terça-feira, 29 de setembro de 2020

AS "DISPUTAS" OU CONTENDAS ENTRE ANJOS

 



As lutas ou “disputas” entre anjos transcendem o âmbito celeste ou espiritual e se refletem diretamente entre os homens. Um exemplo vemos nas Sagradas Escrituras, relatado pelo Profeta Daniel. A situação do povo judeu no tempo do cativeiro da Babilônia era a pior possível. Antes disto, o povo de Israel havia se dividido em dois reinos, o de Judá e o de Samaria. Como castigo, o reino de Samaria foi invadido pelos Assírios e levados para o cativeiro da Babilônia. Nem todos, porém, foram deportados, ficando na Região algumas tribos  (Rs II 15, 29). Isto ocorreu em torno do ano 734 a.C.. Somente o monte Galaad não era da tribo de Neftali, uma das principais levadas para o cativeiro juntamente com as outras além do Jordão. Esta expressão “além do rio”  foi utilizada depois por Esdras e Neemias para falar do povo que havia ficado na Samaria, havia sido misturado com pagãos da Mesopotâmia, e combatia os hebreus que tentavam reconstruir o Templo: “Tal é o teor da carta que lhe mandaram: Ao rei Artaxerxes, os teus servos, os homens que habitam do lado de além do rio...”  (Esdras 4, 11).

Assim, somente ficaram na Palestina a parte central da Samaria. Alguns anos depois, nova incursão dos Assírios na região leva o resto do povo para o cativeiro (II Rs 17, 6) e acaba definitivamente com o “reino de Israel”. Pouca coisa produziu de bom o reino de Samaria, contra o qual lutou Santo Elias, sabendo-se apenas que o livro de Tobias refere-se a um personagem cativo desse reino, da tribo de Neftali, que era o próprio Tobias.

A Samaria havia ficado, portanto, despovoada. Desta forma, o rei da Babilônia mandou gente de algumas de suas cidades para repovoá-la “em lugar dos filhos de Israel (II Rs 17, 24). Os novos ocupantes da região, porém, eram castigados por Deus com animais ferozes que os devoravam, dando sinais claros da reprovação divina de seus cultos pagãos. Por isso, o rei mandou que fossem doutrinados por um sacerdote hebreu (II Rs 17, 27-28), mas o povo não largava o paganismo, misturando as religiões e promovendo o sincretismo religioso (II Rs 17, 29-32 e 33-41).

Por causa disso, aquele povo que não era mais israelita, nem de Judá nem do cismático reino da Samaria, passou a ser chamado derrisoriamente de “samaritanos” pelos judeus, e foram eles os que mais lutaram contra a reconstrução de Jerusalém e do Templo.

Alguns anos depois, o reino de Judá (formado por Judá e Benjamin) foi também invadido, desta vez por Nabucodonosor, e os judeus levados cativos para a Babilônia, principalmente as pessoas da elite, como Daniel, Ezequiel e próprio Jeremias. Este cativeiro durou 70 anos e não provocou o total despovoamento de Judá e sua ocupação por outros povos, como ocorreu com a Samaria. Tudo indica que as “disputas”  angélicas narradas pelo Profeta Daniel referem-se à luta angélica travada para que o povo judeu, ou de Judá, voltasse para suas origens.

 

Um anjo pelejando contra outro?

Daniel cap. 10:

“No terceiro ano de Ciro, rei dos persas, foi revelada a Daniel, chamado Baltasar, uma palavra verdadeira e uma grande fortaleza; ele entendeu a palavra, porque é necessário haver inteligência das visões. Naqueles dias, eu, Daniel, chorei por todos os dias durante três semanas;  não comi pão agradável ao gosto, nem carne nem vinho entraram na minha boca, nem me ungi com perfume algum, até que se completasse os dias destas três semanas.  No dia vinte e quatro, porém, do primeiro mês, estava eu junto do grande rio, que é o Tigre.

“Levantei os olhos e olhei; e eis que vi um homem vestido de roupas de linho e cingido pelos rins com um cinto de puríssimo ouro; o seu corpo era como o crisólito, o seu rosto como o relâmpago e os seus olhos pareciam uma lâmpada ardente; os seus braços e todo o resto do corpo até aos pés eram semelhantes ao bronze reluzente e o som das suas palavras era como o ruído duma multidão. Somente eu, Daniel, tive esta visão; os homens que estavam comigo não a viram, mas caiu sobre eles um extraordinário terror, e fugiram para lugares ocultos. Tendo eu, pois, ficado sozinho, vi esta grande visão. Não ficou vigor em mim, mudou-se o meu semblante, caí desfalecido e perdi todas as forças. Ouvi o som das suas palavras, e, ouvindo-o, jazia deitado sobre o meu rosto, todo espavorido, e o meu rosto estava colado à terra.

“E eis que uma mão me tocou e fez-me levantar sobre os meus joelhos e sobre as palmas das minhas mãos. Depois disse-me: Daniel, homem de desejos, entende as palavras que te venho dizer; põe-te de pé, porque eu fui agora enviado a ti. Depois que me disse isto, pus-me de pé tremendo.  Disse-me: Não tenhas medo, Daniel, porque desde o primeiro dia, em que aplicaste o teu coração a compreender e a mortificar-te na presença do teu Deus, foram ouvidas as tuas palavras e eu vim por causa dos teus rogos. Porém o príncipe do reino dos persas resistiu-me durante  vinte e um dias; mas eis que veio em meu socorro Miguel, um dos primeiros príncipes, e eu fiquei lá junto do rei dos persas.  Vim para te ensinar as coisas que estão para suceder ao teu povo nos últimos dias, porque o cumprimento desta visão ainda está para dias (longínquos).

“E, enquanto ele me dizia estas palavras, baixei o rosto para a terra e fiquei em silêncio. E eis que aquele que tinha semelhança de um filho de homem, me tocou os lábios; e eu, abrindo a boca, falei e disse ao que estava em pé diante de mim: Meu Senhor, com a tua vista relaxaram-se as minhas juntas e não me ficou força alguma e até me falta a respiração. Aquele, pois, que eu via sob a aparência dum homem, tornou-me a tocar, confortou-me e disse:  Não temas, homem de desejos;a paz seja contigo; tem vigor e sê robusto. E, quando ele ainda me falava, recobrei as forças e disse: Fala, meu Senhor, porque me fortaleceste.

“Então disse-me ele: Sabes tu por que é que eu vim ter contigo? Agora volto a pelejar contra o príncipe dos persas. Quando eu saía, apareceu o príncipe (ou Anjo custódio) dos gregos, que vinha. Mas eu te anunciarei o que está expresso na escritura da verdade; e em todas estas coisas ninguém me ajuda senão Miguel, que é o vosso príncipe”. 

 

Daniel Cap. 11:

“E eu (Gabriel), desde o primeiro ano de Dario medo, estava junto dele para o sustentar e fortificar.

“Agora eu te anunciarei a verdade...”  (Dan 1, 1-2).

Daniel Cap 12:

“Naquele tempo se levantará o grande príncipe Miguel, que é o protetor dos filhos do teu povo”... 

O Arcanjo São Miguel, que é o Anjo da Guarda do povo de Israel, encontrou-se numa “disputa”  com o “anjo da Pérsia”  (ou um demônio, Gog, conforme Ez 39,2), auxiliando São Gabriel, que poderia ser, este sim, o Anjo da Guarda dos persas. São Gabriel falou para o profeta Daniel: “o príncipe do reino dos persas resistiu-me durante vinte e um dias; (Dan 10, 13)”. Neste caso, “príncipe” seria o rei dos persas que resistia às inspirações angélicas, talvez influenciado pelo anjo mau. Então, neste caso, São Gabriel estaria procurando inspirar o rei da Pérsia por ser o Anjo Custódio daquele povo.

O Profeta Zacarias também fala destas guerras angélicas, referindo-se à libertação do povo judeu desta forma:

“Estes são os que o Senhor enviou a percorrer a terra. Eles dirigiram-se ao anjo do Senhor que estava entre as murteiras, e disseram-lhe: Nós temos percorrido a terra, e eis que a terra está toda habitada e em repouso.

