segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O NATAL DE DONA CHICA

 




Sentado na poltrona, o Sr. Manoel lia o jornal quando suas filhas se acercaram dele para um raro entretenimento, somente possível naquelas noites especiais em que algo de especial está para acontecer. Dona Marieta, esposa do Sr. Manoel, reclamava:

- Mas, logo hoje, que a novela estava tão atraente e cheia de suspenses, a TV foi se quebrar?

O Sr. Manoel, porém, estava gostando daquilo:

- Ah, Marieta, você não imagina como está bom assim. Pelo menos hoje a gente vai deixar de ouvir este suspense novelesco que não acaba nunca; é sempre um atrás do outro para deixar vocês nesta torcida. Só assim a gente vai ter oportunidade de conversar mais familiarmente, sem interferência desta famigerada caixinha eletrônica.

No entanto, Sr. Manoel não conseguia ler o seu jornal, pois Fabíola e Laura não o deixavam. A certa altura, Dona Marieta o interrompe:

- Pois bem: que entretenimento ou conversa familiar é essa? Você aí, sentado no sofá tendo ler o jornal?

O Sr. Manoel sobressaltou-se, jogou o jornal pro lado, beijou suas duas filhas, de 8 e 10 anos, dizendo:

- Desculpem-me, vamos conversar um pouco...

Não era de estranhar que procedesse dessa forma, pois tinha passado um dia estafante em seu trabalho. Era policial, e naquele dia de véspera de Natal sua presença no trabalho tinha sido indispensável. Ao chegar à sua casa é que se propunha a ler alguma coisa para saber as notícias do dia.

Repentinamente, lembrando-se de algo, colocou as duas filhas no colo e lhes perguntou:

- Que presentes vocês esperam receber de São Nicolau?

- São Nicolau? Quem é São Nicolau? – perguntaram as duas numa só voz.

- Ah, então vocês não sabem? São Nicolau foi um bondoso bispo, homem muito abastado e muito santo, que tornou-se o símbolo do espírito festivo natalino para os cristãos. Hoje existe a figura do Papai Noel, uma invenção comercial, mas está muito longe de representar o verdadeiro espírito natalino que tinha São Nicolau. Todo ano no Natal ele presenteava as crianças que haviam sido boas durante o ano, era um prêmio por terem praticado virtudes cristãs. No entanto, aquelas que haviam sido más ou cometido muitas indisciplinas ou pecados eram severamente advertidas. E uma ou outra que reincidia em erro e maldade recebiam, de seu secretário, uns bolos nas mãos. De costume andava ele carregado de presentes, doces, chocolates e outras iguarias, com o que alegrava as crianças e procurava sempre premiar as boas e castigar as más. Pois, vejam bem: as pessoas hoje nem falam mais em São Nicolau, só se lembram do Papai Noel inventado pelos comerciantes para vender seus produtos.

Dona Marieta intervém, então, na conversa.

- São Nicolau ou Papai Noel, o que vocês desejam ganhar neste Natal?

- Uma boneca! – Responderam as duas meninas em uníssono.

Dona Marieta saltou de lá, censurando:

- Ah, não! Outra boneca? Vocês não sabem pedir outra coisa? Já viram quantas delas possuem no quarto de vocês?

- Deixa as meninas, Marieta – intervém o Sr. Manoel – pois elas têm o direito de pedir o que mais gostam, não é verdade?

- Isso mesmo, papai, – pontificou Fabiana – o senhor tem toda razão!

- É verdade; mas, mesmo assim, seria muito bom que começassem a pensar em outras coisas. A gente tem de variar os gostos, não é mesmo? Agora mesmo lembrei-me de lhes contar um fato muito a propósito que presenciei hoje. Lembram-se da velha Chica, a catadora de lixo?

- Sim, mas que teve ela? – indagou Laura.

- É que hoje eu tive a oportunidade de saber toda a história da vida dela e fiquei muito comovido, pois é muito triste.

- Então não conta, que hoje é véspera de Natal, dia de alegria e não de tristeza – falou dona Marieta.

- Conta, papai! – pediu Fabiana.

- É, vamos lá! Conta, assim mesmo – completou Laura.

- Pois bem, eu vou contar, pois vai servir de exemplo para vocês. Eu estava fazendo a ronda quando vi dona Chica se meter em sérios apuros. Haviam nos chamado para prender uma suspeita ladra escondida num prédio velho abandonado. Pegamos o carro-patrulha, eu e um cabo, e quando lá chegamos vimos a mulher por entre uns escombros sentada no chão, de costas, como se estivesse arrumando algo. Aproximamo-nos, lentamente, e, ao chegar perto, vi que era dona Chica. Estava ali, fazendo sabem o quê?

- Ela é uma ladra, papai, estava escondendo o roubo? – perguntou Laura.

- Não, nada disso. Ela estava simplesmente brincando com uma boneca.

- Brincando com uma boneca!? – espantaram-se as meninas.

- Sim. E estava tão entretida que não notou nossa presença. Perguntei-lhe, então: “Onde conseguiu essa boneca, dona Chica? Não me diga que foi no lixo...” De um ímpeto, assustada, ela levantou-se e correu com a boneca na mão. Nós a pegamos rápido. Voltei, então, a perguntar:

- Vamos lá, diga-me dona Chica: de quem roubou esta boneca?

Verifiquei que a velha estava muito assustada e quase chorando. Disse-me logo em seguida:

- Sargento, eu nunca roubei e nunca roubarei jamais. O senhor sabe que sou uma pobre miserável, mas muito honrada neste aspecto. Esta boneca caiu de um caminhão de cargas que passava na estrada. Era uma caixa cheia delas: eu peguei esta e outras pessoas as demais. Isso é roubo? Quem lhe disse que eu roubei?

- Olhe, dona Chica; pode ser que a senhora esteja falando a verdade, mas tem que ir conosco até o distrito policial, pois alguém nos telefonou a acusando de roubo. Vamos investigar isso direito. Se for inocente, nada vai lhe acontecer.

- Quem telefonou?

- Não sabemos. Vamos lá que talvez a pessoa apareça reclamando o que é dela.

- Ah, deve ser alguma pessoa invejosa que me viu assim maltrapilha apanhar a boneca, e ela não conseguiu nada porque outras pessoas também as cataram na rua. Certamente vai dizer que a boneca é dela. Olhe, eu não tenho medo de ir ao distrito policial, pois tenho minha consciência tranqüila. Quando eu era criança aprendi desde cedo a respeitar os bens alheios, e quando ia às vezes me confessar contava ao padre até mesmo os pequenos furtos de comida que fazia escondida na cozinha de minha mãe. E hoje, já adulta, tenho como grande honra nunca haver roubado nada de ninguém, apesar de ser pobre e passar muitas privações.

- Eu sei, dona Chica, mas, mesmo assim, a senhora vai nos acompanhar para que possamos apurar este fato e esclarecer toda a questão. Vamos lá!

- Só quero que o senhor tenha um pouquinho de paciência e ouça-me. Quero lhe contar uma história que, ao ouvi-la, o senhor vai entender o que representa para mim esta boneca.

- Está bem; no caminho a senhora vai nos contando sua história.

Embarcamos na viatura, mas dona Chica não quis largar a boneca, dizendo ser muito importante para ela. A caminho, contou a seguinte história:

-“Sargento, na verdade em minha infância eu não era uma menina pobre e tinha um pai e uma mãe muito bondosos. Eles davam-me tudo o que necessitava e mais o que lhes pedia, como joias, pulseiras, relógios, roupas e, sobretudo, muitos brinquedos, como bonecas. Eles também tinham muito carinho por mim. Um dia, porém, minha mãe bateu-me muito porque lhe dei um grande desgosto. E ela, muito irritada, disse-me uma coisa que nunca deveria ter dito.

