele que sabe perscrutar o fundo dos homens, não se guia tanto pelo som dos vocábulos, quanto pelo que se vê no fundo dos corações; do mesmo modo julga os pecadores não ao teor do que dizem, mas atendendo-se ao que sentem. A razão que moveu a ambos interrogadores a formular suas perguntas foi diferente quanto à sua origem e quanto ao seu alcance. Maria admitiu sem vacilação algo que parecia ir contra a natureza; Zacarias, pelo contrário, não admitiu, mas duvidou de algo e fundamentou sua dúvida precisamente numa circunstância que não ia realmente contra a natureza. Maria, ao perguntar, tratou de conhecer como sucederia o que lhe anunciava, enquanto que Zacarias, sem mais, descartou a possibilidade de que se realizasse o que Deus havia determinado que aí se realizasse.  Este homem, apesar de que já anteriormente houvesse ocorrido casos semelhantes, se obstinou em qualificar de impossível o que, sim, era possível. Maria, pelo contrário, ainda sabendo que nunca havia ocorrido nada parecido ao que o anjo lhe comunicava, teve fé no poder divino. Maria se limitou a mostrar-se admirada ante o anúncio de que uma virgem ia ser mãe; coisa muito distinta da atitude de Zacarias, que pôs em tela de juízo a possibilidade de que uma relação conjugal dele com sua esposa desse resultado positivo. Maria, pois, não abrigou dúvidas acerca da divindade da mensagem angélica, mas tratou de conhecer o procedimento mediante o qual ela chegaria a ser mãe; sua pergunta foi muito razoável, já que à maternidade se pode chegar por três caminhos diferentes: o da concepção natural ou normal, o da concepção espiritual e o da concepção milagrosa; ela, ao perguntar, procurou informar-se acerca de qual d’Elas ia a seguir-se em seu caso”.        
 “O anjo lhe contestou: O Espírito Santo virá sobre ti. Quer dizer: O divino Espírito, em virtude de recursos sobrenaturais fará que concebas um filho. Por isso se diz que Jesus Cristo foi concebido por obra e graça do Espírito Santo”  e mais adiante: “A virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”.

(“La Leyenda Dorada” – Santiago de la Vorágine – Ed. Alianza Forma – vol. 1 – págs. 211/214.)





segunda-feira, 10 de junho de 2019

FATOS SUPOSTAMENTE NARRADOS POR NOSSA SENHORA NOS EVANGELHOS





Vários fatos escritos nos Evangelhos não seriam ali incluídos sem que Nossa Senhora não tivesse sido testemunha dos mesmos e os contado aos Evangelistas. Vejamos alguns exemplos.

1.    Anunciação do Anjo

“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: “Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que  conceberas no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado de Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim”. Maria, porém, disse ao Anjo: “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” O anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com sua sombra; por isso o Santo que nascer  será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível. Disse, então, Maria: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!”  E o Anjo a deixou”  (Lc 1, 26-38).

O Evangelista sabia, com certeza, que Nossa Senhora residia em Nazaré, sabia que havia sido desposada com São José e tantas outras coisas, mas, não sabia de tantos detalhes sobre a aparição do Anjo sem que alguém que foi testemunha do fato o narrasse. Não sabia que o Anjo era São Gabriel, nem o teor de sua mensagem. Todos estes detalhes foram guardados no coração de Nossa Senhora a fim de que um dia ficassem documentados, como de fato ocorreu com sua inclusão no Evangelho.
E tem mais - São Lucas descreve em detalhes o que ocorreu a seguir, fatos que somente Nossa Senhora e Santa Isabel poderiam ter descrito com tanta precisão: o encontro entre as duas após a Anunciação do Anjo:
“Naqueles dias, Maria pôs-se a caminho para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de Judá. Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo. Com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre! Donde me vem que a mãe de meu Senhor me visite? Pois quando a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria em meu ventre. Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido!”
Maria disse, então:
Minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva. Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração, para aqueles que o temem. Agiu com a força do seu braço. Dispersou os homens de coração orgulhoso.
Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrando de sua misericórdia – conforme prometera a nossos pais -  em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre!”
Maria permaneceu com ela .mais ou menos três meses e voltou para casa”  (Lc 1, 39-56)
Seguindo a sequência de fatos, conclui-se que o Anjo anunciou a concepção virginal de Maria, que foi em seguida revelada a São José, que quis abandonar a esposa mas foi convencido por um anjo a aceitá-la, após o que, Nossa Senhora resolveu apressadamente, tanta era sua alegria, comunicar tudo a Santa Isabel, que morava longe. Esteve com a prima mais ou menos três meses, tempo suficiente para o nascimento de São João Batista.
São Lucas nada fala sobre São José, se o mesmo estava na companhia de Nossa Senhora nesta ocasião. Ou então, se apenas após seu retorno a Nazaré, três meses depois, pôde constatar que Ela estava grávida. Mas tal não deve ter ocorrido, pois já eram casados e, provavelmente, a esposa nunca viajaria sozinha sem a companhia do esposo.
Podemos então concluir que haviam várias testemunhas do que ocorreu naquele momento: tanto Nossa Senhora e Santa Isabel, quanto o próprio Zacarias, ou, talvez São José. No entanto, nenhum dos tais estavam vivos na ocasião em que foi publicado o Evangelho por volta do ano 60 de nossa era (quase 30 anos depois). Somente Nossa Senhora pode ter revelado tudo o que ocorreu naquele momento, recordando, inclusive a belíssima oração que fez no momento.
São Lucas é o único que comenta sobre a Anunciação do Anjo a Nossa Senhora, enquanto São Mateus apenas descreve a origem de Jesus Cristo e narra as aparições do Anjo a São José, que era o Patriarca:
“A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, comprometida em casamento com José, antes que coabitassem, achou-se grávida do Espírito Santo, José, seu esposo, sendo justo e não querendo denunciá-la publicamente, resolveu repudiá-la em segredo. Enquanto assim decidia, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se a ele em sonho, dizendo: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o que n’Ela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará á luz um filho e tu o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos seus pecados”. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta:
“Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome de Emanuel, o que traduzido significa: “Deus está conosco”. José, ao despertar do sono, agiu conforme o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu em casa sua mulher. Mas não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho. E ele o chamou com o nome de Jesus”   (Mt. 1, 18-25)
Pelo relato, havia sido feito o casamento mas os esposos ainda não moravam juntos, ainda não coabitavam até a gravidez de Nossa Senhora, haja vista que o Evangelista diz no final que ele a recebeu “em sua casa”, indicando que ate este momento Ela morava em outro lugar.. Como é que São José soube que Ela estava grávida, já que era algo muito recente e provavelmente não haveria sinais claros disso? Não teria sido Ela mesma que o revelou? Quando o Anjo fala que o que “n’Ela foi gerado vem do Espírito Santo” dá a entender que São José, como talvez outros bons israelitas, entendia perfeitamente a doutrina da Santíssima Trindade e sabia do papel do Espírito Santo. Se não estivesse bem informado e doutrinado sobre isso não entenderia Quem engravidou sua esposa.
A mesma  pergunta ressurge: mas, afinal, quem narrou tais fatos a São Mateus? E quem os relembrou especificamente no momento em que escreveu o Evangelho, muitos anos depois de ocorridos se não Nossa Senhora?  Há tanta coisa íntima nestas revelações que somente Ela o sabia.

