sexta-feira, 30 de maio de 2025

O HEROÍSMO DE SANTA JOANA D'ARC POR SER INOCENTE, CASTA E VIRGEM

 




            A impressionante história de Santa Joana D’Arc comprova a extraordinária intervenção divina em prol da Cristandade. Há anos que França e Inglaterra estavam em guerra, a famosa “guerra dos cem anos”. Em 1422 morre o rei de França, Carlos VI, mas de tal forma a nobreza francesa estava decadente que, nas exéquias reais, compareceu apenas o duque de Bedford, regente da França em nome do rei inglês. Era uma usurpação do trono francês, uma pretensão descabida. O herdeiro do trono, que na França se chamava Delfim, levantou-se contra tal injustiça e a guerra se reiniciou.

Haviam dois partidos na França, os Armagnacs e os Borgonheses. A facção dos Armagnacs era aristocrática, representando a nobreza feudal e o patriciado urbano. Os Borgonheses, à frente dos quais estava João Sem Medo, aliaram-se aos ingleses, enquanto os Armagnacs eram fiéis ao legítimo sucessor do trono, o delfim Carlos VII. Com o assassinato do Duque de Órleans, em 1407, por adeptos do Duque de Borgonha, a violência atingiu seu auge e a França ficou temporariamente sem rei. Jean Plantagenêt, duque de Bedford, foi nomeado regente do trono francês pelo rei da Inglaterra e foi um dos responsáveis pela execução de Santa Joana D'Arc, juntamente com o bispo Couchon, adepto da tese de "dois reinos e uma só coroa" defendida na Universidade de Paris. Aos poucos os Borgonheses foram pendendo mais e mais para o lado dos ingleses, até que João Sem Medo, vencendo a batalha de Azincourt, oficializou a adesão. Com suborno conseguiu fazer inspirar na Universidade de Paris a tese de uma só coroa para os dois reinos, favorecendo desta forma o rei da Inglaterra. A paz entre as duas facções só ocorreu com o Tratado de Arras, em 1435, entre Felipe o Bom, Duque de Borgonha, e Carlos VII, então já rei da França.

Enquanto a nobreza se enfraquecia e se mostrava impotente para defender o trono, nas camadas mais humildes havia um arraigado e profundo sentimento de amor à dinastia, tão firme como a piedade cristã havia ali se instalado ao longo dos séculos. Principalmente entre os camponeses, a fidelidade ao trono era como se fosse um instinto natural, uma paixão vibrante e pura.

A única legitimidade pertencia a Carlos VII, que deveria ser sagrado, como mandava a tradição, em Reims. Estava o povo francês envolvido por estas convulsas conturbações, agravadas pela guerra, quando nasceu numa pequena aldeia Armagnac do Barrois, Domrémy, a heroína que veio a salvar a nação da catástrofe.

Joana D’Arc era filha do casal camponês Tiago d’Arc e Isabel de Romée, uma autêntica filha do legitimismo mais puro que se arraigara no povo francês, uma camponesa acostumada com a vida dura e cheia de sacrifícios. Fora educada no mais rigoroso espírito católico daquele rústico povo, onde acima de tudo devia imperar a honestidade, o bom senso e, sobretudo, a castidade.

Tinha apenas treze anos de idade quando ouviu pela primeira vez a voz do Arcanjo São Miguel. Ela mesma narra como ocorreu:

“Quando eu tinha mais ou menos 13 anos, ouvi a voz de Deus que veio para ajudar-me a me governar. Na primeira vez, tive medo. E veio essa voz, no verão, no jardim de meu pai, por volta do meio-dia (...). (...) Depois que eu ouvi essa voz três vezes, percebi que era a voz de um Anjo (...). “...Na primeira vez, tive dúvidas se era São Miguel que vinha a mim, e nessa primeira vez tive muito medo. E eu o vi, depois, muitas vezes, até saber que era São Miguel... Antes de tudo, ele me dizia que era uma boa menina e que Deus me ajudaria. Entre outras coisas, disse-me para eu vir em socorro do rei da França... O Anjo me falava da piedade que existia no reino da França”

A partir daquele dia, o Arcanjo fazia-se ouvir à jovem donzela e para ela transmitia suas instruções de como proceder, terminando por convencer os nobres e o rei e, finalmente, vencer os inimigos externos.

Muitas pessoas se equivocam sobre a forma como Santa Joana D’Arc se comportava. Imaginam que ela tinha o temperamento másculo e que, graças a isto, mantinha sua superioridade sobre os homens. Nada disto, Santa Joana D’Arc continuava tão feminina como qualquer donzela de seu tempo. A diferença é que ela estava sendo orientada pelo Arcanjo São Miguel, devido sua pureza e santidade, a intervir nos acontecimentos e fazer mudar o curso da história.

Inicialmente, ela pediu para ser levada à presença do Delfim, pois tinha coisas muito importantes a lhe dizer. A jovem donzela deveria ter pouco mais que 16 anos. Tanto insistiu com os homens que rodeavam o herdeiro que, finalmente, lhe deram crédito e foi recebida. São Miguel a orientava e dizia sempre o que fazer ou o que dizer nas horas apropriadas. Para ser enganada, colocaram o Delfim vestido da forma mais simples e puseram no lugar dele um outro. Santa Joana D’Arc não se enganou, orientada por São Miguel dirigiu-se diretamente ao Príncipe, futuro Carlos VII, embora nunca o tenha visto antes. Isto causou pasmo a todos, e a partir daí tudo o que ela dizia passou a ser acatado pelos nobres que rodeavam o Delfim, e às vezes por ele mesmo.

