segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

GLORIOSA EPOPÉIA DA RESISTÊNCIA DOS VALOROSOS CAVALEIROS CATÓLICOS AO CERCO DE MALTA – 1565



(cripta da concatedral de São João, em La Valeta, onde jaz o corpo de Jean de La Valette) 


Em 1564 o sultão Solimão detinha um poder militar jamais visto, talvez um dos maiores do mundo. Enquanto as nações cristãs se debatiam com questiúnculas internas, os turcos representavam um sério perigo para a Cristandade. 

UMA "PEDRA" NO CAMINHO

O plano dos otomanos para alcançar e conquistar a Europa era pelo sul da Itália, no Mediterrâneo, já tentado em épocas anteriores. Mas, para conquistar tal objetivo tinham que passar por Malta e enfrentar os valorosos cavaleiros cristãos, interpostos em seu caminho, entrincheirados na ilha, muito bem armados e quase  inexpugnáveis. Todos os navios que cruzavam os estreitos entre a Sicília e o norte da África ficavam a mercê de Malta, um dos últimos baluartes a resistir à invasão da Europa.            .                                         

SITUAÇÃO DA ILHA DE MALTA

Malta era habitada pelos cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém, além de cerca de 12 mil camponeses, os civis. Na realidade eram duas as ilhas, uma com o próprio nome de Malta e outra chamada de Gozo, que haviam sido presenteadas aos cavaleiros pelo imperador Carlos V. Lugar árido, com terras impróprias para o plantio, com calor insuportável no verão, mas onde os Cavaleiros de São João de Jerusalém acharam de ficar, fortificar-se e constituir-se no ponto de resistência de uma das mais gloriosas guerras de defesa da Cristandade. 

Os Cavaleiros de São João de Jerusalém constituíam uma Ordem militar-religiosa, de monges-guerreiros, nascida por ocasião das Cruzadas. 

Eram de várias nacionalidades europeias, em geral nobres ou descendentes de famílias aristocráticas. Só obedeciam ao Papa, a quem haviam jurado fidelidade até á morte. Além de guerreiros e monges, eram também exímios navegadores, médicos, engenheiros, artífices, etc. 

No início, a Ordem era apenas de hospitalários. Surgiu no ano de 1048, ocasião em que os beneditinos criaram um hospital dedicado a São João Batista e destinado a socorrer os peregrinos que iam á Terra Santa. Em 1099, Gerard de Tom, diretor do hospital, tornou-se o mentor do primeiro embrião da Ordem ao separar o hospital do convento e fundar uma congregação com o nome de “Hospitalários de São João de Jerusalém”. A Regra foi aprovada pelo Papa Pascoal II, ano de 1.113. Com a queda de Jerusalém os hospitalários tiveram que se refugiar na cidade de Acre, em 1191, e posteriormente na ilha de Chipre, em 1201. Em 1310 foram para a ilha de Rodes, onde eram chamados de “Cavaleiros de Rodes”, e, em 1530, finalmente, foram se estabelecer em Malta. 

Constituíam, nessa época, uma legião estrangeira de católicos militantes, divididos em 8 línguas ou idiomas: Auvergne, Provença, França (as três falando francês), Aragão e Castela (espanhol), Alemanha, Itália e Inglaterra. Depois que Henrique VIII apostatou da Fé Católica foi retirada a participação da Inglaterra, ficando todavia um cavaleiro de nome Oliver Starkey, talvez por sua própria conta.                      .                         

QUEM ERA LA VALETTE

Naquele tempo, a Ordem era governada por um provençal, o Grão-Mestre Jean Parisot de La Valette. Era de origem nobre, da família Quercy em Parisot, França, nascido em 1494. Entrara na Ordem aos 20 anos e já estava com 70, há quase 8 anos na sua direção, desde 21 de agosto de 1557. 

