quinta-feira, 27 de maio de 2010

Dissertando em torno da caridade

Em junho do ano passado, o Papa promulgou uma Encíclica com o título "Caritas in veritate", cujo teor pode ser obtido acessando-se o site do Vaticano. A propósito, ao se aproximar o primeiro aniversário daquela Encíclica, publicamos abaixo alguns artigos da lavra do Dr. Plínio em que o tema é abordado, especialmente por causa de falsas concepções modernas sobre a caridade.
UMA DEFORMAÇÃO ROMÂNTICA DA CARIDADE: "O BOM CORAÇÃO"
Plínio Corrêa de Oliveira
"Odiar é pecado? Sim, não? Por que? Se alguém se encarregasse de fazer entre os nossos católicos um inquérito a este respeito, recolheria respostas muito curiosas, revelando em geral uma pavorosa confusão de idéias, um ilogismo fundamental.
Para muita gente, ainda intoxicada por restos do romantismo herdado do século XIX, o ódio não é apenas um pecado, mas o pecado por excelência. A definição romântica do homem mau é o que tem ódio no coração. A contrário sensu, a virtude por excelência é a bondade, e por isto todos os pecados têm sua atenuante se cometidos por uma pessoa de "bom coração". É freqüente ouvirem-se frases como esta: "pobre X, teve a fraqueza de se ‘casar’ no Uruguai, mas no fundo é muito boa pessoa, tem ótimo coração". Ou então: "pobre Y, deixou roubar em sua repartição, mas foi por excesso de bondade: ele não sabe dizer não, a ninguém".
O que vem a ser "um bom coração"? Evidentemente, começa por não ser um coração propriamente dito, mas um estado de espírito. Tem "bom coração" quem experimenta em si, muito vivamente, o que sofrem os outros. E que, por isto mesmo, nunca faz sofrer a ninguém. É por "bom coração" que uma pessoa pode deixar sistematicamente impunes as más ações de seus filhos, permitir que a anarquia invada a aula em que leciona, ou os operários que dirige. Uma reprimenda faria sofrer, e a isto não se resolve o homem de "bom coração", que sofre ele mesmo demais, em fazer os outros sofrer. O "bom coração" sacrifica tudo a este objetivo essencial, de poupar sofrimento. Se vê alguém queixar-se do rigor do Decálogo, pensa imediatamente em reformas, abrandamentos, interpretações acomodatícias. Se vê alguém sofrer de inveja por não ser nobre, ou milionário, pensa logo em democratização. Juiz, sua "bondade" o levará a sofismar com a lei para deixar impunes certos crimes. Delegado, fechará os olhos a fatos que seu dever funcional lhe imporia que reprimisse. Diretor de prisão, quererá tratar o sentenciado como uma vítima inocente dos defeitos da época e do ambiente; e, em conseqüência, instaurará um regime penal que transformará a casa de correção em ponto de encontro de todos os vícios, em que a livre comunicação entre sentenciados exporá cada um ao contágio de todos os vírus que ainda não tem. Professor, aprovará sonolenta e bonacheironamente alunos que no máximo mereceriam 2 ou 3. Legislador, será sistematicamente propenso a todas as reduções de horas de trabalho, e a todos os aumentos de salário. Na política internacional, será a favor de todos os "Munique" de todas as capitulações imprevidentes, preguiçosas, imediatistas desde que sem dispêndio de energia salvem a paz por mais alguns dias.
Subjacente a todas estas atitudes, está a idéia de que no mundo só há um mal, que é a dor física ou moral: em conseqüência, bem é tudo quanto tende a evitar ou a suprimir sofrimento, e mal é o que tende produzi-lo ou agrava-lo. O "bom coração" tem uma forma especial de sensibilidade, pela qual se emociona à vista de qualquer sofrimento, e defende todo e qualquer indivíduo que sofre, como se ele fosse vítima de uma injusta agressão. Dentro desta concepção, "amar ao próximo" é não querer que ele sofra. Fazer sofrer o próximo é sempre e necessariamente ter-lhe ódio.
Daí advém para o homem de "bom coração" uma psicologia muito especial. Todos os que têm zelo pela ordem, pela hierarquia, pela integridade dos princípios, pela defesa dos bons contra as investidas do mal, são desalmados, pois "fazem sofrer" com sua energia os "pobres coitados" que "tiveram a fraqueza" de cair em algum deslize.