Quando a Santa conseguiu convencer os franceses de que com “bonnes buffes et bons torchons” e somente “pour la pointe de le lance” – bons talhos e bons golpes, e pela ponta da lança – se poderia vencer o inimigo, a moral das tropas se elevou e as levou à vitória. Sua colaboração foi aceita pela corte de Burgos (sede provisória do reino francês), e aí então deram-lhe uma casa onde pudesse ficar reservada, isolada dos demais, um escudeiro e dois pajens para lhe armar, um confessor, um capelão e dois arautos. Era o seu “staff”.

Pouco usou Santa Joana D’Arc das armas, se é que alguma vez fez uso delas. Há historiadores que falam de seu ímpeto guerreiro, tendo usado da espada para defender-se e para atacar, chegando a matar inimigos. É possível. Mas o que ela mais se utilizou foi de seu profetismo, dom dado por Deus para comandar as tropas, e as orientações dadas pelas vozes de São Miguel. Transmitia ela tal entusiasmo aos soldados, que eles partiam para a guerra motivados e alegres.

Para alguns pode ser difícil imaginar como é que uma mulher, acima de tudo uma inexperiente donzela que nunca pegou em armas, poderia comandar um exército. Vejamos como se deu sua primeira vitória militar, narrada (com abreviações nossas) por um escritor moderno:

 

O cerco de Órleans

“O cerco de Orleães se processava. Aumentando a confiança inglesa, em 12 de fevereiro de 1429 ocorria a “jornada dos arenques”. Compreensivelmente, uma correspondente inquietação se espalhava entre os assediados, com os efeitos habituais do cerco se fazendo sentir pouco a pouco, traduzidos sobretudo por uma intensificação progressiva da penúria. Quando Joana d’Arc conseguiu, em 29 de abril de 1429, com víveres e um reforço considerável em homens de armas, furar o bloqueio, já os habitantes da cidade estavam ao corrente de sua aparição”...

“...Na verdade, o assédio inglês não tinha conseguido se constituir num bloqueio total... Ele consistia essencialmente no controle das bastilhas situadas na parte externa das pontes que conduziam às diferentes portas da cidade e situadas sobre o fosso de proteção que a rodeava, formado com as águas do próprio rio. Os efetivos previstos para a operação, dado o seu vulto, já não era dos mais numerosos, algo na ordem de 4.300 homens, cifra que nunca chegou a ser atingida. A sua dispersão em vários pontos representava, portanto, um ponto a favor dos franceses em caso de investida...”

Incentivando os soldados, indo na frente com bravura e audácia, Santa Joana d’Arc conseguiu elevar a moral da tropa e motivar os comandantes a partir para o ataque, de surpresa, apanhando os ingleses desprevenidos. Temeroso por ela, o comandante La Hire não permitiu que a mesma fosse na vanguarda e sim na retaguarda. Mas tudo ocorreu como a Providência desejava, pois logo a retaguarda se transformou em vanguarda, já que os ingleses, refeitos da surpresa, resolveram atacar por aí. Vendo-se em situação difícil, os ingleses recuaram e se concentraram na fortaleza de “La Tourelle”. A situação se inverte e os franceses é que passam a assediar os ingleses na fortaleza. Os comandantes, ainda meio moles e indecisos, querem suspender o cerco, mas Santa Joana d’Arc insiste. O conde de Dunois declarou em depoimento, 25 anos após, que só não suspendeu o assédio por insistência de Santa Joana d’Arc.

Durante a noite, o comandante inglês, lord Talbot, retira suas forças e levanta definitivamente o cerco de Órleans. Como se vê, não há um só relato de choques guerreiros de Santa Joana d’Arc com soldados inimigos, parece que ela não chegou sequer a manejar a espada, pelo menos neste episódio, embora o fizesse se fosse necessário, talvez auxiliada pela destreza e pela força de São Miguel. No entanto, sua presença, seu entusiasmo, sua insistência em partir para a luta, era o ponto forte, era a alma viva do exército francês. Fala-se de um episódio em que ela, de espada levantada, avançou sozinha gritando ordem de “atacar”. A tropa, atônita, não teve outro recurso senão segui-la, e vencer. No entanto, não se comenta se ela deu um só golpe de espada, apenas foi na frente para animar as tropas que logo a seguiram.

Outro depoente, o duque de Alençon, se mostra categoricamente convencido da capacidade militar de Joana d’Arc, realça sua habilidade em dispor as tropas no terreno da luta, encorajando-as a batalhar com denodo, e sublinha particularmente a sua habilidade na utilização das peças de artilharia. Como é que a donzela de Domrémy havia conseguido em pouco espaço de tempo adquirir tais qualidades e experiências? Evidentemente que tudo ela fazia por inspiração e orientação direta do Arcanjo São Miguel. Não há outra explicação para o fenômeno.

 

O confronto de Patay

Procuremos, mais uma vez, ouvir o relato categorizado do historiador que detalhou os fatos posteriores ao cerco de Órleans:

“Levantado o cerco de Órleães, mais uma vez por inspiração da Donzela, resolveu o comando encarregado de sua defesa prosseguir suas ações com uma operação de limpeza do Loire, desembaraçando-o das guarnições inglesas que ocupavam fortalezas situadas em suas numerosas pontes. Todavia, em seu transcorrer, transformou-se essa atividade numa perseguição pródiga em miúdos incidentes, em cujos detalhes não podemos entrar, das forças inglesas que, comandadas por Talbot, se retiravam de Orleães e que esperavam a junção de importantes reforços sob o comando do vencedor da “jornada dos arenques”, Sir John Fastolff. Na liderança francesa se destacavam o duque de Alençon; o “marechal de campo”, sire de Boussac; o “bastardo de Orleães”; o condestável, sire de Richemont, então em desgraça e cuja adesão só foi aceita depois de muita hesitação; o sire La Hire, além da própria Joana d’Arc. Como todos comandavam companhias mais ou menos numerosas, conclui-se que se tratava da mobilização do grosso dos recursos em combatentes dos partidários do Delfim”.