- Que disse-lhe ela assim de tão importante?

- Disse-me que não era minha mãe verdadeira. Contou-me que desejava muito ter um filho, mas, impossibilitada por problemas de saúde, resolveu adotar-me num orfanato. Estava bastante revoltada comigo e não sabia o que fazer de minha pessoa, afirmando que eu não merecia aquele carinho que ela e meu pai me davam. Insensatamente, pedi-lhe que me levasse à casa de minha verdadeira mãe, pois pretendia conhecê-la. E ela fez o que eu menos esperava: levou-me realmente à casa de minha mãe verdadeira, mas, chegando lá deixou-me com ela e afirmou categoricamente (juntamente com meu pai adotivo) que nunca mais queria ver-me, jamais deveria voltar à casa deles.

- Que mulher do gênio ruim! E você ainda diz que ela era bondosa...

- Foi aí, sargento, que eu comecei a entender o que é a verdadeira bondade. Eu pensava que meus pais eram bons porque me davam tudo o que eu queria. Enganei-me. Chegando à casa de minha mãe verdadeira, não vi que lá se gozava uma vida boa, como na casa de meus pais adotivos: havia muita carência, como das coisas essenciais à sobrevivência, tratava-se de uma família muito pobre, paupérrima mesmo. Mesmo assim, todos se contentavam com o pouco que tinham, quase não havia reclamações, e minha mãe verdadeira tinha muita paciência com os filhos, que eram muitos, em torno de sete inclusive eu. Corrigia os filhos com severidade, mas com amor.

- E neste novo lar, você era feliz?

- Não. Eu já estava muito mal acostumada com a vida fácil. Minha nova vida na casa de minha mãe verdadeira foi, na verdade, um inferno pra mim. Pois eu não suportava ver meus irmãos mal vestidos, aquela humildade que os fazia aceitar quase tudo sem reclamar, que me foi útil apenas para querer dominá-los. Havia aprendido a ser orgulhosa, e aquela vida pra mim era insuportável. Como foi duro, sargento: antes morava num palacete, e depois passei a morar num casebre, dentro de uma favela malcheirosa e, para piorar, não haviam me deixado levar meus pertences pessoais, como as roupas, joias, brinquedos, os vestidos elegantes e, sobretudo, minhas bonecas. Passava o tempo quase todo a chorar e a me maldizer.

- Então a senhora foi sempre malcriada, não foi?

- Nem tanto. Acontece que a vida levada na casa de minha mãe adotiva era muito artificial. E quando descobri o meu verdadeiro mundo, revoltei-me.

- Por que não voltou para a casa da mãe adotiva?

- Realmente, eu tentei voltar, mas eles repeliram-me. Lá havia outro filho adotivo mais novo. Era mais uma tentativa deles encontrar um filho que lhes fosse do agrado.

- A senhora deve ter aprontado uma boa com sua mãe adotiva, não foi?

- Apenas, inocentemente, contei um segredo a uma vizinha. Era criança, tinha lá meus 8 ou 9 anos, nem me lembro direito...

- Que fez na casa de sua mãe verdadeira, já que também lá não se deu bem?

- Não aguentei muito tempo, e fugi antes de completar meus 14 anos de idade. Apesar de minha pouca idade já tinha um corpo formoso e foi fácil se aproveitar disto para conquistar alguns homens e conseguir dinheiro. Tinha visto algumas meninas da mesma idade fazer o mesmo, e rapidamente aprendi como levar uma vida na prostituição. Algum tempo depois, arranjei um namorado que quis me ajudar e tentou conseguir emprego pra mim. Por sinal, não muito recomendável, num ambiente de gente de má fama. Fiquei junto com este rapaz por alguns anos, viajamos e fomos morar no Rio de Janeiro, vivendo lá a vida que Deus nos desse.

- E aí, se realizou com o rapaz?

- Que nada, era um embusteiro. Mesmo assim ainda convivi com ele uns 5 ou 6 anos. Não tivemos filhos, pois nos ensinaram a sempre “dar um jeito”. Sozinha no mundo passei a frequentar diversos ambientes para sobreviver, tendo ido uma vez aos estudos de uma TV para aprender a ser artista. Mas, nada consegui: eles exigiam curso de artes dramáticas, e eu nada disso tinha. Naquele ambiente onde morava, a única coisa que aprendi foi o uso de drogas e prostituição. Era comum ser seviciada e estuprada, pois convivia com gente da pior classe. Às vezes tinha saudades das famílias onde morei quando criança, mas não tinha coragem de voltar. Estive doente, fui internada num hospital para tratamento de drogados, mas nunca fui presa por motivo algum. Finalmente, na minha velhice, com a saúde tão abalada, sozinha no mundo, sem conseguir amparo de ninguém, sem família, sem marido ou filhos, consigo manter-me apenas como catadora de lixos. Recolho o que é útil daquilo que as pessoas jogam fora e tento vendê-lo. Sempre acho compradores.

- Tudo isto porque contou um segredo. Que segredo era este, posso saber?

- Era sobre um boneca...

Dona Chica começou a chorar e, soluçando, quase não falava.

- Uma boneca?

- Sim, uma boneca muito bonita que era de minha mãe adotiva. Ela a havia roubado de uma amiga, vizinha nossa, e nada disso eu o sabia. Havia possuído uma outra igual que se desmanchara num incêndio e, para manter a lembrança de algo que ela achava de tanto valor, roubou a da vizinha e a mantinha bem escondida. Dizia que a boneca, por ter sido tão importante, não se encontrava semelhante à venda em nenhuma loja.

- E a senhora teve a coragem de contar isso à vizinha?

-Foi sem querer. Eu vi uma foto, e disse: a mamãe tem uma boneca igual a essa da foto. Foi o bastante para a vizinha desconfiar, investigar e descobrir a verdade. Daí surgiu brigas o desfazimento da amizade das duas. E quem pagou mais caro foi eu...

- Ah, quer dizer que, por causa de uma simples boneca a senhora caiu no desamparo...

- Esta era a razão pela qual eu estava brincando com aquela boneca quando o senhor me encontrou. Não iria vendê-la, mas ficar com ela para matar saudades de meu tempo de infância. Relembrava todo o meu passado, embora cheio de amarguras, mas também de doçuras.

- Que havia de doçura na sua vida?

- Acho que nunca fui tão feliz senão quando morei com minha mãe adotiva. Naquele tempo eu ainda tinha inocência, e só é feliz quem se conserva inocente. Quando perdi a inocência, e depois a pureza, nasceu dentro de mim um verdadeiro inferno.

O sargento manda parar o carro, e virando-se para o cabo, pergunta:

- Que acha disso, Jorge?

- Não sei; eu também sou muito humano, mas não entendo como uma pessoa desta idade ainda queira brincar com bonecas. Mesmo se tratando de dona Chica.

- Olhem, meus caros, – responde a velha – eu não quero mais esta boneca. As recordações que ela me trouxe já me fez um pouco feliz durante o dia, mas também deixou-me bastante triste. O sargento não quer levá-la e dá-la a alguém?

- E se sua história for um embuste e aparecer alguém, verdadeiro dono da boneca, lá na delegacia?

- Dê-lhe, então.