E se em relação a todos os pecadores da terra o homem de "bom coração" tem tolerância, é muito explicável que odeie o homem de "mau coração" que "faz sofrer os outros".
Estas são as linhas gerais em que se pode sintetizar um estado de espírito muito freqüente. Claro está que apontamos um caso em tese. Graças a Deus, só um número relativamente pequeno de pessoas é que em todos os campos chega a estes extremos. Mas é freqüente encontrar gente que em diversos pontos age inteiramente assim.
E constituem multidão aqueles em que se encontram pelo menos laivos deste estado de espírito.
Ainda aqui, alguns exemplos são esclarecedores. Para mostrar quanto este mal está entranhado no brasileiro, escolhamos esses exemplos em maneiras de falar e de sentir comuns entre católicos.
Para que se entenda bem o que há de errado nos exemplos que vamos dar, comecemos por lembrar rapidamente qual é neste assunto a autêntica doutrina católica.
Para a Igreja, o grande mal neste mundo não é o sofrimento, mas o pecado. E o grande bem não consiste em ter boa saúde, mesa farta, sono tranqüilo, em gozar honras, em trabalhar pouco, mas em fazer a vontade de Deus. O sofrimento é certamente um mal. Mas este mal pode em muitos casos transformar-se em bem, em meio de expiação, de formação, de progresso espiritual. A Igreja é Mãe, a mais terna, a mais solícita, a mais carinhosa das mães. Dela se pode dizer, como de Nossa Senhora, que é Mater Amabilis, Mater Admirabilis, Mater Misericordiae. Assim, ela procurou sempre, procura hoje, até o fim dos séculos procurará quanto possa afastar de seus filhos, e de todos os homens, qualquer dor inútil. Mas nunca deixará de lhes impor a dor, na medida em que a glória de Deus e a salvação das almas o peçam. Ela exigiu dos mártires de todos os séculos que aceitassem os tormentos mais atrozes, ela pediu aos cruzados que abandonassem o conforto do lar para arrostar mil fadigas, combates sem conta, a própria morte em terra estranha. E ainda em nossos dias ela pede aos missionários que se exponham a todos os riscos, a todas as fadigas, nos rincões mais inóspitos e longínquos. A todos os fiéis, pede ela uma luta incessante contra as paixões, um esforço interior contínuo para reprimir tudo quanto é mau. Ora, tudo isto supõe sofrimentos de tal monta, que a Igreja os considera insuportáveis para a fraqueza humana, a ponto de ensinar que, sem a graça de Deus, ninguém pode praticar na sua totalidade, e duravelmente, os Mandamentos.
Todos estes sofrimentos, a Igreja os impõe com prudência e bondade, é certo, mas sem vacilação, nem remorso, nem fraqueza. E isto, não apesar de ser boa mãe, mas precisamente porque o é. A mãe que sentisse remorso, vacilasse, fraquejasse ao obrigar seu filho a estudar, a se submeter a tratamentos médicos penosos mas necessários, a aceitar punições merecidas, não seria boa mãe
Este procedimento, a Igreja o espera também de seus filhos, não só em relação a si mesmos, mas ao próximo. É justo que nos dispensemos de dores inúteis e evitáveis. Devemos ter para com o próximo entranhas de misericórdia, condoendo-nos com seus padecimentos, e não poupando esforços para os aliviar. Entretanto, devemos amar a mortificação, devemos castigar corajosamente nosso corpo e, principalmente, combater com afinco, clarividência, meticulosidade os defeitos de nossa alma. E como o amor do próximo nos leva a desejar para ele o mesmo que para nós, não devemos hesitar em fazê-lo sofrer, desde que necessário para sua santificação.
Ora, na aplicação destes princípios é fácil apontar muitos desvios ocasionados pela concepção romântica do "bom coração".
