sexta-feira, 16 de abril de 2021

COMO FRUSTRAR AS PRETENSÕES DO PODER ESTATAL - Um fato histórico digno de nota.

 


Um exemplo do poder dos legistas ou juristas do direito romano podemos constatar num episódio da vida de São Nuno de Santa Maria, o famoso Condestável de Portugal Dom Nun’Álvares Pereira. Naquele tempo (século XIV) já estava bastante sedimentada a idéia de que o Estado é o senhor de tudo, superior a todos os indivíduos e organismos sociais intermediários. Essa idéia fazia parte de um princípio jurídico defendido pelos legistas do chamado direito romano e predominava em vários países. Na França, desde o tempo de “Felipe o Belo” (início do século XIV) que tal princípio predominava: foi este o motivo da afronta perpetrada por aquele rei (que, por sinal, era neto de São Luís IX) contra o Papa Bonifácio VIII, mandando esbofeteá-lo em praça pública. Para demonstrar que o Estado era superior à igreja, fez com que a autoridade papal sofresse uma humilhação pública. Quer dizer, era uma demonstração de força para comprovar a legitimidade de seu poder de regência e, de outro lado, da ilegitimidade do poder regencial dos papas, que só deveria reger as almas. Era, assim, a demonstração da regência pela força e não pelo amor filial.

Em Portugal, tais princípios demoraram a chegar. A nação encontrava-se em guerras constantes com seu antigo reino, o de Castela, e por mais de uma década lutou bravamente para confirmar sua independência e seu reino. Nessa luta, foi de capital importância a participação do grande Condestável, Dom Nuno Álvares Pereira. Quando, finalmente, o país começou a auto-reger-se, a idéia da supremacia estatal já predominava na Europa por causa da influência dos legistas, e terminou por influenciar os assessores do rei de Portugal.

 A generosidade cristã no desapego às riquezas

Quando a guerra acabou, o Condestável havia concentrado em suas mãos uma riqueza incalculável, formada em geral pelos despojos e pelos butins que arrebatava dos inimigos e dos presentes que recebia do rei e dos amigos. Dizia-se que lhe pertencia a metade do reino. Os invejosos chegavam a espalhar os boatos de que Dom João I resolvera dividir o reino com Nun'Álvares desde o momento em que, juntos, no ano de 1384 partiram para fundar a nova dinastia de Avis.

Muitos eram aqueles que tinham inveja de tais riquezas, e o Condestável mostrou completo desapego às mesmas, resolvendo doar tudo. As pessoas mais beneficiadas com estas dádivas foram seus próprios homens, com os quais dividiu dinheiro, propriedades, jóias e tudo o que ganhara ao longo destes dez anos. Considerava que seus soldados e cavaleiros haviam sido seus sócios naquela empresa, com os quais dividiu sacrifícios e desgostos, e por isso teria que dividir também os louros da vitória.  Sentia vergonha de se encontrar tão rico, ao lado de seus cavaleiros, soldados e peões, seus fiéis companheiros de armas, sem nada possuir ou com poucas posses.  No final, ao terminar de dividir tudo, percebeu que havia ficado apenas com o hábito de sua Ordem, que nunca largara. Tal desapego em doar todos os seus bens deveria causar assombros de admiração, mas em muitos aumentava mais a inveja ao perceberem que Dom Nuno com este ato se elevava ainda mais em magnanimidade, erguendo-o muito acima do comum dos vassalos do reino.

E o ciúme invejoso açulou alguns assessores do rei, principalmente os juristas, a verem um mal naquele ato. Alegavam que Dom Nuno não podia doar aqueles bens, pois não lhe pertenciam e sim ao reino (quer dizer, ao Estado). Aquelas doações representavam uma afirmação pura e simples de soberania aristocrática, contrária ao novo conceito jurídico que surgia na Europa em que o Estado era o único elemento soberano numa nação.  Era como se fosse uma afronta ao novo conceito de monarquia recém-nascido em Portugal com a dinastia de Avis.

Levaram a Dom João I vários argumentos jurídicos, terminando por convencê-lo a chamar o Condestável à corte a fim de rever as doações que fizera a seus homens. A oposição daqueles homens para com suas doações fizera Dom Nuno ficar muito confuso, pois não entendia porque havia ele conquistado todos aqueles bens e não os podia doar a quem quisesse. Percebeu claramente que tal oposição não passava de obra da inveja. Lutou bravamente para manter a validade de suas doações. Como ficaria ele perante seus homens? Como chegaria até eles e pedir tudo de volta para entregar ao rei (ou ao reino), que não era dono de nada daquilo?