2.    Nascimento do Menino Jesus

“Naqueles dias, apareceu um edito de César Augusto, ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado[i]. Esse recenseamento foi o primeiro enquanto Quirino era governador da Síria. E todos iam se alistar, cada um na sua cidade.[ii] Também José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, para a Judéia, na cidade de Davi, chamada Belém, por ser da casa e da família de Davi, para se inscrever com Maria, sua mulher, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o parto, e ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia um lugar para eles na estalagem.
Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. Eis que apareceu junto deles um anjo do Senhor,  e a glória do Senhor os envolveu com a sua luz e tiveram grande temor. Porém o anjo disse-lhes: “Não temais porque eis que vos anuncio uma boa-nova, que será de grande alegria para todo o povo. Nasceu-vos hoje na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor. Eis o sinal: Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura. Subitamente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus e dizendo:
Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade.
Depois que os anjos se retiraram deles para o céu, os  pastores diziam entre si: Vamos até Belém, vejamos o que é que lá sucedeu, e o que é que o Senhor nos manifestou. Foram a toda pressa e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. Vendo isto, tornaram conhecido o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino. Todo os que ouviram, se admiraram das coisas que lhes diziam os pastores. Maria conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração. Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito”. (Lc 2, 1-20)
São Lucas é o único que descreve tudo em detalhes. São Mateus, preocupado mais em aspectos genealógicos, fala muito pouco do nascimento de Jesus, apenas dizendo, a respeito da Virgindade de Nossa Senhora, que São José “Não a conheceu até que deu à luz um filho, e pôs-lhe o nome de Jesus” (Mt 1, 25). Ora, quem disse a São Mateus que São José “não a conheceu” a não ser a própria Nossa Senhora? “Conhecer” na linguagem bíblica quer dizer conviver maritalmente (mantendo relações sexuais), e somente a Virgem Santíssima tinha conhecimento e autoridade para mandar divulgar que foi concebida como Virgem, sem nunca haver coabitado maritalmente com São José. Ela quis com isso deixar patente que sua concepção foi obra do Espírito Santo, sem intervenção humana, que São Mateus fielmente acreditou e publicou.
Nem São Marcos, nem São João Evangelista, narram o nascimento do Messias, preocupados em descrever apenas Sua vida pública após o batismo no Rio Jordão.
Todo o relato de São Lucas só pode ter sido feito ao Evangelista pela boca de Nossa Senhora. É o que se pode deduzir, por exemplo, quando ele escreveu no final : “Maria conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração”. Se todas “estas coisas” eram conservadas e meditadas em seu coração, quer dizer que de tudo Ela sabia, inclusive das aparições angélicas aos pastores.  Eles podem ter relatado futuramente a outras pessoas (além do que fizeram na ocasião a São José e Nossa Senhora) as aparições dos anjos; alguns de seus ouvintes, em Belém, também podem ter levado tais relatos adiante. No entanto, no momento em que o Evangelho de São Lucas foi escrito, a única testemunha viva, ou presente perante o escritor, era Nossa Senhora. Tanto mais que na época em que ocorreram tais fatos os moradores de Belém, ou da circunvizinhança, ainda não eram cristãos, o que só pode ter ocorrido quando Jesus iniciou sua vida pública.

3.    Apresentação no Templo

“Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: “Todo macho que abre o útero será consagrado ao Senhor”, e para oferecer em sacrifício, como vem dito na Lei do Senhor, “um par de rolas ou dois pombinhos”. E havia em Jerusalém um homem chamado Simeão que era justo e piedoso; ele esperava a consolação de Israel e o Espírito Santo estava nele. Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não veria a morte antes de ver o Cristo do Senhor.  Movido pelo Espírito, ele veio ao Templo, e quando os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu respeito, ele o tomou nos braços e bendisse a Deus, dizendo: “Agora, Soberano Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações, e glória de teu povo, Israel.
Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que diziam dele. Simeão abençoou-os e disse a Maria, a Mãe: “Eis que este menino foi colocado para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, , e como um sinal de contradição – e a ti, uma espada traspassará a tua alma! – para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações”.
Havia também uma profetisa chamada Ana, de idade muito avançada, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Após a virgindade, vivera sete anos com o marido, ficou viúva e chegou aos oitenta e quatro anos. Não deixava o Templo, servindo a Deus dia e noite com jejuns e orações. Como chegasse nessa mesma hora, agradecia a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém”. (Lc 2, 22-38
            Ninguém mais do que Nossa Senhora poderia ter revelado ao Evangelista estes fatos, pois era talvez a única sobrevivente no tempo em que foi escrito. Além do mais, as revelações de tais fatos são algo de muito oculto às demais pessoas. Por exemplo, o Espírito Santo haver revelado a Simeão o que deveria ocorrer é algo que o mesmo deve ter contado a Ela, mas ele não era mais vivo no tempo de São Lucas – não foi ele, portanto, que revelou isso. Os demais fatos ocorridos no momento não poderiam ter sido revelados por São José, Simeão ou Ana, pois foram escritos quase um século depois. Sobre o falecimento de São José, sabe-se que ocorreu pouco antes da Paixão e Morte de Cristo. Os outros dois testemunhos, porém, eram por demais idosos para viver até à época em que o Evangelho foi escrito.
Em todo caso, é provável que tais fatos tenham causado  tal repercussão na cidade que muitos o tenham ouvido contar, e ao lembrar-se deles, o narraram a São Lucas. Mas, o Evangelista só daria crédito a testemunhos que os viram ou deles participaram, como foi o caso de Nossa Senhora.