É "bom coração" ter certa condescendência para com formas veladas de divórcio, por pena dos cônjuges, ser pela abolição dos votos religiosos e do celibato sacerdotal, por pena das pessoas consagradas a Deus, considerar com laxismo os problemas ligados à limitação da prole por pena da mãe, etc. Em outros campos, o "bom coração" consiste em ser contra as polêmicas ainda que justas e temperantes, contra o Index, contra o Santo Ofício, contra a Inquisição ( ainda que sem os abusos a que deu ocasião em alguns lugares ), contra as Cruzadas, porque tudo isto faz sofrer. Em outros campos ainda, o "bom coração" consiste em não falar de demônio, nem de inferno ou de purgatório, em não avisar aos doentes que a morte está próxima, em não dizer aos pecadores a gravidade de seu estado moral, em não lhes falar de mortificação, nem de penitência, nem de emenda, porque também isto faz sofrer. Já vimos um educador católico se manifestar contra os prêmios escolares porque fazem sofrer os alunos vadios! Como já vimos também associações religiosas tolerando em seu grêmio elementos perigosos para os associados e desedificantes para o público, porque a expulsão desses elementos os faria sofrer. Falar contra as modas e danças imorais, preconizar uma censura cinematográfica sem laxismo tudo isto em última análise parece descaridoso, porque "faz sofrer". Soubemos a este respeito de alguém que desaconselhava uma campanha contra os jornais imorais porque isto "faz sofrer" os editores cujas almas cumpre salvar!
Fizemos esta longa digressão para focalizar melhor o problema que de início formulávamos. Para o "bom coração", todo ódio é necessariamente um pecado. Dir-se-á o mesmo à luz da doutrina católica?
Pensando no perigoso furor da avalanche de "bons corações" de que o Brasil está cheio, quase não ousamos formular a pergunta. E certamente não responderemos por nós. Mas falaremos pela grande e autorizada voz de S. Tomás.
É o que faremos em próximo artigo.

(Revista "Catolicismo" Nº 34 - Outubro de 1953


SE A CARIDADE MANDA AMAR OS PECADORES

Plínio Corrêa de Oliveira
"Em artigo anterior ( Ver "Catolicismo" Nº 34, de Outubro de 1953 ), prometemos apresentar a solução dada por S. Tomás de Aquino ao problema da legitimidade do ódio. Como lembramos, o romantismo generalizou entre nós brasileiros a falsa noção de que amar é sempre virtude, e odiar é sempre pecado.
S. Tomás nos mostra que, pelo contrario, o ódio pode ser por vezes um grave dever.
Publicando o próprio texto do Doutor Angélico ( Suma Teológica, IIa. IIae., a. 6 ), acompanhamo-lo de algumas notas destinadas a facilitar a aplicação dos princípios por ele ensinados, a casos concretos freqüentemente verificados na vida quotidiana.
Para se aquilatar toda a importância deste texto, convém lembrar a autoridade de S. Tomás, não só enquanto teólogo máximo da Igreja, mas ainda como Santo, proposto à veneração e imitação dos fiéis.
Se os pecadores (1) devem ser amados (2) em razão da caridade (3).
Parece que, por motivo de caridade, não devem ser amados os pecadores:
1 - Com efeito, está dito nos Salmos ( Ps. 118, 13 ): "Odiei os iníquos". Ora, Davi tinha caridade. Logo, conforme a caridade, mais se deve odiar os pecadores do que amá-los.
2 - Ademais, "o amor se prova pelas obras", conforme diz S. Gregório na homilia de Pentecostes ( hom. 30 in Evang. ). Ora, os justos não praticam para com os pecadores obras de amor, mas obras que parecem ser de ódio, conforme aquilo dos Salmos ( Ps. 100, 8 ): "Pela manhã eu aniquilava todos os pecadores da terra". E o Senhor deu por preceito no Êxodo ( Ex. 22, 18 ): "Não suportarás que os maus vivam". Em conseqüência, segundo a caridade, não devem ser amados os pecadores.
3 - Além disso, é próprio à amizade que desejemos para os amigos o que é bom. Ora, os Santos, inspirados pela caridade, desejam o mal para os pecadores, conforme aquilo dos Salmos ( Ps. 9, 17 ): "Sejam precipitados no inferno os pecadores". Portanto, os pecadores não devem ser amados segundo a caridade.
4 - Acresce que é próprio de amigos alegrarem-se com as mesmas coisas e querer o mesmo. Porém a caridade não leva a querer o que querem os pecadores, nem a alegrar-se naquilo em que eles se alegram; antes pelo contrário. Portanto, não é conforme à caridade amar os pecadores.
5 - Por fim, é próprio dos amigos conviverem entre si, como se diz no livro VIII da Ética ( C. 5, n.3: S. Th. lect. 5 ).
Ora, não se deve conviver com os pecadores, conforme está escrito em II Cor. 6, 3: "Retirai-vos do meio deles". Logo, não se deve amar segundo a caridade, os pecadores.
