quarta-feira, 27 de maio de 2020

SENSO DE JUSTIÇA AOS TRÊS ANOS DE IDADE






Segundo Jean Piaget, a criança consegue formar o seu “juízo moral” até os 12 anos de idade. Aquele educador chama de “juízo moral” ao conhecimento que o homem adquire das normas, das regras sociais, e sua aplicação nos atos cotidianos de sua vida. Os passos são, a) a “anomia”, que é a fase em que a criança é completamente conduzida pelos outros (mais ou menos até os 3 anos); b) a hegemonia, quando ele aprende a se conduzir conforme os demais, mas dando algo de si; c) a autonomia,quando a criança, por si mesmo, pratica os atos morais que considera corretos sem necessidade de ser dirigida para tal fim.[1]
Em qualquer criança, este é o caminho normal para se atingir a maturidade, ou o juízo moral conforme o define tal estudo. No entanto, por fatores superiores, como a graça divina, algumas crianças podem encurtar e até suprimir de vez estes 3 passos, como ocorreu, por exemplo, com São João Batista, que já nasceu com o juízo moral formado. Podemos acreditar que Dr,. Plínio Corrêa de Oliveira  pode ter tido a graça de ter sido pelo menos abreviado nele tais passos e ter adquirido o completo juízo moral em idade inferior ao comum das pessoas. O senso de justiça, por exemplo, já o tinha aos 3 anos de idade, conforme o relato a seguir extraído de suas Notas Autobiográficas:
  
“Aos dois ou três anos, eu já possuía certas noções de direito, de elevação e de sublimidade. São graças que uma criança pode receber muito prematuramente, e foi assim que a intercessão de Nossa Senhora me favoreceu. Por exemplo, eu tinha um senso de justiça muito definido: embora fosse de um gênio muito afetivo, violada a justiça, eu entrava em luta.
Nesse sentido, mamãe costumava contar um fato ocorrido comigo em São Vicente, pequena cidade do litoral paulista. É um lugar de muito remanso, com mar grandioso e tranquilo. E as famílias da “São Paulinho” daquele tempo, quando queriam descansar, tomavam lugar em alguma boa pensão, pois ali não havia hotéis, e passavam uma temporada.
Eu tive um enorme retardamento no andar. Foi preciso fazer até tratamentos... e  comecei a caminhar aos três anos de idade, o que preocupava minha família. A medicina do tempo recomendou, com ou sem razão, alguns banhos de mar, os quais me obrigariam a fazer o esforço a que eu me recusava, e venceriam esse inconveniente. Então, no meio do ano, mamãe decidiu passar alguns dias com minha irmã e comigo junto a um bonito panorama, numa pequena pensão, muito boa e conceituada, cujo proprietário era um alemão chamado Herr Kinker.
Lá estava eu, lutando contra as ondas de manhã e espairecendo à tarde... Meu pai vinha de trem ao término de seu trabalho para passar a noite com a família, e na manhã seguinte voltava a São Paulo.
Eu via o Herr Kinker como um homem trovejante e olímpico, especialmente quando bebia... Parece que era bom dono de pensão, gostando do chope segundo a boa tradição alemã, mas passando da conta com frequência...  Às vezes se embriagava literalmente e, nessas  horas, mamãe ficava com certo medo, pois meu pai estava ausente. Mas ela se impunha muito. Eu, entretanto, não me incomodava com o alemão.
Certo dia, mamãe foi descansar depois do almoço, deixando seus dois filhos dormindo também. Mas em determinado momento ela acordou, percebeu que estava chovendo torrencialmente e viu que eu não estava na cama. Então ela se levantou imediatamente, muito preocupada, pois uma criança à beira-mar de repente faz alguma estripulia... Deixou minha irmã Rosée, foi me procurar por toda a casa e, não me encontrando, perguntou:
- Herr Kinker, onde está o Plínio?
- Não vi!
Ele parecia muito agitado... Mamãe notou que estava bêbado e pensou: “Ele fez alguma coisa com o Plínio”. Começou, então, a indagar com mais insistência e Herr Kinker deu uma resposta atravessada, pela qual ela julgou que o alemão se desagradara com alguma atitude minha. Possivelmente eu fizera com ele alguma impertinência de criança.
Depois de procurar por todo lado, mamãe foi ao terraço para olhar o jardim e encontrou-me afinal: eu estava sentado no meio do gramado sem se mover, enquanto chovia a cântaros sobre mim;  chorava sem revolta nem furor, mas obstinado e raciocinando em voz alta:
- Por que estou aqui? Esse homem não tem razão e está agindo contra o meu direito; não podia trazer-me aqui, pois não fiz mal para ninguém!
Enquanto minha mãe descansava, o Kinker havia tomado uma respeitável dose de cerveja e fez um absurdo comigo: por punição, levou-me para fora e pôs-me no meio do jardim. E eu, soluçando, dava os meus argumentos e interpelava o alemão em nome da justiça... com três anos de idade! Era o encontro da candura com a embriaguez. Eu não entrava em casa, mas continuava sentado, e dardejando um argumento no meio do choro. Entretanto,  não me queixava por estar na chuva nem pedia para falar com mamãe – o que seria natural! – mas analisava a retidão ou não-retidão daquilo que o bêbado fizera comigo e, como cheguei à conclusão de que não estava certo, queixava-me por ver um princípio violado.
Sendo o Herr Kinker pessoa de certa idade, julguei que ele presumivelmente agia por ordem de minha mãe. Portanto, deveria obedecer-lhe, mesmo se chovesse e ainda que fosse um absurdo. Para uma criança de três anos, isso reflete senso da obediência e do respeito ao principio de autoridade. Eu permanecia ali protestando sem desobedecer, mas afirmando meus direitos. Além do mais, tinha medo de que o alemão me batesse e, por isso, não fugia da chuva, mas falava alto e o enfrentava, desejando ser ouvido por ele e repetindo a queixa até mamãe vir me buscar.
Ela, naturalmente, não entrou nesses arrazoados, mas foi correndo e tirou-me da chuva, pois naquele tempo havia pânico de que as crianças se molhassem e, em consequência, ficassem resfriadas. Levou-me para o quarto, secou-me bem e colocou-me em condições convenientes. Depois me perguntou:
- Agora, meu filho, diga-me: o que você foi fazer lá e por que diz não ter praticado nada de mal?
- Esse alemão feio me pegou e deixou-me ali, dizendo que tinha obrigação de permanecer sentado no canteiro até ele me chamar. Eu respondi que não tinha feito nada para merecer isso e não estava de acordo. Mas ele mandou ficar, então fiquei. Isso é uma injustiça!
Não preciso nem dizer qual foi a inconformidade dela com a atitude do Herr Kinker. Logo que papai chegou trataram de mudar de pensão.

Mamãe  compreendia que esse “fatinho” indicava o primeiro passo na manifestação de um modo de ser e uma mentalidade”. 

(“Notas Autobiográficas – Plínio Corrêa de Oliveira – Editora Retornarei – Vol. I, págs. 73/75 e 78)





[1] Vide “O Juízo Moral na Criança” – de Jean Piaget  - Sumus Editorial, São Paulo

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