sábado, 2 de fevereiro de 2008

CRISTIANISMO, ISLÃ E IDADE MÉDIA




Ainda perdura na cabeça de muitos certos mitos a respeito da Idade Média. Outros mitos também referem-se a certa credibilidade da cultura islâmica e de seus benefícios. A propósito do tema, transcrevo abaixo a tradução do artigo escrito por Harry W. Croker III, publicado originalmente em "Inside Catholic"

"Que se pode esperar do Islã “reformado”? Há que se reformar o Islã? Não. A menos que se considere benéfica uma dose extra de puritanismo ou se queira estimular a destruição de altares, cristais de cores e outras formas de “idolatria”, ou se queira incentivar a proibição de festividades desenfreadas como o Natal e a Páscoa e aumentar apoio para as escolas islâmicas fundamentalistas que se empenham em aferrar-se à doutrina de “só o Corão e a Suna”.

Com efeito, daria a impressão de que o Islã já teve seus reformadores Luteros islâmicos modernos – como o defunto Ayatollah Khomeini, o troglodita Osama Bin Laden, porta-voz do novo Islã, os Talibãs (talibã significa literalmente “estudantes islâmicos”) – que se passam dizendo disparates contra a corrupção do Ocidente (chamemos-lhe “Roma” para abreviar) o mesmo que a seita puritana Wahabi da Arábia Saudita que, não cabe a menor dúvida, é moderna já que foi fundada no século 18, o Século das Luzes.

Que caminho nebuloso lhe conduziria uma Reforma no Islã? Os calvinistas impuseram severas penas aos que infringiam os códigos de vestimenta e conduta, porém ditas disposições não superam a rigidez da lei da sharia na Arábia Saudita. Lutero negava o direito divino do papa e manifestava publicamente o direito divino dos príncipes (unindo à Igreja e ao estado, que estavam anteriormente separados), porém esta doutrina já forma parte integral do Islã, na qual está escrito que a mesquita e o estado devem estar unidos. Os reformadores protestantes repudiaram a Igreja Católica por simpatizar demais com os pensadores clássicos e os artistas decadentes (como Rafael); muitos deles condenaram a doutrina católica do livre arbítrio (crendo, como crêem os muçulmanos, numa espécie de fatalismo) condenando também aos católicos por fazer demasiado finca-pé na lógica e na razão tomista e por não dar suficiente ênfase à interpretação das Sagradas Escrituras.

Ninguém acusa o Islã por cometer esses erros. Mesmo se se tratasse de restituí-lo a sua forma pura, não corrupta como o encarna o mesmo Profeta Maomé – um líder polígamo, promotor de guerras santas, que aprovava o assassinato – seria difícil superar a Bin Laden e seus correligionários reformistas. Concordo, o Ocidente já não é o que uma vez foi. No lugar de ver a Michelangelo enquanto pinta a Capela Sixtina, temos Andrés Serrano e seu infame Piss Christ (um crucifixo imerso em urinas) No lugar do otimismo do Renascimento, temos o pessimismo moderno (pagão) que acredita ver os deuses da natureza vingando-se da superpopulação e contaminação causadas pelos seres humanos. Num lugar de um Ocidente positivo que aproveita sua missão imperial de propagar a paz, o comércio e a caridade e moralidade cristãs, o Ocidente de hoje desenvolve uma ambivalência incompreensível, muitas vezes falhando em reafirmar seus próprios valores. Até existem indivíduos ocidentais – incluindo alguns convertidos do Islã – que pensam que as duras restrições dos maometanos contra o aborto, a homossexualidade e o secularismo (para não falar contra o judaísmo, o cristianismo, o hinduísmo, e outros) lhes outorga uma certa superioridade moral. Nisso não são diferentes de certos liberais da Holanda e outros lugares.

Sem embargo, isto segue sendo, espero, a visão de uma minoria. Porém, digamos em poucas palavras que evidentemente o Islã não necessita de uma Reforma. Se a imprensa, como se diz amiúde, avivou a revolta protestante contra o cristianismo unido, a Internet tem exacerbado seguramente a revolta islâmica contra o Ocidente. Tem havido bastante jihadistas que divulgam suas teses na Internet. Porém, se bem ao islã não lhe faz falta uma Reforma não há dúvida que se beneficiaria de uma contra-reforma. Vale a pena ter isto em conta. Não seria maravilhoso se Kabul se convertesse num centro de arte barroca, se as esquinas das ruas de Teerã estivessem salpicadas de grupos corais que cantassem os hinos de Palestrina, se o efervescente bairro dos artistas – Islamabad – estivesse cheio de pintores expondo suas experiências com os estilos de Rubens, Caravaggio e Poussin?