Sabe-se pouco sobre a vida deste Cavaleiro, a não ser que era católico, nobre, monge, cavaleiro e que falava fluentemente o italiano, o espanhol, o grego, o árabe, o turco, além de sua língua pátria. Reunia ele todos os atributos de um verdadeiro nobre, guerreiro, monge e, acima de tudo, santo. Já fora até remador de navios muçulmanos como escravo ou prisioneiro. Após uma árdua vida, cheia de inumeráveis sacrifícios e lutas, toda dedicada ao serviço da Causa Católica, embora com 70 anos de idade, era detentor, entretanto, de perfeita saúde física e mental, e com tal robustez que espantava até seus inimigos, que dele tinham pavor. A tudo isso some-se sua inquebrantável Fé, sua indomável coragem, sua terna confiança na Providência Divina. Era um homem talhado por Deus para liderar aquele pugilo de heróis que salvou a Cristandade de uma terrível catástrofe. 

Na época do cerco de Malta, encontrávamos no píncaro da luta entre a Cruz e o Corão, cujo maior combate se daria poucos anos depois na batalha de Le Panto (1571). O Cristianismo havia expulsado os muçulmanos e sua religião até os confins da África, e os turcos vinham tentando, anos a fio, a oportunidade de um revide. Com o poder militar de Solimão e a decadência dos reinos cristãos, divididos entre si, enfraquecidos, era chegado o momento dos maometanos agirem. 

O DESPREZO PELA MORTE OS TORNA INVENCÍVEIS

A 18 de maio de 1565 surgiram os inimigos com 180 navios de grande calado, uma enorme armada comandada por Mustafá e Piali. Era frisante a superioridade bélica dos muçulmanos, com 40 mil guerreiros, além de    marinheiros, escravos, etc., contando ainda com 6 mil janízaros, a elite do exército deles, 9 mil “spahis”, fanáticos religiosos treinados para ataques suicidas, e, finalmente, 6 mil voluntários, entre marinheiros e corsários. Seus planos era cair sobre Malta e obter uma vitória esmagadora, quebrando assim a espinha dorsal da resistência católica, pois pretendiam logo em seguida partir para invadir o sul da Itália e toda a Europa. 

Defendendo Malta havia, além das muralhas, rochedos, fortificações e engenhos militares, apenas 600 a 700 cavaleiros, uns 3 a 4 mil voluntários civis, corajosos mas não treinados, e entre 4 a 5 mil soldados de infantaria espanhóis e italianos trazidos da Sicília. Antes de se iniciarem os combates, assim falou La Valette aos seus comandados: 

“A grande batalha da Cruz contra o corão vai ser travada. Somos os soldados escolhidos pela Cruz e, se o céu requer o sacrifício de nossas vidas não haverá melhor ocasião que esta. Vamos imediatamente até junto do Altar renovar nossos votos, a fim de obter, com nossa Fé, o desprezo pela morte; só isso nos tornará invencíveis” 

Os preparativos muçulmanos eram de conhecimento de todos os reis católicos, mas nem sequer a Espanha ouviu os clamores do Papa para remeter auxílio aos sitiados. Os defensores de Malta tinham que se haver sozinhos, sem nenhum reforço externo. 

As defesas foram preparadas com esmero, dir-se-ia com perfeição. Não se descuidou dos mínimos detalhes: provisões, armamentos, pólvoras, armadilhas, estratégias, contatos entre combatentes e o Comando, etc. 

Inspirado pela Graça, auxiliado pelos seus anjos protetores e cheio de entusiasmo pelo ideal que abraçara, La Valette pensou em tudo, preparando-se para um longo cerco. A defesa era cerrada, bem estruturada, de causar pavor ao adversário. Uma fortaleza assim tão bem defendida, inexpugnável, quase impermeável, não desvaneceu, entretanto, a sanha anticristã dos otomanos, pois eles sentiam a necessidade de quebrar o espírito guerreiro daquela fina-flor da nobreza cristã e jugular baluarte tão importante para suas conquistas. 

