sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A LEGITIMIDADE DO PODER DE REGÊNCIA POLÍTICA



A priori todo e qualquer poder de regência provém de Deus, sendo Ele o Regedor único e universal de todos os seres. Inclusive a regência dos povos através da política. No entanto, a regência divina não é imperativa e absoluta, para ser perfeita ela pede a colaboração e participação dos regidos. Quando esta co-participação da regência (ou co-regência) existe apenas entre os homens, ela adquire algo de legitimidade, de caráter meramente humano, mas não é perfeita. Não há perfeição sem Deus.
Os povos antigos, que se regiam segundo suas tradições e escolhiam seus chefes entre os patriarcas, quando se afastavam de Deus, logo, logo, perdiam (se mantinham, era por acaso) alguma legitimidade baseada nessa co-regência, pois regiam apenas para si ou para alguns que os rodeavam, desprezando as aspirações de seus regidos. Entre os povos da antiga Mesopotâmia, região em que se desenvolveu a primeira civilização da terra, sempre foi assim. Aqueles aos quais hoje se dá o título de reis (embora chamados como “principais”, ou seja, meros patriarcas tribais, chefes de clãs, eram reis no sentido de regência aqui abordado) regiam seus povos com mãos de ferro, impondo sua vontade sobre os demais e nunca aceitando a co-regência.  Logo vieram os Assírios e outros povos que lhes sucederam, todos com o mesmo método de regência. Ao longo dos anos prevalecia, pois, aquela sentença do livro dos Provérbios: “Sob o governo dos justos está alegre o povo; quando os ímpios tomam o governo, o povo geme” (Prov 29, 2).
Mas, a partir de certa época começou a se constituir o que denominamos de “Impérios”, quase todos formados pela força das armas.  Os povos dominados constituíam vastidões imensas, indo da Ásia à Europa, perpassando pela África, como foram os impérios dos Assírios, dos Medas, o Egípcio, o  Grego, o Romano, etc. Em geral, como os egípcios, os reis (ou chefes de tais impérios) provinham de “casas” familiares e patriarcais da sede do império. Os faraós, por exemplo, que dominaram apenas o Egito, eram descendentes de clãs locais e a ascensão ao trono, ou era imposta pela descendência, ou por algum golpe da família opositora. Todos podem ter uma legitimidade discutível, pois a aceitação popular era imposta pela força ou pelo medo. E se, de início, tinham aceitação pacífica da população, ao passar dos anos iam aos poucos regendo somente para si e seu grupo, tornando-se, portanto, inautêntica a sua regência.
Algumas cidades gregas fizeram tentativas de regências co-participativas, com as chamadas repúblicas ou “democracias” gregas. Mas não passaram de algumas cidades e, mesmo assim, de pouca duração. O único império antigo que tentou estabelecer, no início e por pouco tempo, uma regência política mais participativa da população foi o romano. Antes de se constituírem como um império, era apenas um povo que se auto-regia e escolhia (aparentemente) seus dirigentes. O método de escolha era diferente dos outros povos. Nesse tempo a sociedade romana era dividida em duas classes: a dos patrícios e a dos plebeus. Os patrícios eram os chefes das clãs, os patriarcas das famílias antigas que se uniram para formar o povo. Resolveram constituir a si mesmos, os patrícios, o poder de reger de uma forma coletiva e criaram o Senado. Competia a este legislar. Era uma tentativa de criar uma democracia nos moldes antigos, talvez baseada em alguma experiência grega. Quanto aos demais (especialmente os servos ou escravos), não tinham direito a nenhuma participação da regência, nem sequer de escolha dos dirigentes, por voto ou aclamação. 
Originalmente, pois, o senado romano era uma reunião de chefes de famílias, ou os “patres familiarum”, de onde surgiu o termo “patrício”. Foi também criada a figura do “cônsul”, nomeado pelos senadores para mandato de apenas um ano, que detinha autoridade meramente executiva. Mas, os cônsules não tinham plenos poderes, o termo “cônsul” significava “sentar-se com”, quer dizer, a regência era dual. Em tempos de crise o senado nomeava um “ditador” com poderes especiais, mas este também apenas fazia executar as leis. Lembremos que os antigos “reis” legislavam a seu talante (vejam o exemplo de Talião), o que não ocorria na Roma antiga, pois quem elaborava as leis era o senado.  Portanto, o poder regencial criado pelos patrícios, no senado e nas figuras do “cônsul” e do “ditador”, era apenas a continuidade daquilo que eles já exerciam em suas localidades sobre os plebeus e escravos. Quando Roma tornou-se um grande império esta situação começou a ficar insustentável. Eles tinham necessidade de um rei, de um senhor que regesse com plenos poderes (os povos que dominavam não entenderiam o que seria uma regência co-participativa) e com a imposição da força, embora o regime aristocrático e patriarcal do senado se opusesse a isso.