“O anjo do Senhor replicou dizendo: Senhor dos exércitos, até quando diferireis tu o compadecer-te de Jerusalém e das cidades de Judá, contra as quais te iraste? Este é já o ano septuagésimo”  (Zac 1, 10-12).  Afirmar que a terra “está toda habitada e em repouso” não é próprio dos bons anjos, indicando com isso que eram os demônios tentando despistar para que não se cumprissem os desígnios de Deus sobre os hebreus. São Miguel replica oportunamente e pede a Deus que inicie o processo de libertação do povo eleito do cativeiro. E ele o pede chamando Deus de “Senhor dos Exércitos”, titulo com que espera conseguir forças para vencer os exércitos angélicos inimigos.

O primeiro sinal destas “disputas” foi em torno da restauração do sacerdócio, também narrado por Zacarias:

“Depois o Senhor mostrou-me o sumo sacerdote Jesus, que estava em pé diante do anjo do Senhor; e Satanás estava à sua direita para se lhe opor. O Senhor disse a Satanás: O Senhor te reprima, ó Satanás; reprima-te o Senhor que escolheu Jerusalém. Porventura não é este um tição que foi tirado do fogo? Jesus estava revestido de hábitos sujos e posto em pé diante do anjo. Este tomou a palavra e falou àqueles que estavam em pé diante dele, dizendo: Tirai-lhe esses hábitos sujos. Depois disse a Jesus:  Eis que tirei de ti a tua iniqüidade  e te revesti de roupas de gala. E acrescentou: ponde-lhe na cabeça uma tiara limpa. Puseram-lhe na cabeça uma tiara limpa e revestiram-no de preciosos vestidos; entretanto o anjo do Senhor estava de pé...”  (Zac 3, 1-5).

Jesus era o sumo sacerdote e que acompanhou Zorobabel na reforma religiosa em curso por ocasião da volta do cativeiro.  A frase dita por São Miguel, “o Senhor te reprima, ó Satanás!”, é repetida por São Judas em sua Epístola: “Quando o arcanjo Miguel, disputando com o demônio, altercava sobre o corpo de Moisés, não se atreveu a proferir contra ele a sentença de maldição, mas disse somente: Reprima-te, o Senhor. (1, 10).

Estas “disputas” ou lutas angélicas se destinavam a se conseguir a libertação do povo hebreu, obtida finalmente com o edito de Ciro, rei da Pérsia (534 a.C.). Os judeus não só ficariam livres do cativeiro da Babilônia (II Crôn 36, 22-23 e Esdras 1, 1-4), mas poderiam também reconstruir Jerusalém e o seu Templo. Para tal fim, Daniel (que havia sido levado cativo no tempo de Nabucodonosor) fez penitência por três semanas (Dan 10, 2), período em que os anjos “disputavam”.  A “disputa”  entre São Gabriel e o outro anjo não era só para conseguir demover o rei a tomar aquela atitude, mas para afastar todos os obstáculos que surgissem criados pelos demônios.  Somente com o auxílio de São Miguel (Dan 10, 13) é que os Santos Anjos conseguiram seu objetivo. Cumprindo-se assim a profecia de Jeremias:  “Completos que forem os setenta anos, irei com a minha visita contra o rei de Babilônia, e contra aquela gente...” (Jer 25, 12).

Interessante notar que o Anjo só interveio por causa dos rogos de Daniel: durante um certo tempo, que ele fala em vinte e um dias, o profeta chorou, jejuou e fez sacrifícios.  No entanto, tudo indica que a penitência de Daniel deve ter sido bem mais longa, pois em seu próprio livro profético ele se refere a anos como se fossem dias (Dan 9, 24), “setenta semanas de anos”, ou, mais adiante “passarão sete semanas e sessenta e duas semanas” (desde o edito de Ciro até a vinda do Messias) e que os vinte e um dias devem ter sido, na realidade, vinte e um anos. Adiante diz o Profeta, “no dia vinte e quatro, do primeiro mês”, isto é, no início do ano vinte e quatro do período de tempo a que está se referindo. Esta data, vinte e quatro dias, é referida por Ageu (2, 21). A diferença de três anos é o que se acrescenta aos três anos iniciais de Ciro: “No terceiro ano de Ciro”, etc. Como Daniel começou a fazer penitência “No primeiro ano de Dario”  (Dan 9, 1-3) e este rei governou por cerca de 20 ou 21 anos, é sinal de que este deve ter sido o tempo que durou seu sacrifício. Embora o rei tenha resistido, São Gabriel “desde o primeiro ano de Dario medo, estava junto dele para o sustentar e fortificar (Dan 11, 1).

São Gabriel ainda voltou a pelejar contra o “príncipe dos persas” (Dan 10, 20), provavelmente algum demônio poderoso que inspirava reações dos bruxos e de alguns inimigos dos hebreus contra o rei. Quando São Gabriel “saía”  foi substituído no combate pelo anjo dos gregos, mas somente São Miguel teve forças para vencer aquela disputa: “Então me disse ele: Sabes tu por que é que eu vim ter contigo? Agora volto a pelejar contra o príncipe dos persas. Quando eu saía, apareceu o príncipe (ou anjo Custódio) dos gregos, que vinha. Mas eu te anunciarei o que está expresso na escritura da verdade; e em todas estas coisas ninguém me ajuda senão Miguel, que é o vosso príncipe”  (Dan 10, 20-21) . Provavelmente, mesmo depois do edito de Ciro, foi necessário que os Santos Anjos ajudassem o povo hebreu para conseguir o objetivo principal, que era a reconstrução de Jerusalém e do templo.  A ajuda do anjo dos gregos foi necessária, embora a mais importante tenha sido a de São Miguel (pelo fato de ter inspirado os próprios hebreus a reagir e lutar).

Alguns intérpretes acham que a expressão “príncipe dos persas” se refere ao Anjo Custódio daquele povo, o qual “disputava” com São Gabriel e São Miguel desejando que o povo hebreu ficasse na Pérsia (na época o centro do mundo civilizado), construísse um novo Templo e de lá propagasse a religião verdadeira a todo o resto do mundo.

Trata-se de uma hipótese muito interessante, mas difícil de ser aceita na prática, pois um Santo Anjo, principalmente sendo custódio de um povo, provavelmente conhecia os desígnios de Deus sobre o povo eleito e qual a finalidade do cativeiro da Babilônia, não havendo necessidade de que permanecesse lá para propagar a religião de Deus.

O fato dos anjos encontrar-se em “disputa”  deixava o profeta em dúvida do que fazer, aguardando um sinal divino. Tal a razão de Daniel ter ficado e não ter ido logo de volta para Jerusalém (Dan 10, 1). Outros profetas também ficaram na Babilônia, como Ezequiel, Ageu e Zacarias, a fim de exortar o povo a executar os desígnios de Deus. É curioso que São Gabriel só tenha conseguido vencer a “disputa” com as penitências de Daniel, e que “ausentando-se” da batalha para comunicar-se com o Profeta tenha que deixar na luta um “substituto”, isto é, o Anjo da Grécia.

A continuação da mensagem de São Gabriel parece indicar os desdobramentos futuros daquela “disputa” (Dan 11,2 em diante), quando ocorrerão diversas guerras e formar-se-ão os grandes impérios, os reinos futuros: o do Egito (chamado de meio-dia), o da Síria e da Pérsia (chamado do norte ou do Aquilão) e a Grécia.

O Profeta previu depois que a gnose seria mudada de lugar., pois os medos invadiriam a Pérsia e levariam “cativo para o Egito os seus deuses, etc. (Dan 11,8).  O centro da idolatria sairia temporariamente da Pérsia e Babilônia. Tudo indica que os “príncipes”  da Pérsia e do Egito julgavam que a idolatria seria mais facilmente divulgada por lá e que os hebreus poderiam  voltar para Israel, considerado por eles um centro de menor importância política e estratégica para a divulgação do hebraísmo que lhes opunha. No entanto, o judaísmo gnóstico já havia se misturado com os persas e egípcios, e muitos judeus não voltaram para Jerusalém junto com Esdras e Zorobabel, preferindo ficar na Babilônia. O Profeta Ezequiel, que viveu no exílio da Babilônia, fala da “prostituição” dos israelitas com os pagãos, e numa figura simbólica da apostasia e união deles com a gnose diz que os israelitas edificaram “em todas as praças públicas uma casa de prostituição” (Ez 16, 23-29), indicando talvez com isso uma grave censura ao surgimento das sinagogas, que datam desta época.   Da mesma forma, o Profeta Daniel e muitos hebreus de bons princípios, até o tempo de Mardoqueu (tio da rainha Ester), já no reinado de Assuero, preferiram ficar para combater as más influências naqueles que não puderam voltar para Israel.