4.    Adoração dos Magos, matança dos inocentes, fuga para o Egito

Quem o relata é somente São Mateus:
“Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, no mesmo tempo do rei Herodes, eis que vieram magos do oriente a Jerusalém, perguntando: “Onde está o rei dos hebreus recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo”. Ouvindo isso, o rei Herodes ficou alarmado e com ele toda Jerusalém. E, convocando todos os chefes dos sacerdotes e os escribas do povo, procurou saber deles onde havia de nascer o Cristo. Eles responderam: Em Belém da Judéia, pois é isto que foi escrito pelo profeta: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és o menor entre os clãs de Judá, pois de ti sairá um chefe que apascentará Israel, o meu povo”.
Então Herodes mandou chamar secretamente os magos e procurou certificar-se com eles a respeito do tempo em que a estrela tinha aparecido. E, enviando-os a Belém, disse-lhes: “Ide e procurar obter informações exatas a respeito do menino e, ao encontrá-lo, avisai-me, para que também eu vá homenageá-lo”. A essas palavras do rei, eles partiram. E eis que a estrela que tinham visto ao seu surgir ia à frente deles até que parou sobre o lugar onde se encontrava o menino. Eles, revendo a estrela, alegraram-se imensamente. Ao entrar na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o homenagearam. Em seguida, abriram seus cofres e ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra. Avisados em sonho que não voltassem a Herodes, regressaram por outro caminho para a sua região.
Após sua partida, eis que o Anjo do Senhor, manifestou-se em sonho a José e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito. Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar”. Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite, e partiu para o Egito. Ali ficou até a morte de Herodes, para que se cumprisse o que disse o Senhor por meio do profeta: Do Egito chamei o meu filho”.
Então Herodes, percebendo que fora enganado pelos magos, ficou muito irritado e mandou matar, em Belém e em todo seu território, todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo de que havia se certificado com os magos. Então cumpriu-se o que fora dito pelo profeta Jeremias: “Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação: Raquel chora seus filhos e não quer consolação, porque eles já não existem”. (Mt 2, 1-18)
É evidente que ao procurar escrever tudo isso, São Mateus procurar pesquisar todos os detalhes do que ocorreu. Além de ouvir as testemunhas deve ter consultado até mesmo algum documento, como, por exemplo, o edito de Herodes. Como foram fatos públicos e notórios não faltaram testemunhas. Há detalhes, entretanto, que somente os magos, Nossa Senhora e São José  o sabiam em detalhes, como os presentes dados pelos magos, o sonho para não voltar para ver Herodes. Segue o relato falando do sonho de São José e a fuga para o Egito, dando a ideia de uma unidade de pensamento tal que mostra ter sido uma única pessoa que descreveu tais fatos. Isto é, Nossa Senhora o narrou tudo, porque Ela o sabia por conhecimento próprio ou mesmo por revelações divinas (nos casos que não foram públicos).


5.    Vida em Nazaré

São Lucas:
“Terminado de fazer tudo conforme a Lei do Senhor, voltaram à Galiléia, para Nazaré, sua cidade.
E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele (Lc , 2, 39-40) E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52)
São Mateus:
“Após sua partida, eis que o Anjo manifestou-se em sonho a José e  lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito. Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar”. Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite,e partiu para o Egito. Ali ficou até a morte de Herodes, para eu se cumprisse o que dissera o Senhor por meio do profeta: “Do Egito chamarei o meu filho”  (Mt 2, 13-15)
Quando Herodes morreu, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonho a José, no Egito, e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, pois os que buscavam tirar a vida ao menino já morreram”.  Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe e entrou na terra de Israel. Mas, ouvindo que Arquelau era rei da Judeia em lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo recebido um aviso em sonho, partiu para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno” (Mt 2, 19-23).
Sobre o que escreveu São Lucas, apenas uma coisa: quem disse a ele que a criança crescia em sabedoria, robustez e na graça de Deus? Como é que São Lucas soube disso a não ser por revelação de Nossa Senhora?
Já São Mateus, não chegou a conviver tanto com Nossa Senhora (como foi o caso de São João, seu tutor), mas seu testemunho dado no Evangelho não pode ter sido obtido senão por intermédio d’Ela. Ou então com o próprio São José, com quem pode ter tido algum colóquio pois eram contemporâneos. Quer dizer, tanto São José quanto Nossa Senhora podem ter narrados fatos da vida oculta de Jesus aos Apóstolos, mas Ela teve participação mais no início do Cristianismo, pois acompanhou os Apóstolos depois do Pentecostes. E mais provável que tenha sido Ela que mais narrou tais fatos. Notar que na fuga para o Egito, São José fugiu “durante a noite” ainda, pois não havia tempo a perder. Na volta, porém, do Egito para Israel, embora o sonho talvez tenha ocorrido à noite, não se fala nessa pressa. Houve até outro sonho, talvez a caminho, para mudar o destino final da viagem. Todos estes detalhes eram muito vivos na mente de Nossa Senhora, mas na época m que foram escritos São José não mais era vivo, podendo se deduzir que tenha sido Ela mesma que os relatou a São Mateus, ou a todos eles, sendo que este apenas recebeu  incumbência de os escrever.

