quarta-feira, 31 de agosto de 2016

TRÊS ARTIGOS SOBRE A ALEGRIA DO SERVIR





Plinio Corrêa de Oliveira


A ti caro ateu

"Caro"? O adjetivo pode causar estranheza a leitores que, pelos artigos da "Folha" como por outros meios, há décadas me vêem combater o ateísmo, precisamente no aspecto mais expansivamente imperialista que assumiu ao longo da História, isto é, o ateísmo marxista. "Caro": como então justificar o qualificativo? Explico-me.
Deus quer a salvação de todos: dos bons, para que recebam no Céu o prêmio de seus méritos; dos maus, para que, tocados pela graça, se emendem e alcancem o Céu. Em perspectivas e a títulos diversos, uns e outros são, portanto, caros a Deus. Como, então, podem não o ser ao católico? Caros, sim, até mesmo quando, para defender a Igreja e a cristandade, o católico os combate. Um cruzado poderia dizer com toda a sinceridade "caro irmão" ao maometano, no momento mesmo em que terçava rijamente armas com ele para a reconquista do Santo Sepulcro.
A expressão "caro ateu" é pois válida. E comporta até sentidos matizados. Pois oferece matizes o ateísmo. A cada um deles corresponde — como é natural — um sentido específico da palavra "caro". Assim, há ateus que se alegram com a convicção de que "Deus não existe". A tal ponto que se algum fato evidente — um milagre retumbante por exemplo — o convencesse do contrário, bem poderia acontecer que ele passasse a odiar a Deus, e até a matá-Lo, se fosse possível.
Outros ateus estão de tal maneira enchafurdados nas coisas da terra, que seu ateísmo não consiste em negar que Deus existe, mas em desinteressar-se inteiramente do assunto. Se é cabível a distinção, eles não são "ateus", no sentido mais radical e aliás corrente da palavra, mas "a-teus", ou seja, laicos. Concebem sem Deus a vida e o mundo. Caso se lhes provasse que Deus existe, veriam nEle um ser "con il quale o senza il quale, il mondo va tale quale". Sua reação consistiria em decretar contra Ele um total e perpétuo banimento dos assuntos terrenos.
Mas há um terceiro gênero de ateus. A este pertencem os que, acabrunhados pelos trabalhos e decepções da vida, e vendo bem, por amarga experiência pessoal, que as coisas desta terra não passam de "vaidade e aflição de espírito" (Eccles. 1, 14), gostariam que Deus existisse. Mas tropeçando nos sofismas do ateísmo, aos quais outrora haviam aberto o espírito, atados pelos hábitos mentais racionalistas a que aferraram a mente, tateiam agora nas trevas sem conseguir encontrar o Deus a quem outrora rejeitaram. Quando medito na apóstrofe de Jesus Cristo: "Vinde a mim, ó vós todos que estais sobrecarregados e fatigados, e eu vos restaurarei" (Mt. 11, 28), penso mais especialmente neste tipo de ateus. E tenho mais especialmente vontade de os chamar "caros ateus".
Assim fica explicado quais são os ateus a quem especialmente dirijo as presentes reflexões.
Entretanto, não é só a eles que tenho em vista, mas a outros leitores, e outros ainda, e muito mais especialmente caros. Isto é, a alguns irmãos na Fé católica, membros como eu do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, os quais, tendo lido a referência por mim feita no artigo "Volta à Torre de Babel?" à espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort, desejaram que eu dissesse algo mais sobre o assunto através das colunas da "Folha".
Escrevo pois este artigo para estes últimos. Mas com olhos postos nos primeiros. Faço-o nesta "Folha" tão coerente com os princípios de liberdade de pensamento, os quais professa, que abre compreensivamente um espaço para mim (que certamente não sou um liberal!). Para que neste espaço eu diga o que me pareça. Ao considerar meus artigos, insertos entre tantos outros de rumo bem oposto, parece-me ver a "Folha" voltada para o público com um estandarte em punho (por certo não o rubro e leonino estandarte da TFP!), no qual se leriam estas palavras de Voltaire (ultraliberais, e também exemplarmente lógicas na perspectiva liberal): "Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de as dizer".
Pluralismo coerente é isto. E estão nos antípodas disto tantos jornais brasileiros que aos urros se jactam de seu pluralismo, mas recusam o menor espaço para um comentário – até para a menor notícia – de movimentos antipluralistas. Como se o pluralismo fosse absurdamente não-plural, e não consistisse na liberdade de discordar. Dir-se-ia até que, em tais jornais, há um politburo apostado em varrer da publicidade o pensamento "herético" antiplural.
Oh, como seria mais autêntica, mais intelectualizada e mais arejada a democracia brasileira, se seguissem a linha de ação enunciada naquela frase de Voltaire, tantos jornais brasileiros.
Falo agora aos ateus especialmente caros, na esperança de lhes tocar o fundo da alma, no mesmo texto em que falo para meus caríssimos irmãos na Fé.
Imagina-te, caro ateu, em alguns desses intervalos da vida quotidiana de outrora, no sossego dos quais subiam à tona do espírito as impressões aprazíveis e profundas que a faina do dia, carregada do pó da trivialidade e do suor do esforço, havia sufocado na subconsciência. Eram os espaçosos momentos de lazer, em que as saudades de um passado risonho, os encantos e as esperanças do presente duro mas luminoso, e as fantasias tantas vezes pérfidas faziam agradável ciranda para distender a alma "posta em sossego, [...] naquele engano da alma, ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito" (Camões, Lusíadas, canto 3º, estância 120).
Nos minguados momentos do lazer de hoje, pelo contrário, sobe à tona a neurótica sarabanda das decepções, das preocupações, das ambições descabeladas e dos cansaços exacerbados. E por sobre essa sarabanda paira uma pergunta acachapante, plúmbea, obscura: para que viver?
Sob o signo dessa pergunta, encerro o artigo de hoje. Até o próximo, caro ateu.
"Folha de S. Paulo", 31 de agosto de 1980