No dia seguinte, 19 de maio, já realizaram o seu primeiro ataque com 3 mil soldados. O cavaleiro francês Adrien de La Riviere foi capturado e levado à presença de Mustafá sob tortura, perante o qual declarou: “Os turcos jamais capturarão Malta. Não só porque estamos fortes e temos boas provisões, mas porque nosso Capitão e seus cavaleiros e seus soldados são tão valentes que preferem morrer a capitular”. Nessa primeira investida os muçulmanos já começaram a sentir o gosto amargo da derrota: perderam 100 soldados contra apenas 21 cristãos, sendo que estes morreram devido a descuidos da guarda. 

E aconteceu o primeiro recuo dos turcos a seus navios.                                

OS ASSÉDIOS 

Foram necessários dois dias para se preparar novo assalto. No dia 21 tentaram tomar o forte Birgu, dentro da ilha maior. A luta durou 5 horas, até que La Valette mandou dar o sinal de retirada (para dentro das muralhas). Vê-se no episódio a grande prudência de La Valette não consentindo no combate em campo aberto, embora fosse este o desejo de seus valorosos cavaleiros e soldados. 

Três dias depois e os muçulmanos ainda não haviam tentado nova incursão. Resolveram, então, no dia 24, desferir cerrado bombardeio contra o forte Santo Elmo, utilizando-se de um canhão balístico de 70 quilos. As paredes do forte começaram a se esboroar, e no cerrado tiroteio era quase impossível às sentinelas manterem-se em seus postos. Na noite seguinte, 200 homens foram mandados em barcos a remo para reforço das defesas do forte. 

La Valette sabia que Santo Elmo poderia ser a chave para a entrada em Malta. 

Mas os dias iam se passando e o forte não caía. A medida que as muralhas ruíam os defensores construíam outras por trás. Mais reforços são enviados por La Valette, mas não dão para aguentar muito tempo. Foram solicitados reforços aos membros da Ordem na Sicília. Enquanto os mesmos não chegam, o forte dava sinais de que ia cair nas mãos dos invasores. 

No dia 1 de junho foram capturados, fora do forte, alguns turcos, tendo o pânico se espalhado entre eles. O que lhes teria causado tal pavor não se sabe. Os janízaros foram chamados para intervir e levantar o moral dos turcos, de tal sorte que conquistaram um dos parapeitos mais elevados do forte e lá içaram o seu pendão. Na baía, chegavam mais reforços aos invasores, representados por 45 navios e 2.500 homens chefiados pelo corsário Dragut. O ânimo dos turcos se reacende. Um cronista descreveu o forte Santo Elmo como “um vulcão em erupção, cuspindo fogo e fumo”, tal era o tão intenso bombardeio com 50 canhões. 

A 3 de junho o revelim do forte foi tomado quase por acaso: uma patrulha turca surpreendeu um grupo de defensores exaustos, adormecidos,  logo dizimados. Dentro do forte, porém, a resistência era feroz, tenaz e heroica. 

Mustafá mandava ondas de atacantes, uma após a outra, muitas delas suicidas, contra as muralhas incendiadas de Santo Elmo, mas no fim do dia 2.500 soldados turcos jaziam mortos e o forte ainda resistia. 

Um cronista assim descreve a situação da guarnição: 

“A exaustão crescente era insuportável; entranhas e membros de corpos humanos despedaçados pelos canhonhaços eram enterradas no próprio parapeito das muralhas. Tal era o estado a que tinham sido reduzidos os sitiados, os quais nunca abandonavam seus postos, expondo-se de dia a um sol escaldante, de noite à úmida friagem. Sofriam toda sorte de privações, em meio a pólvora, fumaça, poeira, incêndios e salvas de tiros; a alimentação era insuficiente ou insalubre. De ossos deslocados ou estilhaçados, rostos cheios de horrendas feridas, eles estavam tão desfigurados que já quase não reconheciam uns aos outros...” 

Mas estavam lá, impávidos, lutando. Quanto heroísmo! Quanta bravura, entretanto esquecida pela História contemporânea! 

Um capitão espanhol chamado Miranda se ofereceu para ir com 100 homens reforçar a resistência do forte Santo Elmo. A resistência que parecia impossível continuava, os dias se passavam sem que os sitiados se rendessem ou fossem subjugados. Cada vez que os janízaros atacavam caía sobre eles uma chuva de balas e artefatos incendiários como o “fogo-grego”; A 7 de junho o ataque perdeu ímpeto e soou o sinal da retirada. 

“NOSSA VIDA DEVE SER SACRIFICADA EM PROL DA FÉ” 

Após o recuo muçulmano, o Chevalier de Medran atravessou o rio e foi conferenciar com La Valette, sugerindo a retirada do forte devido à impossibilidade de defendê-lo, fazendo-o explodir em seguida. Os defensores de Santo Elmo se juntariam aos dos outros fortes para reforçar a defesa de Malta. Mas, a resposta de La Valette foi inflexível: 

“Quando entramos nesta Ordem juramos obediência. Juramos também que nossas vidas seriam sacrificadas em prol da Fé. Nossos irmãos em Santo Elmo devem agora aceitar este sacrifício”.                         

Foi aceito por todos também o seu argumento de que “todas as fortalezas de Malta deveriam resistir até o último homem”. Chevalier de Medran, com mais 15 cavaleiros e 50 soldados, regressaram a Santo Elmo com o espírito revigorado pelas inflexíveis decisões de La Valette. 

Novo ataque no dia seguinte, seguido por mais um recuo turco. Ocorreu, então, que um cavaleiro chamado Vitellino Vitelleschi, dirige uma carta a La Valette, também subscrita por outros 50 pares, onde diz: “Uma vez que já não podemos cumprir nossos deveres para com a Ordem, estamos decididos – se Vossa Alteza não nos enviar barcos para a retirada – a desencadear uma surtida e morrer como cavaleiros”. Não se tratava, aparentemente, de um ato de covardia, talvez de insensatez e desespero. La Valette sentiu sinais de fraqueza em seus comandados e resolveu investigar antes de agir. Três cavaleiros foram mandados ao forte para se obter um relatório da situação: dois informaram que o forte poderia resistir mais alguns dias e o terceiro afirmou que os sitiados necessitavam de mais gente e um novo plano de defesa. Em uma hora o autor dessa sugestão, chamado Castriota, reuniu um grupo de 600 voluntários para ir em socorro do forte. La Valette assim respondeu à carta dos descontentes: “Formou-se um grupo de voluntários, e vossa petição para abandonar o forte Santo Elmo foi agora aceita. De minha parte, ficarei mais tranquilo sabendo que o forte está sendo defendido por homens em quem posso confiar”. Diante de tal resposta, e ao saber que estavam a caminho outros para substituí-los, os autores da petição cobriram-se de vergonha e de horror, desistindo imediatamente de seu intenso. Vê-se no episódio a varonilidade católica. La Valette não mais mandou os 600 voluntários, mas apenas 15 cavaleiros e 100 soldados. 

RESISTÊNCIA TENAZ DE SANTO ELMO PERDURA

A 10 de junho o forte ainda não caíra. Neste dia foi desfechado o primeiro ataque noturno, e ao romper do dia 1.500 dos mais aguerridos soldados do sultão jaziam mortos na “terra-de-ninguém” entre o revelim e o forte, e muitos outros moribundos e sem esperança de socorro. 

A 16 de junho outro ataque feroz. Primeiro foram os “iayalars” (loucos fanáticos que usavam haxixe nas batalhas), que tiveram de recuar deixando o fosso juncado de cadáveres. A seguir vieram os derviches e os janízaros, tropas de elite de Mustafá, sofrer também vergonhosa derrota. Nestas últimas investidas morreram apenas 150 cristãos contra mais de 4 mil muçulmanos. 

La Valette era a alma da resistência: mantinha constante contato com os defensores, mandando-lhes reforços, orientação e ânimo para a luta. Teriam que isolar Santo Elmo, e começaram então a atacar os barcos no interior da ilha, pois era através deles (principalmente à noite) que La Valette mantinha os contatos e remetia os reforços. O forte terminou ficando isolado. 

A 22 de junho novo e intenso bombardeio, por mar e terra, mas a resistência continuava feroz. Após 6 horas de ataque, Mustafá ordena o recuo. 

Os sitiados de Santo Elmo bradam vitória. Uma vitória efêmera, como veremos adiante. Um soldado maltês foi de Santo Elmo a Birgu, nadando perigosamente na enseada que separava os dois fortes, e contou que praticamente todos os sobreviventes da guarnição estavam gravemente feridos, mas que a disciplina  e o moral eram elevados. Uma última tentativa de enviar socorro foi frustrada pelo cerrado tiroteio dos canhões turcos. Ninguém poderia atravessar aquela cortina de fogo. A guarnição de Santo Elmo se resignara a morrer gloriosamente lutando até o último alento em defesa da Fé Católica, sem esperança de receber qualquer auxílio. Se poucas esperanças tinham de receber auxílio de La Valette, muito menos as teriam de receber dos católicos do Continente, os quais, inexplicavelmente, protelavam para depois o socorro tão ansiosamente esperado e urgente. 

CAI  SANTO ELMO: VITÓRIA INGLÓRIA PARA OS MUÇULMANOS

No dia seguinte outro ataque maciço é desferido. A guarnição de Santo Elmo, com menos de 100 homens exangues, quase todos mortalmente feridos, resistiu durante 4 horas ainda. Finalmente, o forte caiu nas mãos de Mustafá. 

Era véspera da festa de São João Batista, o Padroeiro da Ordem. Os cristãos que lá lutaram, lá morreram com a certeza do galardão no Céu. Foram mártires e heróis que merecem ser citados com amor e admiração por todos os verdadeiros católicos. Seus nomes estão escritos no mais alto Livro da Glória e seus feitos fizeram exultar de alegria todos os santos e anjos da Corte Celeste, inclusive o próprio São João Batista, presente em espírito nas batalhas que ali se travaram. 

Uma inglória para Musfatá aquela vitória. Haviam as outras fortalezas que sombriamente lhe esperavam. Milhares de guerreiros haviam ali perecido. 

Olhando para o forte Santo Ângelo (o principal), Mustafá clamou desesperado: 

“Se um filho tão pequeno nos custou tão caro, que preço teremos de pagar por um pai tão poderoso”. 

Após um mês de lutas, Santo Elmo lhe custara cerca de 8 mil mortes, contra apenas 1.500 dos cristãos, dentre os quais apenas 113 eram cavaleiros da Ordem. Foram capturados vivos apenas 9 cavaleiros. Quatro destes foram decapitados e os corpos colocados em cruzes de madeira e atirados na água, de sorte que fossem dar em Santo Ângelo. Em resposta, La Valette determinou que todos os prisioneiros turcos fossem decapitados, usando em seguida suas cabeças como “balas” contra os muçulmanos. Como eram muitos os prisioneiros, logo o terror espalhou-se entre eles ao receberam aqueles projeteis de cabeças humanas em cima das suas.                              

ENFIM REFORÇOS! 

Enquanto os turcos se preparavam para novos combates,transportando as armas pesadas a fim de assestá-las contra as fortalezas de Santo Ângelo e Birgu, operação que durou vários dias, alguns reforços chegaram para os sitiados: 42 cavaleiros, 25 “gentis-homens”, 56 artilheiros e 600 soldados, que sob a proteção de providencial nevoeiro conseguiram enganar a vigilância turca e chegar a Birgu em segurança. 

Mustafá tenta confabular com La Valette, remetendo-lhe um mensageiro com a proposta de que se os cavaleiros se rendessem lhes daria livre trânsito para sair da ilha. La Valette ordenou que o mensageiro fosse levado ao topo das muralhas. Apontando para o fosso, La Valette respondeu à proposta de Mustafá: “Diga ao seu senhor que este é o único território que lhe cederei... desde que fique cheio de corpos de janízaros”. O mensageiro ficou tão apavorado que, segundo um cronista da época, “sujou os calções”. 

Chega o verão, suportado pelos castos, mas não pelos impuros.

O lugar mais vulnerável para conquistar a ilha, a partir de então, era a enseada chamada Senglea. Percebendo isto, La Valette ordenou a construção de uma paliçada: grandes pontões de madeira enterrados no mar ligados com grossas correntes de ferro. Nadadores turcos, armados com machados, tentaram destruir estas defesas, mas voluntários malteses imediatamente foram ao seu encontro, de facas atravessadas entre os dentes, e lutaram corpo a corpo. Sendo os malteses mais destros, os turcos bateram em retirada... 

A 15 de julho, quase um mês depois de haver caído o forte Santo Elmo, é desferido um ataque duplo à enseada de Senglea e ao pequeno forte São Miguel. Foram utilizados nos ataques 10 barcos com 1.000 janízaros, tendo sido afundados 9 barcos e mortos afogados cerca de 800 dos atacantes. O décimo barco conseguiu abrigar-se, mas caiu nas mãos dos civis malteses, que os dizimou talvez como vingança pela queda de Santo Elmo. 

O verão estava chegando com um calor intenso. A temperatura média era de 32 graus. Os cristãos acotovelavam-se dentro das fortalezas, neste calor tórrido, com férrea disciplina, racionando víveres, aguardando pacientemente os próximos ataques. Os cavaleiros, quando iam ao combate, vestiam-se com suas armaduras de ferro, aumentando-lhes mais ainda o calor sufocante. Os turcos, por sua vez, usavam roupas folgadas, túnicas largas e frescas, dormiam em tendas ou nos navios e dispunham de boas provisões. 

Além do mais poderiam ir e vir para onde quisessem, pois não estavam sitiados como os cristãos. Apesar disso tudo, dentre os cristãos raros eram os casos de doenças, enquanto que nas fileiras turcas grassavam a disenteria, a febre entérica e a malária. Ainda hoje causa pasmo a observadores superficiais o que fazia os cristãos suportarem tão resignadamente tantos sofrimentos, enquanto os muçulmanos por qualquer coisa se revoltavam, eram constantes os motins entre eles. 

É que os cristãos, principalmente os cavaleiros da Ordem (exemplos para os demais), praticavam as virtudes cristãs, principalmente a obediência e a humildade (base da disciplina) e a castidade. E onde há castidade há também limpeza, asseio, etc. Os turcos, por sua vez, eram impuros, sujos, rebeldes, revoltosos, atraindo sobre si os males da expansão de seus instintos. 

Outro fator que fazia com que as doenças ocorressem menos entre os cristãos era que os cavaleiros eram em geral médicos. 

De posse do poder bélico e sob ordens tirânicas, continuaram os turcos a acossar os cristãos. Até o início do mês de agosto os artilheiros turcos não davam tréguas aos sitiados. Nos fortes, homens, mulheres e crianças labutavam juntos, reparando brechas, fabricando artefatos e consertando pistolas e outras armas. A tudo comandava La Valette com ordem, respeito hierárquico e um moral muito alto. Havia um sagrado respeito de todos por suas decisões. Não havia vacilo, nem cochilo, o sagrado sono era postergado para depois, a vigília era contínua e as orações constantes. A Fé movia a todos.                                  .  

No dia 7 de agosto o bombardeio recomeçou. Quando uma muralha principal caia, havia outra no interior mandada construir por La Valette. Esta tática era utilizada em todos os fortes. O forte São Miguel estava prestes a cair quando, repentinamente, Mustafá ordena a retirada de suas tropas: os reforços cristãos haviam chegado e sua retaguarda estava sendo atacada. O governador de Mdina (capital de Malta) enviava toda a cavalaria em socorro dos sitiados. Os turcos foram massacrados em seu próprio acampamento e os cavaleiros cristãos foram salvos de mais uma derrota. 

A fim de levantar mais ainda o ânimo de seus valorosos cavaleiros e soldados, La Valette ordena a divulgação do texto da Bula do Papa Pio IV que concedia indulgência plenária àqueles que tombassem lutando contra os muçulmanos. Ao ideal terreno de glória se juntava agora a vantagem das bênçãos de Deus para alma que morresse pela Fé Católica. 

