terça-feira, 31 de maio de 2022

CÂNTICO DE JUBILOSA DESPRETENSÃO

 


(Na Festa da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel,  postamos os comentários de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre o "Magnificat", o cântico-oração exclamado pela Virgem Santíssima naquela oportunidade).

Por haver recebido a excelsa comunicação de que seria a Mãe do Salvador, Nossa Senhora apressou-se em partir ao encontro de Santa Isabel, nas montanhas da Judéia. Ao chegar, exaltada por sua prima e profundamente reconhecida pelo ápice de dons com que fora galardoada, Maria entoou seu imortal Magnificat. 

Deus, autor da grandeza de Nossa Senhora

O pensamento fundamental desse cântico poderia ser assim expresso por Nossa Senhora: “Deus realizou em mim coisas extraordinárias, as quais são obras d’Ele e não minha. Não sou autora de toda essa grandeza. Foi Ele que houve por bem depositá-la em mim, e Eu a aceitei em obediência aos seus superiores desígnios. Essa grandeza, portanto, enquanto habita em mim tornou-se minha, mas a causa dela vem de fora e do alto. Por mim mesma, não sou senão uma pequena criatura”.

De fato, embora concebida sem pecado, e tendo correspondido á graça do modo mais perfeito possível, Nossa Senhora era uma mera criatura, e assim tais grandezas não podiam ter origem na natureza d’Ela. Provinham-Lhe de Deus Nosso Senhor. Este é o pensamento despretensioso e fundamental do Magnificat.

Cabe aqui uma aplicação a nós, filhos e devotos de Maria, que tanto desejamos imitá-La. Se era essa a posição que a Imaculada tomava em face de suas excelências, a fortiori deve ser a nossa diante das graças que Deus nos concede, a nós que somos pecadores a dois títulos. Primeiro, porque concebidos no pecado original; segundo, porque agravamos essa condição com as faltas perpetradas em nossa vida, de sorte que, mesmo perseverando no estado de graça, trazemos conosco o fardo dos pecados que outrora cometemos.

De outro lado, as honras que possam nos caber são incomparavelmente menores que as de Nossa Senhora. Desse modo, é preciso nos esforçarmos em adquirir o mais elevado grau de despretensão ao nosso alcance. Não incorramos no erro dos presunçosos, que julgam inerentes à sua própria natureza, e não a um dom ou misericórdia de Deus, todas as suas qualidades e aspectos bons.

Pelo contrário, compenetremo-nos de que todo o bem existente em nós é dado e favorecido pela graça divina, embora conte com nossa voluntária aceitação e nosso empenho em desenvolvê-lo. São qualidades e talentos que não nasceram de nossa natureza decaída, mas foram nela depositados pela generosidade do Criador. Se formos despretensiosos, teremos consciência disso, não nos embevecendo com o que devemos a Deus.

Esse é, precisamente, o ensinamento que nos deixou Nossa Senhora, quando elevou aos céus o seu Magnificat.

Alegre e contínua retribuição a Deus

Diz Ela: “A minha alma engrandece o Senhor”. Ou seja, canta, vê, admira, ama e proclama com amor a grandeza de Deus, Aquele que domina, Aquele que pode, Aquele que é tudo.

“E o meu espírito exulta em Deus meu Salvador”.

Então a alma d’Ela se transporta em santas alegrias, porque Deus “lançou os olhos sobre a baixeza de sua serva”, e por isso “de hoje em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada”.

Nossa Senhora proclama a magnitude de Deus por ter deitado olhar sobre Ela, por Lhe ter conferido uma tal excelência que todas as nações passariam a aclamá-La como bem-aventurada. E ao reconhecer que isto Lhe vem d’Ele, seu espírito atinge o ápice da alegria!

Como não ver nessa atitude a perfeição da despretensão? Nada de falsa ou dolorosa probidade: “Ó Senhor! como gostaria de dizer que tudo vem de mim, mas sou obrigada a declarar o contrário”, etc. Não! – “Meu espírito exulta em proclamar que veio de Vós”.

Ao mesmo tempo, porém, Ela afirma a glória que Deus Lhe outorgou: “Todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. A palavra bem-aventurada encerra um matiz que a faz designar uma pessoa não apenas nimbada de felicidade, mas também aquela que alcançou êxito em todas as suas realizações. Portanto, acertar na vida, ser bem-aventurado, é tornar-se santo e servir a Deus.

E Nossa Senhora continua a cantar: “Porque fez em mim grandes coisas Aquele que é poderoso, e cujo nome é santo”. O adjetivo poderoso tem aí todo o cabimento, pois Ela se reconhece objeto de maravilhas tais, que só um Ser onipotente as poderia operar. Ora, Maria se sabia não-onipotente. Logo, proclamava que apenas Deus podia ter feito n’Ela aquelas “grandes coisas”.

É um modo indireto de dizer: “O que foi realizado comigo é tanto que eu, simples escrava, por mim mesma jamais o teria alcançado. O Todo-Poderoso, cujo nome é santo, fez essas maravilhas, essas excelências que só poderiam sair de suas divinas mãos”. Em última análise, trata-se de uma contínua e alegre retribuição a Deus da grandeza d’Ela.

Uma cordilheira de misericórdias

“E cuja misericórdia se estende de geração em geração, sobre aqueles que O temem”.

Nossa Senhora manifesta neste trecho a idéia de que a misericórdia da qual Ela foi objeto é o lance supremo de uma imensa série de misericórdias que, desde o início até o fim do mundo, alcança os que têm o temor de Deus. Pode-se dizer que este seria o Everest, o ponto muitíssimo mais alto da compaixão divina, acima de um universo de montículos, colinas, montes e montanhas de misericórdias que ao longo da história têm sido espargidas sobre os homens.