- Não. A boneca é sua. Se for verdade o que disse, a terá merecido, pois noto que ainda resta um pouco de bondade na senhora. Se for mentira, eu saberei como encontrá-la e puni-la por querer nos enganar. Aliás, tenho convicção interior de que a senhora foi sincera conosco.  Admiro que em pessoas como a senhora ainda haja algum resquício de bondade e, sobretudo, de honestidade, virtudes muito raras nos dias atuais. Continue, dona Chica, seja sempre honesta, cate seus lixos para viver se não encontra outra atividade mais humana, mais nobre, mas nunca se desvie deste caminho. Desejo que o seu Natal, neste ano, seja o mais feliz de sua vida”.

Laura já dormia no colo do pai, mas Fabiana ainda estava atenta e perguntou contrafeita:

- Mas, papai, porque não trouxe a boneca pra mim?

- Não, minha filha, dona Chica precisava mais dela. Aquela velhinha necessitava ter um pouco de alegria, o que ela supõe ser a verdadeira felicidade. Notei que ela não estava mentindo, e depois constatamos que o telefonema realmente foi de alguém que queria se apossar da boneca caída do caminhão, que era de certo valor. Constatamos que houve realmente a queda do pacote de bonecas de um caminhão de cargas, o motorista nada viu, e várias pessoas apanharam a carga na estrada, dentre elas dona Chica.

- O senhor disse que dona Chica é bondosa: é verdade?

- Não completamente, mas algo de bondade ela ainda tem. Por ela se vê quantas histórias semelhantes e brutalmente desumanas ocorrem no mundo de hoje, tão materialista, tão egoísta. Não há mais candura, inocência, castidade, honestidade, e as pessoas levam uma vida materialista que parecem estar no supra-sumo da felicidade e do gozo, mas, no fim, é tudo falso. Um dia, como aconteceu com os pais adotivos de dona Chica, se descobre que em vez de bondade estas pessoas praticam uma autêntica maldade escondida.

- O que uma criança deve fazer para ser bondosa?

- Veja o exemplo do Menino Jesus, que adoramos no Natal. Inocência, pureza, candura. É a bondade inicial de todo ser humano, mas no Menino Jesus estas virtudes estavam como uma fonte para toda a humanidade. Se a pessoa conseguir manter-se em toda a vida, não tanto inocente no sentido de ignorante, mas no sentido de pureza, sem maldade, casta, com integridade de caráter, poderá ser uma pessoa boa até o fim da vida. Dona Chica vivia numa casa, com dos pais adotivos, em que a alegria era falsa. Tinha conforto material, mas não haviam virtudes sendo praticadas, nem caráter sendo aperfeiçoado, nem se praticavam bons costumes. Sua própria mãe adotiva era uma ladra sem escrúpulos. Talvez se dona Chica tivesse sido criada toda a sua vida pelos seus pais verdadeiros, embora numa situação de extrema pobreza, não tivesse se transformado e aprendido tanta maldade.

- Então ela se tornou uma pessoa má?

- Não, completamente; apenas aprendeu algumas coisas erradas convivendo com gente ruim, mas sempre guardando algo de bom dos tempos de criança.

- O senhor acha que neste Natal dona Chica aprendeu o que é bondade?

- Algo da bondade ela deve ter aprendido, como, por exemplo, viver resignadamente, na solidão, sem amparo de criatura alguma, procurando corrigir-se de seus defeitos ou seus erros do passado. Vamos rezar por ela, para que o Menino Jesus neste Natal lhe dê paz de espírito e a ajude na desesperança desta vida que leva.

Os sinos das igrejas tocavam pausadamente e ritmicamente; Dona Marieta trazia algumas bandejas com salgados, doces e outros quitutes. A mesa regiamente enfeitada fazia contraste com um singelo presépio colocado num canto da sala. A pequena família preparava-se para rezar suas orações, quando Laura acordou-se meio atordoada, perguntando:

- Mamãe, a senhora é minha mãe verdadeira?

Ao lado dos risos gerais veio a resposta sonora de dona Marieta:

- Mas, claro! Por que faz esta pergunta?

- Porque a senhora disse, há poucos instantes, que eu não pedisse uma boneca a São Nicolau...

- Ora, minha filha, não seja tolinha. São Nicolau já trouxe muitas bonecas para você, e mesmo que eu não fosse sua mãe de verdade eu lhe pediria que lhe desse mais bonecas, pois eu amo você como uma mãe deve amar sua filha, isto é, desinteressadamente. Lembre-se: o mais importante no Natal não são os presentes que ganhamos, mas o que podemos oferecer de bom ao Menino Jesus. Basta que você prometa ser tão pura e inocente como Ele foi, a fim de que um dia vá Lhe fazer companhia no Céu. E agora, vamos rezar para que possamos tomar a santa ceia de nosso Natal...

 

(Extraído de “CHOQUE DE MENTALIDADES, trabalho ainda inédito de minha autora, onde consta vários pequenos contos em que se mostra a prática de virtudes em choque com os maus costumes e vícios sociais atuais)

 


domingo, 17 de dezembro de 2023

EXEMPLOS CONCERNENTES A DEVOÇÃO AO MENINO JESUS

 



I – Lê-se no “Prado Florido”, que uma devota pessoa desejava saber quais as almas mais caras a Jesus Cristo. Um dia ela assistia à missa, no momento da elevação da santa Hóstia viu o Menino Jesus sobre o altar, e com ele três jovens virgens. Jesus aproximou-se da primeira, e lhe fez muitas carícias. Passou depois á segunda, levantou-lhe o véu e deu-lhe uma rude bofetada; em seguida voltou-lhe as costas; mas, logo depois, vendo-a triste, o Divino Menino a consolou com provas de afeto. Chegou enfim à terceira, com rosto irado, tomou-a pelo braço, bateu-a e expulsou-a para longe dele; porém quanto mais a pobre moça se via maltratada e repelida pelo Senhor, tanto mais se humilhava e se chegava a Ele. Assim terminou a visão. A pessoa de que falamos, teve vivo desejo de saber a significação do que acabara de ver; Jesus apareceu-lhe de novo e lhe disse que há na terra três sortes de almas que o amam. Algumas o amam, porém com amor tão fraco que, se não forem sustentadas pelas doçuras espirituais, ficam sem sossego e em perigo de abandoná-lo; a primeira das três virgens figurava essas almas. A segunda representava aquela cujo amor é menos fraco, mas que tem necessidade de ser consolada de tempo em tempo. Finalmente, a terceira era a figura daquelas almas fortes que, embora sempre desoladas e privadas de consolações espirituais, não deixam de fazer o que podem para agradar a Deus. E, ajuntou Jesus, são estas últimas as que mais eu amo.

II – O padre Canóglio conta que uma religiosa, após numerosos pecados, ousou cometer um enorme sacrilégio. Um dia, depois da comunhão, tirou da boca a santa hóstia e a pôs num lenço; depois, fechando-se no quarto, atirou ao chão o Santíssimo Sacramento e o calcou aos pés. Em seguida, abaixa os olhos, e o que vê? Em lugar da hóstia, uma criança de grande formosura, mas toda pisada coberta de sangue, que lhe disse: “Que te fiz eu para assim me maltratares?” Então a infeliz caindo em si e penetrada de arrependimento, ajoelhou-se em prantos e exclamou: “Meu Deus, perguntais o que vós fizestes? Ah! Vós me amastes em excesso”. A visão desapareceu; e a pecadora, inteiramente convertida, tornou-se um modelo de penitência. 