Ah, sim! Oxalá sucedesse algo assim. Porém, lamentavelmente, poucos esperam que isto aconteça durante nossas vidas, se é que ocorra. Apesar das supostas glórias do passado islâmico, diz-se que o combativo Islã encontra-se atualmente na Idade Média. Porém o Islã não está nem na Idade Média, nem no Renascimento, nem na Contra-Reforma. Como escreveu Charles Moore, o biógrafo oficial de Margareth Thatcher (convertido ao catolicismo), “A palavra medieval não deveria ser sinônimo de “bárbaro”. A Catedral de Ely e o juízo com jurado e Giotto são medievais”. O mesmo que a Carta Magna, Chaucer e Dante. Também o são as ordens monásticas, a criação das universidades e o desenvolvimento da ciência. Também o cavalheirismo, o capitalismo e o conceito de progresso. Não associamos nenhuma destas coisas com o Islã histórico.

Concordo, a Idade Média representa milênios de história, e os primeiros tempos da mesma (aproximadamente do ano 500 a 1000 d.C.), algumas vezes conhecida como a Idade das Trevas, sem dúvida teve seus claro-escuros. As violentas excursões dos vikings não tiveram uma aceitação que digamos universal. Um papa que vivesse entre os decadentes tempos do século IX ao século XI tinha uma possibilidade entre três de ser assassinado durante seu mandato e os que sobreviviam podiam ser desterrados ou depostos. E além de uma diversidade de bárbaros, magiares e mongóis, haviam os muçulmanos que durante este período encetaram uma guerra santa contra meia cristandade, até que o valoroso Carlos Martel os derrotou na Batalha de Poitiers (e em outras batalhas posteriores) impedindo-os de arrasarem completamente o Ocidente.

Porém o claro-escuro é tanto luz quanto obscuridade, e houve suficiente luz nos primórdios da Idade Média. Brilhou com mais intensidade nos mosteiros, que não somente – e gloriosamente – preservaram o saber clássico senão que também contribuíram para que o Ocidente levasse a termo importantes inovações agrícolas, tecnológicas e comerciais. A Igreja implantou escolas, organizações de beneficência e as razões teológicas para abolir a escravidão (já que foi proscrita no Ocidente medieval, enquanto crescia no Islã, que na época estava gozando sua suposta “Idade de Ouro”). Por ser romana, a Igreja também assumiu muitas funções da administração pública de Roma. Os enganos da “Idade das Trevas” foram monumentais. Como asssinalou o historiador Christopher Dawson, “Na realidade essa idade foi testemunho de mudanças tão transcendentais como qualquer outro da históra da civilização européia; com efeito – como sugiro em minha obra [The Making of Europe] – foi a idade mais criativa de todas, já que concebeu não esta ou aquela manifestação da cultura, senão a mesmíssima cultura – a raiz e o terreno de todos os enganos culturais [sobre a Europa]”.

Neste caso, como acrescenta Dawson, o hisoriador católico leva vantagem porque ele pode compreender melhor que esta “foi tanto a idade das trevas como a idade do despertar, já que foi testemunho da conversão do Ocidente, a fundação da civilização cristã e a criação da carte e liturgia cristãs”. O resultado foi que a Europa alcançou sua plenitude na metade e fins da Idade Média (do ano 1000 a 1500). Se disseminaram a riqueza e o saber, e onde estavam as ruínas de Roma o homem medieval criou uma sociedade que foi muito mais humana, muito mais respeitosa das mulheres, muito mais humanizadora dos indivíduos, muito mais burguesa, quer dizer, com uma classe média mais importante e muito mais inventiva que as gloriosas civilizações do Mundo Clássico.