Uma figura que se tornou popular e começou a adquirir poder entre os romanos (especialmente entre a plebe), foi a do general, do comandante do exército e vencedor de suas guerras. É que o povo antigo prestava mais culto à regência oriunda da força, do império das armas, do que a pacífica. Nessa primeira fase, César foi o general mais popular, sendo nomeado cônsul pelo senado. Quando César expandiu o império ao máximo, por volta de 50 a. C, um pouco mais ou menos, era aclamado pela população como rei, mas foi assassinado pelos próprios senadores, seguindo daí uma guerra interna que durou cerca de 15 anos.  Depois desse episódio, ficou comum que um chefe do exército romano, cheio de glória das batalhas, por isso geralmente aclamado pela população, assumisse o poder e se tornasse, não um rei, não um regedor legítimo, mas  um ditador “ad perpetuam”, e em geral, também, sanguinário e perseguidor. Surge, a partir daí, o termo “imperador” que os historiadores modernos concedem aos tiranos que regiam Roma e seus domínios.  Nesse sentido de legitimidade, pois, Roma nunca teve rei autêntico. Da mesma forma, os imperadores nunca eram escolhidos ou aclamados como tal pela população, mas impostos pela força das armas. Muitos deles mataram o atual titular do cargo e o assumiram em seguida.
Falamos anteriormente em democracia, mas São Tomás discorda que este regime, por si mesmo, seja o mais legítimo. A legitimidade não envolve somente a escolha do governante, mas a quem confere lhe conceder os poderes para reger. O regime do povo, onde o mesmo governa é impossível. Nunca se deu e nunca se dará em povo algum. É certo que, modernamente falando, a democracia é o regime em que o povo escolhe, por eleição, seus governantes. Elege-os, escolhe-os, mas não tem poderes para tirá-los do poder da mesma forma que o elegeu, através do voto[1]. Então este poder de regência é incompleto, pois nomeia procuradores, mas não os destitui. Aliás, quem concede ao povo o poder de escolher, de eleger seus governantes?: uma assembléia de notáveis, uma elite, em geral chamada de “constituinte”. Então esta assembléia de notáveis tem mais poder do que o próprio povo, pois é quem lhe confere a prerrogativa de escolher os governantes. As leis também não são elaboradas pelo povo, nem sequer votadas pelo mesmo, mas por aqueles a quem confiaram o poder de fazê-lo. Assim, o povo pode escolher um governante, como, aliás, o fez o povo hebreu ao aclamar Davi como rei, essa prerrogativa de escolher é natural em todo povo; mas, nunca conseguirá reger-se a si mesmo, não de uma forma plena, mas, talvez, de uma forma mínima através de suas organizações sociais.  A auto-regência é um atributo próprio a cada indivíduo, e a exerce, aliás, em conjunto com seus semelhantes ou superiores; no que diz respeito ao conjunto de indivíduos, à sociedade humana, essa auto-regência só pode ser exercida pelo poder político concedido a regentes nomeados.  Não há condição do povo exercê-la, por si mesmo, de uma forma direta.
Poderia ser questionada a legitimidade das famosas “democracias” gregas, pois, em geral tais regimes (como se viu) davam um pouco do poder de escolha aos regidos, mas não respeitavam em cada indivíduo o direito de auto-reger-se, a ponto de permitirem a escravidão como coisa mais natural do mundo. Além do mais, como se viu, a forma como os regentes eram escolhidos (ou “eleitos”) carecia de autenticidade: houve épocas em que os mesmos eram escolhidos por sorteio, em outras por uma votação feita somente pelos de classe superior, pela nobreza.
A legitimidade do poder político de regência é ligada, pois, a estas questões:
1.            O povo pode escolher o governante, nomeia-o, aclama-o, mas não lhe confere os poderes próprios ao cargo, como o de legislar ou de aplicar as leis: isso cabe a uma “carta magna” elaborada por uma elite de notáveis; em geral estas cartas constituintes não são feitas conforme os anseios populares, mas sempre fruto de conciliábulos e acordo entre os grupos políticos.
2.            O poder de reger só poderá ser tirado por uma comissão de notáveis que tenha recebido tal prerrogativa (no mundo moderno, pelos deputados eleitos pelo povo); quase nunca se ouviu dizer que povo algum tenha destituído seus governantes, pelo menos de uma forma ordeira – as chamadas revoluções populares que acabam por tirar alguém do poder são todas manipuladas por grupos sociais, famílias ou partidos, e nunca por participação espontânea de todo o povo.
3.            A regência plena e perfeita terá que provir de Deus, pois somente Ele confere a todos os homens poderes de reger que promova a verdadeira paz social. E Ele o faz submetendo os regentes a que aceitem a co-regência de seus regidos e do próprio Deus.
4.            Como Ser Supremo da Criação, Legislador e Regedor de todo o Universo, somente Deus pode conceder também o poder de legislar, julgar e conceder o poder de regência a anjos e homens (como ocorre, por exemplo, pelo poder natural de regência dado a um pai). É claro que uma assembléia de notáveis eleitos pelo povo pode ter atribuições próprias de legislar, assim como pode ser criada uma instituição própria a aplicar as leis – julgar (como o faz a magistratura). Mas, não foi o povo que lhes concedeu o poder de legislar e julgar, pois tais atributos são co-naturais na pessoa humana e estão implícitos em toda a sociedade, isto é, os costumes e as normas de vida são conformes as leis divinas e, por isso, influenciam os legisladores. O Mesmo se diga dos juízes ao aplicarem as leis..