III – Conta-se nas crônicas da Ordem de Cister, que um monge do Brabante, atravessando uma floresta na noite de Natal, ouviu um gemido como duma criança recém-nascida. Caminhou para o lugar donde vinha a voz e percebeu no meio da neve uma bela criancinha que tremia de frio e chorava. Movido de compaixão, o religioso apeou do cavalo e aproximando-se da infeliz criança, exclamou: “Menino, como é que te achas assim abandonado na neve chorando e tremendo de frio?” Então ouviu a resposta: “Ah! Como posso deixar de chorar vendo-me abandonado por todos, não havendo ninguém que me acolha e se compadeça de mim?” A essas palavras o Menino desapareceu, dando-nos a entender que era o nosso divino Salvador, e que, por essa visão quisera queixar-se da ingratidão dos homens que, sabendo que Ele nasceu numa gruta por seu amor, o deixam chorar sem terem dele a menor compaixão. 

IV – Pelbarto conta que um soldado vicioso tinha uma mulher piedosa que, não conseguindo convertê-lo, obteve ao menos dele que não deixasse de rezar cada dia uma Ave Maria diante de alguma imagem da Santíssima Virgem. Um dia, saindo para maus fins, passou diante de uma igreja, entrou nela por acaso, e, percebendo a imagem da Santíssima Virgem, pôs-se de joelhos e rezou a sua Ave Maria. Mas que vê? Vê nos braços de Maria o Menino Jesus todo coberto de chagas ensanguentadas. “Meu Deus, exclama, qual o bárbaro que assim tratou uma inocente criança?”. “Fostes vós, pecadores, respondeu Maria, que assim tratais o meu Filho”. A essas palavras sentiu-se tocado de compunção, e pediu a Nossa Senhora, chamando-a Mãe de Misericórdia, lhe obtivesse o perdão dos seus pecados, mas Ela respondeu: “Vós, pecadores, me chamais Mãe de Misericórdia, e não cessais de fazer de mim uma Mãe de dor e de miséria!” O penitente não desanimou, e continuou a suplicar a Maria intercedesse por ele, e a Santíssima Virgem, voltando-se para seu divino Filho pediu-lhe perdão para aquele pecador. Jesus mostrou primeiro repugnância, mas Maria ajuntou: “Meu Filho, não deixarei os vossos pés enquanto não perdoardes a esse infeliz que a mim se recomenda”. “Minha Mãe, disse-lhe então Jesus, nunca vos recusei coisa alguma. Desejais o perdão para esse homem; pois bem, perdoo-lhe, e em sinal de reconciliação, quero que me venha beijar as chagas”. O pecador se aproximou e, na medida em que beijava as chagas de Jesus, estas se fechavam. Saiu depois da igreja, foi pedir perdão a sua mulher, e ambos, de comum acordo, deixaram o mundo para abraçar o estado religioso em dois mosteiros onde terminaram santamente a vida. 

V – Lê-se na Vida do Irmão Benedito Lopes que, quando militar, tinha a consciência manchada de pecados. Um dia, em Travancore, entrou numa igreja, enquanto considerava uma imagem de Maria com o Menino Jesus, o Senhor lhe pôs ante os olhos a sua má vida. A essa vista, sentiu tentação de desespero quanto à salvação; mas voltando-se logo para a Santíssima Virgem, recomendou-se com lágrimas à sua intercessão; viu então o santo Menino chorar também e as suas lágrimas cair sobre o altar, de sorte que outros o perceberam e se puseram a recolhê-las num pano. Desde esse momento, Benedito, penetrado de contrição, renunciou ao mundo e tornou-se irmão coadjutor da Companhia de Jesus, onde viveu e morreu com sentimentos de terna devoção à santa infância de Jesus Cristo.

            VII – O padre Patrignani narra que em Messina havia um menino nobre, chamado Domingos Ansalone, que ia frequentemente visitar na igreja uma estátua da Santíssima Virgem com o Menino Jesus, pelo qual sentia terno afeto. Ora, Domingos caiu mortalmente enfermo. Pediu com viva instância a seus pais lhe fizessem trazer o seu caro Jesus. Realizado o seu desejo, tomou-o com grande alegria e colocou-o no leito; não se cansava de olhar para Ele com amor, e de tempo em tempo lhe dirigia esta prece: “Meu Jesus, tende piedade de mim”. Depois, voltando-se para as pessoas presentes, dizia-lhes; “Vede, vede como é belo o meu pequeno Senhor”. Na última noite de sua vida, chamou seus pais e, na presença deles, disse ao santo Menino: “Meu Jesus, constituo-vos o meu herdeiro”. Pediu depois a seu pai e a sua mãe que, com a pequena soma que tinha de reserva, fizessem celebrar nove missas depois de sua morte, e confeccionassem com o resto uma bela roupinha para o seu pequeno herdeiro. Antes de expirar, ergueu os olhos ao céu com o rosto radiante de alegria, e disse: “Oh! Como é belo! Como é belo o meu Senhor! E pronunciando essas palavras exalou o seu derradeiro suspiro.

            VIII – A passagem que se vai ler é tirada do “Espelho de Exemplos”. Um jovem inglês, muito piedoso, chamado Edmundo, estava no campo com outras crianças de sua idade. Como amava a oração e a solidão, separou-se de seus companheiros para passear à parte num prado, fazendo afetuosos atos de amor a Jesus Cristo. De repente, um menino encantador se lhe apresentou e o saudou com as palavras: “Deus te guarde, meu caro Edmundo!” Perguntou-lhe depois se o conhecia. Edmundo respondeu que não. “Como não? Replicou o celeste Menino, não conheces a mim que estou sempre a teu lado? Pois bem! Se me queres conhecer, olha-me o rosto”. Edmundo, olhando para ele, leu em sua fronte as palavras ; “Jesus Nazarenus, Rex Judeorum” – Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus – Então o santo Menino ajuntou: “Eis o meu nome, e quero que, em memória do amor que te tenho, faças todas as noites o sinal da cruz em tua fronte pronunciando-o. Com isso serás preservado da morte repentina, bem como todos os que fizerem a mesma coisa”.

Edmundo continuou depois a persignar-se com o nome de Jesus. Uma vez o demônio agarrou-lhe a mão para que não pudesse fazer; mas ele o venceu pela oração e o obrigou a dizer qual a arma ele mas temia. O demônio confessou que eram aquelas palavras com que se persignava.

            IX – O padre Nadasi conta que num convento se introduzira o piedoso costume de se fazer passar sucessivamente a imagem do Menino Jesus de uma religiosa para outra; cada uma a contemplava um dia. Uma dessas virgens, tendo-a por sua vez, fez antes uma longa oração, depois chegando a noite, tomou a santa imagem e a encerrou num pequeno armário. Mas apenas se tinha ele acomodado, ouviu o Menino Jesus bater à porta do armário. Levantou-se incontinenti, recolocou a imagem sobre o altarzinho, e, depois de rezar demoradamente, a encerrou de novo. Mas o Menino Jesus bateu uma segunda vez. Retirou-o novamente e rezou. Enfim, subjugada pelo sono, pediu a Jesus permissão para descansar, e dormiu até de manhã. Ao despertar bendisse aquela noite feliz que passou em santo entretenimento com o seu querido Jesus.

            X – Refere-se no “Jornal Dominicano” que, a 7 de outubro, São Domingos, pregando em Roma, encontrou uma pecadora chamada Catarina a Bela. Esta recebeu um Rosário das mãos do Santo e pôs-se a rezá-lo sem contudo deixar sua vida má. Um dia Jesus apareceu-lhe, primeiro sob a forma dum jovem moço e depois sob a duma criança graciosa, mas com uma nova coroa de e espinhos na fronte e uma cruz nos ombros; lagrimas corriam de seus olhos, e sangue de seu corpo. Disse-lhe: “Basta, não peques mais, Catarina, basta; cessa de ofender-me; vê quanto me custastes,pois comecei desde a infância a sofrer por ti, e não cessei de sofrer até a morte!” Catarina foi logo procurar São Domingos, confessou-se, recebeu dele instruções, e depois de distribuir aos pobres o que possuía, encerrou-se numa cela estreita e murada, onde se esforçou para levar vida fervorosa, e obteve do Senhor graças tais, que o Santo ficou tomado de admiração. Teve morte ditosa, depois de receber a visida da Santíssima Virgem.