A Idade Média constituiu uma maravilhosa época de frescura e vigor ainda antes de alcançar sua plenitude no Renascimento. O Islã, deverá se ter muito claro, não foi estancado em nenhuma versão anterior do Ocidente e, sem a menor dúvida, não ficou na Idade Média, a “Era da Fé” católica, durante a qual monges, sacerdotes, agricultores, mercadores, reis, bispos e cavaleiros criaram uma civilização dinâmica – a soma da cultura clássica, católica e germânica – ou seja, Ocidente. Mesmo em seu estado mais humilde, como camponês, o homem medieval não foi um talibã. Suas crenças eram totalmente diferentes. Acreditava no sofrimento de Cristo que chegou ao mundo como uma indefesa criatura e morreu na Cruz, em lugar de crer num profeta conquistador, o qual considerava uma blasfêmia acreditar que Deus se rebaixaria a essas indignidades.

O homem medieval acreditava na honra de Deus e em divertir-se e pouco lhe importava as coisas deste mundo, parafraseando o poeta (e sacerdote) William Dunbar, “el Caucer de Escocia”. Se bem que o homem medieval era amante dos festins, das celebrações, das cores alegres e dos torneios, também acreditava no serviço, o trabalho e o comércio eram honrosos; que o intento de superar-se como pessoa e o progresso eram possíveis e que Deus havia criado um mundo que cada ser humano podia entender através da razão, para que todo agricultor comum e corrente – sem ter em conta sua posição de subordinação a seu senhor feudal – pudesse encontrar caminhos para melhorar suas técnicas agrícolas, lograr melhoras que o beneficiassem, o mesmo que a seu senhor, porque cada homem tinha direito de receber a parte que lhe correspondia de seu trabalho. Ele era, como o somos nós, um homem ocidental, com tudo o que isso supõe. Como o expressou o popular erudito medieval – o Bispo Morris – ainda hoje (ou em 1958, quando escrevia): “Um agricultor das terras altas da Macedônia, um pastor das montanhas do Auvergne, leva uma vida mais medieval que o homem moderno.

Um pioneiro americano do século passado, que saía com um carro de bois, um machado, um arado e uma pá para abrir espaço para um sítio no meio do bosque, estava mais próximo da Idade Média que dos tempos modernos. Se auto-abastecia, curava-se a si mesmo e a sua família com ervas, cultivava seu próprio alimento, moía seus próprios grãos, fazia trocas com mercadores estranhos, divertia-se em ocasionais bailes festejados em celeiros parecidos aos bailes em ronda medievais”. O pioneiro norte-americano o camponês medieval eram nós e nós éramos eles e nenhum dos dois é muçulmano. E para alguns de nós, a idéia de conversar com um homem da Idade Média (ou da fronteira norte-americana) é uma perspectiva muito mais interessante que a idéia de conversar com um jovem de vinte e tantos anos que envia mensagens de textos atrelados a um iPod, cuja vida transcorre no que acertadamente se chama de “biogosfera”.

O mito de uma Idade Média bárbara é parte da ignorância de nossa época. No princípio, os protestantes propuseram o mito, os laicos o têm fomentado: hoje os fatos o desmentem. De modo que saiamos blandindo nossas lanças como os cavaleiros medievais para acabar com cinco dos principais mitos relacionados com a Idade Média.

 Primeiro mito – O Cristianismo medieval era bárbaro enquanto que o Islã era refinado

Dado que estamos falando dos muçulmanos, comecemos com o mito de que na Idade Média o cristianismo era bárbaro, enquanto que o Islã era refinado. Eis aqui uma prova simples: Alguma vez tem escutado e desfrutado os cantos gregorianos? Com um pouco de sorte, aí não há ficado a coisa; na realidade temos escutado a obra de compositores medievais executada em instrumentos da época.

Tanto a música quanto os instrumentos são evidentemente nossos. Estende uma ponte natural para o que a maioria das pessoas de maneira genérica denomina “música clássica”. Nosso sistema de notação musical data da Idade Média, o qual teve sua origem nos mosteiros, muito especialmente através da obra do monge beneditino do século onze Guido D’Arezzo. Por outro lado, Maomé, como seus seguidores talibãs, proibiu a música. Afirmava que Alá havia lhe ordenado que suprimisse os instrumentos musicais, advertindo-os que “Alá derramará chumbo derretido nos ouvidos de quem quer que se preste a escutar uma cantora” – ou, demais está dizê-lo – um trovador medieval.