O serviço, uma alegria

FIGURA-TE então que a teu espírito contundido pela vida, calejado ou até chagado, quente de febre, aparece uma figura dessas, com que sonhava tua inocência infantil há tantos anos morta, uma rainha toda majestade e toda sorriso, a qual, para ajudar-te, te conduz pela mão para dentro dos raios da luz irisada, pacificadora e radiosa que a circunda, para dentro de uma atmosfera que, de tão pura, parece recender com todos os perfumes da natureza: flores, incenso, sei lá o que mais. E tu, caro ateu, te deixas atrair. Caminhas fitando essa figura mais bela ainda do que as luzes que a envolvem, e mais odorífera que os perfumes a que recende. Dons magníficos que ela recebe de um foco invisível mas soberano, que com ela não se confunde, mas que nela transluz.
Esquecidas estão as tuas amarguras. Sentes quanto há de fátuo no maremagno delas. Discernes que incomensuravelmente para além da esfera do cotidiano, na qual elas deliram e pululam, há uma ordem do ser excelsa e tranqüila, onde poderás ingressar, ao fim. Percebes que só nela encontrarás aquela felicidade que procuravas entre os vermes, mas que, na realidade, habita para além das estrelas.
Fitas mais e mais a Senhora, e começa a parecer-te que já a conhecias. Procuras na sua fisionomia algo que te parece profundamente familiar. Em um quê do olhar, em certa peculiar nota de afeto no sorriso, em algo da segurança que irradia, rica em subentendidas expressões de afeto, reconheces certos lampejos de alma inefáveis que vias nos mais generosos lances de alma da mãe terrena que tiveste ou — por entre as inumeráveis formas de orfandade, no mundo de hoje — da mãe que querias ter tido.
Fixas a vista, e vês ainda mais. Não apenas uma mãe, a tua, mas alguém — Alguém — que se te afigura a quintessência inefável, a síntese amplíssima de todas as mães que houve, que há e que haverá. De todas as virtudes maternas que a inteligência e o coração do homem possam conhecer. Mais ainda, daqueles graus de virtude que só os santos sabem excogitar, e das quais só eles sabem aproximar-se, voando nas asas da graça e do heroísmo. É a mãe de todos os filhos e de todas as mães. É a mãe de todos os homens. É a mãe do Homem. Sim, do Homem-Deus, do Deus que se fez Homem no seio virginal dessa Mãe, para resgatar todos os homens. É uma Mãe que se define por uma palavra — o mar — a qual, por sua vez, dá origem a um nome. Nome que é um céu: é Maria.
Por Ela te vêm, do sol divino, infinitamente superior, mas que nela parece habitar (como os raios de um sol parecem morar nos vitrais), te vêm, digo, todas as graças, todos os favores. Tu imploras, e tu te vês atendido. Tu queres, e tu te vês satisfeito. Do fundo da paz que começa a ungir-te e envolver-te, sentes nascer uma forma de felicidade que é o oposto radioso daquela que, até há pouco, freneticamente procuravas. Esta felicidade terrena, se é que a possuías, por fim a andavas atirando ao lado, inveterado, blasé, tão parecido com a criança que atira ao canto os brinquedos que já não a entretêm.
No egoísta frustrado que foste, começa a surdir, como um lírio que nascesse do pântano, ou uma fonte em arenal desértico, algo de novo. É o amor. Não o egoísmo, que é o amor exclusivista de ti mesmo. Mas o amor dos princípios eternos, dos ideais fulgurantes, das causas altaneiras e sem jaça, que vês resplandecer na Dama inefável, e que começas a querer servir.
Servir, dedicar-te, imolar-te, e a tudo que te pertence, eis o nome de tua nova felicidade. Esta felicidade tu a encontras em tudo quanto evitavas: a dedicação não retribuída, a boa vontade incompreendida, a lógica escarnecida por tartufos ou ignorada por surdos voluntários, a confrontação com a calúnia que ora ulula como um furacão, ora agita discretos guizos como uma serpente, ora, enfim, mente como uma brisa morna e carregada de miasmas fatais. Tua alegria consiste agora em resistir a tanta infâmia, em avançar, vencer, ferido, negado, ignorado embora. Tudo para o serviço da Senhora "vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, e na cabeça uma coroa de doze estrelas" (Apoc. 12, 1). A serviço dEla, sim, e dos que A seguem.
Pensavas que a felicidade era ter tudo. Verificas agora que, pelo contrário, ela consiste em que te dês inteiro.
Sobressalta-te talvez o receio de que estou a sonhar e de que te esteja fazendo sonhar ao longo destas linhas que, eventualmente, tua benevolência terá imaginado saborosas. Ora, nem sonho, nem te faço sonhar, nem estão sendo esplendorosas as linhas que leste.
Quão apagadas, pelo contrário, são elas em confronto com o livro que citei, no artigo "Volta à Torre de Babel?", isto é, o "Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem", de São Luís Maria Grignion de Montfort. Nele, o famoso missionário do fim do século XVII e início do século XVIII (cujos seguidores foram os chouans, heróis da luta contra a Revolução Francesa, atéia e igualitária, de fins do mesmo século XVIII) justificou, com base nas mais sólidas verdades da Fé, e mediante um raciocínio impecavelmente lógico, o perfil de santidade de Maria. Esquadrinhou ele a fundo o significado de sua maternidade virginal, o papel dEla na Redenção do gênero humano, a situação dEla como Rainha do Céu e da Terra, de co-Redentora dos homens e medianeira universal das graças que nos vêm de Deus. Como também das preces da humanidade sofredora, a Deus Todo-Poderoso. Analisa o Santo, à luz de tudo isto, a providência de Maria, e como essa providência de tal maneira tem em vista amorosamente cada homem, que a Mãe do Homem-Deus nos ama a cada qual com um amor maior do que todas as mães do mundo amariam seu filho único.
Foi para te atrair à consideração desses grandes tesouros, desses grandes pensamentos e dessas grandes verdades, que resolvi escrever-te. Atendo, ao mesmo tempo, o desejo de vários irmãos na Fé, que outra coisa não desejam senão ter-te entre eles, bem junto... a Ela.
Se aprouve à graça orvalhar minhas palavras, sentiste em ti algo como uma música longínqua, de tal maneira consoante contigo, com tuas aspirações mais palpitantes, que se diria que ela foi composta para ti. E que, por tua vez, tens (ou és) uma sede de harmonia, nasceste para te dares a esta.
Em uma palavra, és para Ela ordenado, e sem Ela não és senão desordem.
E se, na grande harmonia do universo, até o mais insignificante grão de areia, a mais anônima gota de água, ou o último e mais contorcido verme da terra têm seu lugar e sua função, não será idêntica com essa ordem do universo — ou, antes, com os mais altos píncaros dela — o conjunto de verdades que acabo de te apresentar por metáforas, e São Luís Maria Grignion deduz, na mais sã e rija coerência, da Fé católica, dessa Fé que, por sua vez, São Paulo definiu como "rationabile obsequium" (Rom. 12, 1)?
Se é falso todo este panorama que te ordena, e sem o qual não és senão caos, então, no universo, tão supremamente ordenado ele próprio, és tu — é cada homem — um ser deslocado, desencaixado, perdoa-me o prosaísmo, porém és — e é cada homem — uma excrescência, uma verruga, um câncer, uma catástrofe. Logo, tu; logo, nós; logo, todos os homens, que, enquanto homens, somos entretanto o régio ápice dessa ordem!...
Crer que isto seja assim, crer numa tão monstruosa contradição instalada no ápice mesmo de uma ordem tão perfeita, isto sim é irracional. É a apoteose do absurdo.
"Folha de S. Paulo", 13 de setembro de 1980