            XI – A venerável Irmã Joana de Jesus e Maria, franciscana, meditando um dia sobre o Menino Jesus perseguido por Herodes, ouviu um grande rumor, como de soldados à procura de alguém, depois viu diante dela um belíssimo Menino, quase sem respiração, que fugia e lhe dizia: “Joana, acode-me, esconde-me; eu sou Jesus de Nazaré, e fujo dos pecadores que querem matar-me e que me perseguem mais do que Herodes; salva-me”.

            XII – O padre Zucchi, da Companhia de Jesus, tinha grande devoção ao Menino Jesus, cujas imagens o ajudavam a ganhar muitas almas para Deus. Conta-se em sua vida, que um dia ofereceu uma dessas imagens a uma moça, que vivia em grande inocência, mas que estava longe de pensar em fazer-se religiosa. Ela aceitou o presente, mas disse sorrindo: “Que devo fazer desse pequeno Menino?” O Padre, sabendo que ela gostava muito de música, respondeu-lhe: “Coloca-o em teu piano”. E ela o fez. Assim, tendo sempre o santo Menino diante dos olhos, a jovem teve muitas vezes ocasião de o considerar; começou a sentir devoção; depois concebeu desejo de tornar-se melhor, de sorte que o seu instrumento a movia mais á oração do que à música. Enfim, tomou a resolução de deixar o mundo e abraçar o estado religioso. Quando, cheia de contentamento, contou ao Padre Zucchi que o Menino lhe ganhara o coração e que, desprendendo-a das afeições terrestres, conquistara todo o seu amor, entrou no convento e levou vida perfeita.


NOTA: talvez por algum de transcrição, a publicação não se refere ao exemplo n. VI

(Extraído de: “Encarnação, Nascimento e Infância do Menino Jesus” – de Santo Afonso Maria de Ligório – Coleção Clássicos da Espiritualidade Católica)

 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

DILEMA DE SÃO NUNO DE SANTA MARIA: CASTIDADE PERFEITA OU OBEDIÊNCIA?

 




No ano de 1373, o pai de São Nuno resolve enviar o seu filho para a corte, contando o mesmo apenas 13 anos de idade. Aquela mudança era necessária para formar no espírito do jovem os ideais de grandeza sem perder a ingenuidade das primeiras lições juvenis. Naquele tempo o jovem amadurecia cedo, e o prior do Crato viu naquele rapazote de apenas 13 anos maturidade suficiente para enfrentar os problemas da corte, que já eram muitos e difíceis.

Aos 16 anos de idade, o pai de Dom Nuno o obriga a contrair matrimônio, embora o rapaz houvesse pedido a dispensa pois houvera feitos votos de castidade.  Disse-lhe certo dia Dom Álvares:

- Nuno, parece-me bem e serviço de Deus e tua honra, que hajas de casar...

Aquilo lhe soava como algo muito estranho, pois nunca havia pensado nisto. Seu ideal era o da Cavalaria, e por isso nunca havia pensado em mulher. E como o jovem ficava cabisbaixo e pensativo, o pai acrescentou:

- Nuno, és homem e farás casa. Achei-te a noiva entre Douro e Minho. Mandei lá João Fernandes, o comendador da Flor da Rosa e de São Brás de Lisboa.  Ela concordou, pondo por condição única a aprovação de el-rei. Já a obtive, e el-rei mandou-a vir à corte.

Como o jovem continuava pensativo, sem saber o que dizer, o pai completa:

- É D. Leonor de Alvim, boa, de boas rendas e cabedal: a viúva de Vasco Gonçalves, de Barroso...  Filha de João Pires de Alvim e de D. Branca Pires Coelho, nossos parentes em quarto grau.  Têm escudo esquartelado: nos dois enxadrez, vermelho e amarelo; e nos contrários, cinco flores-de-lis de ouro, em campo azul. Vai bem com a cruz floretada dos Pereira. Já se pediram as dispensas ao Papa Gregório IX: vêm a caminho. É muito nobre dama e de grande virtude; e a minha vontade manda, se a Deus prover, que te cases com ela. Quero saber de ti o que te parece isto...

Finalmente, após tal insistência do pai, Dom Nuno resolve falar, mas apenas para pedir que lhe desse um tempo para pensar, pois não estava avisado e precisava analisar sua consciência e julgar que resposta daria. O pai concordou com o pedido, mas não imaginava o que poderia se passar na cabeça de seu filho. A mãe de Nuno, D. Iria Gonçalves, imaginava que o filho não aceitaria o casamento porque a noiva era viúva. Foi ela até o filho e lhe garantiu, de fonte certa e segura, que poderia aceitar o casamento, pois a noiva prometida era virgem, já que o casamento nunca havia sido consumado com a morte repentina do marido.

Não, não era este o motivo. Dom Nuno lhe disse que não desejava se casar com pessoa alguma, fosse virgem ou não, pois havia feito particularmente voto de castidade. O ideal que alimentava sua alma era de uma total dedicação à Cavalaria cristã, e para tanto desejava ardentemente permanecer casto. Era comum entre a nobreza cristã desta época surgir inspiração para tais votos entre                 os jovens. Haviam os exemplos de cavaleiros famosos, como Godofredo de Buillon e tantos outros cruzados. Tratava-se do desejo de adquirir uma das mais belas bem-aventuranças quando Nosso Senhor Jesus Cristo disse: "Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus" (Mt 5, 8). Ou então, quando mais adiante falou aos seus discípulos: "Nem todos compreendem esta palavra, mas (somente) aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que nasceram assim do ventre e sua mãe, há eunucos a quem os homens fizeram tais e há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do reino de Deus. Quem pode compreender compreenda"  (Mt 19, 11-12).

O pai não gostou da idéia, e insistiu que deveria prevalecer sua vontade. Ademais, já tinha tomado todas as providências, inclusive obtido previamente a ordem de el-rei e a dispensa da Igreja. Que dispensa era esta? Os cronistas não dizem, mas como não havia impedimento legal com relação ao parentesco, provavelmente era com relação aos votos que o jovem fizera em particular. Desta forma, não havia outra alternativa senão obedecer, embora contrafeito, e aceitar sem nenhuma ressalva cumprir a vontade de seu pai. E o casamento foi realizado...

Seu casamento o fez afastar-se da corte por algum tempo, talvez uns três anos. Foi morar com sua esposa na região do Minho, onde montou uma propriedade rural. Levava, assim, uma vida de fidalgo rural, caçador e monteiro, cercado por seus escudeiros e por seus criados.  Esta ausência o fez ignorar, de algum modo, como andava mal a corte portuguesa. Após algum tempo, porém, teve que se afastar para dirigir as empresas guerreiras de que carecia a nação portuguesa.