Graças aos caricaturistas europeus, todos conhecemos bastante bem o que pensam os muçulmanos sobre pintar uma imagem de Alá ou seu Profeta. Sem embargo, o mesmo profeta na realidade proibiu a seu povo toda arte visual que representasse alguma forma da fauna, desde homens até gado, o que de alguma maneira impede a liberdade artística; liberdade da qual todos no Ocidente desfrutavam durante a Idade Média, sem mencionar o Renascimento. Se bem que a arquitetura islâmica é mais atrativa – pelo menos, para meu gosto – com frequência não se adverte que se inspirou em Bizâncio e em alguns casos até foi construída por trabalhadores bizantinos. A literatura islâmica – aparte as Mil e Uma Noites e um punhado de outros poemas ou contos – é pobre em comparação com a ocidental e a diferença desta é sumamente a obra de dissidentes e hereges. Aparentemente, os literatos muçulmanos sempre têm mostrado uma tendência a julgar o papel de Salman Rushdie para os imãs de plantão.

Quanto à ciência, as matemáticas e a tecnologia, os muçulmanos foram bastante competentes em preservar e adotar a herança clássica dos cristãos (e os logros dos persas zoroastras e hindus) aos quais conquistaram. Não foram tão competentes em superá-la, o que constitui uma razão muito importante pela qual o Ocidente progrediu e o Islã não. Outro motivo importante é que enquanto os clérigos ocidentais ensinavam a lei natural e que Deus havia criado um universo racional e ordenado, os teólogos islâmicos contra-atacavam que nada – por suposto nem a razão – podia limitar o poder de Alá; estava mais além de toda restrição semelhante, sendo os líderes muçulmanos contemporâneos dos ocidentais.

No século doze, os filósofos muçulmanos se declararam de forma contundente contra os clássicos pagãos. Por outra parte, o homem ocidental sensato, não estava interessado na religião muçulmana, porém sem dúvida estava disposto a aceitar e fomentar o saber islâmico, tal como aceitou e fomentou o saber clássico. A adoção por parte do Ocidente dos números arábicos (e o zero, que os muçulmanos receberam dos hindus) é magnífico exemplo. Outra é quando o filósofo Arrevois escreveu suas glosas sobre Aristóteles, estas tinham mais influência no Ocidente que no mundo islâmico. E os tão vilipendiados cruzados não eram fanáticos: adotaram sem problemas comidas, aparatos e as práticas comerciais do Oriente.

Não foi o homem medieval cuja civilização enfrentou um milênio de marcha para obscuridade, foi o muçulmano. Pelo fim da Idade das Trevas, “A Idade do Ouro” do Islã já quase havia acabado. Como escreveu Norman Cantor, o célebre erudito especializado na Idade Média, “O mundo islâmico porém não havia começado sua profunda decadência no ano 1050... mas em linhas gerais, os dias de máximo esplendor do Islã haviam chegado ao seu fim... No ano 1050, em cada um dos países da Europa ocidental, havia grupos de pessoas envolvidas em algum tipo de empresa duvidosa. A Europa já não andava a reboque de Bizâncio e do Islã em nenhum aspecto e em algum sentido havia superado os erros mais importantes dos duas civilizações com as quais os povos que falavam latim agora competiam pela hegemonia do Mediterrâneo”.

O Ocidente sempre foi inventivo mesmo durante a Idade das Trevas. Isso forma parte de nosso espírito, assim como a supremacia do Corão e somente o Corão por sobre todas as coisas forma parte do Islã. Já então como na atualidade, os colégios islâmicos fundamentalistas lhes inculcavam o Corão a seus alunos para que o aprendessem de memória. Os colégios católicos, então como agora, ensinavam religião, filosofia, matemáticas (desde contabilidade até matemáticas superiores) e latim, entre outras matérias. Os protestantes somente atacavam aos católicos o fato de que não conhecerem as Sagradas Escrituras.