Obedecer para ser livre

Não, caro ateu. Dando longínquo eco às palavras do bispo São Remígio ao batizar Clóvis, primeiro rei cristão dos francos, digo-te: "Queima o que adoraste e adora o que queimaste". Sim, queima o egoísmo, a dúvida, a modorra, e, movido pelo amor de Deus, ama e serve e luta pela Fé, pela Igreja e pela civilização cristã. Sacrifica-te. Abnega-te.
Como? — Como o fizeram, em todos os séculos, os que combateram por Jesus Cristo o "bom combate" (II Tim. 4, 7).
E muito assinaladamente o farás se seguires o método definido e justificado por São Luís Maria Grignion de Montfort. Trata-se da "escravidão de amor" à Santíssima Virgem.
"Escravidão"... Rude e estranha palavra, sobretudo para os ouvidos modernos, habituados a ouvir falar, a todo momento, de desalienação, de libertação, e cada vez mais propensos à grande anarquia, a qual, como uma caveira de foice na mão, parece rir sinistramente aos homens, da soleira da porta de saída do século XX onde os aguarda.
Ora, há uma escravidão que liberta, e há uma liberdade que escraviza.
Do homem cumpridor de suas obrigações se dizia outrora que era "escravo do dever". De fato, era um homem situado no ápice de sua liberdade, que inteligia por um ato todo pessoal as vias que lhe tocava trilhar, deliberava com varonil vigor trilhá-las, e vencia o assalto das paixões desonestas que tentavam cegá-lo, amolecer-lhe a vontade e vedar-lhe assim o caminho livremente escolhido. O homem que, alcançada esta suprema vitória, prosseguia com passo firme para o rumo devido, era livre.
"Escravo" era, pelo contrário, aquele que se deixava arrastar pelas paixões desregradas, para um rumo que sua razão não aprovava, nem a vontade preferia. A estes genuínos vencidos se chamava de "escravos do vício". Tinham, por escravidão ao vício, se "libertado" do sadio império da razão.
Esses conceitos de liberdade e servidão, Leão XIII os expôs, com a brilhante maestria toda sua, na encíclica Libertas.
Hoje tudo se inverteu. Como tipo de homem "livre" tem-se o hippie de flor em punho, a perambular sem eira nem beira, ou o hippie que, de bomba na mão, espalha o terror a seu bel-prazer. Pelo contrário, por atado, por homem não-livre é tido quem vive na obediência das leis de Deus e dos homens.
Na perspectiva atual, é "livre" o homem a quem a lei faculta comprar as drogas que queira, usá-las como entenda, e por fim... escravizar-se a elas. E é tirânica, escravizante, a lei que veda ao homem escravizar-se à droga.
Sempre nesta estrábica perspectiva feita de inversão de valores, é escravizante o voto religioso mediante o qual, em plena consciência e liberdade, o frade se entrega, com renúncia de qualquer recuo, ao serviço abnegado dos mais altos ideais cristãos. Para proteger contra a tirania de sua própria fraqueza essa livre deliberação, o frade se sujeita, nesse ato, à autoridade de superiores vigilantes. Quem assim se vincula para se conservar livre de suas más paixões está sujeito hoje a ser qualificado de vil escravo. Como se o superior lhe impusesse um jugo que cerceasse sua vontade... quando, pelo contrário, o superior serve de corrimão para as almas elevadas que aspiram, livre e intrepidamente — sem ceder à perigosa vertigem das alturas — galgar até o ápice as escadarias dos supremos ideais.
Em suma, para uns é livre quem, com a razão obnubilada e a vontade quebrada, impelido pela loucura dos sentidos, tem a faculdade de deslizar voluptuosamente no tobogã dos maus costumes. E é "escravo" aquele que serve à própria razão, vence com força de vontade as próprias paixões, obedece às leis divinas e humanas, e põe em prática a ordem.
Sobretudo é "escravo", nessa perspectiva, aquele que, para mais inteiramente garantir sua liberdade, opta livremente por submeter-se a autoridades que o guiem para onde ele quer chegar. Até lá nos leva a atmosfera atual, impregnada de freudismo!
Foi em outra perspectiva que São Luís Grignion de Montfort, ideou a "escravidão de amor" a Nossa Senhora, própria a todas as idades e a todos os estados de vida: leigos, sacerdotes, religiosos etc.
O que faz a palavra "amor", conjugada à palavra "escravidão" de modo surpreendente, já que esta última é o senhorio brutalmente imposto pelo forte ao fraco, pelo egoísta ao coitado a quem explora? "Amor", em sã filosofia, é o ato pelo qual a vontade quer livremente algo. Assim, também na linguagem corrente, "querer" e "amar" são palavras utilizáveis no mesmo sentido. "Escravidão de amor" é o nobre auge do ato pelo qual alguém se dá livremente a um ideal, a uma causa. Ou, por vezes, se vincula a outrem.
O afeto sagrado e os deveres do matrimônio têm algo que vincula, que liga, que enobrece. Em espanhol, às algemas se chama "esposas". A metáfora nos faz sorrir. E aos divorcistas pode arrepiar. Pois alude à indissolubilidade. Em português falamos dos "vínculos" do matrimônio.
Mais vinculante do que o estado de casado é o do sacerdote. E, em certo sentido, mais ainda o é o do religioso. Quanto mais alto é o estado livremente escolhido, tanto mais forte o vínculo, e tanto mais autêntica a liberdade.
Assim, São Luís Grignion propõe que o fiel se consagre livremente como "escravo de amor" à Santíssima Virgem, dando-lhe seu corpo e sua alma, seus bens interiores e exteriores, e até mesmo o valor de suas boas obras passadas, presentes e futuras, para que Nossa Senhora delas disponha, para maior glória de Deus, no tempo e na eternidade (cfr. "Consagração de si mesmo a Jesus Cristo, a Sabedoria Encarnada, pelas mãos de Maria"). Nossa Senhora, como Mãe excelsa, obtém em troca, para seus "escravos de amor", as graças de Deus que elevem as inteligências deles até a compreensão lucidíssima dos mais altos temas da Fé, que dêem às vontades deles uma força angélica para subir livremente até esses ideais, e para vencer todos os obstáculos interiores e exteriores que a eles indebitamente se oponham.
Mas — perguntará alguém — como poderá pôr-se a praticar esta diáfana e angélica liberdade um frade, já sujeito por voto à autoridade de um superior?
Nada mais fácil. É-se frade por chamado ("vocação") de Deus. É, pois, por vontade de Deus que o religioso obedece a seus superiores. A vontade de Deus é a de Nossa Senhora. E assim, sempre que o religioso se haja consagrado como "escravo de amor" a Nossa Senhora, é enquanto escravo dEla que obedece a seu próprio superior. A voz deste é, para ele, na Terra, como que a própria voz de Nossa Senhora.
Chamando todos os homens aos píncaros de liberdade da "escravidão de amor", São Luís Grignion o faz em termos tão prudentes, que deixam livre campo para importantes matizações. Sua "escravidão de amor", tão cheia de significado especial para as pessoas ligadas por voto ao estado religioso, pode igualmente ser praticada por sacerdotes seculares e por leigos. Pois, ao contrário dos votos religiosos, que obrigam por certo tempo ou pela vida inteira, o "escravo de amor" pode deixar a qualquer momento essa elevadíssima condição, sem ipso facto cometer pecado. E enquanto o religioso que desobedece sua regra incorre em pecado, o leigo "escravo de amor" não comete pecado algum pelo simples fato de contraditar em algo a generosidade total do dom que fez.
Isto posto, o leigo se mantém nesta condição de escravo por um ato livre, implícita ou explicitamente repetido cada dia. Ou melhor, a cada instante.
Para todos os fiéis, a "escravidão de amor", é, pois, essa angélica e suma liberdade com que Nossa Senhora os espera no umbral do século XXI: sorridente, atraente, convidando-os para o Reino dEla, segundo sua promessa em Fátima: "Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará".
Vem, caro ateu, converte-te e caminha comigo, com todos os "escravos de amor" de Maria, rumo a esse Reino de liberdade supremamente ordenada, e de ordem supremamente livre, a que te convida a Escrava do Senhor, a Rainha do Céu.
E desvia-te do umbral em que está o demônio, como caveira a rir macabramente, tendo à mão a foice da liberdade supremamente escravizante, e da escravização supremamente libertária. Ou seja, da anarquia.
"Folha de S. Paulo", 20 de setembro de 1980