Tentativa frustra de casar um guerreiro viúvo

De volta de uma destas expedições guerreiras, Nun'Álvares mais uma vez se dirige para o seu Alentejo, onde se sentia mais à vontade. Quando as cortes se reuniram no ano seguinte, foi ele chamado a Coimbra. De lá soube de uma triste notícia que o deixou muito ferido. Havia falecido em Braga sua esposa, D. Leonor de Alvim, cujo cadáver foi transportado para ser enterrado na cidade do Porto. O casamento durara quase doze anos (de agosto de 1376 a janeiro de 1388), cinco dos quais o Condestável andara afastado da esposa em suas guerras contra Castela.  A única filha foi residir então com sua avó, D. Iria Gonçalves, mãe de Dom Nuno. O Condestável ficava viúvo com apenas 28 anos de idade.

A rainha, D. Filipa, tinha bastante empenho em procurar casar seus nobres. Desta forma, chamou Dom Nuno e lhe disse que iria conseguir uma outra esposa para ele. No entanto, o cavaleiro, o nobre Condestável, desdenhava do casamento, pois se considerava casado apenas com sua sagrada, rija e bela espada, com seu ideal sacrossanto de defender a sua pátria e sua Religião. Se ele precisa estar sempre presente no campo de batalha como poderia dar assistência adequada à sua esposa e filhos? Não, seu ideal era outro, o casamento não se lhe apresentava senão como um óbice a seus desígnios cavalheirescos e guerreiros.

A prometida, logo escolhida pela própria rainha, era a filha do Conde Álvaro Pires de Castro, D. Beatriz, cujo conde já causara estorvos ao Condestável há quatro anos quando começou a sua campanha pela entronização de Dom João em 1384. Sem querer machucar a rainha, que demonstrara tão boa vontade no caso, respondeu-lhe:

- Para oferecer a D. Beatriz os meus braços, é preciso que eles estejam desarmados, e não convém ainda largar a espada.

Mas a rainha insistia, teimava em casar o seu Condestável. Dom Nuno, também teimoso, resolve fugir e foi para o seu Alentejo, onde sempre se refugiava das complicações que encontrava pela corte.  Iniciou logo uma campanha, desta vez contra o mestre de Santiago que atacava Estremoz. Daí partiu para outras investidas guerreiras, em Ourique contra o conde de Niebla, e em Monsaraz contra gascões e castelhanos. Não impedira, porém, que o inimigo levasse cativos vários portugueses para Vila Nueva del Fresno, além da fronteira.  Resoluto, marchou com seus homens ainda de madrugada para libertar seus companheiros. Assaltaram a torre do castelo e travaram renhida batalha. Dom Nuno foi ferido numa coxa, mas todos os cativos que estavam ali foram libertados. E assim, estava tão envolvido em suas campanhas guerreiras que não houve tempo de pensar em novo casamento.

Após a vocação guerreira, a do claustro

A decisão veio quando soube da morte de sua filha, o único laço que ainda o prendia ao mundo profano. Assim que o esquife da filha baixou a sepultura, imediatamente lhe surgiu na alma a decisão de se retirar do mundo (mais ou menos em 1422 ou 1423).  Mas, antes de renunciar ao mesmo mundo, ainda teve que cumprir uma missão: mandou chamá-lo o rei Dom João I para fazer parte da expedição de Ceuta. Era a primeira expedição de Portugal contra os mouros fora de seu território. O Condestável pediu ao rei que o dispensasse porque havia decidido entrar no convento, mas o rei o convenceu sobre a importância de sua presença no comando do exército, fato que tornou a empresa mais eficaz e ter atingido o objetivo final.

Quando retornou de Ceuta, Dom Nuno teve que participar sua decisão ao rei e aos amigos do reino. Estava pedindo que o dispensasse do cargo de Condestável pois estava prestes a entrar no convento e se fazer religioso. Dom João e o infante Dom Duarte insistiam para que ficasse, pois Portugal ainda precisava de seus serviços. De nada valeram seus pedidos.  O bondoso príncipe, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe que pelo menos conservasse os títulos que conquistara. Mas o noviço respondeu, alisando o escapulário:

- O Condestável já está morto e amortalhado.

Proibiu, naquele momento, que a partir daquela data o chamassem de conde ou condestável, mas somente de Nuno. Finalmente, no dia 15 de agosto de 1423, quando contava 63 anos de idade, o Condestável Nun'Álvares Pereira deu entrada no claustro do Carmelo em Lisboa, aquele mesmo que ele houvera construído e doado à Ordem. Tomou o nome em religião de Frei Nuno de Santa Maria. Naquela data, vestiu pela primeira vez a túnica talar branca com escapulário marrom. No mesmo instante, entregou ao Prior Frei Gomes de Santa Maria a cota de malha que usara nas batalhas, sua famosa e invencível espada e o relicário que sempre trazia em seu peito. Recebido o hábito, instalou sua cela ao lado da portaria.   Ele agora iria comandar outras batalhas, as do espírito, contra as tentações da carne e em busca das perfeições cristãs. E para tanto, como era costume na época, não descurou de usar seu cilício e rigorosas penitências. Evidentemente que consumou seu desejo de fazer votos de castidade, desta vez não em particular, mas público sob as vistas de seus novos superiores

Tamanha era sua fama que o seu claustro começou a ficar incômodo, pois muitos o queriam visitar. Pretendia fugir para os longínquos desertos de Tebas, onde viveram os primitivos anacoretas. Se havia tomado tal decisão, Dom Nuno procuraria cumpri-la a todo custo, pois não era homem de voltar atrás em seus propósitos. Mas, Dom Duarte correu ao convento, quando soube de sua intenção. Os argumentos do infante foram ouvidos por Frei Nuno e resolveu ficar. Na ocasião, atendeu ele também ao pedido do infante para não mais sair às ruas pedindo esmolas. A partir daquela data, ele só pediria esmolas ao rei.

Viver solitário naquele convento não seria difícil, bastava fazer uma cela num local de difícil acesso aos curiosos. Assim, mandou construir dentro do convento uma outra cela, mais isolada, onde recebeu várias visitas da Virgem Santíssima que o favorecia com constantes aparições.  Foi nesta cela que lhe apareceu também Santo Elias, o Patriarca dos Profetas e Fundador remoto da Ordem do Carmo. Uma das poucas vezes em que permitiu que rompessem o seu isolamento foi quando autorizou a entrada de um embaixador de Castela, vindo a Lisboa ratificar tratados de paz. Frei Nuno, depois de se recolher em oração, mandou que a visita entrasse, que lhe perguntou:

- Nunca mais despireis essa mortalha?

- Só se el-rei de Castela outra vez mover guerra contra Portugal. Em tal caso, enquanto não morrer, servirei ao mesmo tempo a Religião que professo e a terra que me deu o ser.

O embaixador ficou assombrado, teve aqueles mesmos assombros que os castelhanos tinham quando sabiam que Dom Nuno vinha com seu exército para lhes dar combate.  Olhou para Frei Nuno e, vendo-o levar as mãos ao peito e apertar o escapulário, percebeu que por baixo do hábito havia ainda a armadura de guerreiro.  Não, ele ainda não havia morrido. Não havia morrido para a luta, para reparar a injustiça e punir os culpados. Estava perfeitamente visível para o embaixador o seu arnês, que ele propositadamente colocara para dar a entender que poderia voltar ao campo de batalha se fosse necessário.[1]



[1] Extraído, com adaptações, do livro "A Vida de Nun'Álvares", de Oliveira Martins, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1983.