Não se pode fazer a mesma acusação a um muçulmano numa madrassa [1] que tem que se aprender o Corão de memória e a quem se lhe proíbe explicitamente interpretá-lo. É verdade que na Idade Média a maioria dos católicos conheciam as Escrituras pelo que ouviam na igreja ou viam representado nas janelas de vitrais coloridos, ou então que liam – ou ouviam recitar – de livros tais como The Heliand, o Evangelho Saxão, em que Cristo, o Paladino, ingressa no Forte Jerusalém para a última celebração no salão de festas com seus companheiros de combate. Porém aceitavam o ensino e a autoridade de sua Igreja e se mantinham ocupados construindo fábricas de cerveja, preparando bebidas alcoólicas, abrindo estradas, erigindo cidades e inventando e produzindo em série: o estribo, os arneses para cavalos e o moinho de água (ou estritamente falando) aperfeiçoando o moinho de água que foi inventado pelos romanos, que apenas o usaram e começou a ser valorizado durante a Idade Média. Também criaram uma revolução agrícola com uma rotação de cultivo para três campos e melhoraram as ferramentas e a tecnologia agrícola, a especialização em produtos, o transporte terrestre e marítimo e a dedicação exclusiva ao comércio.

O único avanço que alguém poderia atribuir ao Islã sobre o Ocidente é a invenção do harém. Não obstante, até o homem mais machista poderia pensar que o harém não é muito justo com as mulheres. O racionalista poderia acrescentar que podem dá origem a pressões sociais que são bastante malsãs (deixando por todas as partes homens indisciplinados e sem compromissos). Os clérigos poderiam acrescentar razoavelmente que os monges, freiras e sacerdotes celibatários têm feito um melhor uso de seu sacrifício sexual do que os eunucos que protegiam os haréns.

Um proprietário ocidental de casa de modas suspeitaria que o burka [2] foi inventado para ocultar alguns dos defeitos (segundo os critérios ocidentais) das odaliscas. E, por último, os monarcas medievais, como o homem ocidental moderno, sempre podia evitar o ensino da Igreja, praticando a hipocrisia em série em lugar de fazer ajuntamento de mulheres em habitações preparadas para tanto. Esta prática monárquica se tem filtrado na administração de empresas onde os depósitos abarrotados (haréns) têm dado lugar ao “inventário de justo a tempo” (monogamia em série), outro tributo à eficiência ocidental.

 Segundo mito – As mulheres medievais eram oprimidas

Se bem que estamos tratando do tema do belo sexo, prescindamos da idéia feminista de que a Idade Média católica foi uma época de opressão contra as mulheres. Isso, aparentemente, resulta difícil de conciliar com a devoção medieval à Virgem Maria; a invenção medieval do amor cortês e romântico, a prática do cavalheirismo e a existência de rainhas e princesas. Em cada caso, encontramos homens que prometem lealdade, fidelidade, honra e proteção às damas; mulheres, poder-se-ia apontar, com poder e favores, já seja que pertencentes à realeza ou mulheres românticas ou divinas.

O Novo Testamento tem muito mais estima pelo sexo feminino que o Corão. Jesus permanentemente trata as mulheres com respeito. Os cristãos, desde o início, fizeram o mesmo. O conceito da mulher como “objeto sexual” é profundamente contrário ao cristianismo de uma forma que se diferencia ostensivamente do paganismo e do islamismo. O cristianismo não faz alarde de ter prostitutas de templos ou haréns, nem trata de brancas ou huris [3]. O Novo Testamento nunca recomenda açoitar as mulheres, nem as compara com um campo para ara (como o faz o Corão).

Segundo a lei islâmica o divórcio é uma questão de quatro palavras (“Me divorcio de ti”); as mulheres são propriedades privadas e têm basicamente duas finalidades (o leitor pode imaginar quais). No Ocidente medieval, tanto a poligamia como o divórcio eram ilegais. As mulheres podiam governar em tronos ou pontificar em bibliotecas de conventos de monjas e levar a batuta de um lar de classe média tal como o tem feito qualquer outra ama de casa ocidental durante os últimos dois mil anos. As mulheres eram livres de vestir-se como queriam e podiam ir à taverna – até fabricar cerveja – se quisessem. Tinham emprego e aprendiam ofícios e profissões.

Se eram camponesas, trabalhavam a terra com seus esposos. Podiam ser canonizadas ou conduzir os homens à batalha (como Joana D’Arc). Especialmente se pertenciam a ordens religiosas, destacavam-se na educação primária, enfermaria e outras “profissões de cunho social” como as chamariam hoje em dia. Se pertenciam à nobreza, herdavam e dirigiam propriedades e recebiam todas as obrigações feudais devidas, acompanhavam a seus esposos em caçadas ou nas Cruzadas, assistiam as escolas cortesãs onde aprendiam arte, etiquetas e como dirigir um lar (de medicina a enologia, de costura a contabilidade, de jardinagem a como tratar os empregados. Também eram mecenas.