Como Nun'Álvares se recusasse a reaver os bens doados para os entregar ao reino, Dom João foi convencido pelos juristas e assessores de que fizesse expropriação de tudo, usando simplesmente o poder da força. Seria um ato arbitrário, mas os legistas haviam preparado uma bem arrumada documentação para reforçar os argumentos do ato real. Quando Dom João I lavrou a sentença, Dom Nuno já havia partido da corte para o Alentejo.

Que pensava fazer? Mandou reunir seu exército, aquele mesmo que o acompanhara durante mais de dez anos, onde estavam os homens mais fiéis que havia, e lhes comunicou o que estava ocorrendo e qual a sua decisão. Disse-lhes que o rei queria tomar todos os bens que ele havia doado, que lhe pertenciam há muito tempo, e perante tal afronta ele havia decidido abandonar o reino e partir para o exterior a procura de outro senhor a quem pudesse servir mais dignamente. Quem quisesse poderia ir com ele, ou então ficasse porque ninguém estava obrigado a segui-lo naquela viagem.  Todos seus homens resolveram partir com seu senhor, e logo de imediato tomaram o rumo da fronteira. Vê-se, nesse ato, o que falamos acima: a plena liberdade com que os medievais serviam a seus senhores, podendo desistir da servidão a qualquer momento, assim o desejasse.

A notícia logo voou até a corte. Quando Dom João tomou conhecimento da decisão de Dom Nuno, sabendo que tipo de caráter ele possuía e do que seria capaz, mandou urgentemente um emissário procurá-lo. Quando o emissário partiu, logo partiram também na mesma direção alguns personagens de grande peso na corte. Tinham a intenção de fazer o Condestável mudar de propósito. Encontraram-no no caminho, e a todos Dom Nuno respondeu que iria pensar nas novas propostas e pedidos do rei, que era muito seu amigo.

Em pouco tempo, o caso ficou resolvido. O rei voltou atrás e anulou as expropriações feitas. As doações ficaram mantidas, mas ele pediu a Nun'Álvares que viesse na corte a fim de assinar um documento protocolar. Era um "jeitinho"  que o bom diplomata de Avis achara para contentar a ambos: aos legistas e a Dom Nuno. O Condestável assinaria um documento transferindo todos os bens para o reino, e no mesmo momento o rei assinaria outro documento doando todos aqueles bens aos atuais possuidores.  

Dentro de pouco tempo o Condestável teve a oportunidade de provar que não guardava nenhuma amargura contra o seu rei.  Tendo o rei de Castela rompido novamente as pazes e invadido algumas localidades portuguesas, Dom João I convocou alguns fidalgos de sua corte para preparar a defesa sem pensar em Dom Nuno.  Sabendo que seu Condestável estava muito magoado com os últimos acontecimentos, preferiu pedir apoio dos outros seus fidalgos mais fiéis. O rei aguardou algum tempo em Santarém pela chegada das forças para repelir os invasores, mas ficou frustrado pela completa deserção de seus melhores homens. Após longa espera, havia se decidido a voltar para Lisboa porque ninguém tinha atendido seu apelo. De repente, vê chegar um destacamento militar composto de mais de mil e duzentas lanças, comandado pelo incansável Nun'Álvares Pereira. Mesmo sem ser convocado, ao saber de que o rei precisava dele, marchou imediatamente ao seu encontro. O rei exultou de contentamento, quase chorava de alegria porque sentia naquele gesto de Dom Nuno a completa reconciliação dos dois.

Numa breve correria, o Condestável fez voltar aos homens do exército real português a antiga alegria de combater pela nova monarquia. Depois de haver vencido aqueles rápidos combates, resolveu repartir o butim de guerra ali mesmo com seus homens, pois queria evitar alguma querela com os juristas da corte. Em seguida, voltou para o seu Alentejo, onde morava com a mãe e a filha, enquanto o rei seguia para Avis.

 (Relato extraído da obra “A Vida de Nun'Álvares - Oliveira Martins - Lello & Irmão - Editores - Porto, 1983)

 

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