sábado, 14 de setembro de 2019

A PRÁTICA DA VIRTUDE DA CASTIDADE ENTRE INDÍGENAS DO TEMPO DE ANCHIETA







Mas como? Então gente que se dedicava a uma luxúria desbragada, de repente passa a praticar a castidade? Sim, é verdade; e isto já de si constitui um estupendo milagre na ordem da graça.  Vários são os casos de verdadeiros atos de heroísmo e até de martírios ocorrido entre os índios que praticavam a castidade.  Um valoroso testemunho de São José de Anchieta:
“Observam-se em muitos, “máxime” nas mulheres, assim livres como escravas, mui manifestos sinais de virtudes, principalmente em fugir e detestar a luxúria, que sendo comum pernície do gênero humano, desta parte parece que teve sempre, não somente imperioso senhorio, mas até tirania muito cruel. E sendo isto verdade, é muito para espantar e digno de grande louvor quantas vitórias e triunfos alcancem dela. Sofrem as escravas que seus senhores as maltratem com bofetadas, murros e açoites por não consentir no pecado. Outras desprezam as dádivas, que lhe oferecem os mancebos desonestos.  Outras, a quem pela violência lhe querem roubar sua castidade, defendem-se, não somente repugnando com a vontade, mas até com clamores, mãos e dentes fazem fugir os que as querem forçar. Uma, acometida por um e perguntada de quem era escrava, respondeu: “De Deus sou, Deus é meu Senhor, a Ele te convém falar, se queres alguma coisa de mim”.  Com estas palavras se foi vencido e confuso e contava isso a outros com grande admiração.” [1]
Havia também exemplos de índios mancebos que recusavam se sujar na lama da impureza e procuravam preservar-se. Era comum o prisioneiro (prestes a ser morto no ritual de antropofagia) receber em sua cabana uma mulher para conviver com ela até o dia da morte. Em alguns casos, quando o prisioneiro era cristão, a malfadada companheira era recusada, como ocorreu num caso narrado por São José de Anchieta com um rapazola de 15 anos.

Exemplo de castidade heróica entre indígenas
Por ser uma virtude muito detestada pela Revolução e tenazmente combatida em todas as épocas, não poderíamos deixar de relatar um caso impressionante da prática da castidade heróica entre os índios cristãos. Quem conta o caso é o Padre Antonio Blásquez em carta escrita da Bahia, em 1558, e destinada ao Geral da Companhia de Jesus. Transcrevemos abaixo todo o relato, com todo o seu sabor da linguagem quinhentista:
“E para concluir direi por último o que aconteceu nesta cidade digno de edificação e, por ser no Brasil, de muita admiração. Foi trazida de casa de seus pais uma índia brasílica mui pequena e, criando-se em bons costumes em casa de uma dona honrada, afeiçoou-se tanto à virtude e cousas do Senhor que propôs em sua alma (ensinada não por homens, senão pelo Espírito Santo) de não conhecer varão e isto quanto lhe fosse possível.  Perseverando ela nestes desejos, cousa muito desacostumada entre as índias desta terra, o Demônio, inimigo da salvação dos homens, não podendo sofrer fazer tão grande desonra em terra onde ele é tão honrado, trabalhou que ela tivesse amos que a tirassem de tal propósito, e creio que assim fora se o Senhor não a prevenira antes com sua Graça, ornando-a de uma grande fortaleza para que pudesse resistir e vencer ao Demônio de uns não bons homens, por meio dos quais lhe queria roubar a jóia da castidade. Estes amos, pois, a cometeram muitas vezes querendo deflorá-la, aos quais ela resistiu com um ânimo mais que de mulher, rogando-lhes com as lágrimas nos olhos que tal cousa não quisessem fazer, pondo-lhes diante o mal que faziam a ela e a si mesmos;  finalmente quão grande desonra e desacato cometiam ao Senhor, verdadeiro amador dos limpos e castos.  Os senhores com tal novidade ficavam como atônitos e pasmados, e reconhecendo nela a virtude e a graça do Senhor, por algum tempo a deixavam;  mas não durava muito: creio que era parte por sua maldade, parte pela grande inveja do Demônio, que vendo que era vencido por uma índia brasílica, não criada em mosteiros nem em recolhimentos, mas nascida de gente boçal e quase selvagem, solicitava-os a que dobrassem sua alma a que consentisse nos seus torpes desejos, espantando-a algumas vezes com ameaças, outras atraindo-a com mimos e palavras brandas; mas por fim, como acerca de Deus valem muito pouco ardis dos homens e menos malícia do Demônio, ainda que ponha todas as suas forças, acontecia-lhes ficarem envergonhados e o Demônio confundido e vencido. Vendo-se, pois, a pobresita perseguida e acossada destes seus amos, e advertindo que nós outros veneramos a imagem de Cristo Crucificado, pôs em seu pescoço um Crucifixo para que com isso se amparasse e defendesse dos perversos amadores de seu corpo, dos quais não se podia ser livre, nem pelos rogos, nem pelas lágrimas que chorasse;  para esse efeito lhe dava o Senhor grande cópia delas. Entristecia-se a triste de ver a sua desventura, buscando todos os meios de parecer mal aos homens, para ver se com isto a deixavam: não queria trazer nada em sua cabeça nem coifa nem outra alguma cousa que lhe cobrisse os cabelos; mas antes  os trazia descabelados e mal compostos, para que desta maneira, parecendo feia adiante dos homens, fosse mui formosa diante dos olhos de Deus.
“Ó vergonha e confusão da gente cristã! Que uma moça brasílica confunda seus atavios e galas, com que desejam parecer bem aos homens e não a Deus, o que não fazia esta, que lhe sendo dito que se limpasse e, deixados os vestidos sujos que trazia, tomasse outros, respondia que não era necessário, que o seu  intento era agora dar e parecer bem a Deus, que aos outros não lhe dava nada parecer feia e descomposta. Não se acabaram com isto os seus trabalhos, porque, vendo um seu amo a sua grande constância, não se atreveu a cometer tal abominação dentro de casa, porque temia que dando ela vozes e gritos, fosse sentido e por conseguinte tido em má conta:  assim, levou-a para uma roça e estando ali sós, vendo ela que não tinha ali remédio humano, socorreu-se ao divino, que nunca a ninguém soe desamparar, e posta de joelhos diante do Senhor, os olhos arrasados de lágrimas, tirou o Crucifixo do pescoço e disse a seu amor: “Senhor, em reverência a este teu Deus que adoras, te rogo que não toques em mim, porque não te aconteça algum mal se o fizeres”.  Movido o amo com isto, desistiu de sua danada intenção e, vendo que não lhe aproveitava para o que ele queria, a vendeu a outro homem, com quem experimentou as mesmas fadigas e angústias e por isso muitas vezes lhe fugia e andava amontada por casas de homens honrados, rogando mui continuamente aos Padres que fizessem com que algum homem casado a comprasse, porque com solteiros já tinha experimentado que não podia ter vida: sua consolação e alegria é ouvir pregações e confessar-se muitas vezes e procurar que as outras índias  façam o mesmo, e dá-lhes o Senhor tanta graça em falar dele, que os homens Cristãos  se maravilham das cousas que diz. Vendo os Padres a sua aflição, determinaram tirar nesta Páscoa alguma esmola, para que a forrassem e ela estivesse em casa de um homem  honrado, para que dali servisse aos pobres do hospital e da cidade, trazendo-lhes água e o mais necessário para o seu serviço; já se tem toda junta a esmola em que ela foi apreçada. Prazará ao Senhor, que a livrou de tantos trabalhos, dar-lhe sempre perseverança em seu serviço, pois, sendo antes cativa, tão livremente o servia”.[2]