“A notícia de que as tropas de Talbot já tinham recebido a junção das de Fastolf provocou reações de hesitação dos chefes franceses quanto à conveniência de procurar um confronto, cabendo mais uma vez a Joana d’Arc convencê-los de que os ingleses absolutamente não eram imbatíveis. Decidida a busca do choque direto, organizou-se então uma vanguarda sob o comando de La Hire, composta de uns 1.500 homens a cavalo para tentar alcançar a força inimiga em retirada para fustigá-la e obrigá-la à formação de combate, entretendo-a até a chegada do grosso das tropas. Apesar de seus veementes protestos, foi a donzela mantida na retaguarda, reservada para a ação principal, que acabou praticamente por não ocorrer, frustrando a sua participação mais ativa do único combate de envergadura do período de sua atuação. Do lado dos adversários, os dois comandantes não se entendiam, com Talbot mostrando-se ansioso por uma desforra imediata do insucesso de Orleães, enquanto Fastolf propugnava a continuidade da retirada, até a junção com novos e importantes reforços então sendo levantados, mais consideráveis do que os representados pelo contingente que o acompanhava. Prevaleceu o último de ponto de vista e seu defensor foi encarregado de comandar a vanguarda, constituída pela maior parte dos efetivos, enquanto seu colega, na retaguarda, supervisionava a retirada com um grupo menor de combatentes”.

“O choque entre a “vanguarda La Hire”, como ela passou a ser designada após seu inesperado sucesso, e a retaguarda de Talbot se deu quando as forças ingleses se embrenhavam por um bosque situado nas proximidades de Patay e uma série de fatores beneficiou os perseguidores. Ao contrário do ocorrido em Crecy e Poitiers, o terreno apresentava-se para eles como uma descida, mas os arbustos que proliferavam na área impediam que divisassem os retirantes. Foi então que, providencialmente, surgiu um cervo entre as duas tropas. Perseguido pelos franceses, ele foi se chocar com a retaguarda inglesa, cujos gritos advertiram da proximidade dos inimigos, os quais, sentindo-se descobertos, procuraram ás pressas abrigar-se atrás dos arbustos, com os arqueiros preparando-se para lá fincar suas já tradicionais estacas protetoras. Mas não lhes foi dado tempo para alinhar-se convenientemente pois, percebendo o quando lhes eram favoráveis as condições de luta, comandou La Hire uma investida fulminante. Enquanto Talbot procurava desesperadamente organizar uma disposição defensiva eficaz, o pânico tomou conta do outro grupo que, na circunstância, de vanguarda, transformou-se em retaguarda. Constatando a impossibilidade de controlar seus homens e instado por seus imediatos, Fastolf não tardou a aderir ao movimento de fuga que se alastrava, decisão que lhe valeu – além de punições imediatas e de uma desgraça transitória – a transformação, junto à posteridade, em personagem central, como um poço de vícios e fraquezas, com o nome alterado para Falstaff, de numerosas farsas e óperas bufas”.

Embora a maioria dos cronistas não falem explicitamente de lances em que a Santa se envolveu nos episódios violentos da guerra, o entusiasmo dos franceses cresceu porque ela estava lá presente. Se assim agiram os soldados e comandantes, indo de encontro valorosamente aos ingleses, é porque a Santa havia insistentemente proclamado a necessidade de sempre atacar sem dar oportunidade ao inimigo de se organizar. La Hire terminou a batalha matando mais de 2 mil ingleses e fazendo mais de 200 prisioneiros.

Após triunfo tão glorioso, cumpria agora sagrar e coroar o rei de França, Carlos VII. A campanha pela sagração do rei durou poucos dias, de 29 de junho a 16 de julho, quatro meses após a aparição de Joana d’Arc na corte de Burges. Estava cumprida sua missão.

O restante da vida da Donzela de Domrémy foi marcado pela intervenção da Divina Providência que lhe preparou o martírio e a santificação. Aos poucos foi sendo abandonada pelos seus amigos, pelo rei, até ser virtualmente entregue e presa pelos inimigos da França. Levaram-na a um iníquo julgamento, sob o pretexto inquisitorial de combate à bruxaria, e consumiram sua vida numa fogueira. Estávamos a 30 de maio de 1429.

Oitenta anos depois, em 1509, Henrique VIII subia ao trono na Inglaterra e arrastava aquela Nação para as garras odiosas do Protestantismo. Se a França estivesse sob o poder daquele indigno e infiel monarca, talvez não estivesse permanecido católica até hoje, ou talvez se tivesse reacendido uma guerra tão tremenda que teria arrasado o país.

