quarta-feira, 12 de maio de 2010

O PAPEL DO PAPADO NO RELACIONAMENTO ENTRE AS NAÇÕES

INTERVENÇÃO DO SECRETÁRIO PARA AS RELAÇÕES DA SANTA SÉ COM OS ESTADOS, D. JEAN-LOUIS TAURAN, NO PONTIFICADO DE JOÃO PAULO II

A ética e a ordem mundial: a contribuição específica da Santa Sé

Comunicado da Secretaria de Estado sobre o assassinato do Núncio Apostólico em Burundi (29 de dezembro de 2003)

Referindo-se à atividade internacional do atual Pontificado(*), um autor francês e peço desculpa se tomo a liberdade de começar, vangloriando-me dos "produtos" da minha terra de origem observava com acuidade, na minha opinião, que a diplomacia do Vaticano, questionada na época do Concílio Vaticano II, tinha adquirido uma nova justificação para trabalhar num mundo em que "o sentido acusa um atraso em relação ao poder" (Z. Laidi, "L'ordre mondial relâché", em: Etudes Julho-Agosto de 1992, pp. 5-11).
Falar de ética e de ordem mundial não é senão, pelo menos assim me parece, voltar a equilibrar precisamente esta confusão entre o "sentido" e o "poder". Nas grandes questões contemporâneas sobre o destino histórico do homem, as lutas pelos direitos humanos, pela justiça e pela paz, a mensagem de salvação que as Igrejas cristãs são chamadas a transmitir em nome de Jesus Cristo é constituída de um sentido e de uma contribuição insubstituíveis para a ordem dos princípios ético-políticos, que se encontram no fundamento de uma ordem mundial harmoniosa.
No termo destes dias de reflexão sobre o contributo da Igreja para uma certa moralidade internacional, na minha posição de Secretário para as Relações da Santa Sé com os Estados, gostaria de vos explicar a contribuição específica da diplomacia pontifícia neste âmbito.
1. Como bem sabeis, a Igreja católica romana é a única confissão religiosa que tem acesso às relações diplomáticas. E ela deve isto, em primeiro lugar, à sua estrutura organizativa, claramente universal: não super-nacional mas, antes, transnacional. Deve-o, portanto, também ao seu Chefe, o Pontífice romano que, a partir do momento da sua eleição em conclave, goza de uma personalidade internacional. Deve-o, além disso, à sua história, que viu o Papado tornar-se o centro das nações do Ocidente cristão. É suficiente pensar na época da Res Publica Christiana, ou então no período em que o Sumo Pontífice pronunciava arbitragens e promovia a paz em nome do jus gentium christianorum. Poder-se-iam recordar também, em jeito de exemplo, as suas mediações internacionais nas disputas entre a Espanha e Portugal, relativas aos territórios do novo mundo.
Ao longo dos séculos, a subjetividade internacional da Santa Sé sobreviveu às tormentas da reforma protestante, da revolução francesa e da anexação italiana. A tal ponto que, graças à personalidade que lhe é reconhecida, a Santa Sé pode exercer, mesmo nos dias de hoje, uma presença ativa nas relações internacionais, de modo particular no contexto da diplomacia bilateral e multilateral. E fá-lo através de uma rede de relações diplomáticas, que a põe em contacto com os seus Representantes junto da Organização das Nações Unidas e de outras Organizações governamentais.
2. Todavia, tudo o que foi dito até agora não deve induzir à tentação de assimilar a Santa Sé e a sua ação internacional à obra de um Estado, com ambições de poder.
Sem dúvida, a Santa Sé constitui um sujeito soberano de direito internacional, mas de natureza claramente religiosa. Ela tem certamente um poder, mas trata-se de um poder moral. Por conseguinte, a sua "estratégia", se quisermos recorrer a esta expressão, consiste sobretudo em realçar e em dar voz à consciência das pessoas e dos povos em geral. É por este motivo e não por ambições de poder que ela mantém um diálogo franco e cordial com os governantes. Dirigindo-se às consciências, ela promove os princípios, sem os quais não se pode falar de uma "comunidade das nações".
Portanto, permiti-me evocar tais princípios, que constituem uma espécie de "corpus" da moral internacional.
a) Em primeiro lugar, a centralidade da pessoa humana e, por conseguinte, dos seus direitos.
A Santa Sé compromete-se a recordar e se for necessário a defender o primeiro de todos os direitos humanos: o direito à vida, em todas as fases do desenvolvimento biológico da pessoa, até à sua morte natural.
