terça-feira, 26 de dezembro de 2017

O MISTÉRIO DA NOITE DE NATAL







Santa Teresa Benedita da Cruz, OCD. (Edith Stein) publicou uma meditação sobre o Natal no final de seus exercícios espirituais, em 9 de junho de 1939, onde a temática principal é a dualidade de mistérios que envolveu a Encarnação do Verbo: o da própria Encarnação e o da iniquidade. Os martírios a seguir o de Cristo (Santo Estêvão e os Inocentes) dão bem uma idéia do que representava para a luta entre o bem e o mal, o nascimento do Salvador.

Eis como ela introduz o tema:

“Todos nós já sentimos essa felicidade na véspera de Natal, mesmo quando o céu e a terra ainda não se uniram. A estrela de Belém ainda é uma estrela à noite escura.  Apenas dois dias depois, a Igreja tira as roupas brancas e se veste com a cor do sangue, no quarto dia da  púrpura da tristeza.  Santo Estêvão, o Protomártir, o primeiro a seguir o Senhor no martírio e os Santos Inocentes de Belém de Judá, os filhos do peito brutalmente decapitados pelos soldados de Herodes, são o cortejo do Menino do Presépio. O que significa isto ? Onde está a alegria dos exércitos celestiais? Onde a beatitude silenciosa da véspera de Natal? Onde a paz na terra? "Paz na terra para homens de boa vontade". Mas nem todos têm boa vontade.
É por isso que o Filho do Pai Eterno teve que descer da grandeza da sua glória para a pequenez da terra, já que o mistério da iniqüidade a cobriu com as sombras da noite.
A escuridão cobriu a terra e Ele veio a nós como a luz que brilha na escuridão, mas a escuridão não a recebeu. Ele trouxe aqueles que o receberam luz e paz; paz com o Pai do céu, paz com todos os que são igualmente filhos da luz e do Pai celestial e a paz profunda e íntima do coração. Mas de nenhuma maneira a paz com os filhos das trevas. O Príncipe da paz não lhes traz paz, mas a espada. Para eles é uma pedra de tropeço, contra a qual eles colidem e batem.
Esta é uma verdade difícil e muito séria de que não devemos nos esconder com o encanto poético do Menino de Belén. O mistério da Encarnação e o mistério do mal estão intimamente unidos. À frente da luz que veio de cima, a escuridão do pecado torna-se mais escura e mais sombria. O Menino na manjedoura estende seus braços pequenos e seu sorriso parece predizer o que os lábios do homem dirão mais tarde: "Venha para mim, todos vocês cansados ​​e sobrecarregados, para que eu descanse" (Mt.11,28). Para os que ouviram o seu chamado, aos pobres pastores, a quem o brilho dos céus e a voz dos anjos lhes anunciaram as boas novas nos campos de Belém e que, no caminho, responderam a esse chamado dizendo: "Nós iremos Belém "(Lc.2,15); também para os reis que, do Extremo Oriente, seguiram com fé simples a estrela maravilhosa, para todos eles o derramamento de graça que emanava das mãos do pequeno filho foi derramado e foram "cheios de grande alegria" (Mt.2 , 10).
Essas mãos concedem e exigem ao mesmo tempo: você é sábio, deixe de lado sua sabedoria e faça-se simples como crianças; os reis, dê suas coroas e tesouros e se incline humildemente diante do Rei dos Reis e aceite sem hesitação as obras, dores e sofrimentos que seu serviço exige. De vocês, filhos, que não podem dar nada de forma voluntária, de você as mãos do Menino Jesus tomam a ternura de sua vida, quase antes de começar. Ela não poderia ser melhor empregada do que no sacrifício para o Senhor da Vida.
Siga-me! Desta forma, as mãos da Criança são expressas, assim como serão os lábios do homem (Mc 1,17). Assim falou seus lábios ao discípulo que o Senhor amou e que agora também pertence a sua comitiva. O próprio João, o mais jovem de todos, o discípulo com o coração de uma criança, seguiu-o sem perguntar onde e para o que. Ele deixou o barco de seu pai e seguiu o Senhor em todos os seus caminhos até o topo do Gólgota.
Siga-me! Estêvão fez o mesmo. Ele seguiu os passos do Senhor na luta contra o poder das trevas e contra a cegueira da incredulidade inveterada; ele finalmente deu testemunho dele com Sua palavra e com Seu sangue. Ele também o seguiu no espírito; no espírito de Amor que luta contra o pecado, mas que ama o pecador e, mesmo diante da morte, intercede diante de Deus por seus assassinos.
Estas são as figuras da luz que se ajoelham ao redor da manjedoura: os ternos filhos inocentes, os pastores fiéis, os reis humildes, Santo Estêvão, o discípulo entusiasmado e João, o apóstolo do amor. Todos seguiram o chamado do Senhor. Diante deles estende a noite fechada da incompreensível dureza do coração e da cegueira do espírito: a dos escribas, que poderia apontar com precisão para o tempo e lugar onde o Salvador do mundo deveria nascer, mas quem, no entanto, não conseguiram deduzir a partir de lá uma decisão: "Vamos a Belém" (Lc.2,15); e a do rei Herodes, que queria tirar a vida do Senhor da Vida.
Em frente à Criança reclinada na manjedoura, os espíritos estão divididos. Ele é o Rei dos Reis e Senhor sobre a vida e a morte. Ele pronuncia o seu "segue-me" e aquele que não está com ele está contra ele. Ele também nos diz e nos coloca diante da decisão entre luz e escuridão”.
  