COMO ESTA LEGITIMIDADE É ABORDADA PELOS LEGISLADORES ATUAIS

Após a Revolução Francesa (1789) os conceitos de legitimidade política ficaram atrelados aos de democracia, pois tal regime passou a ser apresentado como o mais legítimo pelo fato de facultar ao povo a escolha dos governantes. No entanto, há de se considerar que a legitimidade não envolve apenas a escolha dos regentes políticos, ela é mais abrangente. Escolhido um governante hoje fica-se na impressão que isso basta para que o mesmo faça o que bem lhe entenda sem que alguém possa lhe tirar do cargo. E se houver necessidade disso o povo não é chamado às urnas. Geralmente, como no caso do Brasil, quem tira o governante são os parlamentares e não o povo.
Em alguns países com sistemas parlamentaristas há o costume de que, caso o governo não esteja atuando corretamente, o mesmo convoque novas eleições para assim lhe garantir a continuidade no cargo ou destituição. Teríamos aí uma situação em que o povo poderia decidir a saída de um governante do poder. Mas, isso só ocorre se o próprio governo convoca as tais eleições. Em alguns casos, por questão de cultura e educação, alguns políticos renunciam e dão chance a que se faça nova escolha. Não fica muito claro que foi o povo que decidiu as novas eleições, mas sempre os políticos. Trata-se, mesmo assim, de uma regência popular indireta, e, portanto, não completamente autêntica e legítima.
Pior está ocorrendo no Brasil de hoje. Uma decisão recente do STF considerou aptos para decidir se um grupo que governa continua ou não no cargo uma elite menos representativa ainda, por ser menos numerosa, ao decretar que compete ao Senado e não à Câmara de Deputados tal decisão. Desconsideraram o povo, a maioria, e a Câmara, a maioria de seus representantes, para entregar tal poder a uma elite menos numerosa de notáveis, muito mais manobráveis aos anseios de quem governa.
Não se  respeitou o princípio que se diz ser a base da democracia moderna, que é o de respeito à maioria.



[1] Poder-se-ia argumentar que o governante, hoje, pode ser destituído por aqueles que o povo deu procuração para representá-lo, exercendo indiretamente tal mandato de destituir. Mas, por que para eleger é de uma forma direta e para destituir é assim por meio de procuradores?  

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