É interessante notar que as expressões “anjo da Pérsia”, “príncipe dos persas” ou mesmo “ungido do Senhor” refere-se à atuação angélica sobres os soberanos persas.   E isto ocorreu tanto no tempo de Ciro quanto no de Assuero. O rei Ciro foi chamado por Isaías o “ungido do Senhor”: “Eis o que diz o Senhor a Ciro, meu ungido, a quem tomei pela mão, para lhe sujeitar ante a sua face as nações e fazer voltar as costas aos reis, etc. “  (Is 45, 1-2)”.   O rei Assuero, por sua vez, é visto por Ester como “um anjo de Deus”  (Ester 15, 16), embora este rei fosse péssimo, um tipo afeminado e maldoso. No edito que este rei fez em favor dos hebreus, elogia Mardoqueu e defende o povo judeu contra as maquinações do príncipe macedônio  (Ester 16, 10-14). Nada disto teria feito se não fosse por uma forte inspiração angélica.

 

“Agora volto a pelejar contra o príncipe dos persas”

São Gabriel declarou que voltaria a pelejar contra o príncipe dos persas, isto é, o rei da Babilônia. A expressão “príncipe dos persas” pode ser entendida também como se referindo ao demônio que comandava a reação maléfica contra a repatriação dos judeus e a reconstrução de Jerusalém e do Templo.

Quer dizer, mesmo o rei Ciro tendo autorizado a libertação do povo e a reconstrução de Jerusalém e do Templo, devolvendo inclusive todos os vasos sagrados que haviam sido roubados por Nabucodonosor (Esdras 1, 7-11), havia forte reação contra os hebreus. Conforme vimos acima, os povos que estavam na região de Samaria já não eram mais os israelitas, mas outros, vindos da Babilônia. Maliciosamente, inspirados pelos anjos das trevas, eles se ofereceram para ajudar na reconstrução do Templo:

“Ora os inimigos de Judá e de Benjamin souberam que os filhos do cativeiro edificavam o templo do Senhor Deus de Israel; e indo ter com Zorobabel e com os chefes das famílias, disseram-lhes: Deixai-nos edificar convosco, porque nós buscamos o vosso Deus, do mesmo modo que vós; nós temos-lhe sempre imolado vítimas, desde o tempo de Assaradão, rei da Assíria, que nos mandou para aqui”  (Esdras 4, 1-2).

Oferta tão lisonjeira e pacífica poderia parecer correta, mas na realidade tais homens eram movidos por malícia, pois eram eles inteiramente gnósticos e praticavam um sincretismo religioso total:

“O rei dos assírios mandou vir gente de Babilônia, de Cuta,de Ava, de Emat, e de Sefarvaim e pô-los nas cidades de Samaria em lugar dos filhos de israel” (II Rs 17, 24).   Mas como tais habitantes não respeitavam a lei de Deus, o Senhor lhes mandava castigar com leões que os matavam. Avisado do fato, o rei dos assírios ordenou que um sacerdote hebreu fosse lá morar com eles e lhes ensinar a religião dos israelitas:  “Tendo, pois, ido um dos sacerdotes que tinham sido levados cativos da Samaria, habitou em Betel e ensinava-lhes o modo como deviam honrar o Senhor. “Apesar disso, cada um destes povos fabricou para si o seu deus e colocaram-nos nos templos dos lugares altos, que os samaritanos tinham edificado...   Embora adorassem o Senhor, serviam também aos seus deuses...,” (II Rs 17, 28 e 33).  

Como foram recusados por Zorobabel e os outros chefes a colaborar na reconstrução do templo, os samaritanos revoltaram-se e passaram estorvar a obra.  Inicialmente “ganharam também por dinheiro os conselheiros do rei”  (Esdras 4,5), depois fazendo uma carta difamatória (Esdras 4, 7-11), escrita em aramaico, contra os hebreus. Nada disto adiantou, porque, embora os trabalhos tenham sido interrompidos, logo foram recomeçados por ordem do rei Dario, que tomou conhecimento da verdade através também de uma carta feita pelos hebreus. Quer dizer, para cada ação diabólica correspondia uma inspiração angélica oposta.

O mesmo ocorreu com a reconstrução de Jerusalém, narrada em Neemias, quando os samaritanos revoltaram-se contra os hebreus repatriados e não queriam deixá-los reconstruir a cidade. E aí a batalha angélica passou para o campo da guerra campal dos homens. Embora tenha havido antes intrigas contra os hebreus, partindo dos samaritanos ou de outros povos,  Deus “dissipou os desígnios”  daqueles homens (Neemias 4, 15) e terminaram os hebreus por reconstruir a cidade, de armas na mão:

“E desde aquele dia em diante sucedeu que metade  da gente moça trabalhava na obra e a outra metade estava pronta para a peleja, com lanças e escudos, arcos e couraças, e os chefes estavam atrás deles em toda a casa de Judá. Os que edificavam os muros, os que acarretavam e os que carregavam, com uma das mãos faziam a obra, e com a outra pegavam na espada; porque cada um dos que edificavam tinha sua espada à cinta. Trabalhavam e tocavam a trombeta junto de mim”.  (Neemias 4, 16-18).    

 


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

ATUAÇÃO DOS SANTOS ANJOS TAMBÉM NO PURGATÓRIO

 


          Mesmo no Purgatório os Anjos não deixam de se preocupar com as almas que eles eram protetores na terra.  Vez por outra eles vão ao Purgatório para consolá-las, e chegada a hora delas saírem e irem para o Céu, eles vêm alegremente acompanhados de São Miguel para cumprir tal tarefa.  Alguns santos admitem até que os Anjos da Guarda não abandonam os seus protegidos sequer quando as almas vão para o Purgatório, continuando a velar lá  por eles.

Além disso, procuram inspirar as pessoas na terra para que rezem e mandem celebrar missas por seus protegidos que estão no Purgatório. Um exemplo marcante da atuação angélica em prol de uma alma que sofre no Purgatório temos na vida de Santa Lidwina de Scheedam, que viveu no século XV. Certa feita a santa procurou saber de seu Anjo o destino de uma pessoa que ela tinha muito em conta porque rezara por ela na hora da morte. O Anjo lhe respondeu que aquela alma, a muito custo, salvou-se mas sofria horrivelmente no Purgatório. A santa aceitou a proposta para sofrer mais por aquela alma e o Anjo a levou a um lugar espantoso, parecendo as muralhas do inferno; aproximaram-se de um poço, em cujas bordas estava sentado e triste um Anjo. Perguntando que Anjo era aquele, o seu guia disse que era o Anjo da Guarda daquela pessoa que ela aceitou sofrer para livrar do Purgatório, cuja alma estava encerrada naquele poço.

Suplicou a santa que lhe fosse permitido ver o estado daquela alma. O Anjo descobriu então a tampa do poço, de onde saiu um medonho vulto humano, todo incandescente, que gemia: “Ó Lidwina, serva de Deus, quem me dera contemplar a face do Altíssimo!”. A santa não pôde agüentar a visão, saindo do êxtase.

Algum tempo depois apareceu-lhe o Anjo da Guarda daquela alma, desta vez menos triste e dizendo que ela havia saído daquele Purgatório mais profundo para um menos terrível, o chamado “Purgatório ordinário”, de onde as almas já saíam direto para o Céu.

Santa Francisca Romana dizia que quando morre uma pessoa, o Anjo da Guarda, conhecedor dos seus méritos, conduz sua alma para as regiões inferiores do Purgatório e coloca-se ao lado dela. O Anjo fica assim a seu lado para apresentar a Deus as orações feitas em favor daquela alma e intercede  para que lhe seja abreviada a pena.  Isto é confirmado por Santa Maria Madalena de Pazzi e Santa Margarida de Alacoque, que também foram levadas até o Purgatório e viram que cada alma tinha um anjo tutelar a seu lado. É evidente que o Anjo nada sofria das penas que ali se passa, pois sua presença é apenas quanto ao seu poder de ação.