6.    Jesus entre os doutores da Lei

“Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Quando o menino completou doze anos, segundo o costume, subiram para a festa. Terminados os dias, eles voltaram, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem. Pensando que ele estivesse na caravana, andaram o caminho de um dia, e puseram-se a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. E não o encontrando, voltaram a Jerusalém à sua procura.
Três dias depois, eles o encontraram no Templo, sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e interrogando-os, e todos que o ouviam ficavam extasiados com sua inteligência e com suas respostas. Ao vê-lo, ficaram surpresos, e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos”. Ele respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”  Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera.  Desceu então com eles para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos estes fatos em seu coração”. (Lc 2,41-51)
Quando o Evangelista diz que “seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa” dá a entender que iam sem Jesus até este completar 12 anos. No final, São Lucas dá também a entender que tudo isso lhe foi revelado por Nossa Senhora quando afirmou que Ela “conservava a lembrança de todos estes fatos em seu coração”. A respeito da exigência dos 12 anos para ir à peregrinação pascoal anual, diz Catharina de Emmerich que era esta exigida pelos doutores da Lei para se comprovar se o jovem estava preparado ou teria aprendido as lições dadas por seu mestre, era como se fosse a idade exigida para ser examinado pelos que ensinavam no Templo em Jerusalém e não pelas sinagogas espalhadas pelo resto da nação. Havia também outra: para ser rabino deveria o homem haver completado 30 anos, idade com que Jesus iniciou sua vida pública exatamente por causa dessa exigência legal.

Como eram, ou deveriam ser, os ensinamentos dos rabinos daquele tempo?    “Sua função, - comenta Thomas Walsh - sob a direção dos Sumos Sacerdotes, na teocracia judaica, era explicar e conservar vivo e puro o conhecimento e amor do Deus único e verdadeiro. E para tornar melhor este serviço inestimável a Israel e ao mundo, os rabinos haviam estabelecido por toda a Palestina, quer nas sinagogas, quer, se fosse preciso, ao ar livre, notável sistema de livres escolas públicas, onde todas as crianças de seis ou mais anos eram obrigadas a estudar. Era ilegal, de fato, para uma família viver onde não houvesse escola. Ensinavam os rabinos que tal lugar merecia ser destruído ou excomungado...” [iii]

Pelo que diz William Thomas Walsh, seria natural que o próprio Nosso Senhor tivesse freqüentado tais escolas, pois, apesar de ser Deus, Ele quis se sujeitar às leis da natureza humana em tudo. Segundo São Lucas, “o Menino crescia e se fortificava cheio de sabedoria, e a graça de Deus era com ele” (Lc 2, 40). Podemos até imaginar que tenha sido apresentado como Menino prodígio aos doutores de Jerusalém por seu mestre de Nazaré, ocasionando o fato extraordinário de ser encontrado pregando entre os doutores da lei. Ou então o que diz a vidente Beata Anna Catharina Emmerich em suas visões:

“Nosso Senhor se havia dirigido, com alguns rapazes, a duas escolas da cidade; no primeiro dia, a uma; no segundo, a outra. No terceiro dia, fora de manhã a uma terceira escola, e de tarde ao Templo, onde o acharam os pais. Jesus pôs os doutores e rabinos de todas as escolas em tal estado de admiração e embaraço, pelas suas perguntas e respostas, que resolveram humilhar o Menino, por intermédio dos rabinos mais doutos, na tarde do terceiro dia, em auditório público, interrogando-o sobre diversas matérias. Vi Jesus sentado numa cadeira grande, rodeado de numerosos hebreus velhos, vestidos como sacerdotes. Escutavam atentamente e pareciam estarem furiosos. Como o Senhor houvesse alegado, nas escolas, muitos exemplos da natureza, das artes e ciências, para demonstrar as suas respostas, reuniram-se conhecedores de todas essas matérias”.[iv]  Ao final, narra a Beata, os doutores e sacerdotes ficaram furiosos porque não conseguiam rebater os argumentos do Menino Jesus.

É claro que naquela pregação Nosso Senhor não se apresentara como o Messias, pois não havia chegado ainda a hora de sua atuação pública: Ele apenas indicava para aqueles doutores, dentre os quais provavelmente encontrava-se Hilel, Shammai ou até mesmo os seus futuros verdugos Anás e Caifás, qual a verdadeira interpretação da Lei e provavelmente quais as principais características do Messias, diferente daquilo que eles criam. Causou entre os doutores uma sensação de maravilhamento, mas ainda não de fascínio, pois São Lucas diz que “todos os que ouviam, estavam maravilhados de sua sabedoria e das suas respostas”, mas não consta que tenha conseguido algum discípulo entre eles.  Também não consta, embora seja verídico,  que já desde este tempo O tenham odiado por isso.

Enquanto os sacerdotes tinham funções rituais, os escribas se ocupavam com o estudo das escrituras e da parte doutrinária. No tempo de Nosso Senhor havia duas escolas de escribas, a do liberal Hillel e a de um radical chamado Shammai, ambos oriundos da Babilônia. São Nicodemos e Gamaliel eram também escribas, mas certamente de pouca importância entre eles, pelo contrário teriam sido assassinados por discordarem da corrente babilônica. Segundo William Thomas Walsh, quando Herodes e seu grupo assumiram o poder em Jerusalém mandaram matar todos os sacerdotes, escribas e doutores que se lhes opunham, inclusive o Sumo Sacerdote, num total de mais de 40 pessoas.

Os hebreus atuais (conforme Frank Moore Cross[v] ) admiram Hillel (que veio também da Babilônia no tempo de Herodes, “o grande”) como a “mais criativa inteligência de seu tempo” [vi]

Segundo alguns autores, São Gamaliel era neto de Hilel e teria sido mestre de São Paulo, sendo considerado um dos 7 grandes rabinos de Israel. Conforme uma tradição tornou-se cristão, juntamente com outros hebreus, e defendeu os primeiros apóstolos perante o Sinédrio (At 5,34 e 6,7).