terça-feira, 30 de agosto de 2016

O PAPEL DAS REDES SOCIAIS VIRTUAIS NUMA NOVA FASE DA REVOLUÇÃO UNIVERSAL


O “modelo” da Revolução da Sorbonne (Paris, maio de 1968) foi facilmente disseminado pelo mundo. Com base naquela matriz ideológica, diversos grupos realizaram ações revolucionárias em várias partes do planeta. A técnica de conduzir a opinião pública é sempre a mesma. O sucesso obtido na Sorbonne de 68 tem inspirado muita gente a repetir a façanha.
Hoje, no entanto, tudo indica que as diversas revoluções similares que explodem em várias partes do globo conduzem a uma tentativa de universalizá-la mais ainda. Sendo universal, é necessário que haja unidade, pelo menos entre os agentes revolucionários. Por enquanto, a universalidade está nos meios e nos métodos de ação, mas tende a sê-lo também no campo ideológico, dos propósitos. Somente a unidade fará com que se obtenha mais êxito universal.
Quanto aos métodos, tivemos, por exemplo, as diversas manifestações de descontentamentos eclodidas entre os árabes e na Europa, depois transplantadas para os Estados Unidos da América e os países sul-americanos. Para atrair a simpatia do público revestiram-nas com o título de “indignados” e “primavera árabe”. Como o ato de indignar-se não identifica em si disposição para a revolução e o caos, mas uma atitude de revolta contra as injustiças, logo os revolucionários atraíram a simpatia de certo público e conseguiram, inclusive, derrubar alguns governos ditatoriais. Com uso das armas, inclusive. Na Europa, é claro, tinha que ser diferente. E nos Estados Unidos mais ainda, com outra roupagem, outros nomes, mas com propósitos meio indefinidos, próprios desse tipo de revolução. Dentro do grupo “Ocupem Wall Street”, como não poderia deixar de ser, o tema principal é a guerra contra os bancos e o capitalismo dito “selvagem”, uma velha e surrada tese marxista de luta de classes.
E agora a coordenação desse movimento está muito mais ao alcance de todos, pois, diferentemente de maio de 68, temos a internet com as redes sociais que divulgam celeremente as ordens, os contatos, as decisões e os programas predeterminados.
O "milagre" da “Revolução Espontânea”
Um das características que os faz atraentes para o público é o cunho da espontaneidade. A espontaneidade está produzindo um dos maiores “milagres” da História. Em primeiro lugar, produziu o "milagre" da geração espontânea do Universo, hoje um dogma evolucionista sempre presente não só entre pseudo-cientistas mas na cabeça de muitos leigos e da quase unanimidade da mídia. Ora, se o universo surgiu por “geração espontânea”, por que não também as revoluções?
E foi assim que o Protestantismo, a Revolução Francesa e o Comunismo brotaram “espontaneamente” do chão e produziram essa monstruosa Revolução que hoje campeia pelo mundo moderno. Foi dessa forma também que brotou a revolução da Sorbonne de 1968, uma das revoluções mais “espontâneas” de toda a História, aliás a que mais se caracterizou por essa espontaneidade fabricada. É uma qualidade que pretende dá crédito e autenticidade ao movimento.
Veio agora a revolução dos “indignados” (ou dos indignos), produzida e gerada “espontaneamente” em vários países do mundo. “Espontaneamente” brotou ela em solo árabe (fruto das “redes sociais” da internet, segundo dizem) e de lá foi transplantada sua semente para a Europa, Estados Unidos e o resto do mundo. Entre os árabes produziu quedas de governos, mas não tinha como objetivo visível colocar um sucessor à altura das aspirações populares. A palavra mágica é “democracia” , coisa que aqueles povos só poderão saber o que seja daqui a alguns séculos.
Uma das características dos povos muçulmanos é o grande atraso em que teimam permanecer, recusando qualquer evolução social. Isso ocorre por causa dos princípios religiosos, embora seja negado por alguns. Há séculos que são dominados por clãs e por regimes tribais. A tônica do noticiário é que as revoltas vão solucionar todos os problemas: basta que se coloque outro grupo político no poder e se façam eleições. Quem garante que os políticos que vão suceder aos ditadores vão inaugurar um regime realmente democrático? Quem garante que não vai ser mais uma sucessão de ditaduras? Não se muda a cultura de um povo assim da noite para o dia.
A única novidade em toda essa onda é que a mídia está trombeteando aos quatro ventos que tudo está sendo feito via redes sociais e internet. O que é absurdo, pois muitas dessas revoltas estão sendo feitas por grupos armados, como ocorreu na Líbia e está ocorrendo agora na Síria, Iraque, etc, com as incursões do “Estado Islâmico” (este, sim, artificial e não “espontâneo”).  A única  novidade é que o movimento é apresentado ao Ocidente como exemplo de uma revolução toda virtual, nascida espontaneamente dentro das chamadas “redes sociais”. Um mito, uma mentira, como vimos acima ao comentar sobre a “espontaneidade” revolucionária.
No resto do mundo é diferente. Sempre com o caráter de “espontaneidade”, marcam uma data para se iniciar uma marcha de protestos e, coincidentemente, a “espontaneidade” registra também hora, data, local do encontro, e até mesmo algumas características que as manifestações devem ter, como, por exemplo, ser composta de “jovens”, de estudantes, de operários, etc., etc.
É tão bela e admirativa essa “espontaneidade” que a revista “Veja” a elogia, numa de suas eições (no ano de 2014, quando estes movimentos estavam no auge) em que propaga a manifestação dos “indignados” brasileiros contra a corrupção. A revista só não explica como é que, “espontaneamente”, a manifestação teve forum de debates na internet, local, data e hora para ser feita, além de se caracterizar unicamente como um movimento apolítico (quer dizer, sem partido) e dirigido contra os corruptos. E, depois, teve a mídia que “espontaneamente” vai lhe colocando no foco dos acontecimentos. É muita “espontaneidade” para um movimento tão bem organizado e de caráter universal...
Alguns dos anarquistas, aqueles mesmos que vivem num mundo virtual a procura de algo para sair de seu “autismo consentido” para o mundo real, o qual eles odeiam porque não o suportam, se aproveitam para “espontaneamente” botar fogo em tudo, queimar veículos, depredar lojas, jogar pedras na polícia, e aí ameaçam estragar o movimento. Que deve ser espontâneo mas não deve assustar.
O processo se assemelha em tudo ao da Revolução da Sorbonne de 1968, um espécie de ensaio geral para essa revolução que agora pretende ser mais universal ainda. Lá também ninguém visava a derrubada do poder, pois é o próprio poder que eles odeiam; tudo era feito de forma a parecer que a revolução brotava espontaneamente dos estudantes e operários, inclusive até mesmo as frases e manifestações escritas eram as mais rústicas possíveis (apenas pichações e nada de manifestos escritos ou de pasquins) para se dar a idéia de que aquilo não provinha de uma preparação prévia feita por um grupo revolucionário.
Para quem analisa as coisas friamente, não parece que essa revolução dos “indignados” se assemelha em tudo à da Sorbonne, em Paris, de maio de 1968?
Os “excessos”, dizem, não fazem parte dessa impressionante “espontaneidade”, pois em geral são cometidos por grupos isolados e radicais. Mas o que vemos é que os excessos são tão comuns, que parecem até ser espontâneos, agora de verdade. Vejam o que vem ocorrendo nos Estados Unidos e na Europa, em particular na Itália. Lá também houve excessos, como este publicado pelo jornal Corriere de la Sera, em que um grupo de anarquistas quebra uma estátua da Madonna, Nossa Senhora de Lourdes. O jornal fala da “guerrilha de 15 de outubro”, porque na verdade houve uma espécie de guerrilha dos manifestantes contra a polícia. O responsável pela blasfêmia foi um grupo anarquista denominado “black bloc”, em tudo semelhante aos demais, até mesmo na “espontaneidade” com que se organizaram, saíram juntos para a rua e fizeram sua parte. E como é que tais grupos se organizaram em outros países, como o Brasil? Espontaneamente?
A imagem, de gesso, era venerada no salão paroquial de São Marcelino e São Pedro, cujo pároco, o padre Pino Ciucci, disse que a aquela ação foi pior do que a dos fascistas. Para atuar, o grupo “black bloc”, com o rosto coberto com gorros de lã preta, capacetes e paus negros, invadiu o salão paroquial em meio às manifestações dos “indignados” que ocorriam nas imediações, deixando “espontaneamente” o local para que se diga depois que o vandalismo também é uma ação “indignada” do povo contra a Religião. No final, via-se a imagem de Nossa Senhora de Lourdes totalmente despedaçada na calçada, objeto de fotógrafos, curiosos e passantes... Um crucifixo também foi profanado...
O arcebispo de Milão, Angelo Scola, logo se manifestou sobre o crime, considerando-o muito grave. O prelado previu coisas mais graves perante o fanatismo das turbas que se manifestam em Roma. Mal sabia aquele bispo que apenas se iniciava ali a formação deste grupo de caráter internacional.
Uma frustrada tentativa de repetição da Sorbonne-68
A “revolução dos indignados” está ainda em curso, embora tenha recuado muito no decorrer dos últimos anos: tudo indica que essa Revolução não avança, mas murcha. Não queremos dizer com isso que a ação desses grupos estancou, mas sim que não encontra eco no restante da população. Trata-se, sempre, de uma minoria isolada, que não encontra apoio popular em geral. Veremos por quê.
Em São Paulo, tivemos um exemplo flagrante disso ocorrido no final de 2011. Dentro do Campus da USP houve um crime e a droga corria solta. O reitor resolveu chamar a polícia, como é óbvio, para policiar o recinto das faculdades. “Indignadas” com a ação da reitoria, várias organizações estudantis resolveram protestar: a polícia teria que vigiar a “cracolândia”, a USP não, segundo palavras excitadoras do movimento ditas pelo ministro da Educação.
No entanto, feita uma reunião, a maioria resolveu concordar com a ação da polícia. Primeira derrota dos “indignados” revolucionários, os quais, insatisfeitos, resolveram agir contra a maioria. Cerca de 100 alunos (uma minoria irrisória) invadem o prédio da Faculdade de Filosofia. Esperavam que os outros estudantes o apoiassem, mas em vão: a grande maioria, em reunião, decide a desocupação do prédio. Aí, então, cerca de 70 remanescentes daqueles 100, ao sair da Faculdade de Filosofia resolvem invadir o prédio da própria reitoria. Desta vez, porém, o reitor resolve acionar a justiça, a qual dá um ultimato aos invasores para desocupar o prédio. Como não o fizeram, foram expulsos pelos policiais. Esta última ação ocorreu no dia 8 de novembro de 2011.
No dia seguinte, os grupos revolucionários fazem nova tentativa de conquistar a adesão dos estudantes e proclamam uma greve em protesto contra a ação policial no recinto da USP. Nova derrota. Não há adesão ao movimento, o qual mingua por falta de participantes. Será que esperavam ocorrer o mesmo que na Sorbonne de maio de 68, quando uma minoria invadiu uma faculdade, depois a própria universidade, passando posteriormente para as ruas e as fábricas? Pode ser que não, pelo menos entre os indivíduos de base, mas em todos os outros movimentos semelhantes havidos em outras partes do mundo, inicialmente há sempre uma causa pequena e de pouca repercussão, para, depois se partir para uma questão nacional e até internacional, que é o escopo dos líderes. Esta, da USP, foi um fiasco total.
Uma particularidade, que a mídia chamou a atenção desde o início desse movimento: os invasores da reitoria da USP são, na maioria, filhos de gente rica ou de classe média. Alguns dos pais foram até à polícia para protestar dizendo que estavam sendo vítimas de perseguição política. Eles pleiteavam o “direito” de seus filhos fumarem maconha no recinto da USP e acusam a justiça de “perseguição política”.
Um movimento de elite
O que reflete bem o tipo de ação promovida nos bastidores por gente desse tipo é retratado pelo jornal “Folha de São Paulo” ao relatar o seguinte episódio:
“Quinze socialites se reuniram anteontem à tarde, nos Jardins (zona oeste), para debater o combate à corrupção e outros temas. Antes mesmo de começar, a pauta já era outra.
“Ei, menino, sabe que fim deu a confusão da USP?”, assuntou uma das integrantes do Grupo Ação em Cidanania à reportagem. PMs haviam retirado, horas antes, os invasores da reitoria.
Iniciada a reunião pela psicalanista Maria Cecília Parasmo – regada a refrigerante, bolacha e bolo -, o debate ficou em torno de como “mobilizar o povo” e “para quê”.
Para Ana Paula Junqueira, pré-candidata do PMDB a vereadora, o brasileiro deveria se inspirar na Primavera Árabe..
Quando o tópico voltou para os conflitos na USP, os ânimos se exaltaram. A historiadora Maria Cecília Naclério sugeriu que o grupo de invasores teria ligação com máfias (“tudo isso é orquestrado”).
Já a presidente da Associação de Mulheres de Negócios, Márcia Kitz, questionou se a PM não deveria ter sido mais incisiva, com uso de bombas de efeito moral e jatos d’água.
Após publicação de Vídeo pela TV Folha o termo “socialites” ficou entre os mais comentados no Twitter em SP”. (v. Folha de São Paulo, 10.11.2011, caderno Cotidiano, C3).
A queda da disponibilidade revolucionária
Estar disponível é ter um espírito propenso e pronto para a ação. O chamado “mundo virtual” tira um pouco esta disponibilidade, pois enclausura as pessoas numa espécie de “autismo consentido” e numa acomodação egoística. No entanto, torna as pessoas mais manipuláveis.
O que deve ser manipulado pela Revolução? A mesma disponibilidade para a ação, a ação coordenada e universal, assim como a unidade da ação. As pessoas manipuláveis devem agir por impulso, sem raciocinar bem o que estão a fazer nem o seu conteúdo ideológico. Em geral as pessoas são manipuláveis por questões sentimentais, compulsivas, financeiras, etc.
Mesmo assim, tal manipulação tem encontrado muitas dificuldades. Uma delas é que o “mundo virtual” ainda é vivenciado por uma minoria da população, pelo menos em tempo integral. E parece que saturou, não indicando que há para onde crescer mais do que o que já cresceu. Assim, os próprios agentes da manipulação podem ser atingidos pelo parasitismo virtual. As redes sociais funcionam mais como necessidade que as pessoas têm hoje, num mundo tão isolacionista, de se comunicarem, mas parece que não tem surtido muito efeito quando se pretende por ele a ação das massas para promover uma revolução tendenciosa.
A Revolução e a auto-regência dos seus lideres
Um líder revolucionário, apesar de em geral ter que ser carismático, perde sua auto-regência ao se entregar inteiramente às paixões revolucionárias. Estas paixões, virulentas e irracionais, tendem a obscurecer o “lumen rationis”(a luz da razão), transformando-os em meros autômatos. Também os líderes podem ser influenciados pela tendência a agir por impulsos. É mais cômodo. Desta forma, as lideranças revolucionárias hoje são raras, pois falta-lhes o que denominamos acima de “disponibilidade revolucionária”, necessária para “tocar” a massa para a ação. Um líder perde sua capacidade de liderança quando perde também sua auto-regência, é sabendo governar-se que se governa os outros com eficiência.
Um dos recursos que a Revolução pode usar, nesse caso, é da ação integrada, liderada não por um individuo mas por um grupo, um “comitê”, um soviet. Recurso já usado na Sorbonne para se dá a idéia de que as decisões não são individuais, mas coletivas. Mas esse grupo precisa se utilizar de recursos com que possa mover a “massa” na direção revolucionária. Nesse caso, a técnica mais apropriada (já usada em várias ocasiões) é a “acupuntura social”, pela qual as massas vão agir impulsionadas por fatos ocorridos e provocados de propósito que as levem em direção diferente e até oposta daquilo que pensam e vivem. Um exemplo foi a eleição ganha pelo partido socialista espanhol em 2004, fruto de um atentado terrorista. O atentado foi feito pelos terroristas muçulmanos, mas levou a opinião pública a desviar seus votos contrários ao governo conservador, então no poder, dando vitória aos socialistas. Assim, sem um discurso, sem ação de nenhum líder, mas de um grupo, o povo foi levado a agir de forma diferente e até contrária ao que pensava.
A única novidade em toda essa onda é que a mídia está trombeteando aos quatro ventos que tudo está sendo feito via internet. O que é absurdo, pois muitas dessas revoltas estão sendo feitas por grupos armados, como ocorreu na Líbia e está ocorrendo agora na Síria. Outra novidade é que o movimento é apresentado ao Ocidente como exemplo de uma revolução toda virtual, nascida espontaneamente dentro das chamadas “redes sociais”. Um mito, uma mentira, como vimos acima ao comentar sobre a “espontaneidade revolucionária”.
(*) A análise da Revolução, como feita acima, é baseada nas teses da obra “Revolução e Contra-Revolução”, do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, cujo texto pode ser obtido aqui: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/livros.asp
Veja tambérm nossa postagem aqui "O Milagre da Revoluçao Espontânea" : http://quodlibeta.blogspot.com.br/…/o-milagre-da-revolucao-