Todos nós conhecemos o impressionante Magistério de João Paulo II em favor da vida e da família. Entre outros, ele inspirou a ação das Delegações da Santa Sé nas importantes Conferências internacionais, promovidas pela Organização das Nações Unidas, ao longo dos anos passados: em 1992, na Conferência do Rio de Janeiro, sobre: O meio ambiente e o desenvolvimento; em 1993, na Conferência de Viena, sobre: Os direitos humanos; em 1994, na Conferência do Cairo, sobre: A população e o desenvolvimento; em 1995, na Conferência de Pequim, sobre: A mulher; em 1996, na Conferência de Istambul, sobre: O habitat; e em 2000, na Conferência de Joanesburgo, sobre: O desenvolvimento sustentável.
Se os instrumentos jurídicos internacionais proclamam solenemente o direito fundamental à vida por exemplo, o art. 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem ou, ainda, o art. 6 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos não podemos deixar de deplorar numerosas leis nacionais, indicações internacionais e investigações biomédicas, que põem em perigo a vida humana. Basta pensar nas leis relativas ao chamado "direito ao aborto", nas experiências realizadas com os embriões e na liberalização da eutanásia. Nos seus contactos com os responsáveis da comunidade internacional, a Santa Sé nunca cessou de recordar que a vida constitui um dom que provém do Outro e que, portanto, é sagrada.
Afirmando isto, ela deseja falar também em nome de todos os cristãos, e inclusivamente dos homens de boa vontade. Além disso, ela quer sublinhar o facto de que o direito à vida é o fundamento de todos os outros direitos, que lhe estão também a peito: o direito à liberdade de consciência e de religião, à educação, ao trabalho, ao desenvolvimento humano, etc.
No sábado, dia 17 de Maio, por ocasião do VII centenário de fundação da Universidade "La Sapienza" de Roma, o Santo Padre repetiu que os direitos fundamentais não derivam do Estado, nem de qualquer outra autoridade humana, mas da própria pessoa. Além disso, recordou que o seu Predecessor, o Papa João XXIII, na Encíclica Pacem in terris, convidou os poderes públicos a "reconhecer, respeitar, definir, tutelar e promover" estes direitos, que derivam da própria natureza humana e, por este motivo, são universais, invioláveis e inalienáveis.
Obviamente, conheceis a insistência com que a Santa Sé sempre defendeu a liberdade de consciência e de religião, não apenas como liberdade de culto, mas também como possibilidade para os crentes participarem na vida social e política do país de que são cidadãos, mas sempre como membros de uma comunidade de fé. Muitas vezes o Papa João Paulo II, recordando a sua experiência polaca, experimentou que quando a liberdade de religião é suprimida, na realidade passam a ser ameaçadas todas as outras liberdades fundamentais.
Em síntese, pode afirmar-se que a Santa Sé se opõe a qualquer visão unidimensional do homem e propõe outra, que é aberta às suas componentes individual, social e transcendente.
b) Outro campo de ação da Sé Apostólica diz respeito à promoção e à salvaguarda da paz.
Não é necessário que me prolongue a respeito da convicção com que os Sumos Pontífices rejeitam a guerra, como solução para as controvérsias entre os povos.
Por ocasião da recente crise iraquiana, o Papa João Paulo II e os seus colaboradores recordaram que cada um dos Estados tem o dever de proteger a sua própria existência e liberdade, com meios proporcionais, contra um injusto agressor. Para além do caso da legítima defesa, que justifica o recurso às armas, para resolver as contendas devem preferir-se sempre os instrumentos do diálogo e da mediação, como a arbitragem de terceiros, que sejam imparciais, ou de uma autoridade internacional munida de suficientes poderes. Com efeito, a experiência tem mostrado que a violência gera mais violência. Recordareis a exclamação do Papa, durante a primeira guerra do Golfo: "A guerra é uma aventura sem retorno!". Ou, ainda, há poucos meses: "A guerra é sempre uma derrota para a humanidade!".
Por conseguinte, a Santa Sé sempre encorajou os esforços realizados com vista a alcançar um desarmamento efetivo, que vá para além da dissuasão, fundamentada no equilíbrio do terror. Para apoiar moralmente o compromisso neste sentido, em 1971 ela não hesitou em assinar o Tratado de não-proliferação nuclear; em 1993, aderiu ao Tratado contra a produção, o desenvolvimento e o uso das armas químicas; e em 1997, aderiu ao Tratado que proíbe as minas anti-homem. E tudo isto para encorajar uma autêntica cultura da paz.