 


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

UMA ESPADA QUE SIMBOLIZA UMA MISSÃO DIVINA

  



Quando ainda era muito jovem Dom Nuno Álvares Pereira, o maior herói português, o famoso Condestável santo, começou a frequentar o paço real e já era conhecido como um cavaleiro cheio de valor e valentia. Assim, a rainha lhe chamou, pôs a mão sobre o seu ombro e lhe disse que queria armá-lo escudeiro real. Dom Nuno, de coração terno e valente, baixou a cabeça perante a rainha e lhe respondeu:

- Se Deus me fizer formoso, dar-me-á bondade, agradando-lhe. De outro modo, valeria pouco. Mas quererá que eu seja tão bom, e coisa que se assemelhe à minha linhagem e àqueles de onde eu venho. Pus a minha esperança em Nosso Senhor...

Era um depoimento todo humilde e cristão, bem de acordo com sua formação religiosa. A rainha o interrompe e manda buscar a espada, previamente aspergida em água benta, cinge-a em sua cintura e manda colocar suas esporas de ouro. Era uma forma diferente de se armar um cavaleiro. Dom Nuno gostaria de ter sido armado de outra forma, como era comum na Ordem Hospitalar, com a vigília de armas, o juramento, etc.  Mas ele era submisso aos desejos da sua rainha, embora ela não fosse querida pelo povo.   Pôs-se, então de joelhos, ocasião em que a rainha desferiu os três golpes convencionais com a parte plana da espada em suas espáduas, dizendo em seguida:

- Deus vos faça bom cavaleiro!

Uma espada torna-se símbolo de missão divina

Algum tempo depois, o rei de Castela vinha aumentando seus propósitos de invadir Portugal. A nação inteira estava dividida, e não havia quase ninguém para liderar uma sadia reação contra o rei estrangeiro e cismático. A salvação estava nas mãos de Dom João, o Mestre de Avis, e Dom Nuno Álvares Pereira. Em Lisboa, a população havia escolhido o Mestre de Avis como regedor e defensor do reino, primeiro passo para sua coroação e aclamação, mas o Mestre dependia dos homens de armas para prosseguir.

Dom Nuno Álvares Pereira corria suas terras procurando aumentar suas tropas. Foi ao receber uma carta da rainha pedindo para juntar-se a ela que resolveu agir prontamente. De modo algum a nação portuguesa poderia voltar às mãos de Castela, principalmente sob o reinado de um cismático, e o valoroso cavaleiro não poderia permitir que isto ocorresse.

Foi até um alfageme, em Santarém, e vendo uma belíssima espada exposta na parede, disse:

- Alfageme, formosa espada é esta... Quereria que assim corrigisses a minha. Podes?

Quando no dia seguinte, Nun' Álvares Pereira foi buscar sua espada, ficou pasmo e quase não a reconheceu, tão bela estava! A folha era a mesma, três dedos de largura; mas cegava de brilhante, parecia de fogo!  De um lado tinha a marca do alfageme: uma cruz com uma estrela na extremidade da haste maior e a legenda "Excelsus super omnes gentes, Dominus";  do lado oposto tinha a cruz floretada dos Álvares, enlaçada em letras com os dizeres "Dom Nuno Alves", e por cima o santo nome de "Maria".   Empunhou-a com amor, pois era ela o instrumento de uma vocação que Deus lhe revelara em sonhos.

O alfageme fitou-o embevecido, sentindo naquele momento o palpitar de um coração heroico. Em seguida, Dom Nuno pergunta:

- Quanto lhe devo, alfageme?

- Senhor, eu por agora não quero de vós nenhuma paga... Ide muito embora; por aqui tornareis conde de Ourém: então me pagareis.

- Não me chames senhor, porque o não sou: quero que vos paguem bem...

Foi inútil insistir, o alfageme, que profetizara daquela forma, se recusou teimosamente em receber qualquer pagamento por seu trabalho. Era difícil para Dom Nuno imaginar naquele momento que se tornaria conde de Ourém, título que pertencia ao "Andeiro" morto por Dom João. Dir-se-ia que foi um anjo o artífice que preparou espada tão bela e destinada a missão tão grandiosa.

Quando São Nuno de Santa Maria começou suas ações guerreiras tinha apenas 24 anos de idade, e os cronistas o descrevem como um homem de rosto comprido, nariz longo e afilado, mas expressa em sua fisionomia, uma decisão dominante. A boca e a testa eram pequenas, o lábio superior curto, e debaixo das sobrancelhas, fortemente arqueadas, luziam fundos os pequenos olhos escuros. Via-se em seu rosto um misto de grave energia e de uma cândida bondade, características dos grandes santos. Havia aprendido a mandar de uma tal forma que nem se ensoberbecia e nem tampouco humilhava ou esmagava o brio de seus comandados.  Seu lema era a lealdade, acima de tudo.  De outro lado, seus homens o respeitavam como se fosse um pai...

Como era um acampamento guerreiro católico

No centro do acampamento, via-se dardejando ao vento o seu pendão santo, que havia idealizado há algum tempo. O fundo do estandarte era branco, tendo uma cruz vermelha ao centro. Em cada quarto dos braços da cruz havia uma imagem piedosa, e nos quatro cantos outros tantos escudos da sua linhagem.  No primeiro quarto superior, via-se a imagem de Jesus Cristo crucificado e aos pés da Cruz, sua Mãe Santíssima de um lado e São João do outro; no outro quarto superior havia a imagem de Maria Santíssima com o Menino Jesus no colo. No primeiro quarto inferior estava a imagem de São Jorge, rezando a Deus, de mãos postas; no outro quarto inferior havia a imagem de Santiago, o Apóstolo das Espanhas, na mesma posição de São Jorge.

Quando estava pare se iniciar algum combate, ele reunia seus homens, falando-lhes como um general experimentado. Dizia-lhes o que os esperava, muita dureza, sofrimento, e talvez a morte. Por isto, tinham que se comportar como se fossem uma família, como se fossem um rebanho unido para enfrentar uma região cheia de feras. Dava as ordens, nomeava os encarregados de várias funções, criava o conselho de guerra e deixava todos prontos para o combate. Sua hoste era uma pequena cidade ambulante, mas unida como uma rocha de granito.

(Extraído, com adaptações, do livro "A Vida de Nun'Álvares", de Oliveira Martins, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1983).


domingo, 3 de dezembro de 2023

A TENTAÇÃO E NOSSA CONFIANÇA EM DEUS

 



                                      SÃO FRANCISCO XAVIER

 

Entre os preciosos escritos que nos deixou, ditados pela profunda sabedoria e senso apostólico que o distinguia, São Francisco Xavier assim se refere à luta contra as tentações, pela qual todos passamos em nossa vida espiritual:

“O meio mais seguro para triunfar do inimigo é ter uma grande coragem, desconfiando de si mesmo e se apoiando em Deus, de sorte que, após ter colocado toda vossa esperança n’Ele, e só n’Ele, nada mais temereis e nem duvidareis da vitória.

“E como o demônio não tem poder senão sobre aqueles que Deus lho permite, quanto mais seus assaltos são terríveis, mais é preciso redobrar de confiança na Divina Providência, porque Ela permite ao inimigo assaltar e atormentar só os seres fracos que n’Ela não confiam, que desdenham de se amparar n’Ela e colocam em outros as suas esperanças.  É esta fraqueza que gangrena os corpos e faz com que tantas pessoas que começam a servir a Deus terminem por levar uma vida cheia de tristezas e angústias”.

Para bem aproveitarmos esse pensamento de São Francisco Xavier, devemos antes de tudo considerar que a tentação pode ter causa natural ou preternatural (isto é, proveniente do demônio).

Por exemplo, o impulso de se irritar contra alguém ser tão talvez motivado por uma disposição natural, explicável se aquele faz algo que nos desagrada; inexplicável, se se tratar de uma mera susceptibilidade de nossa parte. Porém, esse ímpeto para se agastar pode ter uma causa preternatural se, de repente, somos tomados por um acesso de irritação, injustificável e insensato, em relação a uma pessoa que em nada nos incomodou.

