sexta-feira, 1 de junho de 2012

Papel do Estado e do invidíduo numa sociedade orgânica


 
O tema acima nos veio à mente a propósito das inúmeras medidas, todas de caráter socialista ou socializantes, que os governos europeus vêm tomando nos últimos dias a fim de superar a crise econômica e financeira que lhes assalta até o momento. A crise atual é decorrente de um amontoado de leis que dão ao Estado prerrogativas cada vez mais absorventes de toda a sociedade. Para comprovar que o socialismo está na base desta crise, basta lembrarmos que as principais nações que a sofrem têm forte influência (ou são governadas) por partidos socialistas (No caso, especialmente a Espanha e a Grécia: a primeira, vítima de vários anos de domínio do PS, e a última que é ainda governada por eles). A idéia do “Estado Previdenciário”, muito cara ao PS europeu, está levando aqueles países à falência...

Mas a mentalidade que domina a Europa está bastante disseminada em todas as outras nações do mundo. É muito comum nos dias atuais a ideia de que o Governo, ou o Estado, deve resolver todos os problemas sociais. Com base nessa premissa, todas, ou quase todas, as constituições modernas elegem o Estado como senhor absoluto das vidas dos cidadãos. Nessas constituições consta a consigna “compete ao Estado”, seguida de atribuições verdadeiramente extrapolativas das funções de um regime político ou de um Estado organizado.  “Compete ao Estado...”, dizem, resolver todos os problemas de saúde, de educação, de trabalho, enfim, tudo o que diz respeito ao bem estar da população. E chega a tal ponto que o programa paradigmático dos políticos modernos consta de metas utópicas e até demagógicas, como alguns deles que pretendem, por exemplo, erradicar a pobreza ou a miséria.

Para que se entenda como esta ideia está enraizada em nossa população, vamos analisar o texto abaixo, extraído de uma obra de Amélia Rodrigues, escritora católica baiana falecida no início do século XX.  Trata-se de um fato tirado do conto “Mestra e Mãe” , no qual ela mostra uma personagem como modelo de exemplar professora, uma verdadeira “mãe” nos cuidados com suas pupilas. O debate abaixo surgiu por ocasião da construção da escola do lugarejo imaginado pela escritora, quando a Autora pôs em destaque o choque entre duas mentalidades:  a estatólatra[1] (de um comerciante do lugar),  que julga o Estado como pairando superior a todos os cidadãos, e a da sociedade orgânica (defendida pelo pároco, que representa a voz da Igreja).

O pároco chama-se Padre Martins, e o comerciante Sr. Botelho.

“Quando se fez encomenda de vidraças para as janelas ao Sr. Botelho, que sempre andava em viagens para a capital, saiu-se ele com uma observação: - que deviam fazer economias. Vidraças era luxo inteiramente dispensável.

O padre Martins franzia a testa. O Sr. Botelho pareceu-lhe pequeno, do tamanho de um mosquito, com aquela avareza.

- Não é luxo, meu caro amigo. Diga-me o que há de fazer durante as aulas, quando a chuva açoitar? Ou queremos escola ou não a queremos. Se queremos, que seja tão completa quanto nos for possível.  Ou então não façamos nada. Que diria o Sr. de um alfaiate que lhe encurtasse as mangas ao casaco para poupar-lhe um pedaço de pano? Que era idiota, sem dúvida nenhuma. E eu ainda tenho planos. Há de ver, se Deus nos der vida e saúde, como isto irá ficando bonito pouco a pouco.

- Mas o que estamos fazendo já é bastante, é mesmo demasiado para escola de aldeia.

- Escola de aldeia! Ora, valha-nos Deus. Então as crianças da aldeia valem menos que as da cidade? Os sertanejos não têm os mesmos deveres a cumprir, reclama-se menos deles que dos outros? Não. Portanto, as exigências do ensino devem ser igualmente atendidas em todos os lugares, tanto quanto isso for possível. É da mais elementar justiça.

- Sim, quando o governo é quem cuida dele . Aqui o caso é outro. Que o estado faça e deva fazer liberalidades: a iniciativa privada não é obrigada a tanto.

Já não era a primeira vez que o Sr. Botelho se manifestava contra o que chamava – os desperdícios do padre Martins. Este passou a mão pela cabeleira branca, sinal nele de que precisava apelar para a paciência.

- Diante do serviço da pátria, Sr. Botelho, tanta obrigação tem o governo como o cidadão, e quando o cidadão pode mais deve fazer mais. Ainda mesmo – vou mais longe – ainda mesmo que eu saiba que o governo pode e não quer, se estiver ao meu alcance o melhoramento exigido devo fazê-lo, devo tentá-lo, sob pena de não ser patriota. Uma comparação. Se uma mulher desnaturada abandonar o filhinho na estrada, deverá o Sr. deixá-lo morrer lá, porque a mãe, que era a única obrigada a criá-lo, o desampara? Com certeza não. Pois é o mesmo, na minha humilde opinião. Quem nada pode fazer não é obrigado a coisa alguma, mas quem pode, deve contribuir no limite de suas forças para o bem geral, ou então não é digno do nome de cidadão. Será um parasita que só aproveita e nada produz.