— Porém, é em sentido contrário o que Santo Agostinho diz em I de Doct. Christ. ( cap. 30 ): "Amarás ao teu próximo", refere-se evidentemente a todos os homens. Ora, os pecadores não deixam de ser homens, pois o pecado não destrói a natureza. Logo, segundo a caridade, deve-se amar os pecadores.
— A esses argumentos respondo que se podem considerar nos pecadores dois aspectos: a natureza e a culpa. Segundo a natureza que receberam de Deus, são capazes de adquirir a bem-aventurança, sobre cuja comunicação se baseia a caridade, como ficou dito acima ( A.3; q.23, a. I, 5 ). E portanto, segundo sua natureza, os pecadores devem ser amados (4). Porém, sua culpa desagrada a Deus, e constitui impedimento para a beatitude. De onde, em razão de sua culpa, que os torna inimigos de Deus, devem ser odiados quaisquer pecadores, ainda que sejam pai, mãe, ou parentes, conforme S. Lucas 14, 26 (5). Devemos com efeito odiar nos pecadores o fato de que são pecadores, e amar neles o fato de que são homens, capazes de bem-aventurança (6). E nisto consiste amá-los verdadeiramente, conforme a caridade e por amor de Deus.
Ao primeiro argumento, pois, deve-se responder que o Profeta teve ódio aos iníquos enquanto iníquos, odiando sua iniqüidade (7), que é o que neles há de mal. É este o ódio perfeito, do qual o mesmo Profeta diz ( Ps. 138, 22 ): "Odiei-os com ódio perfeito". Pois pela mesma razão se deve odiar o que em alguém há de mal, e amar o que há de bom.
Por onde também este ódio perfeito pertence à caridade (8).
Ao segundo argumento responde-se que, como diz o Filósofo no livro IX da Ética ( C. 3, n. 3: S. Th. lect. 3 ): "Não devemos privar nossos amigos pecadores, dos benefícios da amizade, desde que haja esperança de que se emendem: porém mais se deve auxiliá-los a recuperar a virtude, do que o dinheiro que tenham perdido; tanto mais que a virtude é mais afim com a amizade do que o dinheiro (9). Mas, quando caem na mais profunda malícia e se tornam insanáveis (10) deve-se-lhes recusar um trato familiar de amigo. E portanto a pecadores tais, de quem mais se deve temer que prejudiquem a outros, do que se pode esperar que se emendem, a lei divina e humana manda que sejam mortos. — É o que faz o juiz, não por ódio deles, mas por um amor inspirado na caridade, amor este que prefere o bem público à vida de uma só pessoa. — Aliás, a morte imposta pelo juiz ao pecador é útil para este, pois se se converter lhe servirá de expiação para a culpa, e se não se converter porá termo à sua culpa tirando-lhe a possibilidade de pecar por mais tempo.
os pecadores precipitados no inferno" no sentido de que "serão precipitados". — Em segundo lugar, como desejo, de tal maneira que este não se refira à pena do homem, mas à justiça de quem castiga, conforme está escrito ( Ps. 57, 11 ): "Alegrar-se-á o justo quando vir a vingança". Pois o próprio Deus, quando pune, "não se alegra na perdição dos ímpios", como está dito no Livro da Sabedoria 1, 13, mas em Sua justiça: "pois Deus é justo, e ama a justiça" ( Ps. 10, 6 ). — Em terceiro lugar, enquanto o desejo se refere à eliminação da culpa, e não à pena (11). De tal maneira que os pecados sejam destruídos e os homens permaneçam.
Ao quarto argumento deve-se responder que amamos os pecadores, não porque queiramos o que eles querem, ou nos alegremos com o que os alegra: mas para fazer com que queiram o que queremos e se alegrem com o que nos alegra (12). Pelo que se lê em Jeremias 15, 19: "Eles se converterão a ti, e tu não te converterás a eles".
Ao quinto argumento responde-se que o convívio dos pecadores deve ser evitado pelos fracos, pois constitui para estes perigo iminente deixarem-se corromper. Quanto aos perfeitos (13), entretanto, cuja queda não é de se temer, é louvável que mantenham contato com os pecadores, para os converter. Assim, o Senhor comia e bebia com os pecadores segundo S. Mateus 9, 10-11. — Entretanto, o convívio dos pecadores deve ser evitado por todos, desde que signifique participação no pecado. Assim, está escrito em II Cor. 6, 17: "Retirai-vos do meio deles, e não toqueis no imundo", ou seja, a conformidade com o pecado (14).