terça-feira, 16 de agosto de 2016

Cluny, a alma da Idade Média

                     


 
Fundada por Guilherme, o Pio, duque da Aquitânia, em 910, numa época em que a Europa estava consolidando o Cristianismo, a abadia beneditina de Cluny, no leste da França, tornou-se o maior e mais esplêndido dos mosteiros europeus do século XI. Cluny  foi a responsável por ampla reforma em toda a Europa.  Sob a direção de uma série de abades brilhantes e devotados, a abadia cresceu em prestígio e se tornou uma das mais influentes instituições da Cristandade.
Os monges de Cluny, muitos dos quais eram aristocratas, viviam sob a observância estrita da regra de São Bento. Os abades de Cluny logo ganharam uma reputação de santidade que ajudou a disseminar sua influência em toda a Europa. Governantes desejosos para reformar casas da Ordem existentes ou fundar novas, pediam que Cluny enviasse monges para supervisionar o processo. Dessa forma, a célula mater criou várias centenas de dependências. Todos seus monges deviam obediência diretamente ao abade de Cluny. Era ele que escolhia os priores, e quem quisesse se tornar membro pleno da Ordem tinha de tomar seus votos diante dele, em Cluny.
Cluny chegou a ter monges transformados em bispos, cardeais, e até papas, e alguns abades foram conselheiros de reis. Em 1077, no Concílio de Roma, o Papa São Gregório VII afirmou: “Entre todas as abadias do além-Alpes, brilha em primeiro lugar e sobre todas a de Cluny” .
São Hugo, abade de Cluny entre 1049 e 1109, aumentou o número de monges de sessenta para trezentos, aumentou as dependências da abadia e construiu a igreja. Iniciada em 1088, a igreja tornou-se a maior do mundo até o ano de 1612, quando foi concluída a Basílica de São Pedro em Roma. 
Fez parte da reforma de São Hugo a construção de novo refeitório. Haviam outros prédios no conjunto, como oficinas, cozinhas, estábulos, dependências de hóspedes, enfermaria e hospedaria para viajantes.