- Os particulares pagam impostos para ter escolas e etc., Sr. Cura. Logo, já fizeram o seu dever, produzem, e terão somente que exigir.

- isto é um sofisma anti-patriótico. A renda do país não chega para prover todas as necessidades do ensino, sabemos disso; e, porque o rico paga um imposto, deve cruzar os braços indiferente, deve passar descuidoso, aqui ou acolá, pelas escolas paupérrimas, desprovidas de tudo, as escolas, os ninhos dos cidadãos futuros, - donde sairia uma geração nova de brasileiros dignos de sua pátria se as elevassem à altura de sua missão, - esperando que o governo faça tudo?... Não, meu amigo, isso não é amar o Brasil! Imagine que cada ricaço protegia a escola de sua freguesia, que se interessava pelo progresso dela, que dotava-a de melhoramentos... Uma coisa belíssima! Daqui a dez anos estaria mudada a face do país.

O Sr. Botelho não ficou convencido. Vão lá convencer a coruja a que adeje de dia pelas cumeadas brilhantes das montanhas! O Sr. Botelho era um egoísta. Só olhava para dentro do bolso. Ele, sua família e acabou-se. Como por vaidade ou para não fazer figura feia tinha dado alguma coisa para a edificação da escola, receava que a despesa fosse longe e que se visse obrigado a desembolsar ainda.

Porém não teve remédio senão aceitar a encomenda das vidraças, com intenção feita de cobrar mais do que lhe custassem. E o Sr. Botelho era um homem bem apessoado, bonito, olhar altivo e seguro, que não tinha cara de velhaco e passava por homem de bem!”



Como se viu acima, a escritora caracterizou bem o homem fanático pela supremacia do Estado sobre o indivíduo, verdadeiro estatólatra. O Sr. Botelho é um comerciante, um homem que só pensa em si, no dinheiro, um sujeito securitário que não quer dar do que é seu para ajudar a comunidade onde vive (a não ser o suficiente para viver) – para ele, seu imposto deve bastar para o Estado resolver tudo, como num passe de mágica! Eis a mentalidade do homem moderno... que está resumida nessa frase do comerciante: “Os particulares pagam impostos para ter escolas e etc., Sr. Cura. Logo, já fizeram o seu dever, produzem, e terão somente que exigir”.

Com base neste pensamento, vamos exigir que o governo não somente construa escolas, mas também hospitais, creches, transportes, estradas, ruas, esgotos sanitários, enfim, tudo aquilo que se exige para vivermos em sociedade. E, com base nesta obrigatoriedade do Estado provir a tudo, cruzemos os braços e esperemos que as providências sejam tomadas!



O Princípio de Subsidiariedade



Não é essa a filosofia da verdadeira convivência política e social. O princípio defendido pela Igreja chama-se “Princípio de Subsidiariedade”, pelo qual o governo só deve intervir onde o cidadão, seja por si mesmo ou através de sua família e de suas organizações sociais, não puder realizar. O governo subsidia, auxilia, socorre, é elemento suplementar e organizador da sociedade, e não o único e exclusivo responsável pela solução dos problemas sociais. Foi este erro que gerou o estado socialista, absorvente e que suprimiu as liberdades individuais no decorrer do século passado. É o mesmo erro que está levando a Europa para a bancarrota generalizada, junto à qual irão os Estados Unidos da América e todo o resto do mundo civilizado se não forem tomadas medidas que façam com que o Estado intervenha menos e deixe a sociedade por si mesma solucionar seus problemas.

Este princípio (da subsidiariedade do Estado) foi exposto na Encíclica “Quadragésimo Anno”, do Papa Pio XI (de 15.5.1931), da seguinte forma:

“...assim, como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem realizar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los.

“...Persuadam-se todos os que governam de quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este princípio da função “supletiva” dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridades terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação”.



A mesma doutrina foi defendida por Pio XII:



“...Sua função [do Estado], sua magnífica função é, pelo contrário, favorecer, auxiliar, promover a íntima coalizão, a cooperação ativa no sentido de uma unidade mais elevada de membros que, ao mesmo tempo que respeitam sua subordinação ao fim do Estado, provêm do melhor modo ao bem de toda a comunidade, precisamente na medida em que conservam e desenvolvem seu caráter particular e natural. Nem o indivíduo, nem a família devem ser absorvidos pelo Estado. Cada um conserva e deve conservar a própria liberdade de movimentos, desde que ela não crie o risco de causar prejuízo ao bem comum.[2]



[1] “Estatolatria” – neologismo surgido recentemente: veneração, adoração pelo poder do Estado.
[2] Discurso ao Congresso Internacional das Ciências Administrativas. 5.8.1950.

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