(“El Mistério de La Nochebuena” – Edith Stein – Biblioteca de Formación para Católicos – www.alexandriae.org, págs. 3/4 )


PRECE AO MENINO JESUS







Ó fogo que sempre ardes, abrasa-me. Ó Verbo Encarnado, fizeste-vos homem para acender em nós o fogo do amor divino; como pudestes pois encontrar tanta ingratidão nos corações dos homens? Nada poupastes para vos fazer amar por eles; sacrificastes o vosso sangue e a vossa vida. Como pois resistem eles a tanta bondade? Ignoram o que fizestes por eles? Ah! Eles sabem e creem que por amor deles descestes do Céu para vos revestir da carne humana, vos sobrecarregar de suas misérias, viver entre dores e padecer uma morte ignominiosa. Como pois passam sua vida sem sequer pensar em Vós? Amam os parentes, amam os amigos, amam até os animais. Se deles recebem qualquer sinal de afeto, procuram remunerá-los; só a Vós não testemunham nem amor nem reconhecimento. Mas, ai de mim, gemendo sobre a ingratidão dos homens, acuso-me a mim mesmo de haver sido mais do que os outros culpado para convosco. Mas, a vossa bondade me encoraja. Com tanta paciência me tendes suportado, a fim de me perdoar e abrasar no vosso amor, contanto que me arrependa e Vos ame. Sim, meu Deus, quero arrepender-me e me arrependo de toda a minha alma de Vos ter ofendido; quero amar-Vos de todo o meu coração. Confesso, meu Redentor, que meu coração já não merece ser aceito por Vós, porque Vos abandonou para se apegar às criaturas; mas vejo que o quereis ainda apesar de sua indignidade; eu vo-lo consagro e vo-lo dou com toda a minha vontade. Inflamai-o pois todo inteiro de vosso santo amor e fazei que doravante não ame outra coisa fora de Vós, bondade infinita, digna dum infinito amor. Amo-Vos, meu Jesus, amo-Vos soberano Bem, amo-Vos, único amor de minha alma. Ó Maria, minha Mãe, que sois a Mãe do Belo Amor, obtende-me a graça de amar o meu Deus; é de Vós que o espero. Amém.


(SANTO AFOSO MARIA DE LIGÓRIO - “Encarnação, Nascimento e Infância do Menino Jesus” – de Santo Afonso Maria de Ligório – Coleção Clássicos da Espiritualidade Católica, págs. 17/18)