É como se Maria Santíssima dissesse: “Essa misericórdia é ainda mais bela porque é o marco central de um incontável número de excelsas benevolências dispensadas por Ele, o Rei, o Deus, o Pai de todas as misericórdias”.

A soberba é causa de decadência

Continua a Santíssima Virgem: “Manifestou o poder de seu braço; transtornou aqueles que se orgulhavam nos pensamentos de seu coração”.

Ou seja, ao passo que estende sua misericórdia aos que O temem, Nosso Senhor mostra o poder de seu braço confundindo os desígnios dos soberbos. Quem são estes? Os que se vangloriam e se exibem pretensiosos em relação a Deus, que não consideram a grandeza d’Ele, nem Lhe têm temor. E que, portanto, não O amam. Para estes, não há misericórdia. Então Deus os humilha, os quebra, os dissipa, mostrando sua força.

Essa atitude de Nosso Senhor com os que se afirmam independentes d’Ele é um belo convite para estabelecermos uma filosofia da história. Para isto, temos de observar não só os acontecimentos históricos, mas também os fatos de nossa vida cotidiana, e neles verificar a confirmação desta regra: os homens tementes a Deus, conscientes de que não valem nada, atribuindo seus predicados e aptidões à misericórdia divina, progridem na vida espiritual. Os que são voltados a adorar-se a si próprios, a considerar tudo quanto têm como vindo deles mesmos, estes são os soberbos que Deus dissipa, e declinam na prática da virtude.

Quantas vezes não observamos, nessa ou naquela alma, um processo de decadência cuja causa é a pretensão? Em determinado momento, a pessoa começou a se embevecer consigo mesma: “Que maravilhosa, grande e estupenda criatura sou eu, considerada nos predicados morais de minha natureza!” É o primeiro passo de uma lamentável deterioração.

Portanto, Nossa Senhora lança o principio: os soberbos não vão para a frente, enquanto progridem os que temem a Deus. Donde tudo nos coloca em relação a Ele numa postura de inteira despretensão.

O triunfo dos humildes

“Depôs do trono os poderosos, e exaltou os humildes”.

Temos aqui uma seqüência do pensamento anterior. O poderoso é o que atribui a si todo o poder, que precede a Deus e não O teme, julgando-se capaz de tudo fazer sem Ele. Esse é deposto de seu trono, ou seja, daquilo do que se ensoberbece. O humilde, pelo contrário, é glorificado e favorecido por Nosso Senhor, obtém resultados nas suas ações, na sua vida interior, no seu apostolado, etc.

Completando essa linha de pensamento, Maria acrescenta: “Cumulou de bens os famintos, e despediu os ricos com as mãos vazias”.

Os famintos são os necessitados, os que se abaixam diante de Deus e Lhe suplicam auxílio. Estes são atendidos, e saem repletos de bens. Os ricos são os orgulhosos, aqueles que se aproximam de Nosso Senhor dizendo não precisarem de nada. Então são mandados embora sem receberem qualquer benefício. 

Cumpre-se a promessa do Messias 

Em seguida, a Santíssima Virgem faz uma referência à exaltação do Povo Eleito,  por nele ter se verificado a Encarnação do Verbo. Diz Ela: “Tomou cuidado de Israel, seu servo, lembrando da sua misericórdia; conforme tinha dito a nossos pais, a Abraão, e à sua posteridade para sempre”.

Com efeito, Deus havia misericordiosamente prometido que o Messias, seu Filho unigênito, se encarnaria e nasceria do povo de Israel. Ele se lembrou de sua promessa, gerando Jesus Cristo nas entranhas puríssimas de Maria.

A Igreja, muito belamente, completa esse hino maravilhoso com o “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo; assim como era no princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém”.

Esta seria uma interpretação do Magnificat como o cântico da despretensão jubilosa de Nossa Senhora. 

“Minha alma engrandece a Igreja Católica!”

Para concluir, cabe ainda um último desdobramento dessas considerações.

Como eu gostaria de, com toda a alma, cantar o Magnificat em relação à Igreja Católica! Como é verdadeiro dizer: Magnificat anima mea Ecclesiam, et exultavit spiritus meus, in matre salutari mea – A minha alma engrandece a Igreja Católica e o meu espírito exulta na Igreja minha mãe!

E assim por diante, que lindíssima paráfrase do Magnificat poderíamos fazer contemplando a Igreja, que é a Arca da Aliança, a imagem visível de Deus e de Nossa Senhora na terra.

Sirvam, pois, estas palavras de incentivo para que reportemos todos os nossos dons, nossas virtudes e predicados a Deus em Jesus, a Jesus em Maria, e a Maria na Santa Igreja Católica Apostólica Romana, da qual nos vem tudo o que temos de bom. Dessa maneira, o enlevo, o encanto, o entusiasmo, a fidelidade, a dedicação de nossa vida, nossa alma e nosso sangue sejam inteiramente oferecidos para o serviço e glorificação da Esposa Mística de Cristo.

(Extraído da Revista “Dr. Plínio”, nº 26, maio de 2000)


segunda-feira, 30 de maio de 2022

MUITO RISO É SINAL DE POUCO SISO

 


 

O espírito de risadas, de humorismo constante: este estado de espírito predomina completamente na sociedade moderna. Elegeram o riso como bem supremo da felicidade social. Até mesmo autoridades religiosas de grande peso vivem sorrindo para demonstrar a todos que ele representa um estado de completa felicidade. Por exemplo, João Paulo I, era chamado por alguns do “Papa do sorriso” porque, realmente, ele tinha um sorriso cativante. João Paulo II tinha menos, mas demonstrava popularidade incomum. Bento XVI não era bem assim, mas muito sério e compenetrado de sua missão. Seu sucessor, no entanto, vive sorrindo. É o apanágio, o exemplo, mostrado a todos os católicos da “felicidade” baseada no sorriso fácil. Segundo essa mentalidade o católico tem que viver sorrindo, ou procurar sempre ouvir ou contar algumas piadas para despertar o sorriso nas pessoas. No entanto, não há um só exemplo no Evangelho que fale das risadas de Nosso Senhor Jesus Cristo, tudo indica que Ele nunca sorriu, mas, pelo contrário, chorou muito. Nas últimas aparições de Nossa Senhora é comum vê-La chorando, mas nunca sorrindo.