NOTAS
(1) — S. Tomás trata, neste artigo, das disposições interiores que devemos ter em relação ao próximo. E para este efeito classifica os homens em dois grandes grupos, os justos e os pecadores. Como é obvio que devemos amar os justos, o assunto só dá margem a problemas no tocante ao amor que devemos ter aos pecadores.
Julgamos indispensável considerar, antes de prosseguir no estudo do texto do Doutor Angélico, a importância desta regra por ele estabelecida: o fato de alguém ser justo ou pecador influi a fundo na amizade que se lhe tem.
Como a isto se opõe o sentimentalismo brasileiro! Somos propensos a amar as pessoas porque nos tratam bem, porque nos são úteis, porque nos divertem, porque sua fisionomia nos agrada, porque estamos habituados há muito à sua companhia, porque são nossos parentes, etc., etc. E tal é em nosso ânimo o peso destas razões, que não tomamos na menor consideração um ponto essencial, que domina todo o assunto: esta pessoa é um justo ou um pecador?
Um mestre deve preferir os discípulos bem comportados, estudiosos, piedosos, a outros que, sem qualquer piedade, nem aplicação, nem disciplina, são exímios na arte de lisonjear e divertir os professores. Um pai deve preferir o filho bom, mas feio ou pouco inteligente a um filho brilhante, mas ímpio ou de vida impura. Entre os colegas, nossa admiração não deve ir para o mais engraçado, o de trato mais atraente, o mais rico ou o mais bem sucedido na vida, mas para o mais virtuoso. Não podemos dar a alguém o tesouro de nossa amizade sem saber se tal pessoa é, ou não, inimiga de Deus: o homem que vive em pecado grave é inimigo de Deus, e se amamos a Deus sobre todas as coisas não podemos amar indiferentemente os que O amam e os que O ofendem. O que diríamos de um filho que fosse amigo de pessoas que injuriam gravemente, injustamente, publicamente a seu pai? Pois é o que fazemos quando admitimos em nossa amizade apóstatas, fautores de heresia, gente desedificante, casais constituídos "no Uruguai", etc.
(2) — Amar não significa necessariamente sentir muita ternura, pois o verdadeiro amor reside essencialmente na vontade. Querer bem a alguém é querer seriamente para alguém tudo quanto segundo a reta razão e a fé lhe é bom: a graça de Deus e a salvação da alma primeiramente, e depois tudo quanto não desvie deste fim, antes a ele conduza. O amor se prova pelas obras. Pois se queremos seriamente o bem do próximo, externamos esta disposição de alma não só por palavras de afeto, e agrados - o que aliás é em si perfeitamente legítimo - mas ainda por meio de esforços e sacrifícios. Um tal amor deve ser votado também aos pecadores? É a questão de que trata aqui o Doutor Angélico.
(3) — A caridade é o amor de Deus acima de todas as coisas. A pergunta equivale pois a esta outra: uma vez que amamos a Deus sobre todas as coisas, devemos amar por amor de Deus os pecadores, que são Seus inimigos?
(4) — A natureza humana é obra de Deus, e, pois, é boa. Logo, em tese, devemos amar a todos os homens, ainda os que não são capazes de mérito nem culpa como as crianças que não chegaram à idade da razão, os loucos ou débeis mentais de nascença, etc. Neste sentido, devemos amar - isto é querer o bem - aos pecadores, pois também são homens. Devemos pois desejar-lhes todo o bem, não porém do mesmo modo que aos justos, como adiante se verá.
(5) — O texto de S. Lucas diz: "se alguém vem a Mim, e não aborrece a seu pai e mãe, sua mulher e filhos, seus irmãos e irmãs, e ainda mesmo a sua vida, não pode ser Meu discípulo". É um engano supor que Nosso Senhor não ensinou o ódio. Há um ódio santo, que é uma virtude evangélica. Um amor que não gerasse ódio não seria amor. Com efeito, se amo alguém devo odiar aquilo que lhe traz, não bem, mas mal. E é este ódio santo, seus motivos, sua natureza, seus limites, que neste capítulo magnificamente se ensina.