A reabilitação de Santa Joana D'Arc durou séculos. No decorrer de todo o restante do século XV, era lembrada apenas entre o povo mais humilde da França, de modo especial por devotos do interior e poetas populares. O fervor católico em torno da heroína nacional ficou retratado, nesse tempo, apenas por uma poetisa, Cristina de Pisan. Cem anos depois, surgiu um poema épico de Chapelain, o qual serviu (no século seguinte à sua publicação) de inspiração ao ímpio Voltaire em suas sátiras malditas contra a Igreja. Essas injúrias de Voltaire, publicadas em 1762 já quase no fim de sua vida, mostra a que ponto chegou a impiedade, que tinha o visível intuito de ridicularizar a sociedade sacral do Ancien Regime. E foi exatamente durante o período da Revolução Francesa, quando precisaram reacender no povo o “patriotismo” contra as supostas invasões estrangeiras, que se realizou sério estudo por Clément de l’Averdy para se divulgar a história verdadeira de Santa Joana D’Arc. A partir daí foi crescendo entre o povo francês a veneração pela Santa, embora já houvesse forte devoção por ela em várias partes do interior do país.

Auscultando o sentimento de devoção popular, surgiram depois vários resumos históricos, poemas, e até romances históricos, como do alemão Schiller, dando universalidade à devoção que antes era apenas francesa. Finalmente, Santa Joana D’Arc foi canonizada no início do século XX no pontificado de São Pio X.

 

quinta-feira, 29 de maio de 2025

UM MEDIEVAL VISITA O SÉCULO XXI

 




 

O pequeno Rivière era muito meditativo, e por amar muito a Religião e a Pátria sonhava frequentemente com as duas. Consternava-lhe ver quão decadentes viviam as pessoas: sua época, o século XIII, já era profuso em costumes e ideias revolucionárias. Na cidade em que morava as pessoas muito comumente procuravam deleitar-se com os prazeres da vida, e tudo faziam para evitar qualquer sacrifício, dureza, cruz, sofrimento. E assim, muitos riam folgadamente, passeavam despreocupadamente, viajavam a procura de aventuras e novidades e, sobretudo os jovens, tinham como objetivo de suas vidas não mais o heroísmo e sim o romantismo amoroso.

E o jovem pensava: aonde vai dar tudo isto? “Se continuarem assim – dizia -, abandonando o dever pela busca do prazer, que restará de nossa juventude? Que será de nosso futuro?”

O sacrifício, antes tido como decorrência natural do pecado original, agora passa a ser desprezado a qualquer custo: deste modo, as roupas, as modas, os costumes, as preferências de todos, tudo enfim, tendia a caminhar para a gostosura da vida. E o garoto franzia o seu semblante, dia e noite, presenciando cenas, ouvindo conversas, vendo fatos que contradiziam, embora com pouca ênfase em alguns casos, todos os princípios cristãos para os quais houvera nascido e criado.

E foi assim que, certa noite, Rivière sonhou. Era um sonho bem diferente dos que costumava ter. Foi algo muito inusitado para ele. Em seu sonho ele se encontrava num mundo completamente diferente. Achava-se num futuro bem distante de seu tempo, quase oito séculos após. Em sua época já se falava que haveria um futuro cheio de paz e tranquilidade. Mas, na realidade, o que ele presenciava de paz em seu sonho era completamente diferente do que as pessoas imaginavam em sua época. Ele ficou muito chocado com o que viu:

- Que lugar estranho! – pensava. Para que tanto rebuliço? E quantas pessoas juntas! Quanta multidão a caminhar de um lado para o outro! Por que será que estão assim reunidos andando ao léu sem destino? Não vejo ninguém chamando-os para alguma batalha, nem tampouco para alguma peregrinação religiosa, e no entanto eles andam com pressa, embora sem rumo e sem um objetivo definido...

Repentinamente foi abordado por alguém que o observava:

- Olá, rapaz! Não está sentindo calor? Ou está vindo do frio?

- Calor? Que calor? Nós geralmente sentimos muito calor quando estamos empenhados numa batalha – sentimos o calor da luta. A que calor está se referindo?

- O calor do tempo, ora essa! Não ver que o sol está a pino? Por que não tira estas roupas pesadas? Refresque-se!

- Refrescar-me? Em minha terra nós nos refrescamos quando estamos cansados após dura batalha ou renhido trabalho, mas neste caso entramos em casa e nos recostamos a um leito.

- Não me diga que em sua terra as pessoas usam estas roupas pesadonas em pleno verão, suando deste jeito... é verdade? Se for assim, de que terra você veio?

- Olhe, amigo, antes do desconforto do meu corpo está a paz de minha alma, e porque a prezo muito é que procuro vestir-me dignamente; quanto ao corpo, porém, não é verdade que estou suando mais do que o senhor, nem tampouco sentindo mais calor...

- Pode chamar-me de você mesmo, pois eu não sou senhor. Quero ver você provar o que disse: como posso estar suando ou sentindo mais calor que você se uso roupa leve e fina?

- É simples: o calor não vem diretamente para o meu corpo, pois o mesmo está protegido pela roupa. Quanto ao senhor, verifique que nos lugares onde a roupa não cobre, ou protege menos, o suor é mais intenso. Se quer um exemplo melhor, veja aquele palacete quadrado ali defronte, onde várias pessoas estão vestidas apenas com alguns trapos e sendo servidas por alguns lacaios muito bem vestidos. Veja... ali em frente, senhor.

- Já disse que não sou nenhum senhor. Chame-me apenas de você. Estava se referindo àquele hotel quando mencionou “palacete quadrado”? As pessoas ali que você diz usarem trapos nós chamamos de turistas e o que denomina de “lacaios” nada mais são do que os garçons que os estão servindo.

- Turistas? Garçons? O que vem a ser isso?