Conforme esta mentalidade moderna é feliz quem sorri, ou então, o sorriso faz a pessoa feliz.  Alguns provérbios populares falam sobre o sorriso. Diz um ditado indiano que “se um homem ri, é de outrem; mas se chora é por si mesmo”; um provérbio medieval diz que o “riso abunda na boca dos tolos”. “Muito riso é sinal de pouco siso”, diz um ditado brasileiro.

Dr. Plínio Corrêa de Oliveira tem alguns comentários sobre o riso: “Rir e chorar são situações efêmeras na vida. Habitualmente o homem nem ri nem chora, ele é sério”. Em outra oportunidade ele disse que há soldados que vão para a guerra por medo de um riso, para não cair no ridículo; “não há que assuste mais que os poltrões do que serem ridicularizados. Não sejamos nós como esses poltrões, mas enfrentemos o riso toda vez que se fizer necessário por causa de Deus”. Nesse exemplo citado por Dr. Plínio, o riso é usado como pressão psicológica e não a satisfação interior por algum bem recebido.

 

Um jeito de ficar sério

 Numa rápida conversa com seus discípulos, Dr. Plínio falou o seguinte sobre a seriedade, que é o contrário do riso fácil:

“No que é que consiste a verdadeira seriedade?  Um jeito prático, experimental, de a gente saber o que é a seriedade, sabe o que é?  É o estado de espírito que o homem tem quando está sozinho.

Imaginem um homem que esteja só, que esteja sozinho há uma hora e ainda tem diante de si mais 3 horas para ficar sozinho. Este é um homem que está sério. É uma noção experimental, não é teórica, mas é muito boa. Isso porque desaparece a vontade de fazer papel diante dos outros, desaparece a possibilidade de estar mentindo para si. E a verdade vem lá do fundo. Ela olha para ele como ele é, e ele olha para ela como ela é. E então a pessoa começa a olhar para as coisas como elas de fato são. Então, esta é a seriedade.
          Por isso é que tão pouca gente gosta de estar só. É porque não gosta de estar sério, pois a seriedade não diz sempre coisas agradáveis. Ela poucas vezes é divertida. É ou não é verdade que vocês acham monótono estarem sozinhos?

Mas, se estivermos juntos, não estaremos sós!  Não tem remédio!                                         ...    Imaginem um de vocês colocado sozinho numa sala enorme de um museu muito interessante. Mas a condição é de passar 5 dias sozinho ali. Ainda que a sala do museu estivesse cheia de jóias, cheia de quadros, cheia de objetos interessantes como múmias egípcias, e outras coisas, passadas as primeiras horas, duas horas, vocês já teriam vontade de ir embora, não é verdade ?

Bem, Nosso Senhor gostava de estar só. São João Batista gostava de estar só. São João Evangelista também. Todos os grandes santos gostavam de estar só.

Eu vou contar um fatinho de São Bernardo para ilustrar o que estou dizendo a respeito do silêncio e da seriedade.

São Bernardo foi durante a Idade Média o maior ou um dos maiores oradores do tempo dele, orador sacro. Ele ia à tribuna, falava, era uma coisa de empolgar, arrastava todo mundo, etc, etc. 

 Numa ocasião ele foi pregar em Colônia, uma grande cidade da Alemanha às margens do Rio Reno, e que sempre foi uma cidade muito povoada. Uma multidão foi ouvi-lo. Ele fez um sermão que despertou tanto entusiasmo, que quando ele desceu da tribuna, o povo avançou em direção dele!                                                                                                 ..              

E o imperador da Alemanha que estava assistindo o sermão, viu que a população avançava por cima da tropa, porque queriam tocar em São Bernardo. O jeito que o imperador teve, sabe qual foi?  Para salvar a vida de São Bernardo ele pôs São Bernardo à cavalo nas costas dele!  

          E o povo não ousava mexer com o imperador.

          Ainda mais na Alemanha o resultado não é brincadeira quando se mexe com o imperador. Desse jeito ele salvou a vida de São Bernardo.

          Esse santo era um homem que vivia cercado das multidões que o ovacionavam.  Se ele fosse um mega, dava para ter delírio.  Sabe qual foi a exclamação dele, numa ocasião em que ele conseguiu fugir da multidão para o convento e lá ficar só?

          Foi: "Ó beata solitudo, ó sola beatitudo!"  O que traduzido quer dizer: "Ó Bem aventurada solidão, ó tu que és a única felicidade!" 

         Nesse convento de trapistas que ele fundou não falam nunca.
        Este é um homem sério, mas de uma seriedade sem carranca. Ele foi o autor de duas orações mais doces que há, a Nossa Senhora: a Salve Regina e o Memorare.[1]

É claro que há vários tipos de riso e de sorriso. Há o riso sério ao lado do riso da chacota e da pilhéria degradante. Muita gente tem medo do riso de escárnio e se comporta conforme as modas da sociedade apenas por causa disso. Quer dizer, há o riso e o sorriso proveniente da falta de seriedade, e é este que não devemos aceitar. E há o sorriso comum, normal, em que as pessoas manifestam assim a satisfação pessoal com uma felicidade passageira. Um exemplo: quando duas ou mais pessoas se encontram após longo período de separação, a primeira manifestação delas é o sorriso. Isso é a coisa mais normal do mundo.