Os dias iam se passando, e apesar de não diminuírem os assédios, os turcos não conseguiam um feito de grande monta. Já se iam longe os dias da conquista de Santo Elmo, embora fizesse pouco mais de um mês, pois tantas eram as derrotas que amargavam. No dia 20 de agosto, Mustafá e Piali resolvem dividir suas forças, indo o primeiro atacar os bastiões de Castela e São Miguel e o segundo o forte Birgu. Era um estratagema para ver se La Valette dividia suas forças mandando homens em socorro de São Miguel. No entanto, os turcos foram recebidos como das vezes anteriores, com uma única diferença: desta vez La Valette comandou pessoalmente a defesa, empunhando a espada à frente de seus homens no bastião de Castela. 

Comandou uma carga tão impetuosa que mudou o curso dos acontecimentos. 

Apesar de ferido e o inimigo estar recuando não aceitou o conselho de parar de lutar, dizendo: “Enquanto elas tremularem (as flâmulas inimigas), não recuarei!” 

Só após a reconquista do bastião e o arriamento das flâmulas inimigas aceitou cuidar de seus ferimentos. 

A situação era tão terrível que quem conseguia andar não era considerado ferido. As intensidades dos ataques se tornavam mais freqüentes e terríveis. Mustafá ataca a enseada de Senglea com o que foi chamado uma “máquina infernal”, em forma de barril comprido, amarrado com correntes de ferro e recheado de pólvora, correntes, pregos e toda sorte de metralha. Os cristãos conseguiram habilmente virar a terrível máquina na direção dos próprios turcos, indo explodir dentro do fosso e causando a fuga desesperada dos atacantes. Nesse ínterim o moral dos turcos era muito baixo. Grassavam muitas doenças entre eles e, sob o sol escaldante, milhares de cadáveres jaziam putrefatos, o que fazia com que aumentassem as moléstias e causassem náuseas aos atacantes por causa do mau cheiro. 

“AQUI PERECEREMOS OU, COM A GRAÇA DIVINA, SOBREVIVEREMOS!"

Decorreram três meses desde que a elite do exército e da armada turca iniciara o ataque à ilha de Malta. Menos de nove mil homens resistiram o verão inteiro ao cerco, provocando admiração e pasmo em toda a Europa, que recebia amiúde suas notícias. Até mesmo a rainha Elisabeth I, da Inglaterra, apesar de inimiga da Fé Católica, temia que, se os turcos vencessem, toda a Cristandade, incluindo seu país, estaria ameaçada. 

A 31 de agosto os cavaleiros insistem com La Valette para que abandonasse o forte Birgu e se refugiasse em Santo Ângelo, pois, argumentavam, “lá poderemos agüentar melhor do que separados uns dos  outros”. La Valette, porém, tinha outros planos, e respondeu aos cavaleiros: 

“Se abandonarmos Birgu, perderemos Senglea, pois essa guarnição não pode resistir sozinha. Santo Ângelo é demasiado pequeno para que, dentro, caiba toda a população maltesa, nós e nossa tropa. Com os turcos ocupando Senglea e as ruínas de Birgu, será apenas uma questão de tempo até que Santo Ângelo caia sob o fogo conjunto dessas fortalezas, enquanto agora são obrigados a dividir seus recursos. É aqui que deveremos manter-nos. Aqui pereceremos, ou, com a graça divina, sobreviveremos!”. E mandou queimar seus barcos para ter certeza de que não haveria retirada. Mandou também explodir a ponte levadiça entre Birgu e Santo Ângelo, deixado os fortes isolados um do outro. 

Entre os turcos, com o moral sempre caindo, começa a faltar víveres e pólvoras. Mustafá redobra seus esforços de guerra, mas tudo em vão. Os fortes nem se rendiam e nem caíam em suas mãos. Desesperado, Mustafá tenta atacar Mdina, a capital da ilha. O governador, então, usa de um estratagema, postando ao longo das muralhas diversos civis vestidos de soldados para dar a impressão de possuir muitos defensores. Deu certo, após uma tentativa frustrada, os turcos desistem e recuam. 

CHEGAM, ENFIM, REFORÇOS - VITÓRIA TOTAL DOS CRISTÃOS! 