- Ah, que ignorância! Turistas são estas pessoas que vivem viajando e se hospedando em hotéis, isto é, hospedarias, com piscinas e outras diversões. E garçons são estes homens que lhe servem bebidas e comidas enquanto se divertem. Vamos lá, que quer dizer sobre o calor que estão passando ali?

- Não importa como são chamados, pois, na realidade trata-se de lacaios servindo a seus senhores. Veja que os chamados “garçons” estão todos bem vestidos, com roupas “pesadas” como falou, alguns até de gravatas, enquanto que os “turistas” estão vestidos apenas com alguns trapos de panos. No entanto, não se vê um só garçom com calor e suando, enquanto entre os turistas há alguns que até estão se abanando de tanto calor.

- Nunca tinha notado isso. Como se explica?

- É que o calor vem direto para o corpo dos mal vestidos, que estão sem a proteção das roupas, enquanto que os garçons têm o corpo protegido pela roupa e sofrem menos os efeitos do tempo. Afinal, como se chama o senhor?

- Por que teima em chamar-me de senhor?  Veja que não sou tão velho assim. Para nós o termo senhor significa velhice, decadência, enquanto “você” é um tratamento mais igualitário e denota juventude. Deixemos isso de lado. Diga-me de onde veio e seu nome.

- Meu nome é Rivière: como vê sou jovem ainda, mas mesmo assim já estou me preparando para ser armado cavaleiro pelo meu senhor, o grande duque de Lyon. Venho sendo adestrado há bastante tempo pelo duque. Por enquanto estou sendo apenas seu pajem, mas ele me prometeu...

Rivière foi interrompido por uma estrepitosa gargalhada. Após breve silêncio, o estranho falou:

- Pois meu nome é Estrofe do Pé Quadrado e tudo o que você está dizendo bem demonstra sua insanidade mental. É pena, tão jovem e já um tanto desmiolado...

- Ah,é? Pois fale-me um pouco do senhor: quem é, de onde veio, o que faz aqui e o que pretende na vida em seu futuro.

- Apesar de não gostar que me chame de senhor, pois isto me aborrece, vou lhe falar um pouco de minha pessoa. Como disse, meu nome é Estrofe do Pé Quadrado, um nome estranho realmente mas muito do agrado de meu pai, que era poeta: como nasci aleijado deste pé esquerdo, ele por ironia e irreverência colocou-me tal nome. Hoje em dia, é bom que saiba, as pessoas usam muito de ironia e irreverência.

- Que horror! Ironia e irreverência – que absurdo!

- Por que se espanta? Saiba que vivemos numa época em que tudo caminha para a irreverência. E a ironia também está muito em voga. Como é lá na sua terra?

- Pois em minha terra, ou em meu tempo, os nomes das pessoas são postos conforme determinadas tradições religiosas ou de família, geralmente em homenagem a santos nossos protetores. Ao contrário, nós primamos pela reverência e respeito ás pessoas. Respeitamos muito a dignidade da pessoa humana. Por isso o tenho chamado de senhor.

- Pelo que vejo você não é deste mundo: onde nasceu? Em que época?

- Como já disse, sou de Lyon, França. Nasci em 1294, portanto, no final da Idade Média.

- Vou acreditar no que diz, somente para ver até onde quer chegar. Sendo assim, encontramo-nos, eu e você, nesta movimentadíssima avenida de Nova Yorque, conversando sobre nossas terras ou nossas eras históricas, sendo eu deste século XXI e você da Idade Média – uma diferença de quase oito séculos. Na realidade, estou aqui de passagem.

- Turista também?

- Um pouco de turista, mas muito mais de comerciante, pois venho sempre aqui fazer compras.

- Nasceu em que país?

- Sou brasileiro, nasci em São Paulo. Aqui estou a negócios, e você?

- Não sei como cheguei até aqui. Tudo é muito estranho, estou confuso e perplexo. Não entendo certas coisas que estou presenciando. Por exemplo, o que são aqueles bólides luminosos andando sobre caminhos negros lá embaixo?

- São veículos, espécie de carruagens de seu tempo, mas movidos por si mesmo, que chamamos de automóveis. As estradas negras chamamos de auto-estradas, e a cor escura é devida ao breu ou asfalto de que são feitas.

- E naquelas ruas,  para que tantas cordas esticadas naqueles postes?

- São fios elétricos. Através deles corre energia elétrica para acender as luzes e mover as máquinas e aparelhos elétricos em geral.

- E por que as pessoas andam assim tão confusamente pelas ruas? Veja quanta multidão andando ao léu sem destino... quanta balbúrdia, e como se vestem de maneira ridícula!

- As pessoas que você vê estão andando pelas calçadas, pois se andarem pelas ruas podem ser atropeladas pelos carros. Quanto às roupas,  não vejo nada de ridículo nas que as pessoas estão vestidas hoje em dia: ridículo está você aí com este jaquetão grosseiro!  As roupas modernas são leves, alegres, poucas pra não fazer calor, a fim de que as pessoas se sintam mais á vontade e livres, acabando com aquela ideia de sufoco que havia antigamente. O importante é a liberdade, que começa pelos movimentos do corpo.

- Mesmo que esta liberdade leve a pessoa para a imoralidade?

- Imoralidade? Nós não sabemos mais o que é isso: há muito tempo que não existe mais moral em nosso mundo.

- Não sei como pode haver uma sociedade onde não haja respeito pela moral. Como é, então, o relacionamento entre as pessoas? Há dignidade? Existem leis superiores para serem cumpridas e manter a paz? Há também alguns costumes que levem as pessoas a um mútuo respeito? Tanta liberdade não acaba suprimindo alguns direitos como, por exemplo, o da privacidade?

