domingo, 23 de outubro de 2022

VÁRIOS EXEMPLOS DOS SANTOS E PESSOAS VIRTUOSAS (IV)


 

Da vida de Santo André e sua poderosa intercessão

 

Um ancião escravo da luxúria há mais de setenta anos

Um ancião chamado Nicolau apresentou-se perante Santo André e lhe disse:

- Senhor, fazem setenta anos que estou entregue à luxúria. Tenho crido no Evangelho, tenho orado a Deus pedindo-lhe a graça da continência, mas até agora nada tenho conseguido; meus hábitos inveterados e o aguilhão da concupiscência têm feito pouco caso com meus bons propósitos quantas vezes os tenho formulado. Certo dia, impulsionado por meu apetite e sem dar-me conta de que levava comigo uns "evangelhos", fui até um lupanar; quando acabei de entrar a meretriz me expulsou de sua casa dizendo-me: "Sai daqui imediatamente, velho! Tu és um anjo de Deus; não me toques; não te atrevas a aproximar-te de mim! Vejo em teu redor coisas maravilhosas!"  Ao ouvir falar assim a rameira fiquei estupefato; mas logo lembrei que levava comigo os "evangelhos".  Te rogo, pois, santo de Deus, que rezes piedosamente por mim e peça ao Senhor que me livre deste vício e salve minha alma.

Ouvindo isto, o bem-aventurado André começou a chorar e a rezar; desde a hora terça até à nona permaneceu prostrado em oração. Quando terminou suas súplicas  elevou-se do chão, mas não quis comer, senão que disse: "Não provarei bocado até que saiba que o Senhor tem perdoado misericordiosamente a este ancião".  Cinco dias seguidos jejuou. Ao cabo destes dias ouviu uma voz que lhe disse: "André, te foi concedido o que tens pedido para este velho; porém dize-lhe que para que se salve deverá macerar seu corpo com jejuns tão rigorosos como os que tu tens feito".

Seis meses seguidos jejuou a pão e água o ancião; ao término do sexto mês, cheio de boas obras, faleceu. Tão logo morreu o velho, novamente ouviu André a voz que seis meses antes ouvira; porém desta vez lhe dizia: "Havia perdido a Nicolau, graças a tuas orações o recuperei definitivamente”.

 

Um bispo é tentado e salvo por Santo André

Conta-se que houve um bispo de vida muito virtuosa e tão devoto de Santo André que antes de iniciar qualquer obra de alguma entidade encomendava-se a ele rezando esta jaculatória: "Pela honra de Deus e de Santo André, etc;"  Mas o antigo inimigo, invejoso da piedade do referido prelado, adotou a aparência de uma belíssima dama e se apresentou em seu palácio com o pretexto de que desejava confessar-se com ele. O bispo lhe argumentou que procurasse o confessor em quem tinha delegadas suas faculdades em relação com o sacramento da penitência. A mulher insistiu em suas pretensões e fez saber ao bispo que a ninguém mais que ele manifestaria os segredos de sua consciência. Em vista disto o referido prelado acedeu em ouvir em confissão à suposta penitente.

- Te rogo, senhor - disse a dama, ao iniciar a manifestação de seus pecados ao bispo - que tenhas misericórdia de mim e me escutes com paciência. Como vês, sou jovem; pertenço a uma família de reis; desde minha infância tenho vivido num ambiente  de delícias.  Vim até aqui, só e disfarçada sob este hábito de peregrina, pela seguinte razão: o poderosíssimo rei, meu pai, pretende casar-me com um grande príncipe; tenho procurado fazer-lhe ver que sinto horror pelo matrimônio, que tenho consagrado perpetuamente minha virgindade a Cristo, que nunca faltarei a meu compromisso e que jamais concordarei em manter relações carnais com homem algum. A tudo isto meu pai me tem respondido que se não me caso com o príncipe a quem me tem prometida me trancará por toda vida num cárcere e me submeterá a horríveis suplícios e torturas. Como sei que ele é capaz de cumprir o que diz e de levar a cabo suas terríveis ameaças me esforcei como pude para fugir da corte sem que ninguém me visse, porque prefiro viver desterrada a faltar à palavra empenhada a meu esposo Jesus Cristo.  Havia eu ouvido falar muito de tuas virtudes; por isso, uma vez fora de minha casa e de minha terra, decidi vir a ver-te  para expor-te meu problema, solicitar tua proteção e pedir-te ajuda sob as asas de tua piedade. Espero, pois, senhor, que me acolhas benignamente e me proporcione algum rincão de teu palácio que me sirva de asilo e em que possa entregar-me ao silencioso ofício da contemplação, manter-me afastada dos ruídos  e agitações do mundo, e salvar minha alma dos perigos da vida deste século.