Uma vidente polonesa, Santa Faustina Kowalska, teve a seguinte visão do purgatório:

"Vi o Anjo da Guarda que me mandou acompanhá-lo. Imediatamente encontrei-me num lugar enevoado, cheio de fogo, e dentro deste uma grande quantidade de almas sofredoras. Essas almas rezam com muito fervor, mas sem resultado para si mesmas; apenas nós podemos ajudá-las. As chamas que as queimavam não me tocavam. O meu Anjo da Guarda não se afastava de mim nem por um momento. E perguntei a essas almas qual era o maior sofrimento delas. Responderam-me que o maior sofrimento delas é a saudade de Deus. Vi Nossa Senhora que visitava as almas no purgatório. As almas chamam Maria de "Estrela do Mar".  Ela lhes traz alívio. Queria conversar mais com elas, mas o meu Anjo da Guarda fez-me sinal para sair. Saímos pela porta dessa prisão de sofrimento. (Ouvi uma voz interior) que me disse: "a Misericórdia de Deus não deseja isso, mas a Justiça manda". Desde esse momento me encontro mais unida às almas sofredoras". ("Diário da Serva de Deus Irmã Faustina Kowalska..." - pág. 328.)

 Numa impressionante e maravilhosa revelação sobre o Purgatório, foi publicada a obra “Le Manuscrit du Purgatorie”, traduzida para o português e publicada pelas Edições Paulinas em 1953. Nela há depoimentos feitos por uma alma do Purgatório, uma freira falecida que apareceu à outra do mesmo convento, na França. A autenticidade deste documento foi confirmada por autoridades religiosas e teólogos.

A respeito da presença do Arcanjo São Miguel no Purgatório, o manuscrito diz:

“Nós vemos São Miguel como se vêem os Anjos, eles não têm corpo. São Miguel vem ao Purgatório buscar todas as almas que já estão purificadas porque é ele quem as conduz ao céu. Sim, é verdade, ele está entre os Serafins, como me disse Monsenhor. É o primeiro Anjo do Céu. Nossos Anjos da Guarda vêm também nos ver, mas São Miguel é muito mais belo do que todos eles! Quanto à Santíssima Virgem, nós a vemos com o seu corpo. Ela vem ao Purgatório nas suas festas e volta para o céu com muitas almas. Enquanto Ela está conosco, não sofremos. São Miguel a acompanha, mas enquanto São Miguel está só, nós sofremos”.  (“O Manuscrito do Purgatório” – Ed. Paulinas . Págs. 38/39.)

 Foi feita à alma da freira algumas perguntas:

 - Qual é o melhor meio de glorificar a São Miguel?      

“O meio mais eficaz de o glorificar no céu e na terra é recomendar quanto possível a devoção às almas do Purgatório e fazer conhecer a grande missão que ele tem junto das almas sofredoras. Ele é o encarregado de levá-las do lugar de expiação e introduzi-las depois da satisfação, no céu, morada eterna. Cada vez que uma alma vem aumentar o número dos eleitos, Deus é glorificado por ela e esta glória de certo modo reflete sobre o glorioso ministro do céu. É uma honra para ele apresentar ao Senhor das almas que irão cantar as infinitas misericórdias e unir seu reconhecimento aos dos eleitos por toda eternidade. Eu não posso vos fazer compreender todo o amor que o celeste Arcanjo tem por seu divino Mestre e o amor que por sua vez Deus tem por São Miguel e bem como a grande piedade que São Miguel tem por nós. Ele nos dá coragem no sofrimento quando nos fala do céu. Dizei ao Padre que se ele quiser dar um grande prazer a São Miguel, recomende muito a devoção às almas do Purgatório. Não se pensa muito nisto neste mundo! Quando se perdem os parentes e amigos, fazem algumas orações, choram durante alguns dias, depois... tudo se acaba! As almas ficam abandonadas! É verdade que elas merecem muito porque não rezaram pelos mortos quando na terra, e o divino Juiz só nos dá no outro mundo o que fazemos neste. As pessoas que deixaram esquecidas as almas do Purgatório, serão esquecidas também, mas se lhes tivessem dado a inspiração de rezar pelos defuntos, e lhes feito conhecer o que é o Purgatório, talvez elas tivessem procedido de oura maneira, de modo muito diferente...

Quando o permite, podemos nos comunicar diretamente com o Arcanjo, à maneira dos espíritos e como as almas se comunicam entre si.”

 - Como se festeja São Miguel no Purgatório?

“No dia de sua festa, São Miguel vem ao Purgatório e volta para o céu com muitas almas, principalmente as almas que lhe tiveram devoção na terra.”

 - Que glória recebe São Miguel da sua festa na terra?

“Quando se faz a festa de um santo na terra, ele recebe no céu uma glória acidental. Ainda mesmo que não o festejem na terra, em memória de alguma ação especial heróica que praticou neste mundo, ou da glória que deu a Deus em alguma ocasião, nesta época, recebe no céu uma recompensa especial que consiste numa maior glória acidental, junta com a que lhe dão na terra.

“A glória acidental que recebe o Arcanjo São Miguel é superior a de todos os outros santos, porque esta glória de que vos falo, é proporcionada à grandeza do mérito daquele que a recebe, como também o valor a ação que mereceu esta recompensa”.  (“O Manuscrito do Purgatório” – Ed. Paulinas . Págs. 42/43)

- As promessas feitas em favor daqueles que rezam o terço de São Miguel são verdadeiras?

“As promessas são reais, mas não se deve acreditar que as pessoas que rezam o terço por rotina e sem o procurar fazer com perfeição, sejam logo tiradas do Purgatório. Seria um erro. São Miguel faz muito mais ainda do que promete, mas os que estão condenados a um longo Purgatório, não os retira assim tão depressa! É verdade que a lembrança da devoção ao Santo Arcanjo alivia muito as almas, mas que sejam de todo libertadas do Purgatório, não. Eu que o diga, eu posso bem servir de exemplo!... A libertação imediata só a terão as pessoas que trabalharam para a sua perfeição, e que tiveram pouca coisa a expiar no Purgatório.

“A França é bem culpada, infelizmente ela não está só! Neste momento não há um reino cristão que não procure aberta ou surdamente expulsar Deus do seu seio. As sociedades secretas e o diabo fomentam estas revoltas. É agora a hora do príncipe das trevas. Deus há de mostrar que só Ele é o Senhor único! Talvez não seja feito isto com doçura, e fará sentir o seu poder, mas nos próprios castigos Jesus é misericordioso. São Miguel há de intervir na luta pessoal da Igreja. Ele é o chefe desta Igreja tão perseguida, mas que não será aniquilada como pensam os maus. Quando há de intervir São Miguel, eu não o sei. É preciso rezar muito nesta intenção, invocar o Arcanjo lembrando-lhe os títulos que tem, pedir-lhe a intercessão junto daquele sobre o qual tem tanto poder!  “Que não se esqueçam da Santíssima Virgem! A França é o seu reino privilegiado. Ela o salvará”.  (“O Manuscrito do Purgatório” – Ed. Paulinas . Págs. 64/65)

A Bem-aventurada Emília Bicchieri costumava recomendar às suas religiosas que não bebessem água entre as refeições, e oferecessem esta pequena mortificação pelas almas do Purgatório, em união com a sêde de Nosso Senhor na cruz. Dizia ela: “Colocai estas gotas nas mãos do vosso Anjo da Guarda, para ele diminuir com elas o ardor das chamas do Purgatório”. A irmã Cecília, que fazia esta mortificação como recomendada, um dia faleceu e, passados alguns dias, apareceu à Bem-aventurada Emília, dizendo:

- Ainda vos lembrais, Madre, daquele copo de água que tanto me custou a sacrificar?  Pois bem, pouco tempo depois da minha morte, o meu Anjo apareceu no Purgatório trazendo o copo na mão e, em recompensa dessa leve mortificação, feita por obediência, apagou com a água as chamas que me atormentavam e agora estou feliz por toda a eternidade.

 

 

 

domingo, 27 de setembro de 2020

O ARCANJO SÃO MIGUEL

 


 

Nome que vem do hebraico, “mika’el”, quer dizer, “Quem como Deus”. Quando Deus revelou aos Anjos no Céu os Planos da Encarnação do Verbo e da Redenção, houve a grande revolta comandada pelo Anjo mais brilhante e bonito que havia, Lúcifer. O brado de revolta foi este: “non servian!” , quer dizer, “Não servirei!”. “Mas como? Logo eu, um Anjo tão formoso, tão poderoso e brilhante, ter que servir a seres humanos, mesmo na pessoa do Filho?” Assim deve ter imaginado Lúcifer em seu estado de revolta. Mas um outro Anjo logo bradou: “Quis ut Deus?”, isto é, quem como Deus? Este Anjo foi São Miguel, logo assumindo a função de Chefe da Milícia Celeste porque passou a comandar os Anjos bons para expulsar Lúcifer do céu. Travou-se então grande batalha, vencendo-a os Anjos fiéis a Deus que logo foram premiados com a Graça da presença divina e a posse da eterna Bem-aventurança. Os gregos, por causa disso, o chamam de “Archistrátegus”, isto é Generalíssimo.

São Tomás de Aquino acha que São Miguel será o Anjo que no fim do mundo há de combater o Anticristo, como fez com Lúcifer. Foi ele desde o início o protetor e defensor do povo eleito, tendo acompanhado-o desde a saída do Egito até a terra prometida. Foi São Miguel quem abençoou a herança de Abraão (Gên 22, 17), contendo o cutelo que ia cair sobre Isaac (Gen 22, 11-14); apareceu a Moisés na sarça ardente (Ex 3, 2); levou a Jesus o cálice que O confortou no Horto das Oliveiras (Lc 22, 43) e foi também quem por algumas vezes libertou São Pedro da prisão.

É ele o Protetor da Igreja e de todos os fiéis, a quem protege de modo especial contra os ataque dos demônios. São Miguel é invocado especialmente na hora da morte, pois neste momento é dado a Lúcifer empreender todos os esforços para perder a alma. Se a pessoa morre na graça de Deus, São Miguel é o Anjo encarregado por Deus de levar a alma para o céu. Por isto ele é chamado, na Igreja, por “Praepositus paradisi”, quer dizer, guarda do Paraíso, acrescido da sentença: “Constitui te Principem super omnes animas suscipiendas” – Eu te constituí Príncipe de todas as almas a serem redimidas. Antigamente, na Missa de encomendação dos defuntos se rezava: “Signifer Sanctus Michael representet eas in lucem sanctam” – Ó Porta-estandarte São Miguel, conduzi-as à luz santa.

São Miguel era também o protetor do povo eleito, conforme fala claramente Daniel (Dan 12, 1). Uma das mais antigas referências ao “Príncipe do exército do Senhor” como protetor do povo eleito encontra-se no Livro de Josué:

“Ora, estando Josué nos arredores da cidade de Jericó, levantou os olhos, e viu diante de si um  homem em pé, que tinha uma espada desembainhada, e foi ter com ele e disse-lhe: Tu és dos nossos, ou dos inimigos? E ele respondeu: Não; mas sou o príncipe do exército do Senhor, e agora venho. Josué prostrou-se com o rosto por terra. E, adorando-o, disse: Que diz o meu Senhor ao seu servo? Tira, lhe disse ele, o calçado de teus pés, porque o lugar em que estás, é Sant.o.  E Josué fez como lhe tinha sido mandado” (Josué 5, 13-16). A partir daquele momento,  sentiu-se vivamente a intervenção de São Miguel nos episódios em que os hebreus ganhavam milagrosamente as guerras, inclusive o cerco feito logo depois contra a cidade de Jericó.

 Porém, com a apostasia dos judeus São Miguel passou a ser o Anjo Custódio da Igreja e de toda a Cristandade. Como citamos acima, no livro de Daniel aparece a disputa entre  São Miguel, Anjo Custódio de Israel, e o Anjo protetor dos persas. Segundo São Jerônimo, este último desejava que os judeus permanecessem na Pérsia para mais dilatarem o conhecimento de Deus, enquanto que São Miguel defendia perante Deus a volta dos judeus para a Palestina a fim de que o templo do Senhor fosse restaurado mais depressa. Esta disputa espiritual entre os dois Anjos durou vinte e um dias.

São Pio X, sabedor do poder que tem São Miguel, ordenou que se rezasse a oração abaixo sempre ao final da Missa:

 “São Miguel, Arcanjo, protegei-nos no combate; cobri-nos com vosso escudo contra os embustes e ciladas do demônio. Subjugue-o Deus, instantemente o pedimos, e vós, Príncipe da Milícia Celeste, pelo divino poder, precipitai no inferno a Satanás e aos outros espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas”.

O Arcanjo São Miguel por diversas vezes tem aparecido para socorrer os seus devotos. Um dos mais notáveis exemplos foi o que prestou à França, através de Santa Joana D’Arc, a quem São Miguel transmitiu a sublime missão de defender a Filha Primogênita da Igreja contra a invasão inglesa. O Arcanjo fazia-se ouvir à jovem donzela e para ela transmitia suas instruções de como proceder, terminando por convencer os nobres e o rei e, finalmente, vencer os inimigos externos.

A própria santa conta como foram as aparições do Anjo:

“Quando eu tinha mais ou menos 13 anos, ouvi a voz de Deus que veio para ajudar-me a me governar. Na primeira vez, tive medo. E veio essa voz, no verão, no jardim de meu pai, por volta do meio-dia (...).  (...) Depois que eu ouvi essa voz três vezes, percebi que era a voz de um Anjo (...). “...Na primeira vez, tive dúvidas se era São Miguel que vinha a mim, e nessa primeira vez tive muito medo. E eu o vi, depois, muitas vezes, até saber que era São Miguel... Antes de tudo, ele me dizia que era uma boa menina e que Deus me ajudaria. Entre outras coisas, disse-me para eu vir em socorro do rei da França... O Anjo me falava da piedade que existia no reino da França”.( “Joana D’Arc a Mulher Forte” – de Régine Pernoud, Ed.Paulinas, pp. 21/22.)

O estandarte dos exércitos de Carlos Magno trazia a imagem de São Miguel, com a divisa: “Ecce Michael, Princeps Magnus. Venit in adjutorium mihi”, que quer dizer: “Eis que Miguel, o Grande Príncipe, acode em meu socorro”. Esta divisa e a imagem comemoravam uma vitória alcançada pelos saxões graças ao Arcanjo: o rei da Gália tendo-o invocado, apareceu-lhe São Miguel durante a batalha montado num cavalo branco e sustentando um estandarte azul florido de lírios de ouro. Durante a Idade Média, São Miguel era sempre escolhido como padroeiro das Ordens de Cavalaria.

Com o mesmo aspecto de guerreiro terrível e esplendente, apareceu São Miguel ao lado de Santo Antonio de Lisboa, quando este enfrentou o tirano Ezzelino da Romano a fim de o repreender pelas atrocidades e crimes que perpetrava. Também foi São Miguel que apareceu sobre o castelo de Sant’ Angelo cantando o “regina coeli”, cujo episódio, que contamos acima, foi narrado pelo próprio Papa São Gregório Magno.

 Um outro prodígio operado por São Miguel nos remonta ao século V, quando o Arcanjo apareceu por três vezes no monte Gargano. Um rico senhor da cidade de Siponte, na Itália, perdera um de seus touros e passou a procurá-lo pelo monte Gargano. Indo com seus homens até o pico do monte encontram o animal ajoelhado numa caverna inacessível aos homens. Tentando tirar o animal da caverna e não o conseguindo, o exasperado fazendeiro resolveu matar o touro e começou e desferir-lhe flechadas. Mas as flechas voltam-se, antes de atingir o alvo, e ferem o arqueiro.  A notícia do fato foi logo se espalhada pela cidade, indo chegar aos ouvidos do bispo, São Lourenço Maiorano.

Era necessário esclarecer o misterioso caso. Assim, o santo bispo ordenou que se fizessem penitências e orações públicas. Ao terceiro dia, aparece ao mesmo bispo o vulto de um nobre cavaleiro todo envolto em clarões celestes. Dizendo-se ser São Miguel, assim falou: “Sou eu o autor do prodígio da caverna. De futuro ela será o meu santuário na terra”.

Decorrido algum tempo, Siponte foi assediada por um exército invasor. A cidade já estava para se render, mas o bispo São Lourenço Maiorano pede e obtém uma trégua de três dias. Neste período, pediu à população para fazer preces públicas e penitências. Ao terceiro dia, o Arcanjo São Miguel lhes aparece reanimando-os a coragem e assegurando-lhes brilhante vitória sobre os inimigos. No outro dia, os sitiados fizeram uma surtida para tentar furar o cerco, quando subitamente viram o mar enfurecido e o ar escurecer-se e encher-se de raios que eram fuzilados contra o exército inimigo. Os invasores de Siponte, que eram pagãos, fugiram apavorados e foram dizimados pelos cristãos.

Logo após, São Lourenço organizou brilhante procissão em direção da gruta de São Miguel, acompanhada por mais sete bispos, pelo clero e por todo o povo da localidade. O objetivo era consagrar a gruta, mas São Miguel já o havia advertido antes que ela já havia sido consagrada pelo próprio Arcanjo.

Foi construído um Santuário no cimo do monte Gargano, sendo instituída inicialmente a festa de São Miguel no dia 8 de maio, dia da primeira aparição. Numerosas foram as peregrinações ao Monte Gargano. Papas, imperadores, príncipes, cavaleiros e santos visitaram o Santuário do Arcanjo. Os Cruzados, a caminho da Terra Santa, faziam do Santuário lugar de passagem habitual e quase obrigatória. Lá iam, entoando salmos para implorar do Príncipe das Milícias celestes a audácia e a coragem de que necessitavam. Reboavam pelo vale seus brados guerreiros: “São Miguel! São Miguel! Deus o quer!”

O Santuário tornou-se um dos locais mais venerados do mundo católico, dando ocasião a que se divulgasse em todo o orbe a devoção ao Arcanjo. Assim, foram construídas igrejas dedicadas a São Miguel em várias partes do mundo, como ao longo do Bósforo, na França (o famoso Monte São Miguel), na Alemanha e na Inglaterra. A bandeira do Império, na Alemanha, a que se levava na frente das batalhas, tinha estampada a imagem de São Miguel.

Lemos no “Livro das Semelhanças”, de Santo Anselmo, que, estando a morrer um religioso do seu Mosteiro, foi este terrivelmente assaltado pelo demônio, o qual o argüia primeiro pelos pecados que ele cometera antes do batismo, sacramento que o monge recebera já em idade avançada. O pobre homem não sabia o que responder, e, quando estava muito perturbado, apareceu São Miguel em seu auxílio respondendo que todos os pecados cometidos antes do batismo haviam sido perdoados por ocasião daquele sacramento.

O espírito mau acusou então o monge de vários pecados cometidos depois do batismo. O Arcanjo novamente responde que essas faltas tinham sido apagadas na confissão geral feita por ocasião da profissão religiosa do moribundo, e que este devia confiar na misericórdia divina. Satanás alegou por fim contra ele as muitas faltas e negligências da sua vida subseqüentes à profissão religiosa. São Miguel declarou que todos os pecados lhe haviam sido perdoados, porque os confessara e satisfizera por eles com boas obras e, especialmente, com a obediência, e que, se algum resto tinha ficado, estava agora expiando por meio do sofrimento naquela doença.

Depois desta última resposta o demônio partiu dali cheio de confusão e o bom religioso, cheio de esperança e confiança, rendeu suavemente a alma a Deus.

 

Alguns títulos com que é invocado São Miguel

Por tudo o que é perante Deus, e pelo que fez e faz por Sua maior glória, São Miguel é invocado com os seguintes títulos na Ladainha que se reza pedindo seus auxílios: poderosíssimo Príncipe dos exércitos do Senhor; Porta-Estandarte da Santíssima Trindade; Guardião do Paraíso; Guia e consolador do povo israelita; Esplendor e fortaleza da Igreja Militante; Honra e alegria da Igreja Triunfante; Luz dos Anjos; Baluarte dos ortodoxos; Força dos que combatem sob o estandarte da cruz; Luz e confiança das almas no último momento da vida; Socorro certíssimo; Nosso auxílio em todas as adversidades; Arauto da sentença eterna; Consolador das almas que estão no Purgatório; A Quem o Senhor incumbiu de receber as almas depois da morte; Nosso Príncipe e Advogado por ocasião do Juízo, e muitos outros títulos com que os cristãos O invocam.

O Arcanjo São Miguel é também invocado como Profeta, Guerreiro e Exorcista. Como Profeta porque foi o primeiro dos que recebeu luzes divinas para prever os acontecimentos futuros e prevenir os demais Anjos, conclamando-os para expulsar os anjos rebeldes. Como Guerreiro porque foi o primeiro a empunhar o gládio contra a revolta dos demônios, cheio de ímpeto, de força juguladora  e de santa tenacidade, o mais forte no choque, o decisivo no vergar o adversário, o supremamente tenaz no resistir a todas as seduções, furores e ciladas de Lúcifer. E, finalmente, como Exorcista porque foi o primeiro a conseguir graças suficientes de Deus para expulsar os demônios onde quer que esteja ou exerça a sua ação. Dotou-o Deus daquele poder invencível que aniquila as investidas e ardis do demônio, tornando-o tão impotente e tão desprezível, quanto é infame e odioso.

Embora tendo sido criado como Arcanjo, São Miguel ascendeu aos tronos dos Serafins e Querubins, sendo um dos Sete Espíritos supremos que assistem sempre na presença do Altíssimo (Apoc. 4, 5).

 

 

AVE MARIA, MARIS STELLA




27 de setembro. Nossa Senhora, Estrela do Mar (Stella Maris).