Ora et labora
Segundo relato de um monge chamado Ulrich, de 1083, lá pelas 02:30 da manhã os monges levantavam-se ao som de um sino, vestiam-se à luz de três lamparinas mantidas acesas toda a noite, e desciam para a igreja a fim de cantar as Noturnas. Depois disso voltavam brevemente para a cama, levantando-se de novo para rezar as Vigílias e as Matinas ao amanhecer do dia.
Antes das Matinas lavavam as mãos e os rostos e penteavam os cabelos. Em seguida, seguiam para realizar suas tarefas do dia: portaria, biblioteca, carpintaria, agricultura, etc. Outros se dedicavam apenas às orações e permaneciam na igreja, os quais se encarregavam de tocar o sino para chamar os outros monges, ora para as refeições, ora para as orações costumeiras que faziam em comum no decorrer do dia.

O Capítulo
Era uma reunião diária para tratar de diversos assuntos. O mais importante, porém, era disciplinar os infratores. Todos tinham obrigação de acusar os pecados, de si ou de outro. Aquele que houvesse cometido um pecado venial, era disciplinado com um bastão, proibido de comer com seus irmãos e teria de prostrar-se diante do altar durante os serviços religiosos até que o superior o absolvesse. Se o pecado era mortal, era-lhe acrescida a proibição de entrar na igreja. Após a absolvição, o infrator era disciplinado ainda com o bastão e poderia cumprir penitências de trabalhos humildes, como varrer o chão, lavar os pratos, etc. Quando o infrator era absolvido, recebia ordem de entrar na igreja e admitido na presença de seus irmãos, os quais tinham de se curvar perante ele para evitar que fossem tentados pelo orgulho de achar que não cometeriam os mesmos pecados do infrator.

A igreja
A igreja românica, construída por São Hugo, media 140 metros, da entrada à abside. Suas paredes estavam decoradas com pinturas. O edifício tinha cinco naves laterais, dois transeptos e aproximadamente quinhentas colunas com capitéis esculpidos. Na nave central apareceram – pela primeira vez na Cristandade – arcos ogivais em estilo gótico.
 Dizia-se que a igreja fora idealizada por santos. De acordo com uma crônica, São Pedro, São Paulo e Santo Estêvão tinham revelado o desenho em sonho para um abade chamado Gunzo, que vivia em Cluny. Quando os monges viajavam para outras localidades, eram chamados a opinar sobre as construções das igrejas. E aí sugeriam ou desenhavam o estilo gótico, que se propagou por vários países.
 Os monges passavam muito mais tempo na igreja do que em qualquer outro lugar. Após as Matinas, as Horas Canônicas continuavam com a Prima, a Terça, a Sexta – por volta do meio-dia, a Nona, as Vésperas ao crepúsculo e as Completas, cerca de uma hora depois. Entre esses haviam ofícios adicionais, em particular nos dias de festas; e havia duas missas matinais, durante as quais os monges ficavam de pé o tempo inteiro. A primeira era entre a Prima e o Capítulo e a segunda, a Missa Solene, acontecia usualmente após a Terça.

O refeitório
Foi outro dos muitos prédios reconstruídos por São Hugo. Em geral, os monges encontravam-se ali duas vezes por dia, para o almoço após a Sexta, ao meio-dia, e para a janta após o pôr-do-sol, entre as Vésperas e as Completas; durante a Quaresma, só havia uma única refeição. Depois de lavar as mãos, ocupavam seus lugares entre as seis mesas arrumadas no salão e permaneciam de pé até que o abade assumisse seu lugar na cabeceira.
A refeição era feita em silêncio, enquanto um dos monges lia as Escrituras. A regra de silêncio proibia que os monges pronunciassem qualquer palavra aos domingos. Durante a semana, podiam conversar somente por breves períodos após o Capítulo e antes da Sexta e do almoço.


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A GLÓRIA EXTRAORDINÁRIA DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA

(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)

        

Um fato que chama a atenção é que Nosso Senhor, na História Sagrada, tenha querido Ele mesmo subir aos céus aos olhos dos homens e depois também tenha querido que a Assunção de Nossa Senhora para o Céu se desse aos olhos dos homens. Por que esta Ascensão e depois esta Assunção deveriam dar-se aos olhos dos homens?
A Ascensão tem várias razões e a mais protuberante dessas razões é de caráter apologético. Era preciso que os homens pudessem dar testemunho deste fato histórico duplo: não só de que Nosso Senhor ressuscitou, mas de que tendo ressuscitado Ele subiu aos céus, a sua vida terrena não continuou. Ele subiu ao Céu, e subindo ao Céu Ele abriu caminho para todas as incontáveis almas que estavam no Limbo e que estavam esperando a Ascensão d'Ele para irem se assentar à direita do Padre Eterno.
Quer dizer, antes de Nosso Senhor Jesus Cristo entrar no Céu ninguém podia entrar, só os Anjos estavam lá. Ele, na Sua Humanidade santíssima, foi a primeira criatura - ao mesmo tempo em que Ele era Homem-Deus - a subir aos céus como nosso Redentor; e Ele abriu o caminho dos céus para os homens. Mas havia uma outra razão que era a seguinte: era preciso que Ele, que tinha sofrido todas as humilhações, tivesse todas as glorificações. E glória maior e mais evidente não pode haver para alguém do que o subir aos céus, porque é o ser elevado por cima de todas as alturas. Estar acima de todas as coisas da terra e unir-se com Deus Nosso Senhor, transcender de todo esse mundo de onde nós estamos e ir para o céu empíreo onde Deus está, para unir-se a Ele eternamente.
Nosso Senhor quis que Nossa Senhora tivesse a mesma forma de glória, e que assim como Ela tinha participado de maneira única do mistério da cruz, participasse também da glorificação d’Ele. E a glorificação d’Ela se dava por esta forma, sendo levada aos céus. Mas era uma assunção e não uma ascensão. A ascensão era a subida de Nosso Senhor ao Céu por Sua própria força, pelo Seu próprio poder. A assunção não é uma ascensão. Nossa Senhora não subiu ao Céu por um poder inerente à sua natureza: Ela subiu ao Céu pelo ministério dos Anjos, Ela foi carregada, foi levada ao Céu pelos Anjos.
E esta foi a grande glorificação d’Ela nesta terra, prelúdio da glorificação d'Ela no Céu; porque no momento em que Ela subiu ao Céu, foi coroada como Filha dileta do Padre Eterno, como Mãe admirável do Verbo Encarnado e como Esposa fidelíssima do Divino Espírito Santo. Ela teve uma glorificação na terra e depois uma glorificação no Céu.
E nós devemos conceber a Assunção como tendo sido um fenômeno gloriosíssimo. Infelizmente, os pintores da Renascença, e os que de lá para cá nos apresentaram a Assunção, não souberam descrever de um modo adequado a glória que deve ter cercado este espetáculo. Nós devemos imaginar o seguinte: é próprio às coisas da terra que quando se quer glorificar alguém, todo mundo - vamos dizer numa casa, por exemplo - se põe nos seus melhores trajes, na casa se exibem os melhores objetos, se ornamenta a casa com flores, tudo o que há de mais nobre na casa é exibido para glorificar a pessoa a quem se quer homenagear.
Esta regra está dentro da ordem natural das coisas e é seguida também no Céu. E é claro que o maior brilho da natureza angélica, o fulgor mais estupendo da glória de Deus nos Anjos tem que ter aparecido exatamente no momento em que subiu ao Céu Nossa Senhora. E deveriam estar - se for permitido aos mortais considerarem os Anjos com seus próprios olhos - rutilantíssimos, com um esplendor absolutamente invulgar. E se não foi dado a todos os mortais contemplar os Anjos nesta ocasião, é certo pelo menos que a presença d’Eles se fazia sentir de um modo imponderável; porque muitas vezes na história a presença dos Anjos se faz sentir de um modo imponderável, embora não seja propriamente uma visão, ou uma revelação d’Eles.
E é natural também que nesta hora o sol tenha brilhado de um modo magnífico, que o céu tenha ficado com cores variadas refletindo de modo diverso, como numa verdadeira sinfonia, a glória de Deus. E é natural que as almas das pessoas felizes que estavam ali presentes tenham sentido essa glória em si de um modo extraordinário, de maneira tal que tenha havido ali uma verdadeira manifestação do esplendor de Deus em Nossa Senhora. Mas nenhum desses esplendores podia se comparar com o próprio esplendor de Nossa Senhora subindo ao Céu.
À medida que Ela ia subindo, com certeza, como numa verdadeira transfiguração, como num verdadeiro monte Tabor, a glória interior d'Ela ia transparecendo aos olhos dos homens. Falando d’Ela diz o Antigo Testamento: omnis glória filia regis ab intos - toda a glória da filha do rei lhe vem de dentro, daquilo que está dentro d’Ela. E com certeza essa glória interna que Ela tinha se manifestou do modo mais estupendo quando, já no alto de sua trajetória celeste, Ela olhou uma última vez para os homens, antes de definitivamente deixar esse vale de lágrimas e ingressar diante da glória de Deus.
Compreende-se que tenha que ter sido, depois da Ascensão de Nosso Senhor, o fato mais esplendorosamente glorioso da história da terra, comparável apenas ao dia do Juízo Final, em que Nosso Senhor Jesus Cristo virá em grande pompa e majestade, diz a Escritura, para julgar os vivos e os mortos e que com Ele, toda reluzente da glória d’Ele, de um modo indizível, aparecerá também Nossa Senhora aos nossos olhos. Nós devemos considerar aí a impressão que tiveram os apóstolos e os discípulos quando A viram subir ao Céu.
Devemos considerar o fato que todo mundo conta, que a tradição narra, a respeito de São Tomé. São Tomé, como os senhores sabem, duvidou e porque ele duvidou foi convidado por Nosso Senhor a meter a mão na chaga sagrada do flanco d’Ele, para certificar-se que era realmente Nosso Senhor. Ele recebeu Pentecostes, se tornou um apóstolo confirmado em graça, tornou-se um grande santo. Mas conta uma tradição venerável que, porque duvidou, na hora da morte de Nossa Senhora ele não estava presente, nem na hora da Assunção; e que chegou quando Nossa Senhora já estava subindo ao Céu, já estava a certa distância da terra; foi aí que ele foi trazido pelos Anjos para contemplar o resto da Assunção.
Aí os senhores vêem aquilo que nós poderíamos chamar a índole de Nossa Senhora, a cuja qualificação a palavra materna não basta, seria uma índole super materna, arqui-materna, incomparável. Quando Ela subia ao Céu e ele recebia esse castigo pungente - merecido por uma culpa tão reparada - de não ter podido estar presente à morte e Assunção de Nossa Senhora, ele chegou, olhou para Ela. Então, conta-se que Ela sorrindo, concedeu uma graça a ele que não concedeu a nenhum outro: Ela desatou o seu cinto e de lá de cima fez cair o cinto sobre ele, de maneira tal que ele recebeu com - já não direi o perdão, porque ele já estava perdoado - a remissão uma suprema graça, que era uma relíquia direta d’Ela, atirada para ele do mais alto dos céus.
É assim Nossa Senhora quando tem algo a perdoar a algum filho muito dileto. Ela pune às vezes, porque às vezes Ela sequer pune, mas faz seguir essa punição de um sorriso tão bondoso, de um perdão tão completo e de uma graça tão grande que São Tomé, voltando para casa com os apóstolos, quase poderia mostrar esse presente dado a ele e dizer: o felix culpa, ó culpa feliz! Eu tive a desgraça de duvidar de meu Salvador, mas em compensação eu tive a felicidade de receber esta relíquia direta e celeste de minha Mãe Santíssima. O último sorriso d’Ela, o último favor d’Ela, a amenidade mais extrema, a bondade mais suave Ela deu exatamente a São Tomé e isto nos deve encorajar.
Não há nenhum de nós que em relação a Nossa Senhora não tenha falhas, não tenha algum perdão a pedir. Nós devemos pedir a Nossa Senhora, nesta preparação da festa da Assunção, que Ela proceda assim maternalmente conosco, que Ela olhe para nossas falhas, mas que Ela nos dê um perdão, e que esse perdão seja o seguinte: é possível que analisando as nossas próprias almas com aquela severidade implacável que é a condição de seriedade de todo exame de consciência, é possível que nós consideremos que estamos chegando um pouco atrasados na nossa preparação espiritual para os fatos profetizados por Nossa Senhora em Fátima.
Pois bem, nós devemos fazer a oração de São Tomé. Se nós chegarmos atrasados, que Ela nos dê essa graça, que Ela nos dê o favor especial, particularmente rico, particularmente suave, por onde de um momento para outro nós nos preparemos; de maneira tal que quando bater à porta de nossas almas a graça dos dias terríveis que se aproximam, nós estejamos prontos, cheios de enlevo. Esta é a reflexão que me ocorre fazer por ocasião da festa da Assunção de Nossa Senhora.
("Conferência", 10 de agosto de 1968)