O bispo, admirado ante a nobreza daquela senhora de tão elevada estirpe, tão jovem, tão bela, tão fervorosa e tão espiritual e tão eloqüente em suas palavras , com voz doce e bondosa atenção lhe disse:

- Filha minha, não temas.  Tranqüiliza-te. Aquele que por cujo amor fostes capaz de renunciar a ti, a tua família, a teus bens e grandezas, premiará teu sacrifício, te concederá o máximo de sua graça nesta vida e depois a plenitude da bem-aventurança eterna. Eu, seu humilde servidor, ponho à tua disposição minha pessoa, minha casa e quanto sou e tenho. Escolhe as habitações de meu palácio que mais te agradem, acomoda-te nelas e permanece nesta cidade todo o tempo que queiras. Aqui estarás segura. Hoje desejo que te sentes à minha mesa.

- Pai, - respondeu a dama - não posso aceitar este oferecimento teu.  Eu te pedia meramente um rincão onde possa viver isolada e oculta, mas não uma hospitalidade semelhante à que me ofereceu. Compreende meus temores a tanta generosidade. Se aceitasse ao que me propões e me sentasse à tua mesa, e o povo se inteirasse de que aqui, sob teu teto, reside uma mulher, poderia sofrer detrimento a boa fama de que gozas.

- Desfaça teus temores, filha - replicou-lhe o bispo. Nesta casa não estaremos somente tu e eu. Aqui vive muita gente; não haverá, pois, perigo de que surjam murmurações.

Chegada a hora da comida passaram ao refeitório. O bispo e a dama se sentaram frente a frente, ocupando cada qual uma das cabeceiras da mesa; nos assentos das bandas de um e de outro lado acomodaram-se os outros comensais. O prelado, desejoso de atender a sua convidada, olhava-a com freqüência a fim de que nada lhe faltasse. Cada vez cravava os olhos com mais insistência em seu semblante, considerando detidamente a perfeição e beleza de suas feições, e quanto mais a contemplava, mais enlanguescia seu espírito, porque, enquanto mantinha sua vista cravada no rosto dela, o antigo inimigo da espécie humana mais profundamente enterrava seus venenosos dardos no coração do prelado, mostrando-lhe a refulgente formosura da dama. O bispo, à borda já do naufrágio, começou interiormente a traçar um plano para conseguir estar com ela tão pronto quando se apresentasse alguma oportunidade adequada.  Nisto, um peregrino chamou à porta do palácio com fortes batidas e dizendo com altas vozes que lhe abrissem, e como não acudiam a abri-lhe insistiu em seus golpes cada vez mais estrondosos e em seus gritos, também cada vez mais altos. Enfim o bispo perguntou à sua convidada:

- Te parece bem, senhora, que abramos a esse importuno?

- Melhor seria - respondeu ela - que antes de lhe abrir a porta perguntássemos alguma questão complicada para ver se sabe solucioná-la. Se responde satisfatoriamente a ela demonstrará ser pessoa discreta e digna de que se lhe abra; se não sabe responder entenderemos que se trata de algum ignorante e não se lhe permitirá que venha a estas horas molestar um bispo.