Qual a razão de ás vezes o sorriso ser esboçado espontaneamente, revelando uma satisfação interior? Segundo filósofos o sorriso é a manifestação externa da inteligência: geralmente sorrimos quando descobrimos pelo intelecto uma verdade oculta, revelada de surpresa. Se não houver tal surpresa, se a pessoa já sabia daquilo que se revela, nem sempre ocorre o sorriso. Deste modo, o exagero em se sorrir a cada instante por coisas banais e piadinhas não revela bem o lado da inteligência, do intelecto, mas apenas a sensibilidade grosseira de um prazer instantâneo.

Não exprobramos aqui o riso e o sorriso natural, surgido como fruto de uma satisfação pessoal e interior da pessoa. Mas, sim, do riso de escárnio, o riso sem motivo justo. E hoje é comum este tipo de riso, chamado de humorismo, muitas vezes até imoral, indecente e ofensivo às pessoas.

 

 

 



[1] Palavrinha – 29 de Abril de 1985

quarta-feira, 25 de maio de 2022

SÃO GREGÓRIO VII E O PODER DO PAPA

 


                             ("Amei a justiça e odiei a iniquidade, por isso morro no exílio"  (Salmo 44,8)

A respeito da festa de São Gregório VII, existe um documento que lhe é atribuído e que reflete o seu pensamento, intitulado “Dictatus Papae”. Trata-se de um documento atacado pelos teólogos progressistas, e que é uma lista verdadeiramente sublime das teses que São Gregório VII queria sustentar.

Lembremos que o Imperador da época, Henrique IV, intervinha nos assuntos da Igreja e tentava de controlá-La através da nomeação de bispos. E o Papa santo combateu esta política e conseguiu eliminar esta pretensão do governo imperial e deu uma lição ao Imperador. E apresentam-no então como um grande “quebra-dentes” do Sacro Império Romano-Alemão. Isto é falso. Ele não foi um "quebra-dentes", mas sim um “quebra-garras”. Quando o Imperador tentou deitar garras no poder eclesiástico, São Gregório o “quebrou”.

O “Dictatus Papae” é a afirmação da monarquia pontifícia e universal em matéria espiritual, de uma monarquia universal suprema sem prejuízo das monarquias subordinadas que se deveria estender por toda a Cristandade. O Papa não pretendia governar o Império, mas reivindicava o direito de exercitar uma influência decisiva. Esse documento vê no Sacro Império a “espada” do Sumo Pontífice, pronta para proteger a Santa Igreja Católica, defender a Fé e combater Seus inimigos. De um lado, o poder temporal deve governar de modo independente conforme o direito natural. De outro, o Papado deve vigiar que isto se dê efetivamente. Neste sentido, os dois poderes são diversos e independentes.

Mas o “Dictatus Papae” afirma também que se se nos perguntasse qual é o poder mais elevado e eminente na Terra, a resposta é clara e é representada igualmente na arte da época: bem no alto o Papa; à sua direita e em um plano abaixo, o imperador; abaixo deste, todos os reis e potentados da terra. Abaixo do Papa, significando a ordem espiritual, todo o clero católico. E tudo dependendo de um só monarca supremo que era o Pontífice. Era essa a concepção de São Gregório VII.

Na data de sua festa, podemos pedir a ele que alcance para o mundo novamente o conhecimento e o amor pela noção de diferenciação e ao mesmo tempo de união da ordem espiritual e da ordem temporal. No dia em que essa concepção se generalizar, terá chegado a aurora do Reino de Maria. Mas a contrario sensu, no dia em que chegar a aurora do Reino de Maria, essa concepção ressurgirá.

Vamos pedir a São Gregório VII que alcance de Nossa Senhora, que por sua vez nos obtenha de Deus, este fervor no amor dessa idéia sublime quanto aos poderes espiritual e temporal. Mesmo porque fora desta concepção não há concepção política, nem social, nem econômica que resolva nada, que adiante de nada. Vamos então rezar neste intenção.

 

(Plínio Corrêa de Oliveira – Santo do Dia – 25 de maio de 1964)


COMENTÁRIOS DE SÃO BERNARDO SOBRE A ANUNCIAÇÃO DO ANJO À NOSSA SENHORA

 





A mais importante das comunicações angélicas foi a que São Gabriel fez à Santíssima Virgem, a Anunciação, que é contada com encanto pela Legenda Dourada, com comentários de São Bernardo:

“Disse, pois, o anjo a Maria: “Deus te Salve, cheia de graça”. Comentário de São Bernardo: “Cheia da graça da divindade em seu ventre; da graça da caridade em seu coração; da graça da afabilidade em sua boca; da graça da misericórdia e da generosidade em suas mãos... Verdadeiramente cheia; e tão cheia, que de sua plenitude recebem todos os cativos, redenção; os enfermos, saúde; os tristes, consolo; os pecadores, perdão; os justos, santidade; os anjos, alegria; a Trindade, glória, e o Filho do homem a natureza de sua humana condição.

“O Senhor é contigo”. Contigo o Senhor enquanto Pai, que é quem engendra eternamente ao que engendra em seu seio; contigo o Senhor enquanto Espírito Santo, por cuja virtude concebes; contigo o Senhor enquanto Filho, ao que revestes com tua própria carne”

“Bendita entre todas as mulheres”. Segundo São Bernardo isto quer dizer: Bendita sobre todas e mais que todas as mulheres, posto que tu fostes Virgem, Mãe e Mãe de Deus.

“As mulheres estavam submetidas a uma destas três maldições: ou de opróbrio, ou de pecado ou de suplício. A de opróbrio afetava às que não tinham filhos; neste caso havia estado, por exemplo, Raquel, que a ela havia se referido quando disse: “O Senhor me livrou do opróbrio em que me achava”. A de pecado alcançava às que concebiam: esse é o sentido das palavras do Salmo 50: “Olha que em maldade fui formado e em pecado concebeu minha mãe”. A de suplício recaia sobre as parturientes, as quais, como se adverte no Gênesis, “parirão com dor”.

“Bendita foi e é Maria entre todas as mulheres e sobre todas as mulheres, porque somente ela esteve isenta destas maldições: em sua virgindade não houve opróbrio, posto que concebeu sem detrimento de sua integridade; em sua concepção não houve pecado, senão que, pelo contrário, concebeu em santidade;  nem houve tormento em seu parto, posto que pariu, não já sem dor, mas com inefáveis transportes de alegria.

“Com razão Maria foi chamada “cheia de graça”, porque, como observa Bernardo, em sua alma se deram quatro plenitudes, a saber: plenitude em sua humilde devoção, em sua santíssima pureza, em sua fé sem limites e na imolação de seu coração.

“Com razão também pôde dizer o anjo: “o Senhor é contigo”, porque a presença do Senhor em sua alma se acreditou sobejamente, disse o mesmo São Bernardo, com os quatro portentos celestiais de que Maria foi objeto: a santificação de seu ser, a saudação do anjo, a intervenção do Espírito Santo e a Encarnação do Filho de Deus.

“Com razão, igualmente, foi proclamada “bendita entre as mulheres”, posto que, como o citado São Bernardo nota, Deus concedeu a seu corpo estes quatro privilégios: virgindade absoluta, fecundidade sem corrupção, prenhez sem moléstias e parto sem dor.

 “Ela se turbou ao ouvir estas palavras e tratou interiormente de averiguar o significado que poderia ter tudo o que o anjo lhe dizia”.

“Este texto do Evangelho constitui um elogio do comportamento da Virgem, da atenção com que escutou o anjo, das disposições internas de sua alma e do discurso de seu pensamento. O evangelista pondera a modéstia com que acolheu aquela mensagem, ouvindo e calando, o pudor de seus sentimentos e a prudência de sua mente, posto que, raciocinando, tratou de buscar explicação ao que o anjo lhe dizia.

“A turbação de sua alma procedeu, não de ver ao angélico mensageiro – estas criaturas celestes eram-lhe já conhecidas, porque anteriormente já as havia visto muitas vezes -; proveio de ouvir o que estava ouvindo, porque até então nunca havia ouvido coisas semelhantes. A respeito desta turbação, eis aqui o que escreveu Pedro de Ravena: “Não se impressionou Maria por ver o anjo, que se apresentou perante ela sob uma aparência doce e normal, mas pelo estranho conteúdo de sua mensagem. A turbação chegou à sua alma, não através dos olhos do corpo, posto que o que via era muito agradável, mas através dos ouvidos, enquanto que o que estava ouvindo resultava-lhe inaudito”. Por sua parte, São Bernardo comenta: “Turbou-se por seu pudor virginal, porém não se alarmou, porque era mulher de notável fortaleza, nem se assustou, nem se calou, em silêncio refletiu, dando provas de admirável prudência e suma discrição”.

“O anjo lhe disse: “Não temas, Maria, porque encontrastes graças diante do Senhor”. “Encontrastes”, disse São Bernardo, “a graça de Deus, a paz para os homens, a destruição da morte e a restauração da vida”.

Conceberás em teu seio e darás á luz um filho a quem porás o nome de Jesus, que quer dizer Salvador, porque Ele salvará ao povo de seus pecados; esse filho será grande e chamado Filho do Altíssimo”. “As palavras anteriores”, comenta São Bernardo, “querem dizer: este Filho, que já é grande enquanto Deus, será também grande enquanto homem, grande enquanto doutor, e grande enquanto profeta”.

“Disse Maria ao Anjo: Como poderá ser isto se eu não conheço varão?”   Como poderá ocorrer tudo quanto dizes se eu me comprometi a não ter contato carnal com homem algum? Mediante tais palavras Maria declara que era Virgem em sua alma, em seu corpo e em seus propósitos com relação ao futuro.

“Observe-se que Maria pergunta. Quem pergunta é que tem alguma dúvida: logo duvidava. E se duvidava, como se explica que não incorresse em semelhante penalização imposta a Zacarias, de quem sabemos que por suas dúvidas foi castigado com a pena de ficar mudo? Pedro de Ravena responde a esta questão da seguinte maneira, e observemos que em suas palavras se contêm, não uma senão quatro respostas: “Aquele que sabe perscrutar o fundo dos homens, não se guia tanto pelo som dos vocábulos, quanto pelo que se vê no fundo dos corações; do mesmo modo julga os pecadores não ao teor do que dizem, mas atendendo-se ao que sentem. A razão que moveu a ambos interrogadores a formular suas perguntas foi diferente quanto à sua origem e quanto ao seu alcance. Maria admitiu sem vacilação algo que parecia ir contra a natureza; Zacarias, pelo contrário, não admitiu, mas duvidou de algo e fundamentou sua dúvida precisamente numa circunstância que não ia realmente contra a natureza. Maria, ao perguntar, tratou de conhecer como sucederia o que lhe anunciava, enquanto que Zacarias, sem mais, descartou a possibilidade de que se realizasse o que Deus havia determinado que aí se realizasse.  Este homem, apesar de que já anteriormente houvesse ocorrido casos semelhantes, se obstinou em qualificar de impossível o que, sim, era possível. Maria, pelo contrário, ainda sabendo que nunca havia ocorrido nada parecido ao que o anjo lhe comunicava, teve fé no poder divino. Maria se limitou a mostrar-se admirada ante o anúncio de que uma virgem ia ser mãe; coisa muito distinta da atitude de Zacarias, que pôs em tela de juízo a possibilidade de que uma relação conjugal dele com sua esposa desse resultado positivo. Maria, pois, não abrigou dúvidas acerca da divindade da mensagem angélica, mas tratou de conhecer o procedimento mediante o qual ela chegaria a ser mãe; sua pergunta foi muito razoável, já que à maternidade se pode chegar por três caminhos diferentes: o da concepção natural ou normal, o da concepção espiritual e o da concepção milagrosa; ela, ao perguntar, procurou informar-se acerca de qual delas ia a seguir-se em seu caso”.        

 “O anjo lhe contestou: O Espírito Santo virá sobre ti. Quer dizer: O divino Espírito, em virtude de recursos sobrenaturais fará que concebas um filho. Por isso se diz que Jesus Cristo foi concebido por obra e graça do Espírito Santo”  e mais adiante: “A virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. [i]

 



[i] La Leyenda Dorada” – Santiago de la Vorágine – Ed. Alianza Forma – vol. 1 – págs. 211/214.


segunda-feira, 23 de maio de 2022

AUXÍLIO DOS CRISTÃOS, SOLICITUDE MATERNAL CONCEDIDA AOS HOMENS

 




Ao comemorar a festa de Nossa Senhora Auxiliadora a Santa Igreja evoca o auxílio maternal dispensado pela Santíssima Virgem a todos os homens. Considerando cada um como se fosse filho único, Maria se desdobra em desvelo e atenções, realizando assim sua missão de Medianeira de todas as graças.

 

No dia 24 de maio a Santa Igreja comemora a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Essa invocação foi introduzida na Ladainha Lauretana por São Pio V, em comemoração da vitória alcançada contra os turcos, em Lepanto. A festa foi instituída por Pio VII, em ação de graças por sua volta a Roma depois de ter sido preso por Napoleão.

Lepanto, um dos fatos mais gloriosos da história da Civilização Cristã

Temos para comentar uma ficha a respeito da Batalha de Lepanto. Convém sempre relembrar as glórias da Civilização Cristã e, portanto, trazer à memória esse acontecimento, o qual é um dos mais gloriosos dentro dessa história.  No entanto, será a respeito de Nossa Senhora Auxiliadora que teceremos considerações.

A ficha é tirada do livro sobre Lepanto, de Gernier[1]:

“Agostinho Barbarigo, capitão veneziano, era o chefe da ala esquerda das galeras, na batalha de Lepanto. Soldado famoso, era aceito como verdadeiro líder da armada de Veneza.

Em Lepanto, em meio à luta, foi cercado habilmente pelos generais Siroco e Uluç Ali.

Pelo menos cinco adversários o contornaram e seus navios lançaram nuvens de flechas que cobriam a popa da nau capitânia de Barbarigo. Durante uma hora inteira ele sustentou o assalto turco. Depois, com o auxílio de outras galeras conseguiu, finalmente, passar à ofensiva. Na confusão desse ataque furioso, conseguiu aprisionar o capitão Siroco.

Sempre hábil na manobra e corajoso até a audácia, Barbarigo abordou depois a galera de Uluç Ali, cujo mérito guerreiro era bem conhecido e o fez prisioneiro também. A batalha prosseguiu violentamente. Em dado momento, Barbarigo percebeu que não era bem entendido pelos seus comandados, porque seu capacete cobria-lhe o rosto. Lançou-o então fora para ser melhor ouvido. Nesse momento, os inimigos intensificaram o lançamento das setas. Preveniram então o capitão do perigo de lutar sem capacete. Respondeu ele: “É menor o perigo de correr tal risco do que ser mal compreendido em tal momento”. Logo foi atingido por uma flecha no olho e entregou o comando a seu imediato.

No dia seguinte, o excelente Barbarigo ouviu dizer que a vitória coubera aos cristãos. Ele levantou as mãos aos céus, pois não podia abrir a boca para pronunciar uma palavra; sua ferida o impedia. Ele exprimiu sinais de alegria e reconhecimento a Deus”.

O episódio é muitíssimo bonito, quer pela audácia de Barbarigo, quer pelo espírito de fé, integridade inteireza de alma com que ele aceitava esse ferimento o qual deveria ser terrível. Uma flecha no olho, que chega a impedir a pessoa de falar, podemos imaginar as profundidades atingidas por ela e quais os efeitos causados.

Como crianças, abandonados aos cuidados de Maria Santíssima

Passo a comentar Nossa Senhora sob o título de Auxiliadora dos Cristãos. Por mais evidente que seja, há ocasiões em que as coisas óbvias devem ser lembradas.

Auxiliadora dos Cristãos é a invocação de Nossa Senhora enquanto tendo a missão, a vontade e o hábito de socorrer os cristãos. Cada um desses conceitos: missão, vontade e hábito, merece um comentário.

Primeiro, a missão. Maria Santíssima foi criada para ser Mãe de todos os cristãos, de forma especial, e de todos os homens, de forma geral. Ela tem essa incumbência, entregue pela Providência a todas as mães, de velar por seus filhos. Esse encargo não deve ser visto como o da mãe junto ao filho crescido. Por mais respeitável e dileta que seja a figura materna em todas as idades do homem, há uma fase na qual ele carrega a responsabilidade de seu próprio destino, inclusive protege a sua mãe mais do que é protegido por ela. Porém, nós devemos ver as nossas  relações com a Santíssima Virgem não como a de um adulto com sua mãe, mas como a de uma criança. Porque o papel d’Ela junto a nós é este.

Como explicar isso sendo algo tão contrário à piedade moderna, da concepção antipaternalista, do indivíduo evoluído, amadurecido, “desalienado”? O que estou dizendo, do ponto de vista hodierno e revolucionário, é uma barbaridade. Entretanto, é o melhor suco de piedade católica nesse gênero de assuntos.

O ser humano está nesta Terra em estado de prova e de luta, no qual sua alma vai se desenvolvendo para a maturidade plena a ser atingida no momento da morte. Vistos do Céu, somos como crianças em formação. A nossa verdadeira idade adulta é aquela na qual Deus colherá a nossa alma, pois aí teremos alcançado – se formos fiéis à graça – a perfeição para a qual fomos criados. De maneira que, desde o aspecto sobrenatural, a vida terrena é um educandário, e a maturidade é a morte. Nossa Senhora nos vê, por conseguinte, como espíritos em evolução.

Coloquemo-nos na perspectiva da sociedade contemporânea, com todos os desastres, as desordens, os desregramentos morais e o caos nela existentes, e perguntemo-nos qual a impressão transmitida por ela ao ser analisada por um bem-aventurado, o qual vê Deus face a face e está confirmado em graça. É tal a precariedade, a incerteza, a debilidade e o desatino do gênero humano, que, considerado pelos Anjos e Santos, ele é uma criança de maus bofes,mal encaminhada.

Compreendemos, portanto, que a Virgem Maria tenha para conosco a missão que se tem para com um filho bem pequeno, dando uma assistência inteira, ajudando em todas as horas, protegendo de todos os modos.

Do alto do Céu Maria Santíssima tem constantemente presente a existência de cada um daqueles que estão na Terra, no Purgatório, como também dos que se encontram na morada celeste. A cada instante Ela tem conhecimento simultâneo e perfeito de todos.

Nossa Senhora ama a cada um como sendo filho único

De outro lado, Ela ama a cada um como nunca uma mãe terrena amou seu filho. Não conseguimos medir as solicitudes da Santíssima Virgem, como Ela acompanha, reza, obtém graças e guia a vida de cada um. E faz isso de maneira tal como se aquele fosse o único a existir; e sobre esse ponto eu gostaria muito de fazer uma insistência.

Quando rezamos para Nossa Senhora, temos a impressão de que Ela olha para todos, como para uma multidão e, assim sendo, mal discerne a cada um. Quando chega de nossa parte um brado muito angustiado, Ela pode prestar um pouco mais de atenção. Mas fora disso, aquilo se perde no tumulto da humanidade e dos séculos.

Essa visão é completamente antiteológica e falsa, a ponto de quem sustentasse isso não poderia lecionar Catecismo, de tal maneira o contrário é elementar. A impostação de alma que deveríamos ter ao nos dirigirmos à Virgem Maria é, antes de tudo, nos lembrarmos disso: Ela me vê, conhece e ama como se existisse só eu.

Suponhamos que aparecesse nosso Anjo da Guarda e nos dissesse: “Nossa Senhora irá parar, durante uma hora, de atender as orações do mundo inteiro, para olhar só para você. No universo inteiro se fará silêncio. E vai ser apenas a sua súplica que subirá a Ela e as graças d’Ela descerão para você”. Em primeiro lugar, nós ficaríamos para lá de comovidos. “Como é possível isso? Que honra! Eu não mereço! Eu tenho medo...! Mas, de outro lado, que maravilha!” Enfim, produziria inúmeras reações.

Todavia, isso se dá sempre. Quando rezamos em conjunto, é como se cada um o fizesse sozinho e o universo inteiro tivesse parado, e Ela estivesse prestando atenção só em um. Eu acho indispensável termos isso bem fincado na alma, do contrário não há piedade mariana viva e sincera. Fica-se apenas no esquema pseudoteológico, limitado, sem vôo nem realidade.

De fato, se Nossa Senhora, durante uma hora, abandonasse tudo para olhar só para um, o universo ruiria nessa ocasião, porque ele todo vive do olhar e da proteção d’Ela, sendo Ela a Medianeira de todas as graças de Deus, papel central e contínuo. Essa é a missão.

Completo desinteresse do autêntico amor materno

Discorramos agora sobre o conceito vontade.

A Virgem Maria não é infinita, é mera criatura, mas insondavelmente perfeita.  Não temos idéia de como é a excelência d’Ela.  Ora, uma pessoa perfeitíssima ama com amor perfeitíssimo sua própria missão. Basta Deus ter mandado para Ela querer por inteiro. Mas não é só isso. Nossa Senhora quer bem a cada um de nós individualmente, do modo como nós somos. Com aquela espécie de desinteresse do amor materno autêntico, no qual a mãe não ama o filho por causa da carreira, nem do auxílio, nem de nada disso, mas porque é ele.

Tudo quanto uma mãe dedica de bom em relação ao fruto de suas entranhas, Maria Santíssima tem de modo inimaginável por nós. Ela gosta de nos olhar, de nos querer bem e de ser querida por nós. Em Deus, é claro. Ou seja, na medida em que formos conformes ao Divino Artífice ou possamos nos converter para Ele. É assim que Ela nos quer.

Quando nos ajoelhamos diante de uma imagem, ou até mesmo quando oramos interiormente, devemos ter a convicção de que esse ato é grato a Ela. Isso é assim mesmo se estivermos em estado de pecado, pelo desejo que Ela tem de nos tirar dessa via. Por tudo isto Ela tem a vontade de nos amparar. Quando uma mãe tem esse desejo em relação ao filho, ela quer assisti-lo de todo jeito, de qualquer modo, e a todo momento.

Liberdade filial, característica do verdadeiro devoto da Santíssima Virgem

Por fim, Maria tem o poder de nos ajudar a todo instante, nas coisa grandes, sobretudo na vida espiritual, para nos santificarmos, para servirmos a Igreja, a Causa Católica. Ela nos favorece também em nossas necessidades, inclusive pequenas. Portanto, um comprovado devoto de Nossa Senhora pede-Lhe qualquer coisa, as menores que queira, por exemplo, estando à espera de um taxi, pedir que este venha logo. Ele deve estar continuamente implorando tudo, desde que convenha para sua  salvação e santificação.

 

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A Santíssima Virgem é tão boa, que podemos até dizer o seguinte: “Minha Mãe, daí um jeito de tal coisa convir à minha santificação, porque eu a estou querendo muito”. Pois devemos possuir uma total liberdade filial para com Ela, sem nada de hirto. Se Ela não nos atender é porque nos dará outra coisa melhor do que a pedida.

Conto um episódio da vida de Dom Chautard. Ele encontrou-se certa vez com Clemenceau, político francês, de muitíssima personalidade, muito inteligente, contudo, muito anticlerical.

Sabe-se que os anticlericais odeiam de modo peculiar os contemplativos, por os acha inúteis. Com base nesse pressuposto, podemos conceber o contato entre ambos: Clemenceau, chamado “o Tigre” pelo jeito e pela força de personalidade, e Dom Chautard, que hipnotizava até leões, sendo isso histórico na vida dele.

No encontro, começaram a conversar e Dom Chautard contou todas as suas ocupações. Então, Clemenceau lhe disse:

- Mas o senhor precisa me ensinar como encher tanto o tempo, porque eu não consigo pôr todas as minhas ocupações dentro do dia e o senhor consegue dispor tantas dentro do seu.

Dom Chautard respondeu:

- Senhor Ministro, é muito fácil: se o senhor acrescentar a todas as suas ocupações o rezar todo dia, quinze minutos, um terço bem rezado, dará tempo para tudo, como dá para mim.

Isso pareceria uma afronta. Pois bem, “o Tigre” engoliu a provocação do domador. Não disse nada. Para propor a um anticlerical de rezar o terço todo o dia... Não se pode cogitar algo de mais ousado, sobretudo se considerarmos como era o anticlericalismo no tempo de Clemenceau: um devora-frades horroroso.

Nesse desafio, o qual tinha qualquer coisa de hercúleo, entrava uma realidade: todo mundo vive no corre-corre, com falta de tempo. Se rezar mais, sobra mais tempo para os afazeres; os problemas se resolvem com menos enguiço, menos encrenca, se arranjam melhor. Para tudo se consegue tempo por sermos sustentados por Nossa Senhora até nas coisinhas. É questão de pedir com empenho.

O melhor de seu amor, Maria reserva para os lutadores da Fé

Aí está Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos. Entretanto, o que significa a palavra “cristãos”?

Há uma tese de Teologia da História, famosa e admitida por todos os autores: o mundo existe para os bons e os outros existem pela intenção de Deus que eles acabem sendo bons. No entanto, o centro da História, por onde ela é governada, são os eleitos.

Por conseguinte, a Virgem Maria é sobretudo Mãe dos cristãos, e por cristãos devemos entender o católico apostólico romano. Em relação aos outros, Ela é Mãe para os trazer à Igreja ou para os salvar. Mas o melhor de seu amor materno é para os católicos, para os que professam a verdadeira Fé.

Se isto é assim, o que dizer do afeto d’Ela para com aqueles que dedicam a vida ao serviço da Religião? Sobretudo em uma época de apostasia universal, inclusive dentro da Igreja? Já não é uma prova de predileção ter recebido esse chamado, mesmo não merecendo? E, além disso, ser conservado nessa epopéia, dádiva que desmerecemos de tantos modos? Entretanto, Ela nos deu isto.

Consideramos um privilégio o fato de São João Evangelista ter estado ao pé da Cruz. Pois bem, ser filhos inteiramente ortodoxos dentro da Igreja, sem pacto nenhum com a Revolução, em luta contra ela, perseguidos por ela, é estar ao pé da Cruz numa hora de abandono como nunca houve desde que Nosso Senhor morreu, visto que nunca a Fé foi tão negligenciada como em nossos dias. De maneia que, quando dirigimos preces a Nossa Senhora, nós deveríamos nos considerar ao pé da Cruz, com o Divino Redentor agonizante e sua Mãe Santíssima tendo nos  atraído para aquela solidão e para a participação naquela dor.

Quanta coisa nos atreveríamos a pedir nessa circunstância! Quanto perdão, quantas graças! É assim que devemos nos ver.

Recorrer é corresponder à solicitude de Deus

Uma última consideração: O bom ladrão, como diz Santo Agostinho, roubou o Céu. Foi o primeiro santo a ser canonizado. Como ele obteve essa indulgência? Teologicamente é certo: pela oração de Maria Santíssima. Por ser Ela a Medianeira universal, só recebemos graça por meio d’Ela. Se ele conseguiu isso, quanto mais nós alcançaremos para a Santa Igreja, para nós e tudo o mais!

Isto devemos guardar e tomar o hábito de lembrar antes de rezar a Ela. Preparar o espírito e passar o dia inteiro suplicando. Quando não estivermos recitando as orações diárias, façamos jaculatórias. Então nossa alma encontrará a paz e teremos correspondido, de algum modo, à solicitude de Deus ao nos ter outorgado a Santíssima Virgem como auxílio. Com isso terminamos nossa meditação sobre Nossa Senhora Auxiliadora.

 (Conferência de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira, "Santo do Dia", datada de 24.05.1969 – Texto extraído da Revista “Dr. Plínio”, n. 290, maio de 2022, págs. 14/19)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Garnier, François, Journal de la bataille de Lepante. Editións de Paris, 1956