- Chega de tanta pergunta. Estou gostando agora mais da conversa porque esqueceu-se de chamar-me de senhor. Vamos em frente. Nós baseamos nossa convivência social, meu rapaz, apenas na luta pela sobrevivência. Ou então, pelo dinheiro, ou pela posição social. Somente isto faz com que as pessoas andem se respeitando uns aos outros. Por causa da posição social respeita-se o delegado, o juiz, o prefeito, o governador; por causa do dinheiro respeita-se o gerente de banco, o financista e o homem de negócios, como o comerciante ou o industrial. A dignidade só existe para quem tem dinheiro e posição social. E todos assim gozam de liberdade, vivendo somente para este fim: a luta pela sobrevivência.

- Ah! Agora entendo porque não quer que o chame de senhor. Neste seu mundo quem não possui dinheiro e posição social torna-se um pária. Não há respeito pelos pobres. Onde está a dignidade do homem como filho de Deus? Meu Deus, que horror!

- É o século XXI, meu chapa! Nós vivemos hoje a lei da selva: não a selva da floresta, mas a selva de pedra das grandes cidades, onde tudo converge para esta luta de que lhe falei. Quem não vencer neste mundo fará parte da escória e para este nossa sociedade tem reservado apenas alguns. cortiços, certas favelas, um submundo terrível, pois não há outra saída. Quanto aos demais, os que conseguirem se superar e vencer na vida, gozarão felizes a doçura do “bom viver”, com automóveis e aviões de luxo, viagens turísticas, luxuosos hotéis de veraneio e clubes com piscinas super-confortáveis. É a vida, meu caro! Alguns têm que penar para outros gozar!

- Como é triste teu mundo.

- Triste? Você está louco! Dê uma olhada nestas ruas e veja quantas casas de diversões e entretenimento irá encontrar. Aposto em que em sua terra, ou em seu tempo, nada disso havia.

- Não vejo tais diversões como fruto de uma verdadeira alegria. Não acredito que depois de tanto frenesi as pessoas não se sintam com a consciência pesada.

- Como é que a consciência pode ficar pesada?

- Pode ficar pesada e doer, sabendo-se que o resto do mundo pena muitas misérias e  há muita injustiças a corrigir, enquanto se diverte e se goza a vida de uma forma assim tão despreocupadamente.

- Não, meu caro, nós não temos problemas de consciência. Encontramos na vida moderna vários recursos com que possamos abafar a consciência. Procuramos sempre a fuga da dor, principalmente disso que se chama “dor da consciência”.

- Como é feito isso?

- Simplesmente não nos preocupamos com os outros! É cada um por si. E agindo assim não há como a consciência possa doer, ela parece nem sequer estar viva.

- Entendo. Gostaria de deixar patente, no entanto, que isto não lhes traz uma autêntica alegria. Não pode ser autêntica uma alegria que procura abafar a consciência ao ponto de deixá-la quase morta. A verdadeira alegria está no interior de cada um, onde deve morar com toda a força nossa consciência. Só pode ser verdadeira e autêntica esta alegria quando, ao nos divertirmos, a justiça, a paz e a união campearem ao nosso redor. Se o homem se diverte e goza, mas seus irmãos tudo sofrem, esta alegria é falsa. Mais ainda se a consciência não desperta e não lhe chama a atenção para a realidade que o cerca.

De repente, ambos percebem que há uma grande discussão numa rua onde se aglomerava pequena multidão. Perguntaram a um transeunte, tendo o mesmo dito que se tratava de um problema corriqueiro, uma briga por causa do lugar na fila.

- Como é isso? – pergunta Rivière – uma briga por causa de lugar na fila?

- Sim, isso ocorre com frequência hoje em dia. O sujeito está numa fila qualquer, ou para fazer uma compra, ou para ser atendido num banco, ou mesmo para embarcar num transporte, e de repente alguém “fura” a fila, isto é, passa na frente do outro. E daí surge a briga, pois o que está na frente não suporta ver o outro lhe passar na frente. É assim também na sociedade, de um modo geral, pois ninguém suporta ver outro passar na sua frente, e muita gente briga por causa disso.

- Mas, brigar por causa de um lugar numa fila?

- Sim, é um direito de quem estar na fila ter seu lugar respeitado – se alguém entra na frente está ferindo um direito...

- Oh mas que direito mais bobo? Como é que se briga por causa de uma coisa tão banal?

- No seu tempo ninguém brigava na fila?

- Não era costume haver filas no meu tempo, a não ser para se receber a Sagrada Comunhão, na Santa Missa. E aí, o normal é o contrário: as pessoas fazem questão de ceder seu lugar a outras.  Trata-se de um direito tão secundário, tão pequeno, que a gente pode ceder a outro sem qualquer dificuldade. Aliás, aprendemos que ser educado consiste exatamente em ceder alguns pequenos direitos nossos a outras pessoas. Se causam incômodos é para que nos acostumemos com eles.

- Já vi que você é um filósofo. Mas nosso mundo não vive mais de filosofia. Voltando ao assunto anterior, diga-me, como é que as pessoas se divertiam em seu tempo?

- Era algo muito diferente do que chamam hoje de diversão. Tínhamos naquele tempo cavalgadas, caçadas, jogos de armas, todo e qualquer passatempo era feito para aperfeiçoar o caráter das pessoas. Tudo era muito honesto e tão natural que a alegria se externava espontaneamente.

- Dir-lhe-ei o mesmo: como poderia ser verdadeira esta alegria em seu tempo se haviam guerras, injustiças praticadas pelos nobres, violência contra os pobres, etc?