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A DEVOÇÃO AO CORAÇÃO DE MARIA SALVARÁ O MUNDO DO COMUNISMO



(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)

O Papa é a Pedra de Ângulo da Verdadeira Civilização

Como dissemos anteriormente, os estudos que estamos publicando sobre Fátima supõe demonstrado, como ponto de partida, que Nossa Senhora realmente apareceu a Lúcia, Jacinta e Francisco, e lhes comunicou as mensagens que eles por sua vez transmitiram ao mundo. Por uma questão de método, desejamos relembrar este ponto, que é a pedra de ângulo de tudo quanto se escreva sobre Fátima. Tratando-se de aparições que os videntes afirmam destinadas ao conhecimento do Santo Padre, da Sagrada Hierarquia, da Cristandade inteira enfim, não há meio termo possível: ou as provas são claras, certas, plenamente concludentes, e neste caso as revelações merecem crédito inteiro; ou as provas são duvidosas, confusas, discutíveis, e neste caso as mensagens são falsas, pois não se compreende que, se Nossa Senhora quisesse realmente fazer chegar uma mensagem ao mundo, não dispusesse os fatos de maneira a proporcionar à humanidade motivos razoáveis para a ter por autêntica.
Visto assim o assunto, somos conduzidos pela própria natureza das coisas a outra alternativa. Se as provas são certas, se as mensagens são autenticas, é impossível não dar a maior importância ao que estas contêm. Se Nossa Senhora realmente nos falou, é forçoso ter na mais alta consideração o que Ela nos disse, meditar longamente cada uma de suas palavras, tirar delas por uma análise diligente tudo quanto contêm. Mas de outro lado se as provas não são certas, melhor será não perder um minuto sequer com o assunto. Assim como não se pode depositar nas mensagens apenas uma "meia fé", assim também não se pode atribuir a seu conteúdo uma meia importância. Acentuamos com tanta insistência este aspecto fundamental da questão porque nos parece que, infelizmente, uma atmosfera de "meia crença" e de "meia importância" é muito mais freqüente a respeito de Fátima do que à primeira vista se pudesse talvez imaginar.

A GRAVIDADE DA SITUAÇÃO DO MUNDO CONFORME A MENSAGEM DE FÁTIMA

Nossa Senhora falou pois ao mundo. Ela descreveu a situação como gravíssima, apontou como causa desta situação a espantosa decadência moral da humanidade, ameaçou-nos com terríveis punições terrenas - nova guerra, alastramento mundial dos erros do comunismo, perseguições à Igreja — e com uma punição eterna mil vezes pior — o inferno — se não nos emendarmos, e por fim prescreveu os meios necessários para que cheguemos à emenda e evitemos tantos castigos.
Em que pese a alguns doidivanas que fecham os olhos à realidade mais evidente e se comprazem em afirmar que está em ordem com Deus este mundo em que vivemos, de dúvida, de naturalismo, de indisciplina moral e de adoração da felicidade terrena, é preciso crer o contrário, pois é o contrário que Nossa Senhora nos diz.
É bem certo que alguns sociólogos evolucionistas, muito mais evolucionistas do que sociólogos, se deleitam em dizer que o dia de hoje é melhor que o de ontem, e que o de amanhã será necessariamente melhor do que o de hoje; Nossa Senhora porém nos afirma que a verdade é muito outra: o dia de amanhã só será melhor do que o de hoje se nos emendarmos e fizermos penitência. De outro modo, por mais que o progresso material, a medicina, as finanças, as diversões, o conforto da vida enfim se desenvolvam, caminhamos para um grande e universal colapso.
Também não faltam, infelizmente, teólogos otimistas, que criam em torno de si uma agradável atmosfera de simpatia afirmando que quase ninguém se condena ao inferno. Nossa Senhora contudo ensina o contrário, e o faz não só por palavras como ainda com o argumento invencível do fato concreto: abre o inferno aos olhos dos pastorinhos aterrorizados, para que contem ao mundo inteiro o que viram. E é em Nossa Senhora e não em certa teologia morna, de água de flor de laranjeira, que cumpre crer.
A VIDA SOBRENATURAL É A VERDADEIRA SOLUÇÃO