Hilel fez escola. Um seu discípulo, Gamaliel II, presidiu uma reunião de escribas, já na diáspora, no ano 90 de nossa Era, ocasião em que foi ressuscitada a instituição do Sinédrio, evidentemente que inteiramente adaptado ao novo judaísmo. Logo depois surgiu o judaísmo moderno, que se originou no judaísmo rabínico, o sistema religioso dos rabinos do Mishná (compilado por volta do século II) e do Talmude (compilado entre os séculos V e VI).

7.    Batismo de Jesus no Rio Jordão

São Mateus:
“Neste tempo[vii], veio Jesus da Galileia ao Jordão até João, a fim de ser batizado por ele. Mas João tentava dissuadi-lo dizendo: “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?” Jesus, porém, respondeu-lhe: “Deixa estar por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça”. E João consentiu.
Batizado, Jesus subiu imediatamente da água e logo os céus se abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda dos céus dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”.  (Mt 3, 13-17)
São Marcos:
“Aconteceu que naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no rio Jordão.
E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”. (Mc 1, 9-11).
São Lucas:
“Ora, tendo o povo recebido o batismo, e no momento em que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corporal, como pomba. E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho: eu, hoje, te gerei!” (Lc 3, 21-22).
São João:
“No dia seguinte, João viu Jesus, que vinha ter com ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, eis o que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu disse: Depois de mim vem um homem que me foi preferido, porque era antes de mim. Eu não o conhecia, mas, para que ele fosse manifestado a Israel, vim batizar com água. E João deu testemunho, dizendo: “Vi o Espírito descer, como uma pomba vinda do céu, e permanecer sobre ele. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com água disse-me: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é o que batiza com o Espírito Santo”. Eu vi e dou testemunho que ele é o Eleito de Deus”  (Jo 1, 29-34)
Segundo a Lei mosaica, 30 anos era considerada a idade perfeita, daí o motivo de Nosso Senhor ter escolhido este tempo para ser batizado por São João. José do Egito tinha também trinta anos quando assumiu o governo do Egito; a mesma idade tinha David quando começou a reinar, e o Profeta Ezequiel quando começou a profetizar. Só podia ser escriba ou “Mestre” (Rabi)  em Israel após completar a idade considerada perfeita que era a de trinta anos.
Aqui não se pode dizer que Nossa Senhora tenha sido a única a testemunhar tal fato aos Evangelistas, os quais, por sinal, todos eles relataram-no cada qual á sua maneira. Alguém pode contestar que o próprio São João Batista o relatou, pois haviam alguns apóstolos que eram seus discípulos. No entanto, o testemunho mais preciso foi na época em que foram escritos e não quando ocorreram. E nessa época São João Batista já não mais vivia.
E o que foi feito dos discípulos de São João? Qual deles se converteu? Qual se tornou discípulo ou mesmo Apóstolo de Nosso Senhor? Os quatro primeiros Apóstolos foram discípulos de São João: Santo André, São Pedro, filhos de Jonas, e São Tiago e São João Evangelista, filhos de Zebedeu. Alguns não necessitaram de nenhuma explicação da Doutrina do Messias: apenas Nosso Senhor disse-lhes “segui-me”, e eles o seguiram sem mais. Estavam convenientemente preparados por São João Batista para seguirem o verdadeiro Messias. Eram eles aqueles que iriam atuar na opinião pública a fim de que Jesus Cristo fosse mais facilmente aceito pelo povo.  Sendo São João Batista tão popular e querido pelo povo como Profeta, era muito prestigioso ter os próprios discípulos dele como os primeiros seguidores. Alguns viram com Jesus Cristo aqueles mesmos que dias antes andavam com São João.
De outro lado, o batismo de Jesus foi presenciado por inúmeras pessoas, com exceção, é claro, da manifestação divina em forma de pomba e falando, só vista e ouvida pelo próprio Precursor. Então, se São João Batista relatou algo para os Evangelistas foi apenas aquilo que ele próprio ouvira e vira. O resto foi presenciado por muita gente. Mas, uma coisa é ser testemunha ocular e presencial do fato e outra é consignar o que viu num documento escrito, como é o caso do Evangelho.
E Nossa Senhora não estava também lá? Algum dos Evangelistas estaria ali presente, o próprio São João Evangelista? Não se sabe, mas é provável que sim. O certo é que São João Batista foi logo preso e morto. É claro que neste meio tempo ele pode ter relatado tais detalhes a algum de seus discípulos, alguns dos quais seguiram a Jesus e se tornaram Apóstolos. Então, poderemos muito bem conjecturar que a narração tenha reunido o depoimento de várias testemunhas, sem deixar de considerar a da Santíssima Virgem Maria, talvez a de maior importância por ser a Mãe de Jesus.