Enquanto se desenrolava batalha tão cruel e insana, o restante da Europa se debatia com seus probleminhas corriqueiros. Os pedidos de socorro em favor dos sitiados não encontravam eco nos corações dos reis e príncipes envolvidos com suas quimeras e contendas pessoais. Em vão o Papa tentou arregimentar uma força expedicionária para socorrer os bravos cavaleiros de Malta, embora os seus feitos já percorressem toda a Cristandade, causando admiração e assombro. 

Finalmente, a 4 de setembro, quase que tardiamente, chega o socorro tão esperado: à frente de uma tropa de quase 11 mil homens, dentre os quais 200 cavaleiros, chega a Malta o nobre espanhol Don Garcia,provindos da Sicília, cuja pequena corte de Messina andava ansiosa para ver-se livre deles. 

Inexplicavelmente, não atacaram os navios ancorados ao largo, preferindo desembarque no canal de Gozo, no lado oposto onde se travavam as batalhas mais renhidas. Também, ao desembarcar, as forças de auxílio não partiram logo para o combate contra os invasores acampados no interior da ilha. 

Desconhecendo que os turcos batiam em retirada o comandante Ascanio de La Coma ordenou que se montasse acampamento no outro lado da ilha. 

Quando, finalmente, entraram em Birgu, os soldados da força de auxílio viram, horrorizados, quanto havia custado a vitória. Aleijados e feridos arrastavam-se como mortos ressurretos através dos fortes semi-destruídos. 

Perto de 250 cavaleiros tinham morrido e quase todos os outros estavam gravemente feridos ou aleijados pelo resto da vida. Morreram ainda sete mil espanhóis, soldados estrangeiros e malteses. Restavam apenas cerca de 600 homens capazes de pegar em armas; Os turcos, porém, haviam perdido cerca de 30 mil homens; no Maximo 10 mil voltaram para Constantinopla, onde os feitos cristãos causaram assombro e admiração. 

Toda a Europa festejou a grande vitória, até mesmo na Inglaterra protestante e anti-católica: três vezes por semana o arcebispo de Cantuária, anglicano, mandou celebrar ritos e ações de graças durante as seis semanas que se seguiram ao final do cerco. 

Em Malta, malteses, cavaleiros e soldados elevavam até o mais alto dos céus o seu regozijo por tão grandiosa vitória, rezando um Te Deum, dando graças ao Todo-Poderoso e à Santíssima Virgem. Lá em Malta não havia hipocrisia, a celebração tinha toda a autenticidade sentida pelos vencedores, toda a alegria contida naquelas almas após tanto sofrimento, tanto sangue, tanto tormento. 

Feitos tão gloriosos só foram possíveis graças a um espírito, a um modo de ser e de viver, o espírito da Cavalaria Cristã, alimentado por uma vigorosa Fé Católica, o qual soube resistir impávido aos assédios do império do mal, assim como à fraqueza e tibieza dos bons. Fossem outros os defensores da ilha, ou fossem outras as concepções dos que lá estavam e a resistência não teria durado o tempo necessário até alcançar a vitória. Vitória esta dada pela Providência, no momento oportuno quando tudo não parecia ter mais esperanças, tudo parecia quase perdido, para o qual, entretanto, Deus exigiu que os bravos cavaleiros e soldados lutassem, lutassem sempre, lutassem até à exaustão, lutassem até à própria morte ou até à vitória final. 

Sendo La Valette o artífice de grandioso feito, quis ele, entretanto, permanecer no anonimato, fugindo das glórias e honras, todas fugazes. Três anos depois do cerco morre La Valette. Seu corpo jaz agora na cripta da concatedral de São João, em La Valeta, como foi denominada a cidade construída em sua honra no monte Sciberras. Sobre seu túmulo, no chão de mármore da grande catedral, brilham as armas e as insígnias dos cavaleiros que ocuparam por mais de 200 anos a inexpugnável fortaleza de La Valette.               ...         .     .

(Observação: há extensa bibliografia descrevendo o cerco a Malta ocorrido em 1565. Fizemos o resumo acima com base em reportagem publicada na revista “Seleções” ).


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