- Era verdadeira nossa alegria porque a paz campeava em toda a sociedade e a justiça era aplicada em todo o corpo social. Haviam temporários rompimentos de paz, haviam alguns princípios de justiça feridos, mas logo, logo, eram corrigidos e reparados, pois haviam mecanismos sociais para reparar todos estes males, que sempre ocorrem entre os homens. Enquanto seu mundo é voltado para dentro de cada um, completamente egoísta, sem pensar senão no gozo e no prazer pessoal, o nosso, pelo contrário, tinha filosofia de vida completamente contrária: praticamos a caridade, amamos ao próximo como a nós mesmos e por amor a Deus, vivemos da abnegação e do sacrifício, temos cavaleiros que vivem para a proteção dos mais fracos, os pobres, os órfãos e as viúvas, nos preocupamos mais com a felicidade dos outros do que com a nossa. E isto nos torna mais felizes ainda.

- Pode ser verdade, mas não acredito no que diz. Não acreditamos, homens do século XXI, mais em ninguém. Para nós todos os homens são egoístas, interesseiros e ladrões. Todos são filhos do pecado e aqui pecam, alguns secretamente, os hipócritas, e outros abertamente, os sinceros. Não acreditamos mais em honestidade, em abnegação desinteressada, coisas do tipo amor ao próximo, não acreditamos mais em virgindade, etc. Pergunte por aí e não vai encontrar mais nenhum rapaz ou moça que saiba o que é castidade.

- Volto a repetir: como é triste o teu mundo! Nunca imaginaríamos que a busca desenfreada do prazer levasse o homem a tal decadência.

- Pois é: assim como não acreditamos no homem de nosso tempo, também não acreditamos no do seu. Acho que não é verdade que as pessoas de sua época eram abnegadas, desinteressadas, como dissestes. Pelo contrário, acho que eram todas interesseiras, egoístas e exploradoras umas das outras. Foi por causa delas que chegamos ao grau de miséria humana ainda existente no mundo atual.

- Seria impossível a construção da Civilização Cristã, palpitante na época medieval, sem que houvessem homens assim como lhe falei. Veja as catedrais góticas: quais interesses egoístas levariam os homens a construí-las? Veja as cruzadas à Terra Santa: que interesses pessoais e egoísticos levariam os homens a enfrentar uma guerra tão longínqua, sem qualquer objetivo expansionista ou de riquezas? Veja também os mosteiros, construídos em quantidade imensa: quais interesses egoístas em construir locais de oração, onde alguns se enclausuravam durante toda a vida, no mais completo recolhimento? E isto foi, meu caro senhor, o ponto alto da Idade Média.

- Já ouvi falar de algo assim, mas acho que tudo não passa de lendas.

- Então leia os compêndios de História, pesquise, procure conhecer o  período histórico de que falamos. O senhor precisa vencer sua descrença, e acreditar pelo menos na História de seus antepassados, que não são lendas, mas fatos que ocorreram em locais determinados com pessoas reais, e estão devidamente documentados. Além do mais, tanto as catedrais como os mosteiros e outros monumentos estão ainda de pé para atestar perante as gerações futuras  o que foi a Idade Média na alma de nosso povo.

- Por que continua me chamando de senhor?

- Porque assim o manda o respeito que tenho por sua dignidade, de ser dono de si, de deter o livre arbítrio e ser livre como deve ser todo filho de Deus. Nós nos chamamos de senhor por causa disso, e o senhor por que me chama de você o tempo todo?

- Porque somos todos iguais e este tratamento nos nivela, não dar a ideia de diferença e desigualdade. Nele não há destaque, não há distinção. Você é qualquer um, é igual a outro qualquer...

- Mas, não é verdade. Nós não somos qualquer um: somos filhos de Deus e detentores da dignidade própria desta condição. Além do mais, não somos iguais, somos completamente diferente e desiguais uns dos outros. Por isso, é necessário que sejamos tratados de forma diferente.

 

·                     *                      *                      *                      *                       *

 

 

 

Os sinos tocam pausadamente. As badaladas vão se sucedendo harmoniosamente, alternando sons graves e agudos de diversas igrejas. “Não, não pode ser – pensa Rivière – estes sinos não podem estar tocando no meio desta babilônica cidade. Estes toques me fazem lembrar meu mundo, minha cidade, minha querida Idade Média do século XIII e não no inferno desta babel”.

Sim, era verdade, os sinos da catedral e das outras igrejas de Lyon estavam tangendo. Logo, Rivière percebeu que seu sonho era um pesadelo. Levantou-se lépido da cama, pois não queria chegar atrasado à Santa Missa. Além do mais, o duque o estava esperando como sempre, e dormira além do normal. Ao sair, porém, na rua, ouviu certo murmúrio na praça. Eram comuns desde algum tempo aquelas azáfamas de vendedores que vinham de outras cidades. Um deles oferecia livros romanescos da cavalaria decadente: “O cavaleiro que salvou a princesa da prisão do castelo!” – gritava oferecendo seus cordéis. Era o título da obra. Alguns compravam, embora poucos soubessem ler.

Rivière vendo tudo isso, considerou pensativo:

- E pensar que tudo começou por aí. Estou presenciando o início do processo revolucionário em tudo o que se passa na minha cidade, cujo apogeu acabo de contemplar num terrível sonho que tive.