8.    Tentação de Jesus

São Mateus:
“Então Jesus foi levado pelo Espírito para o deserto, para ser tentado pelo diabo. Por quarenta dias e quarenta noite esteve jejuando. Depois teve fome. Então, aproximando-se o tentador, disse-lhe: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães”. Mas Jesus respondeu: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”.
Então o Diabo o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra”.
Respondeu-lhe Jesus: “Também escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus”.
Tornou o diabo a levá-lo, agora para um monte muito alto. E mostrou-lhe todos os reinos do mundo com seu esplendor, e disse-lhe: “Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares”.
Aí Jesus lhe disse: “Vai-te Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto”.
Com isso, o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e puseram-se a servi-lo”  (Mt 4, 1-11).
São Marcos:
“E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto por quarenta dias, sendo tentado por Satanás; e vivia entre as feras, e os anjos o serviam” (Mc 1, 12-13).
São Lucas:
“Jesus, pleno do Espírito Santo, voltou ao Jordão; era conduzido pelo Espírito através do deserto durante quarenta dias e tentado pelo diabo. Nada comeu nesses dias e, passado esse tempo, teve fome. Disse-lhe, então, o diabo: “Se és filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão”. Replicou-lhe Jesus: “Não só de pão vive o homem”.
Conduziu-o depois a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a seu respeito, para que te guardem. E ainda: E eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra”.
Mas, Jesus respondeu-lhe: “Foi dito: não tentarás ao Senhor, teu Deus”.
O diabo, levando-o para mais alto, mostrou-lhe num instante todos os reinos da terra, e disse-lhe: “Eu te darei todo este poder com a glória destes reinos, porque ela me foi entregue e eu a dou a quem o quiser”. Por isso, se te prostrares diante de mim, toda ela será tua”. Replicou-lhe Jesus: “Está escrito: adorarás ao Senhor teu Deus, e só a Ele prestarás culto”.
Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno”  (Lc 4, 1-13).
Quem presenciou tais fatos se Jesus Cristo foi sozinho para jejuar no deserto? Ele mesmo relatou aos Apóstolos o que ocorreu naquele momento? Provavelmente, não, pois Ele não gostava de falar de Si mesmo a seus discípulos e apóstolos. Quando Nosso Senhor começou sua vida pública, não o fez falando de Si mesmo. Este trabalho competiu a São João Batista. Afirmou-o Ele próprio: “Se eu dou testemunho de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro. Outro é o que dá testemunho de mim; e eu sei que é verdadeiro o testemunho que ele dá de mim. Vós enviastes (mensageiros) a João, e ele deu testemunho da verdade. (Jo 5, 31-33). Portanto, Ele mesmo não teria narrado tais fatos aos Evangelistas, deixando essa tarefa a Nossa Senhora, quando chegasse a ocasião oportuna, isto é, na hora de escrever o Evangelho.
O mais provável é que Nosso Senhor tenha narrado tudo a Nossa Senhora em suas intimidades com Ela, São José já tinha falecido quando isso ocorreu, sendo Ela, portanto, a única testemunha auditiva (não viu, mas ouviu tais relatos de viva voz do próprio Filho d’Ela), ou então, através de visões, permitidas por Deus para que Ela acompanhasse seu Filho com mais precisão e habitualidade aonde fosse.
Satanás não tinha certeza de que Jesus Cristo era Deus, e por isso o tentou. Esperto, usou de três fases em sua tentação, até atingir o objetivo final, que era pedir para ser adorado, com isso tentando fundar a sua própria igreja, seu corpo místico: na primeira fase tentou a fraqueza humana material, alegando o problema da fome para pedir que Jesus fizesse um milagre; na segunda já adiantou e tentou o orgulho de Jesus, pedindo que se jogasse de cima do Templo para que os anjos o amparasse; finalmente, veio a terceira e última fase que foi a tentação do poder,possuir todos os reinos da terra em troca de adorá-lo. Caso obtivesse êxito, estaria dominando um ser humano altamente capacitado e poderoso para, juntos, fundar a igreja satânica, que já estava mais ou menos existindo entre os hebreus, mas, sem ter um fundador humano com aqueles dons de atração e fascínio.
Nossa Senhora poderia não estar presente a tais episódios em pessoa, mas, provavelmente o estava em espírito, já que vivia em constante oração e união com o Espírito Santo e os Santos Anjos. Provavelmente presenciou tudo isso por visões, tendo rezado por Jesus e, no fim, solicitado aos anjos que o servissem. Que tipo de serviços os anjos teriam prestado? Já que Nosso Senhor não havia cedido à tentação de se alimentar e quebrar o jejum, os anjos devem tê-lo servido dando-lhe conforto e força espiritual, da mesma forma que no Monte das Oliveiras em sua Paixão.
Como disse São Lucas (Lc 2,51), Nossa Senhora guardava todos estes fatos em coração, revelando-os depois a fim de glorificar o Seu Filho.

9.    O milagre das bodas de Caná

“Três dias depois, celebravam-se umas bodas em Caná da Galiléia e encontrava-se lá a mãe de Jesus. Foi convidado também Jesus com seus discípulos para as bodas. Faltando o vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Não têm vinho. Jesus disse-lhe: Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não chegou a minha hora. Disse sua mãe aos que serviam: Fazei tudo o que ele vos disser. Ora estavam ali seis talhas de pedra, preparadas para a purificação judaica[viii], que levavam cada uma duas ou três metretas.[ix] Disse-lhes Jesus: Enchei as talhas de água. Encheram-nas até os bordos. Então disse-lhes Jesus: Tirai agora e levai ao arquitriclínio. Eles levaram. O arquitriclínio[x], logo que provou a água convertida em vinho, como não sabia donde viera (este vinho), ainda que o sabiam os serventes, porque tinham tirado a água, o arquitriclínio chamou o esposo, e disse: Todo o homem põe primeiro o bom vinho, e, quando já (os convidados) têm bebido bem, então lhes apresenta o inferior; tu, ao contrário, tiveste o bom vinho guardado até agora. Este primeiro milagre, fê-lo Jesus em Caná da Galiléis, e manifestou sua glória, e seus discípulos creram nele”. (Jo 2, 1-11).
Somente São João narra este episódio no Evangelho. Como tinha sido ele o Apóstolo a quem Nosso Senhor confiou os cuidados da Virgem Santíssima, é provável que tenha sido Ela mesma que fez o relato para que ele o escrevesse, pois morou em sua companhia durante muitos anos. Também há a hipótese do próprio São João ter presenciado o milagre, pois lá estavam alguns dos novos discípulos de Jesus. Na hora de escrever, porém, deve ter sido providencial e divino a participação d’Ela no texto.
As festas de casamento entre os hebreus eram muito concorridas e as pessoas que presenciaram o primeiro milagre de Jesus eram numerosas. Caná era uma aldeia que distava de Nazaré pouco mais de 6 km, razão porque a Sagrada Família tinha muitos amigos e parentes na localidade. Era chamada de Caná da Galiléia para distingui-la de outra Caná, da tribo de Aser, perto de Tiro.
O texto de São João, muito sucinto, não nos dá uma ideia exata de como se realizavam as festas de casamento entre os hebreus. Nem tampouco o Evangelista se detém em alguns detalhes que, ou ele considerava desnecessários ou não lhe vieram à memória no instante em que escrevia. A vidente Beata Ana Catarina de Emmerich dá mais detalhes, tendo visto em suas visões e comentado a participação de Nossa Senhora no evento e, por conseguinte, sua recordação no Evangelho.  Segundo ela, a afirmação de que “minha hora ainda não chegou”, dita por Jesus, tem vários significados: como Ele era encarregado, junto com os homens, de prover ao vinho, conforme anteriormente haviam combinado, dizia que o seu turno, sua hora, de fazê-lo ainda não havia chegado; a outra interpretação, mais ligada á sua missão, era de que não havia chegado a hora de fazer milagres e atuar na opinião pública com seu poder divino. Vejamos o que disse a Beata:
“Os alimentos foram servidos, mas começou a faltar o vinho. Jesus estava ocupado em ensinar. Quando viu, pois, a Virgem Maria, encarregada de providenciar esta parte do banquete, que o vinho estava faltando, foi até Jesus e lhe recordou que Ele havia prometido prover o vinho. Jesus, que nesse momento falava de seu Pai celestial, respondeu a Maria: “Mulher, não te preocupes; não leves cuidado e não os dê a Mim; minha hora ainda não chegou”. Estas palavras não encerram dura contestação a sua Mãe Maria. Disse “Mulher” e não Mãe porque nesse momento, como Messias e Filho de Deus, cumpria uma missão misteriosa diante dos discípulos e de todos os parentes e estava ali em sua grandeza divina. Nestes momentos em que Jesus como Verbo encarnado operava, o que é nomeado pelo que é, é mais honrado e vem a ser enfaixado em sua obra com ser chamado pelo que é, como uma dignidade e um encargo. Assim, Maria era a mulher que havia engendrado Aquele que estava ali e ao qual se recorria pelo vinho, e queria dizer que Ele era Filho de Deus mais que filho de Maria. Quando Jesus estava na cruz e Maria o chorava, disse Ele: “Mulher, eis aí teu filho”, assinalando a João. Quando Jesus disse que Ele ia pensar no vinho, Maria fez seu ofício de mediadora e de intercessora e lhe recorda a falta do vinho. O vinho que Ele queria dar era mais que o vinho em sentido natural: referia-se ao mistério do vinho que Ele ia converter em seu sangue. Por isso disse: “Minha hora ainda não chegou”, primeiro, para dar o vinho que prometi; segundo, mudando a água em vinho, e terceiro, para que mude o vinho em meu sangue. A partir deste momento Maria não se manifestou preocupada pela falta do vinho: havia rogado a seu Filho e por isto disse aos criados: “Fazei tudo o que Ele os mandar”. É o mesmo que quando a esposa de Cristo, a Igreja, pede: “Senhor, teus filhos não têm vinho”; e responde Jesus: “Igreja, não te preocupes; não percas a paz; minha hora ainda não chegou”. Como se a Igreja dissesse a seus sacerdotes: “Fazei tudo o que vos disse, pois Ele os há de ajudar”. Maria disse, pois, aos servidores que fizessem tudo quanto lhes ordenasse Jesus.[xi]
Tratava-se, pois, de uma ordem de Maria Santíssima dada aos servidores, indicando que Ela tinha poder de influência nas famílias dos noivos.

10.  Jesus e a Samaritana

“Era preciso passar pela Samaria[xii]. Chegou, então, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto da região que Jacó tinha dado a seu filho José. Ali se achava a fonte de Jacó. Fatigado da caminhada, Jesus sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta. Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: Dai-me de beber!” Seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimento. Diz-lhe, então, a samaritana: “Como, sendo hebreu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” Porque os hebreus não se dão com os samaritanos. Jesus lhe respondeu: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz “Dá-me de beber”, tu é que lhe pedirias e ele te daria água viva!”
Ela lhe disse: “Senhor, nem sequer tens uma vasilha e o poço é profundo; de onde, pois, tiras essa água viva? És, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu esse poço, do qual ele mesmo bebeu, assim como seus filhos e seus animais?”  Jesus lhe respondeu: “Aquele que bebe desta água terá sede novamente, mas quem beber da água que lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna”. (Jo 4, 4-27)
Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha que vir aqui para tirá-la!”  Jesus disse: “Vai, chama teu marido e volta aqui”. A mulher respondeu: “Não tenho marido”. Jesus lhe disse: “Falaste bem; “não tenho marido”, pois tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido; nisso falaste a verdade”.  Disse-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és um profeta... Nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vós dizeis : é em Jerusalém que está o lugar onde é preciso adorar”.  Jesus lhe disse: “Crê, mulher, vem a hora em que nem sobre esta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos hebreus. Mas vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em  espírito e verdade”.
A mulher lhe disse: “Sei que vem um Messias (que se chama Cristo). Quando vier, nos anunciará tudo”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que falo contigo”.
Naquele instante chegaram os seus discípulos e admiraram-se de que falasse com uma mulher; nenhum deles, porém, lhe perguntou; “Que procuras?” ou “O que falas com ela?’
A mulher, então, deixou seu cântaro e correu à cidade, dizendo a todos: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que fiz. Não seria ele o Cristo?”  Eles saíram da cidade e foram ao seu encontro.
Enquanto isso, os discípulos rogavam-lhe: “Rabi, come!”  Ele, porém, lhes disse: “Tenho para comer um alimento que não conheceis”. Os discípulos se perguntavam uns aos outros: “Por acaso alguém lhe teria trazido algo para comer?” Jesus lhes disse: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra. Não dizeis: Ainda quatro meses e chegará a colheita? Pois bem, eu vos digo: Erguei vossos olhos e vede os campos: estão brancos para a colheita. Já o ceifeiro recebe o seu salário e recolhe fruto para a vida eterna, para que o semeador se alegre  juntamente com o ceifeiro. Aqui, pois, se verifica o provérbio: “um é o que semeia, outro o que ceifa”. Eu vos enviei a ceifar onde não trabalhastes; outros trabalharam e vós entrastes no trabalho deles”.
Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher que dava testemunho: “Ele me disse tudo o que fiz”. Por isso, os samaritanos vieram até ele, pedindo que permanecesse com eles. E ele  ficou ali dois dias. Bem mais numerosos foram os que creram por causa da palavra dele e diziam à mulher: “Já não é por causa do que tu falaste que cremos. Nós próprios o ouvimos, e sabemos que esse é verdadeiramente o salvador do mundo”. (Jo 4, 4-42)