sábado, 23 de dezembro de 2017

UM CONTO DE NATAL ORIUNDO DA REVOLUÇÃO FRANCESA





O NATAL DO CHOUAN

Nas margens do Couesnon, nessa região de Fougères que, de 1793 a 1800, foi teatro da epopeia dos Chouans (camponeses do noroeste da França que se insurgiram contra a Revolução Francesa em defesa do Trono e do Altar), numa noite de inverno de 1795, um destacamento de soldados da república revolucionária seguia por um atalho bordejando a floresta. De ombros caídos, com ar aborrecido e fatigado, vergados ao peso de enorme mochila e da espingarda que levavam a tiracolo, lá iam, conduzindo um camponês que, ao cair da noite, emboscado nos juncos, fizera fogo sobre o pequeno grupo. A bala atravessara o chapéu do sargento e, fazendo ricochete, fora quebrar o cachimbo que um dos soldados fumava. Imediatamente perseguido, acossado, encurralado contra uma escarpa, o homem fora preso e desarmado. Seguia de mãos amarradas, com ar impassível e duro. Os seus pequenos olhos claros espiavam de fugida as sebes que orlavam o caminho e os atalhos tortuosos que se abriam aos lados. Dois soldados levavam enroladas nos braços as extremidades da corda que lhe apertava os pulsos.
Na encruzilhada de Servilliers,  o sargento mandou fazer alto; os homens, derreados, ensarilharam as armas, atiraram as mochilas para a erva, apanharam ramos secos, juncos e folhas, que amontoaram no meio da clareira,  fizeram uma fogueira, enquanto dois deles amarravam solidamente o camponês a uma árvore, com a corda que lhe prendia as mãos. O Chouan, com os olhos vivos e singularmente móveis, observava todos os gestos dos seus guardas. Não tremia, não dizia palavra: mas, a angústia contraía-lhe as feições – era evidente que julgava a morte próxima.
A sua ansiedade não passou desapercebida a um dos “azuis” (soldados da Revolução) que o amarravam. Era um adolescente franzino, de ar zombeteiro e vicioso. Enquanto apertava os nós, ia troçando da aflição do prisioneiro, naquela fala característica de certos bairros populares de Paris:
- Não se assuste, flor! Não é para já; ainda tens pelo menos seis horas de vida.
- Amarre-o bem, Pedrinho! Não o podemos deixar voar...
- Não se aflija, sargento Torquatus – respondeu o rapaz – havemos de o levar sem novidades ao general. Sabes, cão – continuou, dirigindo-se ao camponês,que retomara o aspecto impassível – não imagines que vais ser tratado como “ci devant” (nobres que, em geral, eram guilhotinados). A República não é rica, e há falta de guilhotinas; mas hás de ter a tua continha de bons balaços de chumbo; seis na cabeça, seis no corpo. Vai pensando nisso, meu lindo, até amanhã de manhã. Sempre te distrais...
Dito isso, Pedrinho foi sentar-se entre os camaradas, ao pé do fogo. E tirando do saco um pedaço de pão grosseiro, começou a comer tranquilamente. Quando acabou de comer o pão, Pedrinho pôs-se a limpar a espingarda. Escolheu uma bala de calibre , segurando-a delicadamente entre os dedos, disse ao camponês, que lhe seguia todos os movimentos com o olhar:
- Estás a ver, meu menino? Esta é para ti!
Introduziu-a no cano da espingarda e, a servir de bucha, meteu um papel amarrotado. Todos os homens desataram a rir, e cada um disse uma graça, ao prazer maldoso de saborear a agonia do infeliz.
- Tenho aqui uma dose igual para te servir! – gritou um.
- Vais ficar que nem uma peneira...- gracejava outro.
- Eu guardo-me para o fim: uma em cada ouvido! – gritou o sargento. E de  repente, enfurecido: - Ah! Canalha de Chouan – berrou, aproximando-se dele – se eu pudesse matar com um tiro mais de mil da tua casta!...
O camponês, silencioso, permanecia calmo sob a saraivada de ameaças. Parecia escutar um ruído longínquo, que os gritos e risadas dos soldados o impediam de ouvir. E de repente baixou a cabeça e concentrou-se: do fundo da floresta, subia no ar calmo da noite a voz de um sino, que a aragem dos bosques trazia, clara e ritmada... Quase a seguir, outro sino, mais grave, ecoou do lado oposto do horizonte, e depois mais outro, fino e melancólico, ouvindo-se lá muito longe.
Os “azuis”, surpreendidos, interrogaram-se:
- Que é isto?... por que será que estão a tocar?... Será um sinal?... Ah! Bandidos! Estão a dar o alarme!
Falavam todos ao mesmo tempo, alguns correram a pegar nas armas. O camponês levantou a cabeça e, fitando-os com os olhos claros, disse:
- E Natal.
- É... o quê?
- É Natal. Estão a tocar para a Missa da meia-noite.
Os soldados, resmungando, tornaram a sentar-se em volta da fogueira. E um silêncio caiu. Natal... A Missa da meia-noite. Essas palavras que há tanto tempo não ouviam impressionaram-nos: vinham-lhes á ideia vagas imagens de horas felizes, de ternura, de paz.
De cabeça baixa, escutavam aqueles sinos que falavam a todos uma língua esquecida. O sargento Torquatus pousou o cachimbo, cruzou os braços  fechou os olhos como um diletante que saboreia uma sinfonia. Depois, como envergonhado daquela fraqueza, voltou-se para o prisioneiro  perguntou num tom duro:
- És cá do lugar?
- Sou de Clogés, aqui perto.
- Então ainda há padres-curas lá na tua terra?
- Os “azuis” não chegaram a toda a parte, não atravessaram o Couesnon, e daquele lado ainda se vive em liberdade. Estão a ouvir? É o sino de Parigué que está a tocar agora. O outro, o mais pequeno, é o do castelo do senhor de Bois-Guy, e acolá, mais longe, é o sino de Montours. Se o vento estivesse de jeito, até se ouvia o sino grande de Landéans.
Um dos soldados, Gilles, que permanecera silencioso durante as ameaças feitas ao Chouan, ouvia agora com grande atenção e parecia particularmente tocado. Os demais, após um fugaz movimento de ternura, haviam fechado definitivamente seus corações.
Nesse instante, de todos os cantos do horizonte, subia na noite o badalar das aldeias longínquas: era uma melodia doce, cantante, harmoniosa, que ora se ampliava, ora diminuía ao sabor do vento. Gilles, de cabeça baixa, escutava. Pensava em coisas há muito esquecidas; via a igreja de sua aldeia natal, resplandecente de velas acesas, o presépio de grandes rochedos musgosos, onde brilhavam lamparinas vermelhas e azuis; ouvia subir, na memória, os alegres cantos de Natal, essas músicas que tantas gerações entoaram, ingênuas loas, tão velhas como a França, onde há pastores, flautas, estrelas e criancinhas – e que falam também de paz, de perdão, de esperança... Ele sentia degelar o coração ao bom calor dessas imagens suaves, de que andava há tanto tempo afastado.
Os sinos ao longe continuavam a tocar. Torquatus determinou que todos fossem repousar, e designou Gilles para a primeira hora de ronda. Em pouco tempo o improvisado acampamento estava montado, e os “azuis”, exaustos pelo peso daquele dia, e desejosos de esquecer o som daqueles sinos que lhes haviam trazido tantas recordações de uma infância católica e feliz, ressonavam estirados sobre mantas de dormir.
A fogueira crepitava ainda, mas com menos ardor. Só Gilles e o Chouan permaneciam acordados.O “azul” então, com cuidado, procurando não pisar nos gravetos secos que podiam estalar, aproximou-se da árvore onde, amarrado, o Chouan o olhava...o adivinhava!
- Sabes, disse o soldado quase ao ouvido do prisioneiro, na minha terra fazia-se um grande berço na igreja, punha-se um Menino Jesus lá dentro, ladeado por Nossa Senhora e São José.
E inopinadamente, acrescentou: Queres ficar livre? Eu te solto!
- Mas, e tu? Vais morrer em meu lugar? Eles te esquartejam.
- Eu fujo também. Estou farto desta Revolução à qual me levaram a aderir. Minha família sempre foi católica. Em casa, desde a infância aprendi a respeitar o Rei.
- Então vem comigo, respondeu o Chouan. – Volta à fidelidade. Eu te levarei a um padre que não fez o juramento revolucionário, para que te confesses. Defenderemos juntos Nosso Senhor Jesus Cristo e o Rei legítimo.
A essa altura, o ex-azul, com uma faca afiada cortava as cordas que prendiam o prisioneiro. Em questão de instantes ambos se embrenhavam na floresta por caminhos que só o Chouan conhecia. Os sinos já não se ouviam mais nos ares, mas nos corações daqueles dois homens eles continuavam a tocar.
Era Natal!

(Adaptação de um conto de G. Lenôtre, publicado em “Lendas de Natal”, Editora Verbo, Lisboa, 1966).





sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

MARIA E SEU DIVINO INFANTE: INSONDÁVEL UNIÃO



(COMENTÁRIOS DE DR. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)

"Coração de Maria, no qual foi formado o Sangue de Jesus, preço de nossa  Redenção . rogai por nós".

Esta jaculatória, da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, além de sua particular  unção, encerra um significado sumamente elevado e belo, que vem muito a propósito considerarmos nesta véspera de Natal

“Caro Christi, caro Mariae”

Com efeito, pelas leis comuns da reprodução da espécie, o homem traz consigo algo do sangue do pai e algo do sangue da mãe. Entretanto, o preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, bem como sua carne sacratíssima, foram exclusivamente formados de Nossa Senhora. E isto porque, em se tratando de milagrosa concepção da parte de uma Virgem, nela não interveio obra de varão. Motivo pelo qual podemos repetir o que, com inteira propriedade, afirmou Santo Agostinho: caro Christi, caro Mariae. A carne de Cristo é, de algum modo, a própria carne de Maria.
Em Nosso Senhor Jesus Cristo não havia senão o sangue da Santíssima Virgem, que Ela, com amor e comprazimento indizíveis forneceu a seu Divino Filho, o Redentor do gênero humano.

O Homem-Deus se fez escravo de Nossa Senhora

A consideração desse fato tão singular e tão maravilhoso nos ajuda a compreender melhor o que pode ter sido o período em que Nosso Senhor esteve em gestação no corpo de Maria.
Não há maior sujeição nesta terra do que a de uma criança à mãe que a carrega no seio, dando-lhe todos os elementos vitais para a constituição de sua parte física. Ora, durante nove meses consecutivos, Nosso Senhor quis pertencer inteiramente a Nossa Senhora. Jesus, o esperado das nações, o homem tão perfeito que não é simplesmente homem, mas é Homem-Deus . porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se uniu hipostaticamente à sua natureza humana . Jesus quis se fazer escravo de Maria.
E desde o instante em que o primeiro elemento do corpo d.Ele começou a existir, como era perfeito! Começou a pensar, começou a orar e, conhecendo perfeitamente de que mãe era filho, deve ter dito a Ela uma palavra de amor. Pode-se calcular qual foi essa primeira palavra de afeto e carinho d.Ele para a Santíssima Virgem, e qual foi a resposta d’Ela ao sentir uma ternura que Lhe vinha do Filho-Deus?
Que terá Ela respondido a Jesus? Meu Deus? Ou Lhe terá chamado meu Filho.? Ou, ainda, com maior desvelo e solicitude, tê-Lo-á agradado dizendo “Filhinho”?
Quanta riqueza de alma é preciso ter para responder adequadamente a esse primeiro carinho do Verbo Encarnado! Que noção dos matizes e das situações! Que exímia e completa disponibilidade de alma para corresponder a tudo perfeitamente, e oferecer a Ele esta premissa incomparável: o ato de amor inicial que o gênero humano Lhe tributava!

Crescente e insondável união

Além disso, quantas e quão elevadas disposições de alma Nossa Senhora deve ter  sentido, quando notava o Filho mexer-se dentro d'Ela? Nesses momentos, por certo Lhe vinham pensamentos como este: Deus se move em Mim! Aquele a quem o Céu e a terra não puderam conter, está no meu claustro, porque Deus assim o quis. Ei-Lo que se move em Mim delicadamente, amorosamente, nobremente, com uma movimentação cheia de símbolos e de mistérios. Ouço, sinto e rezo, porque são mensagens para Eu compreender, são comunicações para Eu entender...
Oh recolhimento! Oh oração! Oh prenúncio do que deveriam ser ao longo dos séculos as almas eucarísticas que têm a felicidade sem nome de, a cada dia, por alguns instantes ter no seu próprio peito a Nosso Senhor Jesus Cristo! Oh maravilha!
E assim como o Santíssimo Sacramento comunica suas graças e se une às almas que se lhe tornam sacrários vivos, tudo indica que, pelas leis da reciprocidade, à medida que a Santíssima Virgem ia dando de seu próprio corpo a Nosso Senhor, Ele como que retribuía, conferindo-Lhe seu espírito. Nossa Senhora ia crescendo, pois, em união com Ele de modo insondável. De tal modo que, quando a obra puríssima das entranhas d’Ela chegou a seu termo e se encontrava prestes a nascer na noite de Natal, o vínculo entre ambos havia atingido um ápice inconcebível. Ela estava pronta para ser, em todos os sentidos da palavra, a Mãe do Redentor.

Diálogo inimaginável

O longo período de indizível e misterioso convívio cessa. Os Anjos se rejubilam e cantam nos Céus. Numa gruta dos arredores de Belém, Jesus vem ao mundo.
Nosso espírito se sente pequeno, ao procurarmos imaginar o embevecimento de Nossa Senhora ao ver a face do Menino Jesus, e o arroubo que sentiu, quando recebeu d.Ele o primeiro agrado externo... Quando O viu voltar-se para São José e manifestar afeto também a ele. Quando, percebendo que Jesus sentia fome, compreendeu que Lhe competia, com seu leite indizivelmente precioso, saciar o Filho de Deus. Quando, ao vê-Lo passar frio e incômodo na manjedoura, se desdobrou em mil cuidados, para melhor agasalhá-Lo e para Lhe aumentar o conforto no rude tabuleiro que lhe servia de berço. E quando, ao sentir o bafo dos animais que O aqueciam, disse-Lhe com inexcedível amor:
“Meu Deus, tão pouco para Quem é tanto”!
E quando o Menino, sem proferir palavras, respondeu-Lhe no fundo da alma: “O que é pouco para Mim, quando tenho a Vós?” Quem pode imaginar semelhante diálogo?!

Somente por meio de Maria chegamos a seu Divino Filho

Pode-se notar, por essas considerações, como a união de almas entre o Menino Jesus e Nossa Senhora é estritamente insondável para a mente humana.
Entretanto, essa mesma insondabilidade nos faz compreender melhor o papel da Santíssima Virgem como intercessora e medianeira; deve, pois, arraigar-se ainda mais em nossas almas a convicção de que, para nos aproximarmos do Divino Infante, é indispensável achegarmo-nos antes a Nossa Senhora. Ficarmos junto d’Ela, amando-A de todo o coração, é a forma mais segura e acertada de estarmos junto de Deus, porque Deus está sumamente próximo de sua Mãe, tanto quanto Ele o possa estar de uma criatura.
Nossa Senhora é a Porta do Céu, a Arca da Aliança. E assim como aquele Menino veio a nós por meio de Maria, assim também somente podemos chegar a Ele por meio d’Ela.

(Extraído da  revista “Dr. Plínio”, nº 21, dezembro de 1999)






segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

DIANTE DO MENINO-DEUS, A MATERNAL ADMIRAÇÃO DE NOSSA SENHORA



(COMENTÁRIOS DE DOUTOR PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)


Nada mais oportuno, em torno do santo nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, do que considerarmos o afeto, o amor e a admiração indizíveis de Maria, a Mãe celeste, para com seu Filho único e incomparável.
Embora sabendo-se o ápice e a mais eleita de todas as meras criaturas, Nossa  Senhora é também modelo de humildade, e tem pleno conhecimento da infinita  distância que A separa de seu Criador. Trata-se, portanto, de uma humildade  teocêntrica, isto é, mais ainda do que a sua condição limitada de ser humano, tem Ela em vista a inabarcável grandeza de Deus.
Tomando em conta essa perfeitíssima disposição de alma, é compreensível que, no sublime e augusto momento em que a Virgem Mãe trouxe ao mundo o Divino Salvador, tenha Ela, em primeiro lugar, manifestado todo o respeito, toda a admiração e toda a adoração que Ele merece. E somente num movimento posterior passasse a externar seu incomensurável amor pelo Menino Jesus. Há nisso uma ordenação lógica de sentimentos e atitudes. De fato, quando queremos muito bem a alguém, devemos começar por admirá-lo, porque a admiração é o fundamento do amor.
Ora, no caso concreto da Santíssima Virgem, tinha Ela para amar Aquele que, enquanto Homem-Deus, é o mais admirável ser da Criação, hipostaticamente unido à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. E Maria sabia, por revelação divina, que o fruto gerado em suas entranhas era Este que se encontra acima de tudo, o Verbo Encarnado. Havia, portanto, para essa admiração e esse amor, razões que excediam o fato de o Filho recém-nascido ser sumamente belo e gracioso. Então, o primeiro pensamento d’Ela é para Deus, no que Ele tem de magnificente: .Tão fraco, tão pequenino, entretanto o Altíssimo, na sua infinita grandeza, na sua incomensurável admirabilidade, aí está!.
Em seguida, Ela mede a profundidade dessa União Hipostática, e a glória que tal União faz derivar, a torrentes solares, sobre a natureza humana de seu Filho. Depois, começa a analisar o Menino, mas com todo o afeto de mãe: contempla aqueles olhos nos quais reluz o brilho da luz divina; toca-lhe os tenros braços, os pezinhos, e vai  assim manifestando para com Jesus recém-nascido sua insondável ternura materna.
Quando qualquer mãe se enternece com seu bebê, no subconsciente dela está a seguinte reflexão: .Eis aqui um novo homem (ou uma nova mulher). Que grandeza há numa criatura humana, chamada a levar uma vida de extensa duração, a cumprir  deveres graves, os deveres da paternidade, os da maternidade, mas, sobretudo, os deveres para com Deus, a ser boa filha ou bom filho da Igreja Católica, dominar as suas paixões, santificar-se e ir para o Céu por toda a eternidade! Esse como que projeto de anjo que está aqui, que coisa extraordinária! E como eu fico enternecida vendo como algo tão grande cabe em tão pouco!.
Depois, quando ela considera que aquele é seu próprio filho, ainda aí entra uma ternura muito grande, mas também uma imensa admiração: .Que mistério admirável pelo qual eu, criatura humana, gerei outra criatura humana! Que coisa misteriosa, profunda! Este menino nasceu de mim, foi alimentado por mim, formou-se no meu claustro, eu o liberei para a vida e aqui está tão pequenino, tão minúsculo e, entretanto, para ele existir, realizou-se um vasto mistério, semeado de aspectos fascinantes..
De um lado, o belíssimo prodígio pelo qual de um ser humano nasce novo ser humano. Mas, depois, essa outra misteriosa maravilha: o instante no qual Deus, debruçando-se sobre aquele embrião que começa a se formar, infunde nele uma alma. E lhe dá algo que a mãe não gerou, que não veio do ato nupcial, e sim da infinita bondade do Criador. Mais ainda. Por ser espiritual, essa alma confere àquele embrião uma participação na natureza dos próprios anjos. Que coisa magnífica!

Horizontes que se abrem para a nova vida

Assim, na ternura de uma mãe verdadeira, da mãe bem orientada para com seu filho, transparece a consciência que ela tem de toda essa série de mistérios que se  formaram nela: a carne da carne, o sangue do sangue, um .outro eu mesmo. dela, ao qual se somou a obra divina, tão imensamente maior, soprando no novo ser uma alma imortal.
E para essa alma, que horizontes se abrem, ainda que consideremos apenas sua vida nesta terra! Horizontes de luta, de batalha, de abnegação, como também de alegria, de vitória, de momentos em que se tem a impressão de estar tocando o Céu com as mãos. Mas ainda, horizontes de tristeza, de abatimento, de desfalecimento, em que se tem de pedir a Deus graças para continuar a percorrer o caminho.
Tal reflexão faz surgir aos nossos olhos outro aspecto do nascimento de uma criança. É que, segundo a Igreja, a vida de toda criatura humana é comparável ao combate de um gladiador. Este, antes de entrar na arena, prepara-se com exercícios, fricções, óleos, etc., a fim de que toda a sua musculatura esteja em condições de enfrentar as feras ou outros lutadores. Em seguida, munindo-se de suas armas e escudo, penetra na cena da batalha. Quem, antes de ele ser chamado para a imensa  contenda, o visse sentado, tranqüilo, preparado para entrar na arena, não poderia deixar de admirá-lo.
Ora, assim é uma criança que entra no mundo. Ela está no pórtico de uma imensa batalha. E seja ela menina, seja menino, poder á a mãe dizer: .Batalhador!  Batalhadora! Eu te admiro porque és combatente do bom combate! Teu dever é este. Uma vez que recebas o Batismo, a graça te chamará. E a partir desse momento, começará uma vida sobrenatural em ti.
Estes devem ser alguns dos movimentos de afeto e admiração de uma mãe em relação a seu filho recém-nascido.

Nossa Senhora em face do Menino Jesus

Se assim ocorre com as mães comuns, que dizer da Mãe das mães, Maria Santíssima, diante do Menino Jesus?
Sem dúvida, a alma d’Ela transbordava de admiração e de carinho para com seu Divino Filho. Ela tinha o conhecimento do mistério da Encarnação do Verbo, e bem sabia que aquele Ser, gerado em suas imaculadas entranhas por obra do Espírito Santo, representava a remissão do gênero humano. Ele era seu Filho, seu Deus, seu Redentor! E como tal Ela O amava e venerava na Gruta de Belém.
Só na Gruta de Belém? Evidentemente, não.
Junto ao presépio, existe já todo o desenvolvimento de uma história. Da história de ambos, Jesus e Maria. Do período que Ele passou recolhido ao lado d’Ela e de São José. Do tempo em que, após a morte do glorioso Patriarca, Ele prestava assistência à sua Mãe Santíssima, num sublime convívio que extasiava os Anjos. Podemos  imaginar os dois, sozinhos na casa em Nazaré, à noite, após uma refeição que fora sóbria mas cheia de agrado, porque estavam juntos, olhavam-se e se queriam bem. Que indizível felicidade o estarem unidos, conversarem, trocarem pensamentos e desejos de alma!
Depois, em certas horas, enquanto Jesus executava seus trabalhos de carpinteiro, Nossa Senhora meditava no que aconteceria com Eles; vislumbrava aquele momento em que os Anjos haveriam de elevar aos ares a santa casa de Nazaré e transportá-la para um lugar chamado Loreto. E que ali um incontável número de peregrinos, provavelmente até o fim do mundo, iria venerar as paredes sagradas onde ecoaram essas conversas; onde se ouviram os risos cândidos e cristalinos do Menino Jesus; onde se ouviu a voz grave, paterna e afetuosa de São José; onde se ouviu a voz modelada quase ao infinito como um órgão, de Nossa Senhora, exprimindo adoração, manifestando veneração, em todos os seus graus e modalidades. Em tudo isso Ela pensava.
Como pensava também nos milagres que Nosso Senhor praticaria na sua vida pública, nas almas que Ele iria conquistar, converter e salvar. Pensava em como toda essa bondade divina seria recusada pelos judeus, em como Ele teria de sofrer o  esquecimento e a covardia dos Apóstolos, a traição de Judas e a morte na Cruz.
Ela pensava em Pentecostes, na dilatação da Igreja pela bacia do Mediterrâneo e por tantos lugares aonde chegariam os discípulos de seu adorável Filho.
Com vistas proféticas, Nossa Senhora considerava o reluzimento da Santa Igreja, saída vitoriosa das perseguições e brilhando sobre a face do mundo. Ela pensou na extraordinária figura de São Bento apartando-se da sociedade decadente do fim do Império Romano, fixando-se nas grutas de Subiaco e dando início, ali, a uma vida espiritual da qual nasceriam a Idade Média e a Civilização Cristã.
Mas, Nossa Senhora via também o processo de derrocada e ruína dessa Cristandade e todos os seus desdobramentos até os dias de hoje, lançando a humanidade na grave crise moral e religiosa que a Santíssima Virgem haveria de censurar em Fátima.
E por que não imaginarmos que Nossa Senhora considerou igualmente o triunfo de seu Imaculado Coração, por Ela prometido na Cova da Iria?
E essa meditação em torno do Santo Natal estende-se na consideração também da história individual de cada um dos que participam dos nossos ideais. Do caminho que a graça percorreu nas almas de todos, os altos e baixos, as correspondências e as infidelidades, as vitórias sobre si mesmo, às vezes as derrotas, e novamente a vitória e a misericórdia de Deus.

“Não me tireis os dias na metade da minha obra

Tudo isso nós devemos considerar quando estivermos ante o presépio. E ao nos aproximarmos para venerar a maternal e enlevada figura da Santíssima Virgem, a respeitosa e protetora figura de São José, e, sobretudo, a imagem d’Aquele que é, segundo a Escritura, a pedra de escândalo que divide a História ao meio . e tudo quanto está com Ele é bom, tudo quanto é contra Ele é mau . façamos esta prece:
Eis-me aqui, Senhor Jesus Cristo, ajoelhado a vossos pés, antes de tudo para Vos agradecer.
Agradeço a vida que me destes. Agradeço o plano eterno que tínheis a respeito de mim, como de qualquer homem, um plano determinado e individual. Agradeço-Vos por terdes posto uma luta no meu caminho. Agradeço-Vos a força que me destes para resistir, para combater e para rezar.
Grato Vos sou por tudo isso, Senhor. Porém, há mais. Agradeço-Vos todos os anos de minha vida que já se foram e que se tenham passado na vossa graça. Agradeço-Vos também os anos que se foram e que não se passaram em vossa graça, porque Vós os encerrastes num determinado momento, e eu abandonei o caminho da desgraça, para entrar novamente na vossa graça.
Agradeço-Vos, ó Divino Infante, ó Menino Jesus, pelas mãos de Maria Santíssima e de São José, agradeço-Vos o momento em que eu disse .sim. ao vosso chamado e comecei a travar o bom combate por Vós.
Agradeço-Vos todo o auxílio que me destes para eu vencer os meus defeitos.
Agradeço-Vos por não Vos terdes impacientado comigo, e por haverdes me conservado vivo para que eu ainda tivesse tempo de corrigi-los.
E se uma prece eu Vos posso fazer nesta noite de Natal, Senhor Jesus, formulá-la-ei inspirado nas palavras do Salmista, que Vos disse: Não me chames na metade dos meus dias (Salmo 101). E eu Vos digo: Não me tireis os dias na metade da minha obra, e ajudai-me para que meus olhos não se cerrem pela morte, meus músculos não  percam seu vigor, minha alma não fique privada de sua força e sua agilidade, antes que eu tenha, por vosso louvor, em mim vencido todos os meus defeitos, galgado todas as alturas interiores às quais me destinastes, e que no vosso campo de batalha tenha eu, por feitos heróicos, prestado a Vós toda a glória que esperáveis de mim quando me criastes. Assim seja.