A todos os comensais pareceu boa a sugestão da dama. Seguidamente o prelado convidou a seus amigos que propusessem a pergunta que deveriam fazer ao forasteiro que continuava chamando à porta, e como todos, um após outro, se escusassem alegando falta de idéias, o bispo, dirigindo-se à senhora, lhe disse:

- Quem, entre os presentes, em melhores condições do que vós, senhora, que a todos nos superais em eloqüência, discrição e sabedoria, para propor a questão que devemos apresentar ao inesperado visitante?  Sugeri a que vos pareça.

A dama aceitou e propôs esta:

- Pergunte-se-lhe que é o mais maravilhoso que Deus fez numa coisa pequena.

Um criado do bispo, de dentro e sem abrir a porta, formulou a pergunta ao peregrino e voltou com esta resposta:

"A variedade e excelência dos rostos: entre tantos homens como têm existido desde o princípio do mundo e existirão até o último dia, não houve e nem haverá dois cujos rostos sejam completamente iguais; e, sem embargo, em algo tão reduzido como a face de uma pessoa, o Senhor colocou todos os sentidos do corpo humano".

Os comensais, unanimemente, reconheceram que a resposta era interessante, verdadeira e satisfatória. Porém a mulher disse:

- Proponhamos-lhe uma segunda questão mais complicada que nos permita julgar melhor sobre sua prudência e conhecimentos. Ver se sabe dizer-nos onde está por cima do firmamento a terra?

Eis aqui o que respondeu o peregrino:

"No céu empíreo, porque nele se acha atualmente o corpo de Cristo, que é da mesma natureza que o nosso, e, portanto formado do barro da terra. Como o corpo do Senhor de terra foi feito, terra é; e como se encontra no mais alto dos céus, ou seja, muito por cima do firmamento, segue-se que aí precisamente, no céu empíreo, é onde a terra está por cima do firmamento".

Os convidados amigos do bispo deram por muito boa a resposta e louvaram a sabedoria  do forasteiro.  A dama, sem embargo, propôs:

- Apresentemos-lhe um terceiro e último problema mais difícil que os anteriores; se conseguir resolvê-lo aceitaremos definitivamente  que se trata de um sujeito autenticamente discreto e sábio e que merece ser recebido. Pergunte-se-lhe que distância mede entre a terra e o céu.

O peregrino respondeu ao portador da pergunta:

"Volta à sala e diz a quem te mandou que me fizesse esta pergunta, que a resposta a conhece ele muito bem, posto que a sabe por experiência; ou deveria sabê-la, já que teve ocasião de medi-la quando foi expulso da glória e caiu precipitado no fundo do abismo. Eu, ao contrário, não passei por isso. De passagem, diz a teu senhor o bispo que a pessoa que sugeriu que me formulasse esta e as outras questões não é o que parece, senão que é um demônio disfarçado de mulher".

O mensageiro, assustado, regressou ao refeitório e repetiu diante de todos quanto o peregrino acabava de dizer-lhe; mas, antes que terminasse de transmitir o recado, que os ouvintes escutaram estupefatos, a suposta dama repentinamente desapareceu. Então foi quando o bispo compreendeu a subversão que pouco antes havia sentido em sua alma e os maus pensamentos  e desejos que a haviam assaltado; se arrependeu deles sinceramente, pediu insistentemente perdão a Deus e enviou novamente seu criado à porta, esta vez para que dissesse ao peregrino o que se passara; porém o peregrino já não estava ali e, por mais que o procurassem pelas ruas da cidade, não puderam achá-lo. O prelado convocou o povo, referiu publicamente quanto havia ocorrido e rogou a todos que com jejuns e orações suplicassem ao Senhor que se dignasse comunicar a alguém quem havia sido realmente o misterioso forasteiro que bateu à sua porta e lhe livrado de um gravíssimo perigo. Aquela mesma noite, o bispo conheceu por revelação que o forasteiro havia sido Santo André.[1]

 

(Extraído de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs. 183/187. Desejando o texto integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )



[1] "La Leyenda Dorada" - vol. I - págs. 30/36.

 


Nenhum comentário: