quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

PROBLEMAS DA VIDA MODERNA (V)

Eis novos trechos da reportagem do "Diário de São Paulo", de outubro de 1964:

O “mundo cão” das filas nas grandes cidades

“O “mundo cão” do paulistano se manifesta, de preferência, pelas filas. Quantas horas se perde, por ano, em São Paulo, correndo filas? Pesquisas que fossem feitas nesse sentido revelariam cifras assustadoras, jamais imaginadas nem mesmo por aqueles que perdem, por dia, mais de uma hora em extensas e cansativas filas de ônibus.
“Por causa dessas filas é que o paulistano até já perdeu o hábito de almoçar em casa, pois as duas horas de intervalo do escritório não bastam para a ida e a volta, e as conseqüentes filas de ônibus. Mas não é só para tomar a sua condução que o morador da Capital paulista faz filas. Ainda há poucos meses os jornais estampavam extensas filas de açúcar, e ainda há dias, filas em torneiras para apanhar água podiam ser vistas em vários bairros da Zona Norte, onde andou faltando água por mais de três semanas seguintes.
“E nem só para trabalhar ou para obter alimento o paulistano faz fila. Também para o cinema. Aos sábados e domingos, quem quiser ver um número enorme de pessoas “sofrendo” para se divertir um pouquinho, é só passar pela porta dos cinemas do Centro. As filas lá estão.
“Também os transportes coletivos, em São Paulo, são permanente fonte de angústia e mal-estar para a criatura humana. Quem não se sente vivendo num verdadeiro “mundo cão” quando é obrigado a passar meia hora, às vezes até mais, dentro de um ônibus superlotado, e viaja em pé, espremido, quase sem poder respirar? E isto – note-se bem – depois da clássica meia hora de fila e antes (ou depois) de um dia de trabalho intenso. E todos os dias. É assim a vida do paulistano da classe média para baixo, que conta a grande maioria da população... Quem tem condução própria, já sofre filas de outro tipo. São as filas de carros nos sinais de trânsito e aos domingos, em lugar das filas dos cinemas, as filas no posto de pedágio na Via Anchieta, na serra ou diante da balsa de Guarujá. Em todo o caso, sempre “filas”, sempre dificuldades sem conta fazendo da vida do paulistano um eterno “mundo cão”.
“Fila é o protomodelo do anonimato. Até o homem famoso deixa de ser alguém quando entra numa fila. Todos valem apenas como um número no espaço. Qualidades de espírito, dotes de inteligência, morrem na boca da fila. Toda a individualidade desaparece”. Assim se expressou o psicoterapeuta José A. Gaiarsa.
“O anonimato é, nas cidades grandes, um fator importante no desencadear de neuroses. “Eu não sou ninguém, ninguém liga para mim, nem se importa comigo”.
“Nestas condições de vida todos nós nos sentimos perseguidos, injustiçados, e isto gera angústia e neurose. O indivíduo que freqüenta filas diárias e viaja sempre em pé em ônibus lotados se sente diminuído, atingido em sua dignidade mínima.
“Mas além da competição e do anonimato, na Capital paulista ninguém conhece as suas verdadeiras dimensões, ninguém se situa, e por isso a pessoa se sente perdida, o que é muito prejudicial ao equilíbrio psíquico”.

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