Alguns dias depois do início de sua vida pública, Jesus dá uma demonstração de contrariedade à opinião dominante: o encontro com a samaritana. Os fariseus souberam, não sem irritação, que o Profeta de Nazaré substituía nas margens do Jordão ao Profeta João Batista, prisioneiro de Herodes, e contava mais discípulos que o próprio São João. E cedendo à sua baixa inveja, conjuravam secretamente os escribas de Jerusalém contra a vida do Salvador.  Numa de suas viagens, Nosso Senhor resolveu passar pela Samaria, região evitada pelos hebreus. Quando alguém tinha de ir de Judá para a Galiléia, geralmente seguia outros caminhos mais longos para evitar que se passasse pela Samaria, sendo que por ela era mais perto. Isto o faziam porque a Samaria havia sido o berço do cisma religioso que há mil anos dividia a religião hebraica e lá haviam se instalado vários povos pagãos e indignos de serem aceitos em Jerusalém. A Samaritana procura discutir com Nosso Senhor sobre o problema religioso então existente entre eles e os hebreus quando disse: “Nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vós dizeis : é em Jerusalém que está o lugar onde é preciso adorar”. Fugindo da questão regional e passional, Nosso Senhor responde :“Crê, mulher, vem a hora em que nem sobre esta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos hebreus”.
Era tal o preconceito religioso reinante que a mulher a quem Nosso Senhor pediu água indagou: “Como! Tu és hebreu e pedes-me de beber a mim que sou samaritana! Não te lembras que os hebreus  não querem nada com os samaritanos?”  O diálogo entre Ele e a mulher foi algo de fenomenal, a ponto de haver convertido não somente ela mas seu povo. Ali Nosso Senhor não realizou nenhum milagre sobre a  natureza material mas somente sobre a alma d’Ela. Tratava-se de uma pecadora, de quem Nosso Senhor anteviu a vida errada do passado. Convertida, foi incontinente até seu povo anunciar a Boa Nova, atraindo multidão para ouvir o Messias.
Os Apóstolos não estavam com Jesus quando este conversou com a Samaritana, pois tinham ido à cidade comprar mantimentos. Assim, a única testemunha do fato (a conversa entre ela e Jesus) é a própria Samaritana, que foi escrito nos Evangelhos unicamente por São João, provavelmente colhido de viva voz de Nossa Senhora ou da própria Samaritana, que deve ter-se juntado à santas mulheres que A acompanhavam.  Os Apóstolos chegaram no final do diálogo (Jo 4, 27), mas não deram importância ao fato. É provável que na época em que São João escreveu seu Evangelho, inclusive morando longe dali, a Samaritana não mais fosse viva. Daí concluindo-se que a testemunha mais precisa de tais fatos tenha sido Nossa Senhora, que não o presenciou mas dele “guardava tudo em seu coração”.

NOTAS



[i] Moisés foi o primeiro na História a instituir o censo populacional. E para registrar toda a população que com ele andava pelos desertos mandou escrever o livro chamado Números. No primeiro censo, ordenado por Deus, foram contados os homens em condições de ir para a guerra, que tivessem mais de vinte anos (Num 1, 20-46).  Após este censo foi estabelecida uma ordem no acampamento pela qual as tribos obedecessem uma hierarquia e disposição próprias.  Depois vieram outros censos: o dos levitas, o das crianças a partir de 1 mês e de todos os adultos; depois foram contados aqueles que tinham acima de 30 anos até os 50, e que entraram para o serviço de Deus
 [ii] Os hebreus tinham em cada cidade livros onde se registravam os nomes dos membros de suas tribos, daí havendo necessidade de irem até onde se nasceu para confirmar que a pessoa ainda vivia e ser recenseado, pagando, por sua vez, o tributo aos romanos que eram seus dominadores. Os livros de Belém devem ter sido consultados por São Mateus (Mt 1, 1-16)  para se publicar as genealogias de Nossa Senhora e São José até o nascimento de Jesus Cristo, que deve ter tido seu nome incluído depois no mesmo livro..  
 [iii] “O Apóstolo São Pedro” – Thomas Walsh -  Ed. Melhoramentos - pág. 19
 [iv] Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus” – Anna Catharina Emmerich – Editora MIR – pág. 57
 [v] Professor da cadeira Hancock de Hebraico da Harvard University, é também diretor do Harvard Semitic Museum. É autor de várias obras sobre o judaísmo. Participou de estudos sobre os manuscritos do Mar Morto
 [vi] Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto” – Editora Imago - págs. 160/161.
 [vii] O Evangelista está se referindo ao tempo em que João Batista pregava, pois o que narra é como que o seguimento das profecias do Precursor em capítulos anteriores.
 [viii] Vê-se que as vasilhas não eram destinadas ao vinho, mas somente para água, evidenciando-se ainda mais o caráter milagroso da transformação ocorrida em seguida.
 [ix] Medida grega equivalente a cerca de 30 litros. Como São João escreveu seu evangelho em grego, refere-se à medida mais comum da Grécia, que talvez fosse usada também na Palestina, região que pertenceu ao  império grego por muitos anos.
 [x] Pelo prefixo “arqui” nota-se que é uma palavra também de origem grega: era o provador de vinho, o que distingue entre o vinho bom e o ruim.
 [xi] Traduzido da obra “Visiones e Revelaciones de la Ven. Ana Catalina Emmerick”, de Clemens Brentano, Bernardo E. Overberg y Guilhermo Wesener”, tomo IV – La primera pascua de Jerusalém – Editorial Surgite - págs. 34/44
 [xii] A Samaria era a região de onde se originou o cisma no tempo de Salomão. Por isso, os hebreus, quando vinham da Galiléia para a Judéia, ou vice-versa, embora tivessem que passar pela Samaria sempre o evitavam, seguindo outros caminhos mais longos. Daí a expressão do Evangelista “Era preciso passar pela Samaria...”. Os samaritanos eram menosprezados na Judéia.