sábado, 28 de setembro de 2019

FAMÍLIA TRIBAL, GRUPO SEM QUALQUER VÍNCULO MORAL







Imaginemos como se inicia a formação de uma “família”  na tribo.  Inicialmente se forma um casal, que muitas vezes é fruto da conquista brutal do  homem que raptou a mulher, acrescido, algum tempo depois, de outras mulheres e de quantos filhos elas quiserem ter, na medida que assim o consentir a vontade de agradar ao homem. Carl von Martius afirma que “além deste modo violento (raptos), o selvagem brasileiro pode adquirir sua companheira por consentimento pleno do pai, de duas maneiras: por serviços prestados na cabana do sogro...  ou por compra”. Esta “compra” deve ter consumado o seu pagamento por certa quantidade de animais caçados ou de alguma roça de milho plantada. De modo geral, portanto, a mulher se nivela a uma escrava, e muitas vezes de um senhor brutal que a submete pelo resto da vida sob ameaças até de morte.  Na incipiente união tribal não há palavra dada, promessas e juramentos a cumprir, isto é, qualquer forma rudimentar de contrato social: requer apenas (quando o pai o exige) a  presença de um pajé ou do cacique para aprovar aquela união, feita sem qualquer comprometimento moral de ambos os consortes.


Informações do Padre Anchieta sobre a noção que os índios tinham da família

I – Indissolubilidade – Nenhuma noção, apenas casos isolados de índios que viveram toda a vida com uma só mulher sob seu poder, mas sempre tendo outras em outros lugares:
“Dos que têm uma só mulher de que houveram filhos, com a qual perseveraram até à velhice, pode haver mais dúvida, porque parece que estes têm diferente afeição e ânimo marital, não porque no princípio o tivessem tal, porque todos se juntam com elas duma mesma maneira. E também estes, como todos os outros, “in preparatione animi” têm muitas, e se não as tomaram, foi não por se terem por obrigados àquelas, senão porque houveram filhos delas, e os serviram bem, e lhes foram leais, e não tiveram poder para ter outras...”
II – Adultério, poligamia, ciúmes – “O adultério não costuma suscitar atentado contra a vida da mulher, havendo exceções porém de extremas crueldades, coisa que nem sempre ocorre contra os outros homens por medo de suscitar revides. A diferença entre concubinas e esposas legítimas praticamente não existe”.
III – Legitimidade familiar – “Jamais usavam o adjetivo “etê” (legítimo, verdadeiro, excelente), em matéria de parentesco. Sobrinhas por parte das irmãs eram despojadas, pois só considerava do mesmo sangue ou “filhas” as que nasciam dos irmãos: só a geração paterna era levada em conta, nada mais  representando a mulher do que um saco para o desenvolvimento do ser humano; o nome “Temirecô etê”, isto é, “Uxor Vera”, creio que o tomaram dos padres, que lhes queriam dar a entender a perpetuidade do matrimônio, e qual é a mulher legítima, porque este vocábulo “etê”, que quer dizer legítimo, usam eles nas coisas naturais da sua terra, e assim o seu vinho chamam “cãoy etê”, vinho legítimo, verdadeiro, à diferença do nosso a que chamam de “cãoy áyá”, vinho agro. As suas antas chamam “tapiretê”, verdadeira, e às nossas vacas à sua semelhança chamavam “tapyruçu”, vacas grandes, etc.  Mas na matéria de parentesco nunca usam deste vocábulo “etê”, porque chamando pais aos irmãos de seus pais, e filhos aos filhos de seus irmãos, e irmãos aos filhos dos tios irmãos dos  pais, para declararem quem é seu pai, ou filho verdadeiro, etc., nunca dizem “xerubetê”, meu pai verdadeiro, senão “xeruba xemonhangára”, meu pai que “me genuit”, e ao filho “xeraiara xeremimonnhanga”, meu filho “quem genuit”.  E assim nunca ouvi o índio chamar a sua mulher “xeremirecô etê” senão “xeremerecô”  (simpliciter) ou “xeraicig”, mãe de meus filhos; nem a mulher ao marido “xemenetê”, “maritus verus”, senão “xemêna” (simpliciter)  ou “xemenbira ruba” pai de meus filhos, do qual tanto usam para o marido, como para o barregão; e se alguma hora o marido chamar algumas de suas mulheres “xeremirecô etê”, quer dizer, mulher mais estimada ou mais querida, a qual muitas vezes é a última que tomou, porque “etê” também quer dizer fino ou estimado, como “caá etê”, mato fino, de boa madeira, “igbira etê”, pau fino, etc[1]



[1] “Textos Históricos” – Pe. José de Anchieta – Edições Loyola, 1989, págs. 78/80

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