Se as mulheres eram excluídas das escolas e universidades clássicas, o que ocorria era menos por motivos cristãos, falando com propriedade, que por motivos clássicos – pela interpretação aristotélica de que as mulheres são do sexo subordinado. O grau de “subordinação” das mulheres poderia observar-se na impudica – e bem “libertária” - esposa de Bath nos Contos de Canterbury de Chaucer [4]. Ela poderia deitar por terra qualquer idéia de que as mulheres medievais eram oprimidas. A esposa de Bath, depois de tudo, escolhe seus esposos – cinco no total – guiando-se pelo caudaloso potencial de noivos (jacta-se de haver deixado os primeiros três sem um centavo antes de morrerem) ou por seus atributos viris, inclusive um dos carregadores do féretro de seu quarto marido. Encontra a felicidade com o quinto esposo (seu favorito) no momento de convencê-lo – a golpes de punho – dos direitos que a ela lhe correspondem. A disputa começa quando ela, enfadada, arranca uma página do “The Wicked Wives”, o livro que ele estava lendo em voz alta. Em tudo isto cita as Sagradas Escrituras, observando que “Direito tenho sobre seu corpo e sua vida e não ele. Como bem disse o Apóstolo: que o esposo deve dar à esposa o amor que por direito lhe cabe”. Sua história é bastante mais divertida e escandalosa que o permitiria o atual Islã “medieval”. Sem embargo, na Idade Média do Ocidente era um estereótipo comum como o seria hoje mesmo se aparecesse de chofre no sofá de nossa sala.

 Terceiro mito – a cultura medieval era grosseira e ignorante

  Chaucer nos coloca cara a cara com a cultura medieval e longe de ser grosseira e ignorante, a consideramos uma parte inteligente e iluminada de nossa herança literária. Se os castelos e catedrais, a arte, os ofícios e a música medieval não são suficientes; se Beowlf [5], a Canção de Rolando, o Cantar de Mio Cid e a Morte de Artur não lhe dizem nada, se Boesius, Boccacio, Dante, Petrarca e Maquiavel não significam nada; se você não tem nenhuma consideração por Santo Anselmo, São Francisco e São Tomás de Aquino, para escolher simplesmente um punhado de riquezas literárias da época, então não há muito mais que dizer.

 Quarto mito – a politica medieval era despótica

 Do mesmo modo, a política medieval não era nem grosseira nem ignorante, nem totalitária ou despótica. Pelo contrário; a Idade Média – desde o início – praticava a separação e muitas vezes o conflito entre a Igreja e o Estado. Foi a Reforma, o desejo do estado em absorver a Igreja, o que integrou à Igreja o Estado ao precipitar a criação da igreja estatal. A política medieval apoiava uma ampla dispersão de poder, que é o que propunha o feudalismo e a razão pela qual os nobres da Inglaterra – encabeçados pelo Arcebispo Católico de Canterbury, Stephen Langton – puderam pôr limites à Coroa com a Carta Magna.

O homem medieval acreditava na grande hierarquia da sociedade, na qual tanto o homem como a mulher tenha direitos e obrigações e fosse individualmente responsável ante Deus. O homem medieval nunca foi ameaçado pelo totalitarismo. Um estado totalitário nem sequer era possível até que a Reforma tirou da Igreja o que servia de freio ao poder estatal. De fato, o feudalismo preservava uma forma extrema de federalismo, onde prosperavam cidades estados (como as repúblicas dos mercadores da Itália).

Na Idade Média, um mercador não só podia fundar sua própria empresa, mas até os adolescentes entusiastas podiam empreender sua própria Cruzada (a Cruzada dos Meninos) e um cruzado fracassado como São Francisco podia lançar seu próprio movimento religioso. É provável que a Idade Média tenha estado dilacerada pelas guerras, conquistas, rivalidades políticas, contendas entre cavaleiros e as guerras contra os hereges albigenses ou os infiéis muçulmanos. Porém do ponto de vista político, a Idade Média foi, em todo caso, uma época em que a dispersão do poder secular estava mais perto da anarquia que do despotismo e a Igreja estava geralmente do lado do liberalismo político – se não religioso – com o objetivo de proteger-se da ambição de monarcas e príncipes.