(Revista “Dr. Plínio”, nº 9, dezembro de 1998)


domingo, 17 de dezembro de 2017

O PRÍNCIPE DA PAZ






O Mundo Católico, e com ele, todos os povos da terra voltam-se no dia 25 de dezembro para a manjedoura de Belém, a fim de adorar, cheio de fé, o Menino que aí repousa, ao admirar um acontecimento cuja explicação em vão se procura nas leis que regem os acontecimentos humanos.
Na época em que vivemos, de ruínas materiais e catástrofes morais, o Natal surge como um ponto luminoso de esperança entre as nações que correm, tateando, inseguras, em busca de uma ordem que lhes assegure um bem-estar ainda não encontrado.
Mas, infelizmente para a maioria dos povos, o Natal não passa de um desses símbolos que exaltam as energias momentaneamente, sem lhes incutir vigor novo e duradouro!
Querem a paz, a concórdia, a felicidade, mas desejam que tudo isso lhes caia do céu, ou brote da terra, sem a menor colaboração própria. O Menino Deus há de necessariamente dar-lhes todo o bem, não tanto pela reimplantação de uma civilização baseada nos princípios que Ele veio trazer à terra, como por um encantamento que uniria inexplicavelmente todos os corações.
Esse Menino que adoramos reverentes e causa a admiração misteriosa aos que não O reconhecem senão de nome, é, sim, o “Príncipe da Paz”(Is 9, 6), que trouxe à terra, na suavidade de Sua pessoa, todo o bem, todo o amor capaz de tornar felizes o universo inteiro e mil mundos, caso existissem!
Mas essa Paz se condiciona a uma só coisa os homens e as nações devem se submeter á Sua Lei, à Seu Evangelho.
Eis a Paz que o Senhor Menino vaio trazer à terra. Paz para cuja implantação devem colaborar todos – nações e indivíduos – com sua docilidade à Lei Divina. Só estes – os homens de real bondade – gozarão da Paz que o Natal trouxe aos homens da terra. Fora disso, toda admiração pelo Menino Deus não passa de uma impiedade mais ou menos consciente, mais ou menos inconsciente. E para os ímpios não há paz.
Oxalá as desgraças que os anos acumulam sobre povos e nações os convertam para o Deus único e verdadeiro e a unidade da Fé torne perene realidade as alegrias do Santo Natal.

 (Plinio Corrêa de Oliveira - "Catolicismo" Nº 336 - Dezembro de 1978)




quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

SANTO AMBRÓSIO E A MISSÃO DA IGREJA DE CONTER OS PODERES DA TERRA




PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA 

Hoje é festa de Santo Ambrósio, bispo, Confessor e Doutor da Igreja. Lutou contra Teodósio, Imperador do Ocidente, pela liberdade da Igreja. Combateu os hereges. Conversão de Santo Agostinho. Amanhã também é festa da Imaculada Conceição de Nossa Senhora.
Santo Ambrósio era um homem de um talento enorme, famoso em toda a Cristandade do seu tempo, em todas as vastidões do Império Romano, pelos seus trabalhos, pela sua influência sobre o público, escritor fecundo, etc.
Santo Agostinho conta em suas memórias ("As Confissões") que a ele lhe deve sua conversão. Ele tinha verdadeira admiração por Santo Ambrósio.
"Não me era permitido interrogar Ambrósio sobre o que eu queria e como queria – escreve Santo Agostinho nas "Confissões" –, porque sempre tinha junto a si pessoas necessitadas. No pouquíssimo tempo em que não estava com tais pessoas, [Ambrósio] refazia o corpo com o alimento necessário, ou o espírito com a leitura. Mas, quando lia, os olhos divagavam pelas páginas e o coração penetrava-lhes o sentido, enquanto a voz e a língua descansavam. Nas muitas vezes em que me achei presente [em sua casa] – porque a ninguém era proibida a entrada, nem havia o costume de lhe anunciarem quem vinha –, sempre o via ler em silêncio e nunca doutro modo. Assentava-me e permanecia em longo silêncio – quem é que ousaria interrompê-lo no seu trabalho tão aplicado? –, afastando-me finalmente. Imaginava que, nesse curto espaço de tempo, em que, livre do bulício dos cuidados alheios, se entregava a aliviar a sua inteligência, não se queria ocupar de mais nada. Lia em silêncio, para se precaver, talvez, contra a eventualidade de lhe ser necessário explicar a qualquer discípulo, suspenso e atento, alguma passagem que se oferecesse mais obscura no livro que lia. Vinha assim a gastar mais tempo neste trabalho e a ler menos tratados do que desejaria. Ainda que a razão mais provável de ler em silêncio poderia ser para conservar a voz, que facilmente lhe enrouquecia. Mas, fosse qual fosse a intenção com que o fazia, só podia ser boa, como feita por tal homem" ("Confissões", Cap. VI).
Em outros termos, de ver Santo Ambrósio trabalhar, e de estar no ambiente criado por aquele Doutor da Igreja, Santo Agostinho sentia que aquilo fazia muito bem para sua alma. Por isso, por causa de alguns colóquios que ambos tiveram, sermões que dele ouviu e também pela leitura das obras de Santo Ambrósio, pode-se dizer que este último cooperou muito consideravelmente para o fato que talvez seja o mais importante da vida de Santo Ambrósio: haver convertido Santo Agostinho que, por si só, é um capítulo na história do mundo e da Igreja.
Os senhores vêem aí duas coisas bonitas em Santo Ambrósio:
1) O apostolado de presença. Nós insistimos tanto sobre o alcance desse apostolado. Muitas pessoas pensam que valem – para o nosso Movimento – na medida em que falam, atuam e trabalham. É claro que isso tudo é muito bom. Mas há um apostolado de presença que pode ser muito melhor do que tudo isto. E desse fato deu provas muito eloqüentes Santo Ambrósio em face de Santo Agostinho.
2) De outro lado também os senhores estão vendo a confiança na Providência divina. Se Santo Ambrósio fosse intemperante, teria interrompido todos os seus trabalhos e passado a dedicar-se quase que exclusivamente em fazer apostolado com Santo Agostinho, e depois iria trabalhar desordenadamente, em outra hora... Ou pior: minguaria seus livros, faria uns livrinhos superficiais, por ter atendido Santo Agostinho.
Santo Ambrósio, não. Homem confiante na Providência, confiante no amor de Deus, na Igreja Católica, fazia o que estava nas suas possibilidades. Era vontade de Deus que escrevesse um livro, escrevia. Santo Agostinho que aproveitasse o tempo que lhe fosse possível. Deus haveria de prover... e Deus proveu! Quer dizer, essa confiança na Providência de também não querer fazer loucuras, de não querer fazer absurdos, de ser temperante inclusive no próprio zelo apostólico, é uma coisa rica em lições.
Mais especialmente rica em lições - debaixo de um certo ponto de vista - é o fato de Santo Ambrósio ter entestado com Teodósio.
Há fatos na vida da Igreja que ficam como símbolos para todos os séculos da história eclesiástica.
Santo Ambrósio teve um atrito com o imperador Teodósio, que era um dos maiores magnatas, dos homens mais influentes de seu tempo. E isto a propósito de questões de seu pecado público. No momento em que Teodósio ia entrar na igreja, encontrou Santo Ambrósio com todo o seu clero, do lado de fora, proibindo-o. E enfrentando o imperador, este se arrependeu e se humilhou.
Essa atitude do poder espiritual em relação ao poder temporal lembra um princípio ao qual devemos ser sumamente afeitos: todas as grandezas humanas, sejam elas de que natureza e título forem, por mais que sejam exaltadas e glorificadas na sociedade civil, se se apresentam com vistas a enfrentarem a glória de Deus, é missão do clero humilhá-las.
É missão do clero, quando essas potências humanas não andam bem, enfrentá-las e colocá-las em seu devido lugar. É missão do clero, por esta forma, tornar claro que todas as coisas humanas, por mais altas que sejam, em face de Deus, não são nada! Em face da eternidade, elas passam e se reduzem a nada! E que, afinal de contas, a única coisa que fica sempre, que vale, e está acima de tudo, é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, ou seja a Igreja de Deus.
Bossuet afirmou isso em termos magníficos: "a missão da Igreja é a contenção dos poderes da Terra."
E isso está exatamente nos tais contrafortes tão característicos da doutrina defendida pelo mensário "Catolicismo". Sendo nós a favor de uma hierarquia social e política altamente apurada, destilada e de grande glorificação do poder civil recebido por uma delegação divina, entretanto nós entendemos que - por maior que tudo isso seja - também deve ter o seu limite, deve ter um freio. E que esse freio é dado precisamente pela severidade do poder eclesiástico.
Quanto isto é diferente de um vigário que treme diante de algum poderoso! O que se gostaria de ver é o contrário: a força, a ortodoxia representada pelo clero fazendo recuar, com olhar pastoral e terrível, a algum poderoso heterodoxo, ou a um plutocrata endinheirado: "Ó ricaço, guarde esse seu dinheiro. Eu não preciso disso e ninguém precisa disso; isso serve para sua condenação. Jogue isso no bueiro e volte atrás porque aqui vale tal princípio, aqui vale tal regra! E ainda que fiquemos condenados ao extremo da pobreza, ao extremo da perseguição, Deus se rirá de sua fortuna, Deus se rirá de sua arrogância. Nós ficaremos aqui pobres e sós, no cumprimento do nosso dever!"
Ver o dinheiro humilhado, a força material humilhada, ver até o talento humilhado e até a própria aristocracia do sangue humilhada quando ela vai de encontro à Lei de Deus, isto é o contraforte de todas as grandezas humanas! E esse seria o papel do clero nessa espécie de harmonia do universo.
Acho importante ressaltar isso porque quando tratamos a respeito de rei, de nobreza, de hierarquia social, etc., no fundo da cabeça fica algo e esse algo tem sua razão de ser.
Nós conhecemos qual é a fraqueza humana. E sabemos como os homens podem facilmente ser arrastados por ela se se encontram numa situação proeminente. Temos uma sensação de que não é próprio ao homem – caído no pecado original – ficar exaltado tão alto sem ter nenhum freio.
Sabemos que não é pelos inferiores que se limita o poder dos superiores, mas é pelos superiores que se limita o poder dos superiores e que o poder dos máximos deve ser limitado pela própria Igreja de Deus. Aí se estabelece o equilíbrio, aí se compreende o contrapeso e se entende a harmonia profunda da própria ordem de coisas que nós sustentamos.
O exemplo de Santo Ambrósio, portanto, se põe diante de nós como portador de um ensinamento profundo. E fazendo sentir melhor a harmonia de nossas teses, ele nos dá ainda uma convicção maior e mais equilibrada de tais teses.

Santo do Dia – 07 de dezembro de 1964