(6) — Estas palavras constituem excelente comentário da norma de Santo Agostinho, tão sábia e contudo tantas vezes mal entendida: odiar o erro, amar os que erram ( Dilige Hominem, oderis vitium: Sermo 49,5 - P. L. 38, 323; Oderit vitium, amet hominem: De Civ. Dei, 1. 14, c. 6; Cum dilectione hominum et odio vitiorum: Epist. 211, 11 - P. L. 33, 962 ). Procura-se muito freqüentemente interpretar esta máxima como se o pecado estivesse no pecador à maneira de um livro numa estante. Pode-se detestar o livro sem ter a menor restrição contra a estante, pois embora uma coisa esteja dentro da outra é-lhe totalmente extrínseca. De onde se poderia odiar o erro sem odiar de nenhum modo o que erra. Ora, a realidade é outra. O erro está no que erra como a ferocidade está na fera. Uma pessoa atacada por um urso não pode defender-se dando um tiro na ferocidade, mas poupando o urso e aceitando-lhe o amplexo dos braços largamente abertos! São Tomás se exprime com uma clareza meridiana. O ódio deve incidir não só sobre o pecado considerado abstrato como também sobre a pessoa do pecador. Todavia não deve atingir toda essa pessoa: poupará sua natureza, que é boa, as qualidades que eventualmente tenha, e recairá sobre seus defeitos, por exemplo sua luxúria, sua impiedade ou sua falsidade. Mas, insistimos, não sobre a luxúria, a impiedade ou a falsidade em tese, mas sobre o pecador enquanto pessoa luxuriosa, ímpia ou falsa.
(7) — Vê-se que odiar a iniqüidade dos maus é o mesmo que odiar os maus enquanto são iníquos. Odiar os maus enquanto maus, odiá-los porque são maus, na medida da gravidade do mal que fazem, e durante todo o tempo em que perseverarem no mal. Assim, quanto maior o pecado, tanto maior o ódio dos justos. Neste sentido, devemos odiar principalmente os que pecam contra a fé, os que blasfemam contra Deus, os que arrastam os outros ao pecado, pois odeia-os particularmente a justiça de Deus.
(8) — Não se trata de um ódio feito apenas de irascibilidade superficial. É um ódio ordenado, racional e, pois, virtuoso. Tal ódio "pertence à caridade". Assim, odiar reta e virtuosamente é ato de caridade! Como esta verdade chocaria um homem de "bom coração".
(9) - Os pecadores são aqui divididos em duas categorias: os que dão esperança de emenda, e os que não dão. Aos primeiros deve-se odiar enquanto pecadores e amar enquanto homens, no seguinte sentido: 1) deve-se fazer todo o possível para que deixem o pecado; 2) mas enquanto perseveram no mal devem ser odiados.
Como é freqüente, na vida quotidiana, ouvir-se lamentar em termos cheios de compaixão uma pessoa que perdeu a fortuna. Seus amigos e parentes movem-se todos para a auxiliar a recuperar os haveres. E como é raro ouvir-se alguém lamentar com tristeza ainda maior que seu parente ou amigo tenha perdido a virtude! Como é psicológica a comparação do Santo Doutor!
Fazer tudo para que alguém recupere a virtude não é, nem pode ser palavra vã. É preciso aconselhar, insistir, falar com carinho, com simpatia, com severidade, é preciso sobretudo rezar e fazer penitência por aqueles que desejamos reconduzir à graça de Deus. Pois sem a oração e a penitência nada se consegue.
Às vezes, expomo-nos ao risco de perder a amizade de um pecador, à força de insistência. Desde que esta seja criteriosa, não nos atemorizemos diante deste sacrifício, que Deus saberá considerar. Uma das mais altas provas de afeto que podemos dar a alguém consiste em sacrificar sua amizade para auxiliar sua salvação.
(10) — O pecador, em princípio, é sempre susceptível de emenda. Mas há pecadores tão aferrados ao mal que sua conversão só é de se esperar por uma graça muito especial. E como o muito especial é excepcional, evidentemente mais se deve recear que as almas nestas condições se percam, do que esperar que se salvem. E, de outro lado, é mais provável que arrastem outros ao pecado, do que se libertem das garras deste.
Estes pecadores continuam a merecer nosso amor, no sentido de que devemos rezar e sacrificar-nos para obter sua salvação, e não devemos deixar de os incitar à emenda. Mas não podemos ter com eles trato familiar e amistoso.
De resto, pelo mal que têm em si, e pelo risco a que expõem os inocentes, merecem a morte. O doutor Angélico dá disto a razão.
Até aí vai a severidade da doutrina da Igreja. E até aí vai também sua misericórdia. Pois aprovando a pena de morte quando justa, acompanha o condenado até o último momento, com suas preces, com as orações e sacrifícios das almas piedosas, e até de confrarias especialmente fundadas para tal.
(11) - Quantas pessoas são incapazes de compreender que devemos desejar castigos para os pecadores que amamos - doenças, perseguições, pobreza - se este for o meio para os emendar e reconduzir à graça de Deus! (12) - O pecador quer o pecado, os ócios e larguezas que favorecem sua dissipação. Se odiamos o pecado e queremos a conversão do pecador, devemos desejar que lhe faltem todos os meios necessários para pecar. Assim, devemos apoiar todas as autoridades eclesiásticas, familiares, sociais, políticas, que trabalham por eliminar o que conduza os súditos ao pecado: má imprensa, mau radio, cinemas e teatros imorais, propaganda de doutrinas opostas à da Igreja, etc.
(13) — "Enfermo" ou "fraco" é aqui o homem que por motivos especiais é particularmente sujeito ao pecado, e para quem constitui ocasião próxima o que para o comum das pessoas não o é. "Perfeito" é quem está em tal grau de virtude que arrosta obstáculos maiores que os do homem comum.
Em princípio, ninguém pode expor-se voluntariamente a ocasião próxima de pecado. E se em circunstâncias muito excepcionais uma pessoa reputada - não por si mesma, mas por um prudente diretor - especialmente forte arrosta riscos invulgares, é porque, no fundo para ela a ocasião de pecado não é próxima.
(14) — Deve-se evitar o convívio de pessoas de má vida, de costumes depravados, a freqüentação de lugares indecentes, pois nisto vai para quase todos uma ocasião próxima de pecado, e para todos uma coonestação do mal e um escândalo para os bons.

(Revista "Catolicismo" Nº 35 - Novembro de 1953)


Vez por outra o Dr. Plínio Corrêa de Oliveira dissertava sobre um tema correlato, o da Bondade, como o fez ao escrever artigo para o "Legionário":
"Ocupa lugar de destaque nessa triste galeria de verdades diminuídas, de virtudes amesquinhadas, de sofismas interiores mais ou menos conscientes e mais ou menos covardes, a noção que habitualmente se tem de "bondade".
Segundo a opinião corrente, o que é uma pessoa boa? Esse conceito é eminentemente variável. O que se exige de uma boa senhora não se exige de um bom ancião; o que se exige de uma boa criança não se exige de um bom moço. A moral, para a grande maioria de nossos contemporâneos, varia quase completamente segundo a situação de cada qual, e, não raras vezes, o que em uma pessoa, em uma senhora, por exemplo, seria tido como imperativo preceito de moral, em um moço parecerá ridículo e desprezível defeito. A bondade, pois, segundo esses censuráveis conceitos, varia conforme o sexo e a idade. Vejamos rapidamente alguns perfis de pessoas habitualmente tidas por "muito e muito boas”.
Antes de tudo, o conceito de "bom rapaz". Não há, talvez, expressão de que tão freqüentemente se abuse. Verificando-se a que série incontável de indivíduos ela é dada, fazendo-se o levantamento dos defeitos que um rapaz pode ter, sem por isto deixar de ser "bom" segundo a opinião corrente, vê-se de imediato que, desde que ele não tenha matado, ferido ou espancado gravemente alguém, desde que não tenha roubado pelo processo do arrombamento, desde que não tome tóxicos, é qualificado de bom. Pode esse rapaz esbanjar criminosamente sua mocidade arrastando-a pelos mais miseráveis antros da cidade, são... rapaziadas. Pode ele ter os vícios os mais lamentáveis, como por exemplo do jogo: se ele ainda não perdeu a fortuna na roleta, ou a embriaguez ainda não lhe arruinou a saúde, tudo isto não passará de aprazíveis "rapaziadas". Pode ele, ainda, praticar as mais censuráveis leviandades no terreno sentimental, como seja de alimentar esperanças e provocar decepções, movido apenas pela vaidade e pelo capricho; tudo isto será muito engraçado, terá seu "inegável pitoresco", será típico de um jovem que não queira passar por inteiramente desinteressante.