 Quinto mito – a Idade Média foi excepcionalmente violenta

 Indubitavelmente, a Idade Média foi muito violenta, porém não tiveram um Hitler, um Stalin, um Mao. A Idade Média efetivamente teve seus inquisidores, porém os diversos mitos que rodeiam a inquisição hoje em dia têm sido praticamente demolidos e quem quer que o deseje pode inteirar-se estudando os registros históricos sérios e pertinentes. Os tribunais inquisitórios da Idade Média não infundiam terror às pessoas da Europa ocidental. Seu alcance era limitado, seus processos judiciais e castigos eram mais benévolos que os de seus homônimos leigos. O castigo da Inquisição consistia amiúde numa penitência e em grande parte da Europa a Inquisição nunca existiu. Não foi uma organização característica ou de fundamental importância durante a Idade Média. Sua implantação data do século XII quando foi criada para contrarrestar a heresia albigense.

A Inquisição espanhola – a inquisição de “pior reputação”, atuava sob cédula real e não papal. A história destes tribunais se estende durante um período de aproximadamente seiscentos anos, expirando na Espanha de princípios do século XIX. Nos trezentos e cinquenta anos da Inquisição espanhola, da qual se tem preservado meticulosamente todos os documentos, o total de sentenciados à morte é de aproximadamente uns quatro mil. O total de executados é menor. Quando se trata do inventário de vítimas, os mil anos da Idade Média nem se aproximam das hecatombes do progressista século XX.

Se as guerras da Idade Média em prol da Fé são consideradas como um escândalo que desacredita o cristianismo, então que devemos pensar dos genocídios[6] autorizados pelo estado, os assassinatos em massa e os extermínios perpetrados pelos nazistas pagãos e comunistas ateus? Estes últimos conseguiram nos últimos setenta anos – apenas ao longo de uma só vida – assassinar muitíssima mais pessoas que o inquisidor medieval mais eficiente houvesse podido matar com as armas à sua disposição nesses tempos. Houve muitas lutas durante a Idade Média. Houve atrocidades no campo de batalha, assassinatos em catedrais e massacres em cidades. Porém o homem moderno não é a pessoa indicada para se por a julgar ao homem medieval como se fosse moralmente superior.

Na Idade Média, os nazistas seriam denunciados como hereges, se haveria organizado contra eles uma cruzada papal e hoje estaríamos lendo livros progressistas descrevendo como a Igreja Católica suprimiu de forma violenta e injusta – através da Inquisição e uma Cruzada – um movimento “herege” alemão que somente queria usar calças curtas, sair em excursões pelos bosques, cantar canções pagãs, libertar o povo da superstição, fomentar o ensino e ciências laicas e desarticular o poder político e religioso de Roma.

Já temos escutado muitas vezes esse conto, por exemplo com a idealização dos cátaros. O homem medieval tem sofrido muitas difamações deste tipo: os propagandistas anticatólicos do século XX o acusaram de inventar que o globo era plano. E hoje temos o mito de que os terroristas homicidas do Islã “ficaram na Idade Média” em vez de fazer parte do Islã do século XXI. A Idade Média foi mais gloriosa e encomiável do que muitos parecem reconhecer. O homem medieval merece um efusivo brinde de nossa parte; melhor um homem medieval que o rap ou as notícias do al-Jazira.

 (Referencias H. W. Crocker III publicou recentemente Triumph: The Power and the Glory of the Catholic Church: A 2,000-Year History. Sua novela cómica The Old Limey e seu livro Robert E. Lee on Leadership estão disponíveis em edição rústica. Seu último livro é Don't Tread on Me: A 400-Year History of America at War, from Indian-Fighting to Terrorist-Hunting.)

 [1] Escola de ensino sunita ou todo edifício muçulmano destinado às ciências.

[2] Véu com que as mulheres islâmicas cobrem o rosto

[3] Huris – No Corão (III, 20), virgem prometida na outra vida aos que ganharem o Paraíso. O Autor do artigo está aplicando o termo, porém, no sentido de preto: o termo também significa o campo preto ou branco dos olhos quando são muito pronunciados..

[4] Geoffrey Chaucer (1340-1400), autor de “Lendas das mulheres exemplares” no livro “Contos de Caterbury”

[5] Poema épico anglo-saxão do século X.

[6] O termo “genocídio” é um neologismo surgido após os morticínios de povos inteiros promovidos pelo Comunismo no século XX"


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