Entretanto, coexistem. Assim, ao sermos assaltados por um mau desejo de cunho natural, haverá um concurso do demônio, secundando-o. Por outro lado, quando nos assedia com sua ação maléfica, este último em geral cria ou explora uma circunstância natural, para então entrar com sua influência preternatural.

 

Duas categorias de tentações

Isso posto, as tentações podem ser classificadas pelo menos em duas categorias. Umas são tentações-castigos; outras serão apenas provações e até estímulos para progredirmos na vida espiritual.

Esse ponto merece insistência, pois não é raro ouvirmos queixas como estas: “Ando tão mal que me sinto tentado a querer tal coisa péssima”. Ou: “A tentação é um castigo para os que não se comportam bem, e Deus me puniu com uma. Se estou tentado, é porque fiz alguma coisa errada”.

Importa compreender que esse raciocínio não se aplica a todos os casos de tentação.

Certo, quando alguém se deixa levar por determinada atitude espiritual ruim, abre o flanco para a investida do demônio. O próprio São Francisco Xavier nos cita exemplos dessas perigosas disposições de alma. Ele adverte as pessoas que não se dedicam nos serviços a elas confiados e que arrastam a obrigação preguiçosamente. Essa preguiça já constitui uma meia guarda desamparada para que o inimigo se apresente e as incite a abandonar o dever. Risco análogo corre o religioso que cumpre uma obediência cheio de cismas e de ressalvas interiores, mais ou menos arbitrárias. É óbvio que, de um momento para outro, será tentado pelo demônio a não seguir as ordens de seu superior. Em ambos os casos, a tentação pode ser vista como um castigo pela má predisposição de espírito dessas pessoas.

Contudo, muitas vezes é outra a razão de sermos tentados. Vamos muito bem na vida espiritual, e por isso mesmo Deus permite travarmos um combate com o adversário d’Ele, para que vençamos e alcancemos um incremento de glórias na nossa piedade.

 

Motivo para confiar em Deus

Em outras ocasiões, verificar-se-á o fato de não estarmos num bom momento espiritual, e Deus então dispõe que sejamos tentados para que a luta nos estimule a melhorar. Assim, muitas tentações são permitidas por Ele, pois constituem um verdadeiro tônico para os necessitados de incentivo.

Mais ainda. Na vida espiritual, o perigo consiste, não tanto em ser tentado, mas em não sofrer os ataques do demônio. Com efeito, não é sinal favorável que uma pessoa passe anos sem tentações, pois provavelmente será do número daquelas almas às quais o demônio logrou paralisar no caminho da perfeição. Elas se deixaram cair na modorra, na indolência e mediocridade, embora conservem um resto de consciência de seu estado lamentável: se forem tentadas, começam a se erguer e a reagir. Por isso o demônio não as provoca, para que continuem a se decompor de modo imperceptível ao longo dos tempos.

Por tudo quanto foi dito, vê-se que este raciocínio:”Estou tentado; logo, vou mal espiritualmente e estou sendo castigado” – é uma imensa simplificação e mutila o panorama da nossa vida de piedade. Até mesmo para alguém que sofre tentações porque abriu o flanco ao demônio, a reação contra elas pode colocá-lo numa posição melhor do que antes das investidas diabólicas, humilhando e rechaçando o seu inimigo.

A tentação não nos deve, pois, levar ao desânimo ou ao semi-pânico, mas, como diz São Francisco Xavier, a um aumento de nossa confiança em Deus. Ainda que tenhamos sido culpados e, portanto, tentados por castigo, Deus continua sendo nosso Pai, e Maria Santíssima, nossa Mãe. Ela é o Refúgio dos Pecadores: qualquer um que tenha cometido uma falta e se refugie junto a Ele, recebe sua materna proteção, seu infalível auxílio e incansável assistência.

 

A oração da confiança

Nesse sentido, devemos ponderar muito as palavras magníficas do “Lembrai-Vos”, essa tocante oração atribuída a São Bernardo de Claraval, o Doutor Melífluo. Diz ela:

“Lembrai-Vos ó Piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que têm recorrido à vossa proteção, implorado vossa assistência e reclamado o vosso socorro fosse por Vós desamparado”.

Como se vê, nessa prece se fala de proteção, assistência e socorro. Proteção para evitar que cedamos ás tentações; assistência, ou seja, auxílio em nossa dificuldades; socorro, quando estivermos periclitando e afundando. Pois bem, nunca alguém que tenha pedido a Ela socorro, assistência e proteção, foi desamparado. Cumpre salientar que a palavra “nunca” é muito categórica: não houve um só caso de alguém que recorreu a Nossa Senhora e não foi atendido.

“Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem entre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me valho”.

Quer dizer, “se Vós jamais deixastes de proteger alguém, aqui estou eu, homem batizado na Igreja Católica e filho vosso, que venho Vos pedir auxílio. Estou tentado, tive culpa na causa da tentação e, lamentavelmente, até cedi a ela. Mas, eu existo e vossa clemência me mantém nesta vida. Estando vivo, tenho o direito e o dever de Vos dirigir essa oração. Por isso me apresento diante de Vós, cheio de confiança”.

“E gemendo sob o peso dos meus pecados me prostro a vossos pés.”

Note-se como essa expressão é animadora. Não está dito: “Eu, o inocente, o puro, o límpido, o homem sem mancha me dirijo a Vós e peço socorro. A minha inocência me dá garantias de vosso auxílio”. Afirma-se o contrário: “Gemendo sob o peso dos meus pecados...”

Ou seja, tantas são as faltas cometidas que até me prostraram no chão. Acho-me deitado sob o peso delas. E, no solo, eles me oprimem de tal forma que me arrancam gemidos. Pois bem, “amargando a dor dos meus pecados, eu venho para junto de Vós e me arrojo aos vossos pés”.

“Não desprezeis  as minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus humanado, mas dignai-Vos de as ouvir propícia e de me alcançar o que Vos rogo. Assim seja.”

O pensamento não podia ser mais belo. O pecador pede à Santíssima Virgem que o ouça com benignidade, com bondade, pois espera da parte d’Ela um sorriso, que lhe alcance a graça implorada.

É a oração da confiança. Qualquer alma, em qualquer estado ou situação em que se encontre, sobretudo nas tentações e na tibieza, deve se voltar para Nossa Senhora e dizer: “Rogo-Vos a vossa assistência; tende pena de mim e auxiliai-me”.

E o raciocínio que justifica essa confiança é simplíssimo: “Vós nunca abandonastes alguém. Ora, eu sou alguém. Logo, não me abandonareis”. Não podia ser mais lógico, mais concludente, mais convincente, mais singelo na sua esquematização e mais irresistível. Um raciocínio expresso numa linguagem de fogo e muito bela, como é a de São Bernardo, mas encerrando um verdadeiro conteúdo teológico: “Nossa Senhora é Mãe de cada homem; portanto, não me abandonará”.

Voltamos, então, ao ensinamento de São Francisco Xavier. Ele nos deixa claro que a alma tentada deve, mais do que tudo, confiar, rezar e não ter medo. E não só nas horas das tentações, mas em todas as dificuldades, grandes ou pequenas, da vida espiritual ou da nossa existência quotidiana, devemos sempre cultivar essa firme confiança no auxílio de Maria Santíssima, nossa Mãe e onipotente intercessora junto ao Sagrado Coração de Jesus.

 

(Revista “Dr. Plínio”, nº 69, dezembro de 2003).