O título provavelmente tem sua origem no século V, através do grande Doutor da Igreja São Jerônimo. Stella Maris Nostre Domina ou Nossa Senhora, Estrela do Mar, foi usada para enfatizar o papel de Maria como uma estrela guiadora para Cristãos e Gentios. No Antigo Testamento os israelitas também se referiam ao mar como as fronteiras do seu território. De modo geral, os gentios que vinham de fora das suas fronteiras eram do mar. Daí a referência constante ás “ilhas” após o oceano em algumas profecias, indicando os povos além-mar, como nesse texto de Isaías: “Estes levantarão a sua voz e cantarão louvores; soltarão gritos de alegria do lado do mar, quando o Senhor for glorificado. Por esta causa, com as verdadeiras máximas de doutrina, glorificai ao Senhor; nas ilhas do mar (celebrai) o nome do Senhor Deus de Israel. Desde as extremidades da terra nós ouvimos os louvores, a glória do justo. E eu disse: O meu segredo para mim, o meu segredo para mim. (Isaías 24, 14-16)”
A devoção tem se baseado também na passagem de Santo Elias, em que ele reza para que venha a chuva, e após verificar uma nuvem sobre o mar manda atrelar os cavalos e correr para não ficar retido por causa do aguaceiro que estava prestes a cair, prenunciado por aquela nuvenzinha(I Rs 18, 44). Esta pequena nuvem é uma pré-figura da Santíssima Virgem Maria, mas, posteriormente, com o incremento das navegações no decorrer da Idade Média, a estrela do mar tomou seu lugar no imaginário religioso e devoto.
A prática de invocar Maria como uma Estrela guiadora para os marítimos levou à devoção a Nossa Senhora, Estrela do Mar, em todo o mundo, especialmente nas comunidades costeiras e pesqueiras. Existem muitas igrejas católicas que são nomeadas em honra de Maria, Estrela do Mar.
Escritos do século IX diziam que Maria, Estrela do Mar, deveria ser usada como um guia a seguir no caminho de Cristo para evitar a virada em águas atiradas pela tempestade. Algum tempo depois, no século XIII São Bernardo de Claraval escreveu: “E o nome da Virgem era Maria (Lc 1,27). Falemos um pouco deste nome que significa, segundo se diz, Estrela do Mar, e que convém maravilhosamente à Virgem Mãe.. Ela é verdadeiramente esta esplêndida Estrela que devia se levantar sobre a imensidade do mar, toda brilhante por seus méritos, radiante por seus exemplos. ′Se surgirem os ventos da tentação; Se você for conduzido sobre as rochas da tribulação olhe para a estrela, chame Maria; se você for atirado sobre as ondas do orgulho, da ambição, da inveja, da rivalidade, Olhe para a estrela, chame a Maria. Se a raiva, ou avareza, ou o desejo de carne atacar violentamente o frágil vaso da sua alma, olhe para a estrela, chame Maria!".
Santo Antônio de Pádua também escreveu sobre Maria, Estrela do Mar, e muitos anos depois, o Papa Pio XII, na Encíclica Doctor Melifluus citou São Bernardo dizendo: ′′ Maria... é interpretada como significando ′′ Estrela do Mar... ' Isto admiravelmente se adequa à Virgem Mãe.. (pois) como o raio não diminui o brilho da estrela, assim como a Criança nasceu dela mancha a beleza da virgindade de Maria."
No Monte Carmelo, em Israel, o Mosteiro de Stella Maris foi construído como a casa principal da ordem do Carmo, fundada no início do século XIII. Este mosteiro foi destruído várias vezes mas sempre foi reconstruído. O mosteiro renovado de hoje ainda é considerado a sede dos Carmelitas.
Os primeiros registros escritos onde aparecem referências a Maria como Estrela do Mar, são as ladainhas lauretanas aprovadas no século XVII pelo Papa Paulo V. No final desse século, o mesmo Papa aprovou outras invocações surgidas na Hispano América nas quais se encontram maior quantidade ainda as de referências a Stella Maris. A Virgem Maria sempre esteve muito presente nos navegantes cristãos e sua representação com Stella Maris emanou dos mesmos corações dos marinheiros antigamente.
Temos um exemplo disso na Argentina: em razão de devoção surgida a partir de 1908 com a construção de uma capela em memória de Nossa Senhora, Estrela dos Mares, construída na cidade de Mar del Plata, a marinha daquele país a tomou como Padroeira, em honra da qual fez seu hino.
O HINO
A propósito da devoção, surgiu o hino com o mesmo nome (Ave Maris Stella), cuja origem é difícil de precisar, como muitas outras orações ou cantos e hinos medievais. Foi muito popular na Idade Média e usado em muitas composições dessa época. As primeiras notícias sobre esse texto remontam ao século VIII. O autor da poesia teria sido São Venâncio Fortunato (530-609), bispo de Poitiers, a quem atribui-se também o Pange Lingua Gloriosi Proelium Certaminis (Canta, minha língua, o glorioso combate) que serviu de inspiração para o hino eucarístico Pange Lingua Gloriosi Corporis Mysterium (Canta, minha língua, o glorioso mistério da Hóstia) de São Tomás de Aquino. A poesia apresenta Nossa Senhora como Estrela do Mar, dado que este é o significado do nome hebraico Myriam, do qual o nome Maria é a variante latina.
Na liturgia o Ave Maris Stella foi designado como Hino do Comum das Vésperas de Nossa Senhora, para ser usado, portanto, em festas como as da Purificação (2 de fevereiro), Anunciação (25 de março), Assunção (15 de agosto), Natividade (8 de setembro), Maternidade (11 de outubro) e Conceição (8 de dezembro).
Na Idade Média, o Ave Maris Stella foi musicado em canto gregoriano, porém passou a receber composições polifônicas a partir do século XV, por diversos compositores.
Ave, Maris Stella (original em latim)
Ave, Maris Stella,
Dei Mater alma,
Atque semper virgo,
Felix cœli porta.
.
Sumens illud Ave,
Gabrielis ore,
Funda nos em ritmo.
Mutans Evae nomem.
.
Solve vincula reis,
Profer lumen caecis.
Mala nossa pele,
Bona cuncta posce.
.
Monstra te esse matrem,
Sumat para você antes,
Qui pro nobis natus,
Tulit esse tuus.
.
Singularis virgem,
Inter omnes mitis,
Nos culpis solutos,
Faculdade e castos.
.
Vitam praesta puram,
Atitude de dinheiro,
Ut videntis Jesum,
Semper collaetemur.
.
Sit laus Deo Patri,
Summo Christo decus,
Spiritui Sancto,
Tribus honor unus. Amen.
__________________________
(Tradução para o português)
Salve, do Mar Estrela
De Deus Mãe bela
Sempre Virgem, da morada
Celeste feliz entrada
.
Ó tu que ouvistes da boca
Do Anjo Gabriel a saudação
Dá-nos paz e quietação
E o nome de Eva troca
As prisões aos réus desata
E a nós cegos, alumia
De todo o que nos maltrata
Nos livra, o bem nos granjeia
Ostenta que és Mãe fazendo
Que os rogos do povo seu
Ouça aquele que, nascendo,
Por nós quis ser filho seu
Ó Virgem especiosa
Toda cheia de ternura
Extintos nossos pecados
Dá-nos pureza e brandura,
.
Dá-nos uma vida pura,
Põe-nos em via segura,
Para que a Jesus gozemos,
E sempre nos alegremos
.
A Deus Pai veneremos,
A Jesus Cristo também,
E ao Espírito Santo demos
Aos três um louvor. Amém.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

REQUINTE E AMOR À CRUZ

 


 (Reflexões teológicas de Dr. Plínio)

Temos aqui um texto tirado da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, no qual São Luís Grignion, com uma linguagem inflamada, inculca mais especialmente a ideia das tribulações, por ver quanto o homem é tendente a fugir delas.

 Deus nos visita por meio dos sofrimentos

[24] Não vos ufanais, caros amigos da Cruz, de serdes amigos de Deus ou de tal poderdes vos tornar? Resolvei, pois, beber o cálice que é preciso necessariamente beber para se tornar amigo de Deus. “Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt”[1] O bem-amado Benjamin teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o frumento (cf Gn 44, 1-12). O grande favorito de Jesus Cristo [São João Evangelista], teve seu coração, subiu o Calvário e bebeu o cálice. “Potestis bibere calicem?”[2]  É bom desejar a glória de Deus, mas deseja-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante; “Nescitis quid petatis”[3]

“Per multas tribulationes oportet nos intrare in Regnum Dei (At 14, 21): é preciso, oportet, é necessário, é coisa indispensável, é preciso que entremos no Reino dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.

[25] Gloriai-vos com razão de ser filhos de Deus.  Gloriai-vos, pois, das chicotadas que este bom Pai vos deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia os seus filhos.

Como a idéia de um Deus que chicoteia seus filhos é destoante e pouco afeita à falsa piedade sentimental!   Mas Ele chicoteia por meio das provações e das tribulações. Evidentemente temos que nos resignar a essa idéia de que são presentes dos melhores quando nos faz sofrer. Devemos permitir que Deus nos castigue, flagele, exatamente por ser o que convém aos homens.

Havia na linguagem portuguesa antiga uma expressão muito bonita que me lembro de ainda ter ouvido as beatas da Igreja do Coração de Jesus usarem. Então, uma velha conversando com outra diz: “Deus tem me visitado...” Eu era ainda menino e pensava: “Será que ela teve uma visão?” Mas a expressão ficou-me na memória e indica uma coisa muito bonita: cada dor que nos vem é uma visita de Deus. Ou então, Ele nos visitou por meio de alguém que nos fez sofrer. Esta é a visita de Deus; devemos recebe-la de boa vontade, abrir a porta para ela, amá-la, manter a nossa alma em alegria enquanto durar essa visita.

Essa idéia de que Deus visita alguém nós a encontramos no Antigo Testamento, quando das visitas que o Todo-Poderoso faz ao povo de Israel por meio dos profetas. Mas há outra coisa que é essa visita de Deus pelo sofrimento. Então, a expressão me parece muito bonita.

 Quem não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si

Se não sois do número de seus filhos bem-amado, sois – oh! que desgraça,,  que golpe fulminante! -, como o diz Santo Agostinho, dos números dos réprobos. Aquele que não geme neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro como cidadão do Céu, diz o mesmo Santo Agostinho. Se Deus Pai não vos enviar, de tempos em tempos, algumas boas cruzes, é que já não Se preocupa convosco, está irado contra vós, olha-vos tão somente como a um estrangeiro fora de sua casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo que, não merecendo sua proteção na herança de seus pai, não merece da parte d’Ele nem cuidados nem correção.

No Antigo Testamento acreditava-se que quando uma pessoa sofria era por ter cometido algum pecado. Portanto, sobre o sofredor recaía a suspeita de ser uma pessoa má. Pelo contrário, quem era feliz nesta Terra considerava-se como sendo bom, porque Deus estava premiando as boas ações que a pessoa tinha praticado.

Porém, aos poucos foi-se tornando mais explícita no Antigo Testamento a revelação de que havia uma vida eterna. Com isso, essa impostação foi-se modificando.

Já no Novo Testamento e encontramos a idéia contrária: o homem sofredor é o amado por Deus, enquanto aquele que não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si.

Esse pensamento é muito importante, porque a maior parte das pessoas têm admiração por quem não sofre e um certo desprezo por quem padece. Essa é uma visão errada, pois quem é sofredor merece admiração, mas aquele que não sofre nada merece desconfiança, ou em breve Deus irá visita-lo com o sofrimento.

 Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria

[26] Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da Cruz é desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos. É, porém, o grande mistério que deveis aprender na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em vão, em todas as academias da Antiguidade, um filósofo que o haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.

Isto é bem verdade. Nós encontramos alguma coisa histórica a respeito do sofrimento, mas é uma impostação diversa, uma espécie de faquirismo. Não é tomar a Cruz como Nosso Senhor Jesus Cristo a recebeu e, sobretudo, a graça para desejar a Cruz, pois sem a graça não se compreende isso. É uma coisa  toda sobrenatural.