A Santa Sé está persuadida de que o poder destruidor e os sofrimentos causados por estas armas as tornam tão perigosas, que a utilização das mesmas provavelmente causa danos que são muito maiores do que o mal que procuram eliminar. Além disso, não se deve esquecer que a corrida dos armamentos, longe de eliminar as causas da guerra, corre o risco de as agravar ainda mais. O recurso a riquezas enormes para a preparação de armas sempre novas impede o socorro às populações indigentes e obstaculiza o desenvolvimento dos povos. Armar-se exageradamente multiplica as causas dos conflitos e aumenta o risco da sua propagação (reconhecereis nisto o ensinamento do Catecismo da Igreja Católica, contido no n. 2315).
c) Todavia, a paz é muito mais do que ausência de conflitos. Ela fundamenta-se numa ordem social e internacional, assente sobre o direito e a justiça. O Papa João Paulo II exclamou muitas vezes: "Não há paz sem justiça!". Cada país tem o dever de assegurar aos seus cidadãos a satisfação de algumas necessidades fundamentais, como por exemplo, a alimentação, a saúde, o trabalho, o alojamento e a educação.
Como recorda o n. 76 da Constituição Apostólica Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, "a Igreja contribui para alargar o campo de acção da justiça e do amor, no interior de cada um dos países e entre todas as nações".
A Santa Sé está também convencida de que cada um dos países tem o dever de respeitar os princípios consuetudinários do direito internacional e as convenções a que livremente aderiu. Sem direito não existem ordem e, muito menos, liberdade e paz.
Durante a crise iraquiana, a Santa Sé afirmou que não compartilha o princípio da "guerra preventiva" conceito inventado "ad hoc" e pediu que se respeitasse o conteúdo da Carta da Organização das Nações Unidas, de modo particular do seu capítulo VII, que define os critérios de comportamento, em caso de ameaças ou de agressões contra a paz.
Com efeito, a comunidade internacional elaborou e codificou uma série de direitos e deveres que já constituem uma parte do património comum da humanidade. À custa de sacrifícios enormes, a comunidade internacional adquiriu um corpus jurídico consistente e pormenorizado que, se tivesse sido aplicado nestes últimos anos, em conformidade com a antiga máxima latina "pacta sunt servanda", teria poupado muito derramamento de sangue e evitado numerosas crises internacionais.
A Santa Sé sempre manifestou o seu apreço pelo direito internacional e frequentemente colaborou para a redação de Convenções que muitas vezes o renovaram. Penso, por exemplo, nalguns conceitos como o dever da intervenção humanitária ou os direitos das minorias.
Além disso, os Papas nunca hesitaram em exprimir a sua estima pela Organização das Nações Unidas. Penso em Pio XII e em João XXIII, mas sobretudo em João Paulo II que, na sua última visita, em 1995, por ocasião do 50º aniversário de fundação da Organização das Nações Unidas, a definiu como "o maior de todos os instrumentos de síntese e de coordenação da vida internacional", realçando que a sua atividade condiciona a cultura e a ética internacionais. Em seguida, formulou votos a fim de que a Organização... se eleve cada vez mais, do estádio de uma instituição insensível de tipo administrativo, ao nível de um centro moral em que todas as nações do mundo se sintam em casa, desenvolvendo a sua consciência comum de serem, por assim dizer, uma família de nações... Por sua natureza, a família é uma comunidade fundamentada na confiança recíproca, na ajuda mútua e no respeito sincero; numa família autêntica não existe o domínio dos mais fortes: pelo contrário, os membros mais frágeis são, em virtude da sua debilidade, duplamente acolhidos e servidos". Na minha opinião, são palavras que revestem uma importância particular no contexto internacional contemporâneo.
Somente uma rigorosa aplicação do direito, por parte de todos e em cada uma das circunstâncias, pode impedir que o indivíduo mais frágil se torne vítima da má vontade, da força e das manipulações dos mais fortes. Por conseguinte, a Santa Sé compromete-se em ordem a fazer com que a força da lei prevaleça sobre a lei do mais forte.
d) Num mundo "globalizado como se costuma dizer onde a solidariedade e o princípio de subsidiariedade pertence à ordem do dia, ninguém se admirará que a Igreja católica nutra apreço pela democracia. A paz e a convivência civil são sempre gravemente ameaçadas pelas diferentes expressões de um poder totalitário, pela obsessão da segurança, pela ideologia, pela procura de privilégios para determinadas categorias de cidadãos. E o século que há pouco chegou ao seu termo ensina-o com eloqüência.
Todos nós conhecemos o papel desempenhado pelo Papa João Paulo II na evolução dos países da Europa Central e Oriental, rumo à democracia. O seu Magistério explicou como este sistema político corresponde à aspiração dos indivíduos a participarem na vida política e social do país de que são cidadãos. Este sistema de governo faz também com que os responsáveis da sociedade fossem obrigados a justificar aos seus compatriotas aquilo que diziam e o que faziam. Democracia significa sempre participação e responsabilidade, direitos e deveres. Todos nós recordamos o rico ensinamento contido na Carta Encíclica de João Paulo II, Centesimus annus.
3. Esta síntese dos grandes princípios que orientam a ação internacional realizada pela Santa Sé e que traduzem, de maneira concreta, a doutrina social da Igreja católica, parece-me explicar esta contribuição ética para a ordem mundial, que constituiu o objeto da vossa reflexão.
Mas diria também que se trata de uma mensagem profética; e explico-me: o Papa João Paulo II está profundamente convicto de que os males que afligem a sociedade internacional contemporânea não são uma fatalidade. Na sua opinião, cada um de nós pode desenvolver em si mesmo a potencialidade de fé, de probidade, de respeito pelo próximo, de dedicação ao serviço dos outros e, portanto, resolver situações de injustiça e de conflito. Obviamente, uma grave responsabilidade pesa sobre aqueles que, governando as sociedades, são chamados a servir o bem comum.
Por este motivo, no começo do corrente ano, por ocasião do tradicional discurso de bons votos ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, o Santo Padre recordava que "a indispensável competência profissional dos responsáveis políticos não pode ser legitimada, a não ser por uma firme referência a fortes convicções éticas. Como se poderia pretender tratar assuntos do mundo, sem fazer referência a este conjunto de princípios que estão na base daquele "bem comum universal", do qual a Encíclica Pacem in terris do Papa João XXIII tanto falou? Será sempre possível para um dirigente, coerente com as suas convicções, recusar-se perante as situações de injustiça ou os desvios institucionais, ou pôr-lhe termo" (n. 6).
4. Concluindo, gostaria de dar novamente a palavra ao Sumo Pontífice que, nessa mesma circunstância, referindo-se à precariedade da situação mundial no início deste novo milênio, não hesitou em dizer aos Diplomatas que "tudo pode mudar. Isto depende de cada um de nós. Cada qual pode desenvolver em si o seu potencial de fé, de honradez, de respeito pelo próximo, de dedicação ao serviço dos outros" (Ibid., n. 3).
Em seguida, o Papa indicou alguns imperativos:
sim à vida; respeito pelo direito; dever da solidariedade.
Para o Santo Padre, isto exige a coragem da coerência, ou seja, o saber ir contra a corrente, dizendo:
não à morte; não ao egoísmo; não à guerra.
Não é este, porventura, o núcleo da presente Assembleia?
Pela última vez, recorro ainda às palavras do Santo Padre.
No ano de 1995, dirigindo-se novamente aos membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, ele esclareceu que "a razão de ser da Santa Sé, no seio da comunidade das Nações, consiste em constituir a voz que a consciência humana espera, sem por isso diminuir a contribuição das outras tradições religiosas".
Este serviço da consciência é inclusivamente a única ambição da diplomacia pontifícia: convencer as pessoas que são responsáveis pelas sociedades, de que a violência, o medo, a repressão, o mal e a diferença não podem ter a última palavra. Quem tem uma certa familiaridade com o cristianismo não ficará surpreso: com efeito, o cristão não acredita na fatalidade da história, mas sabe que, com a ajuda de Deus, o homem pode mudar o curso dos acontecimentos do mundo.

(*) À época, João Paulo II.

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