Já fizemos notar de passagem, em artigo anterior, que Nossa Senhora ponta como remédios fundamentais para o mundo contemporâneo a oração, a penitência, a emenda de vida. É destas três providências meramente espirituais que Ela faz depender a manutenção da paz, a preservação do Ocidente contra a propaganda comunista, a sobrevivência pois da própria civilização.
Poderão chocar-se com isto muitos católicos mal avisados, que colocam todas as suas esperanças em meios meramente humanos. Afigura-se-lhes que tudo estaria salvo no dia em que a Igreja estivesse fortemente dotada de Seminários, Universidades, jornais, revistas, livrarias, cinemas, teatros, obras de caridade e de assistência social. Nesta concepção, tudo se reduz ao âmbito meramente natural. A descristianização tem como causa a insuficiência de nossos meios de propaganda e de ação. No dia em que tivermos remediado esta insuficiência, teremos vencido a descristianização. No entanto, aparece Nossa Senhora em Fátima, e não diz sobre todos estes meios de ação uma só palavra. Como explicar este mistério? Onde fica a palavra dos Papas, que não têm cessado recomendar tudo aquilo sobre o que Nossa Senhora silenciou? Estarão as mensagens de Fátima em contradição com as diretrizes pontifícias?
Seria fácil responder a todas estas questões, se os católicos se dessem ao trabalho de ler seriamente e por extenso os documentos pontifícios, em lugar de se contentar com citações que encontram esparsas aqui e acolá, em certos livros e jornais empenhados ao que parece em fazer uma verdadeira filtragem de tudo quanto na palavra do Sumo Pontífice eventualmente colida com seus preconceitos.
Os Papas não se cansam de recomendar o uso de todos os meios naturais legítimos para promover o Reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Contudo não ficam apenas nisso. Em documentos verdadeiramente sem conta mostram que os meios naturais não serão de nenhuma eficácia se não houver nos que lutam pela Igreja uma vida contínua de piedade, de mortificação, de sacrifício; se os soldados de Cristo não tiverem em vista constantemente que os meios de ação naturais devem ser canais da graça de Deus, e que o apóstolo – clérigo ou leigo – precisa ser ele próprio um reservatório das graças que devem vivificar suas obras. Em uma palavra, as teses essenciais do livro incomparável de Dom Chautard, "A Alma de todo Apostolado", têm sido inculcadas de todos os modos pelos Papas. E são esses mesmos os princípios que Nossa Senhora nos ensina em Fátima. A Virgem Santíssima não diz que não nos dediquemos inteiramente às obras de apostolado. Mas ela repete o ensinamento de Nosso Senhor em Betania: é necessário viver em íntima união de alma com Deus, pois todo o resto daí dimana, e sem tal união as obras mais sábias, mais úteis, mais oportunas resultarão miseravelmente estéreis.

O ANJO TUTELAR DA PÁTRIA

Notemos agora muito rapidamente outros aspectos das mensagens de Fátima. A aparição do Anjo de Portugal nos faz lembrar a doutrina da Igreja, de que cada povo tem seu próprio Anjo da Guarda. Houve tempo em que cada nação tinha particular devoção ao seu Anjo Custódio, invocando-o em suas tribulações, e especialmente na luta pela manutenção do povo no grêmio da Igreja. Temos pensado nisto? Cultuamos o Anjo da Guarda do Brasil?

AMOR E TEMOR DE DEUS

O Anjo reza em presença dos pastorinhos, profundamente inclinado, com a face em terra. É um exemplo que devemos imitar. Em nossas orações, cumpre sejamos confiantes, íntimos, filiais. Mas é preciso não esquecer que a verdadeira piedade filial não exclui, antes supõe o mais profundo respeito. É este mais um ponto em que as revelações de Fátima contêm preciosos ensinamentos para o homem moderno. Pois à força de falarmos em democracia em tudo e para tudo, acabamos não raras vezes por deformar de tal maneira nossa mentalidade, que introduzimos um "tonus" igualitário até em nossas relações com Deus!

DEVOÇÃO QUE O LITURGICISMO COMBATE

Ultimamente, o liturgicismo tem instilado nas fileiras católicas preconceitos tenazes contra certas devoções, entre as quais o culto ao Santíssimo Sacramento "extra Missam", e o Santo Rosário.
Ora, ambas estas devoções são fortemente inculcadas em Fátima.
Para Deus nada é impossível. Assim, se aprouvesse à Providência, os pequenos pastores poderiam ter sido transportados – por um fenômeno de bilocação, por exemplo – a algum lugar onde se celebrasse o Santo Sacrifício, para no decurso dele receber a Sagrada Comunhão. Em última análise, isto seria tão extraordinário quanto confiar ao Anjo as Sagradas Espécies para que delas comungassem os pastorinhos. No entanto foi este último, o modo disposto pela Providência. Se houvesse no culto eucarístico "extra Missam" qualquer coisa de intrinsecamente contrário à verdadeira maneira de entender a Presença Real, seria impossível que a Providência determinasse que a adoração eucarística do Anjo e a primeira comunhão dos pastores se realizassem de modo por que efetivamente se realizaram.
Quanto ao Santo Rosário, seria difícil recomendá-lo com insistência maior. "Eu sou a Senhora do Rosário" disse de si mesma a Santa Virgem na última das aparições. E em quase todas elas inculcou explicitamente esta devoção aos pastorinhos. Como pretender, pois, que o Rosário perdeu algo de sua atualidade?
Apregoa-se ainda que a meditação do inferno é inadequada a nossos dias, e capaz apenas de incutir um temor servil. Esta afirmação cai por terra fragorosamente, à vista do que ocorreu em Fátima, pois a visão do inferno com que os três pastorinhos foram favorecidos destinava-se evidentemente a acrisolar seu amor e seu senso de apostolado.

Em Fátima, se inculca igualmente, com expressiva insistência, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que, ela também, tem sido posta na penumbra por certa tendência de espiritualidade muito em voga em nossos dias. O culto ao Sagrado Coração de Jesus foi considerado por todos os teólogos como uma das mais preciosas graças com que a Santa Igreja tem sido confortada nos últimos séculos. Destinava-se ela a reanimar nos homens o amor de Deus entorpecido pelo naturalismo da Renascença, pelos erros dos protestantes, jansenistas, deístas e racionalistas. No século passado, foi por meio desta devoção que o Apostolado da Oração produziu um admirável reflorescimento de vida religiosa em todos o mundo. E, como os males de que o Sagrado Coração de Jesus nos deve preservar crescem dia a dia, é evidente que dia a dia se acentua a atualidade desta incomparável devoção. Contudo, é preciso acrescentar que na agravação dos males contemporâneos a Providência como quis superar a si própria, apontando aos homens como alvo de sua piedade o Coração de Maria, que de certo modo requinta e leva à sua plenitude o culto ao Sagrado Coração de Jesus. Os estudos e a devoção cordimariana não são novos. Quer nos parecer, entretanto, que a simples leitura das mensagens de Fátima demonstra com quanta insistência Nossa Senhora os quer para nossos dias. A missão que Ela confiou à Irmã Lúcia foi especialmente a de ficar na terra para atrair os homens ao Coração Imaculado de Maria. Várias vezes esta devoção é recompensada durante as visões. Este Coração Santíssimo nos aparece mesmo, na segunda aparição, coroado de espinhos pelos nossos pecados, a pedir a oração reparadora dos homens. Parece-nos que este ponto como que compendia em si todos os tesouros das mensagens de Fátima.
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Em seu conjunto, pois, as aparições de Fátima de um lado nos instruem sobre a terrível gravidade da situação mundial, e sobre as verdadeiras causas de nossos males. E de outro lado nos ensinam os meios pelos quais devemos obviar os castigos terrenos e eterno que nos ameaçam. Aos antigos, mandou deus profetas. Em nossos dias falou-nos pela própria Rainha dos Profetas. Assim estudado quanto Nossa Senhora quis, o que dizer? As únicas palavras adequadas são as de Nosso Senhor no Santo Evangelho: quem tiver ouvidos para ouvir, ouça...



(Extraído de "Catolicismo" n. 30, de junho de 1953)