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre, e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente.

Este é um ponto fundamental para se entender essa sabedoria. Quem tem horror ao sofrimento, o espírito desmortificado, não é capaz de ter sabedoria. Pode participar de um curso sobre a sabedoria, fazer o que quiser, não adianta. Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria.  Vou dizer mais: toda forma de aquisição intelectual ou de vitória moral, sem sofrimento, não tem valor nenhum. A única coisa que dá a isso algum valor é exatamente a Cruz.

 Senhoras que transmitiam ao lar um perfume moral

É a Cruz a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa pedra filosofal que muda pela paciência os metais mais grosseiros em metais preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas em riquezas, as humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que melhor sabe levar a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B é o mais sábio de todos.

 Antigamente se encontrava um estilo de velha senhora sofredora. Às vezes, casada com um marido péssimo, colérico, que perdia a fortuna e o filho fazia coisas más. Muitas delas eram beatas de igreja, mas com estilo diferente  das beatas sentimentais. Eram mulheres piedosas, que iam muito à igreja em dias de semana. Olhava-se para algumas delas e via-se que possuíam verdadeiramente uma resignação, uma dignidade de alma de chamar a atenção. Esse tipo de mulheres tinha sua respeitabilidade pelo fato de serem sofredoras. Assim, procurava-se bordar a mulher com a idéia de que ela deve sofrer, que habitualmente o casamento é um martírio, pois com frequência os maridos são ruins. Isso não é uma coisa normal, embora seja habitual. É justo que a mulher sofra com isso e ela deve aceitar esse sofrimento. A condição dela é, dentro de casa, levar todas as cruzes para dar ao lar a dignidade que a má conduta do marido não proporciona. Essa era a impostação de espírito existente em um bom número de senhoras, antigamente.

Então essas senhoras tinham uma dignidade de alma e uma elevação de vistas que excedia imensamente aos maridos. Eram elas que davam ao lar um perfume moral, um recolhimento, um recato, uma atração de que não se tem idéia mais hoje em dia. Mas é porque o espírito de sofrimento desapareceu. O pressuposto da idéia errada é justamente de que a mulher não deve mais sofrer, jogando de lado a Cruz de Jesus Cristo. Entretanto, o tipo feminino anterior a isso era, às vezes, de comover de tanta dignidade.

Alguém me contou o caso de uma senhora de minha geração que tinha um irmão sem-vergonha. Ambos eram solteiros. E ela aguentou o irmão a vida inteira, sendo ele, ao que parece, desse tipo de homem que chega bêbado em casa, derrubando objetos. De tanto beber, ele arruinou a família completamente e acabou morrendo. Pouco antes de falecer, o irmão chamou um criado muito fiel a ele e lhe disse: “Eu vou morrer. Logo após a minha morte, a primeira coisa que você deve fazer é ir à casa de minha irmã, ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe que mandei agradecer tudo o que ela fez por mim. E que eu até nem tenho palavras para agradecer tantos benefícios, e por isso mandei você ajoelhar para prestar esse ato de gratidão”.

A atitude desse homem, esta sim, dá uma certa esperança de que ele tenha se arrependido nos seus últimos instantes, e ainda tenha tido um último perdão antes de morrer. Terá tido, então, a graça do perdão obtida por uma das tais mulheres a quem os maridos sem-vergonha, antes de morrer, pediam perdão, e os filhos, ao vê-la falecer, imploravam perdão também e levavam, chorando, o caixão dela para o cemitério.

 O verdadeiro apóstolo é uma alma crucificada

Não há nada num ambiente que valha o tesouro da  presença de uma alma resignada a sofrer. Esse gênero de pessoas dá bons conselhos. Pode até ser gente simples, sem experiência e, sendo a última da família, os outros a ela se dirigem na hora de uma crise moral para pedir um conselho. Almas assim são sempre, no fundo, as mais alegres do lar, e são elas que consolam as outras pessoas da família.

Já vi gente nadando em felicidade e dinheiro chorar junto desse tipo de pessoa, e pedir consolação. Esse é o fascínio, essa é a influência sem nome, a ação prestigiosa da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o tesouro das famílias. E porque acabou até isso, a família praticamente morreu.

Queira ou não queira, quando a alma aceita bem o sofrimento ela toma uma tal autoridade que se diria ser a pessoa crucificada um outro Crucificado. Quer dizer, diante da pessoa que aceita o sofrimento seriamente até o fim, os outros se alteram. Pode durar mais tempo ou menos, mas eleva a alma a uma grandeza que lhe dá ima força divina, e exerce uma influência sobre as almas que arrasta tudo.

Tome-se, por exemplo, um padre que seja verdadeiramente um penitente, um homem que carrega a cruz do sacerdócio de um modo sério. Pode ser o último padrezinho do interior, de batina já rota, esmolambada. Ele entra num ambiente, sente-se ser um sacerdote que aceita contente o papel de vítima. Podem rir dele e até mata-lo, ele dominou a situação. Na alma que tenha aceito a sua própria cruz há qualquer coisa de divino que nos leva a pensar o seguinte: o apostolado verdadeiramente vem do fato de que uma alma resolve aceitar sofrer. Aí se prepara o campo para os melhores discursos, as mais bonitas tiradas, as melhores coisas que sejam feitas. Mas é preciso que se trate de uma alma crucificada.

Isso nós precisamos sempre lembrar. No Reino de Maria, se não houver numerosas almas crucificadas, ele morre. Porque o prestígio da Igreja e a força da Civilização Cristã vêm das almas que sofrem.

 O pobre que sofre alegremente e o doutor da Sorbonne

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre...

Escutai o grande São Paulo que, ao voltar do terceiro céu onde conheceu mistérios ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer pregar senão Jesus Cristo crucificado.

Regozijai-vos, pobre ignorante ou pobre mulher sem espírito e sem ciência: se souberdes sofrer alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne, que não soube sofrer tão bem quanto vós.

Podem imaginar o que era, naquela época, um professor da Sorbonne e qual o desafio que uma coisa dessas representava! Era a época em que os formados, já não digo os empossados no cargo, na maior parte das cidades onde havia universidade, eram montados num animal, acompanhados pelos parentes e toda a cidade em desfile. Vestidos de um traje de formatura, de alguém que está por cima, o doutor passeando no meio de todo mundo. E um membro da classe profissional era ainda muito mais. Chega a dizer que o pobre ignorante é mais do que um doutor da Sorbonne...Se os doutores da Sorbonne fosse levar a sério o que São Luís dizia, que injúria! É um desafio atirado ao espírito mundano.

[27] – Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disso! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfume? A cabeça não um travesseiro para repousar, e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminhos? Seria uma monstruosidade inaudita.

Não, não, meus caros companheiros da cruz, não vos enganeis, estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos, nem verdadeiros membros de Jesus crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ah, meu Deus! Quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são de coração seus inimigos. Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, Cruz – porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma coroa de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos sem hesitar,  e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Isso deve ser visto como dito àquela gente de um século que levou o “raffinement”[4] o mais longe possível. E como merecido por eles por causa exatamente do sentido de gozo desse “raffinement”. Era um requinte que não vinha acompanhado de espírito de Cruz e, como resultado, causava horror à Cruz verdadeira. E que, por isso mesmo, dava em decadência. Cada vez mais, as modas iam sendo feitas apenas para o gozo da vida e perdendo a pompa e a majestade, passando do majestoso para o raffiné, do raffiné ao gracioso, do gracioso ao vulgar. Realmente, a decadência da civilização se deu, no fundo, devido a esse excesso de moleza dentro da arte, da literatura, da moda, da vida social.

Vemos, assim, em São Luís Maria Grignion de Montfort uma homem que possivelmente não era um sociólogo, mas que percebia de longe coisas que homens de seu tempo não sabiam ver. Por quê? Não por ser ele muito inteligente, mas porque era um amigo da Cruz. A Cruz dá a possibilidade de ver as coisas que os outros não sabem ver.

 

(Extraído de conferência de 23/09/1967)

 

(Transcrito da revista “Dr. Plínio”., edição n. 234, setembro de 2017)

 

 

 

 

 

 

 



[1] Do latim: Beberam o cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus (da antífona de entrada na Solenidade de São Pedro e São Paulo).

[2] Do latim: podeis beber o cálice? (Mt 20, 22)

[3] Do latim: não sabeis o que estais pedindo (Mt 20, 22)

[4] Do francês: requinte.