Evidentemente, segundo essas abomináveis regras de moral, há restrições a estabelecer. Um moço que contraia imprudentemente um noivado com o intuito de jamais cumprir sua promessa de casamento fará uma coisa muito engraçada. Mas se a vítima da aventura, em vez de ser uma pessoa estranha aos adeptos dessa singular moral, for pelo contrário uma filha, uma irmã, uma parente, tudo isso passará a ser qualificado infalivelmente de genuína crapulice. Um moço que, a título de "rapaziada", arme um "rolo", fará algo de muito divertido. Mas se, durante o "rolo" ferir alguém gravemente, o que em qualquer "rolo" pode suceder, e com isto andar às voltas com a polícia, deixará de ser tido como um "bom rapaz" para ser um "indivíduo que até tem ficha na polícia". Em última análise, tudo isto reverte em uma adoração do êxito. Tudo aquilo que não teve mau êxito será desculpável, por pior que seja. Tudo aquilo que tem mau êxito será censurável. Tudo o que não fere os interesses pessoais é jocoso e interessante. Tudo o que os fira será censurável e digno de condenação.
Essa moral tem, evidentemente, também sob outros pontos de vista, suas contradições. Um comerciante, ferido às vezes por circunstâncias imprevistas e invencíveis, pede falência: foi um homem que não pôde cumprir a palavra dada aos credores, e, por isto, em torno dele se estabelece um ambiente de reprovação.
Um homem vai ao altar, jura manter uma fidelidade plena a sua esposa, sabe perfeitamente que não obteria o consentimento desta para o casamento se ela soubesse que tal juramente não é sincero, e, tudo isto ponderado, casa-se. Depois, rompe o compromisso assumido, e isto por um ato libérrimo de sua vontade. Mas contra esse só existe a reprovação dos parentes de sua esposa, os quais acham muito natural que outros façam o mesmo com pessoas que lhes são perfeitamente estranhas.
Na moral comercial, presenciam-se aberrações do mesmo jaez. Um indivíduo pode impunemente ocultar os defeitos da mercadoria por ele fornecida, elevar desmesuradamente ou abaixar injustamente os preços, armas "trusts" e lançar ao desemprego centenas ou milhares de empregados: tudo isto é lícito. Mas ai dele se roubasse um cigarro ou um charuto em casa de algum amigo!
E assim por diante, vê-se como a moral mundana é inteiramente vã, representando apenas a sobrevivência de alguns vagos princípios de moral católica.
Em ocasião passada, vimos o que se deve pensar do "carola". Por mais que esse tipo seja risível, como não o achar admirável em comparação dos sacripantas que tão freqüentemente o mundo canoniza como "bons"?
(Legionário", 27 de julho de 1941- in revista "Dr. Plínio", de setembro de 2002)

Escrevendo anos depois para a “Folha de São Paulo”, Dr. Plínio assim se expressou a respeito do mesmo assunto, embora trate de outros temas correlatos, mas que têm estreita ligação com a Bondade:
“- “Bondade”: segundo o sofisma moderno, quem é bom jamais faz sofrer os outros. Ora, o esforço faz sofrer. Logo, só é bom quem não pede esforço a outrem. A civilização cristã, pelo contrário, modelou os povos do Ocidente conforme o princípio de que o esforço é condição essencial para a dignidade, o decoro, a boa ordem e a produtividade da vida. Se “bondade” é, em todos os campos, abolir o esforço, não é implicitamente privar a vida de valores sem os quais ela não é digna de ser vivida? E então, esta hipertrofiada “bondade” não constitui o pior malefício?
- “Amor à criança”: segundo essa “bondade” adocicada e desfibrada, o amor à criança consiste em dispensá-la de todo esforço. Isto se pretende conseguir por mil técnicas, cujo efeito seria instruir e formar a criança sem nenhum sacrifício para esta. O aferramento a esta idéia vai a ponto de condenar as punições escolares porque fazem sofrer os culpados, e a condenar os prêmios porque podem dar complexos aos vagabundos. Dado que, segundo a tradição cristã e o simples bom senso, um dos fins essenciais da educação é formar para a luta da vida através do hábito do esforço e do sacrifício, o que é esse “amor à criança” senão uma cruel deseducação?
- “Simplicidade”, “despretensão” : simples seria quem prefere as coisas que não exigem muito gosto, nem muito esforço. Despretensiosa seria a pessoa que sente bem-estar em ser vulgar. A “simplicidade” e a “despretensão” vão invadindo mais e mais os costumes de jovens e adultos. As regras da polidez e do trato, o modo de organizar uma casa, de receber, de se vestir, de falar, vão ficando sempre mais “simples” e “despretensiosos”. Decoro, brilho, qualidade, classe, prestígio, são valores do espírito dia a dia menos aceitos”.
(“Folha de São Paulo”, 20.03.69)

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