Virtudes da índia Bartira contada por São José de Anchieta
“Um só exemplo contarei ainda, por me não deter em cada coisa particular, que não será cousa de menor alegria. Faleceu pouco há uma velha, que havia sido manceba de um português quase quarenta anos e havia gerado muitos filhos. Esta, como nossos irmãos, haverá nove anos, a admoestassem que olhasse para si e não quisesse ir-se ao inferno por aquele pecado, logo arrependida e conhecendo a maldade, em que havia vivido, aborreceu o p ecado e, perseverando em castidade, trabalhava de purgar seus pecados com muitas esmola, que nos fazia. Agora, ferida de uma longa e incurável enfermidade, foi-se a Piratininga, onde, feita uma casa por seus filhos e escravos, entendia somente em coisas relativas à salvação de sua alma. Confessava-se e comungava muitas vezes e, dando-nos muitas esmolas, aparelhava eternos tabernáculos no céu. Visitavam-na muitas vezes os irmãos e confortavam-na como divinas palavras, principalmente quando, já no fim, tendo corruptos os órgãos secretos (esta era uma enfermidade, que é muito comum nestas mulheres do Brasil, ainda virgens), exalava de si tão mau cheiro, que os mesmos seus a desamparavam. Mas o Pe. Afonso Brás e o Ir. Gaspar Lourenço, intérprete, dando maior atenção ao olor, que daí a pouco sua alma havia de dar, venciam o fedor que aos outros ere intolerável, e estavam toda a noite sem dormir, animando-a com divinas palavras, nas quais ela muito se deleitava, até que expirou com ditoso fim, com é de crer”

Nota: Desde 1551 cuidara, como se vê, Leonardo Nunes de atrair essa alma, cristã pelo batismo, à observância das leis divinas, no que “logo” foi bem sucedido.  Não há dúvida, pelas circunstâncias aqui enumeradas, que se trata da companheira de João Ramalho, mãe de seus numerosos filhos. Mbcy (Mbcy mesmo!), seu primeiro nome indígena, passou a ser conhecida pelo nome de Bartira. Isabel Dias, o seu nome cristão. [3]



[1] “Cartas – Correspondência Ativa e Passiva – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Ed. Loyola, 1984, págs. 160/161
[2] “Cartas Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” – Azpilcueta Navarro e outros – Ed. Itatiaia, págs. 216/218
[3] “Cartas – Correspondência Ativa e Passiva – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Ed. Loyola, 1984 – págs. 157/158 – Nota, à página 170

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