Soube de notícias do movimento renascentista que já se iniciara, uma tentativa de restaurar o mundo pagão depois que os grandes santos e doutores da Igreja haviam sepultado no pó da História aquelas velhas filosofias de vida que tantas misérias haviam produzido na humanidade antiga. Depois que a Igreja havia extirpado a escravidão, depois que as ciências, as artes, a cultura de modo geral começavam a tomar um impulso cristão e sadio, depois, principalmente, que predominava na sociedade católica um salutar convívio social e surgiam estudos para equacionar problemas seculares, os homens então começaram a querer retornar ao mundo romano-helênico e outros já decaídos.

E, aproveitando a ocasião, rezou algumas ladainhas e rosários pelo homem do século XXI. Pois, que solução poderia dar para problemas de tais magnitudes? Será que eles acreditariam, se lhes dissesse que estavam caminhando para aquela confusão vista em sonhos em época tão distante?

E o homem do século XXI? Seria ele capaz de sonhar como seria o futuro da humanidade, sete ou oito séculos após tanta decadência?

 (Extraído de "Choque de Mentalidades" - págs. 136/142 - séries de contos inéditos de minha autoria sob temas contrarrevolucionários)

 


terça-feira, 27 de maio de 2025

MANSIDÃO, IMPORTANTE VIRTUDE PARA SE EXERCER A VERDADEIRA REGÊNCIA

 



 

Nosso Senhor Jesus Cristo disse: “Os mansos possuirão a terra” (Mt 5, 4). A qualidade ou virtude primordial para a auto-regência, ou a regência pacífica e perfeita, é a mansidão, pela qual os mesmos mansos possuirão toda a terra e a regerão. Pois o termo possuir não implica somente em tomar posse de uma coisa, mas também em regê-la, governá-la. Já os “pobres de espírito” possuirão, além da terra, o Reino dos Céus, quer dizer, regerão o Céu Empíreo juntamente com os Santos Anjos. O Reino dos Céus, estando no coração dos pobres de espírito os fará completos e integralmente auto-regentes, capazes, portanto, de reger os demais. Os aflitos, os que têm sede de justiça, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, receberão dos Anjos (que os regem nesta vida) o consolo, a saciedade, a misericórdia, a visão divina e no final, como filhos legítimos de Deus, herdarão o Reino dos Céus (Mt 5, 5-11). A Bem-aventurança se constitui, assim, no prêmio obtido pela integral auto-regência, somente aquele que atingir a plenitude de seu ser a obterá. A bem-aventurança, como se sabe, é o ponto alto da felicidade humana, só possível com a “visão beatífica”, isto é, vendo e participando da felicidade divina na outra vida.

 

Mansidão, virtude principal dos que devem reger o universo

O que é a mansidão? Virtude que na Sagrada Escritura é tida como uma grande conformidade à vontade divina. Isso diz tudo: se nossa vontade é a potência essencial para exercer o poder de regência, estando ela em plena conformidade com a divina isso quer dizer que Deus estará nos regendo em co-regência conosco, com os próprios regidos. Esta virtude caracteriza o perfeito Cristão (Gál 6-1; Ef 4,2 e Cols 3, 12) e é exaltada como uma das principais da regência divina, pois Deus “...reina por meio da Verdade, da Mansidão e da Justiça” (Sl 44, 5). Também nas Sagradas Escrituras está escrito que “O paciente vale mais do que o herói, e o que domina o seu ânimo, mas do que o conquistador de cidades”  (Pr 16,32); Isto quer dizer, em síntese, que a forma mais perfeita de regência se inicia com a auto-regência, onde o homem consegue preliminarmente “dominar o seu ânimo”, mais importante do que dominar cidades.

A mansidão é a virtude pela qual o homem conseguirá reger plenamente a terra e seu universo. Segundo os princípios da regência, o manso é aquele que aceita de boa vontade a regência superior de Deus através dos Santos Anjos e vive inteiramente conformado com a vontade superior. Foi assim que procedeu Jó e tantos outros Patriarcas fiéis a Deus.

Bem-Aventurado os mansos (Mt 5,4) porque possuirão a terra – “Imitai aquele que disse: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”  (Mt 11, 29). Isto é, aceitai a regência divina sobre vossa alma, sobre vossa família e toda a vossa sociedade humana, que é doce, suave, humilde de coração; fazendo isso, possuireis toda a terra. Nosso Senhor disse “tomai o meu jugo e aprendei de mim”, querendo com isso dizer que devemos aceitar sua regência sobre nossas almas (o seu jugo), e fazer o mesmo que Ele fez (aprendei de mim), para também adquirir este dom de regência, que Ele repartirá com todos os que o seguem. Em seguida Ele fala de Sua mansidão e humildade, querendo, com isso, deixar bem patente no que consiste o seu jugo (manso) e em que devemos aprender d’Ele (a humildade).

“Os mansos possuirão a terra”. Isto quer dizer que os Justos, que devem ser também mansos, não somente julgarão todos os povos, mas terão domínio sobre eles: “[os justos] julgarão as nações, dominarão os povos e o seu Senhor reinará para sempre” (Sab 3,8). Estes não somente dominarão e regerão a natureza, mas a própria humanidade, e, quem sabe, alguma parcela dos Santos Anjos, conforme afirma São Paulo: “Porventura não sabeis que os santos hão de julgar este mundo?... Não sabeis que havemos de julgar os Anjos?” (1 Cor 6, 3).

Um exemplo, anterior a Nosso Senhor Jesus Cristo, tivemos em Moisés. Uma coisa que estava sempre presente nele era a sua bondade e mansidão. Ela se manifestava todo o tempo em que conduziu o povo hebreu. Por isso dele foi dito que era o “mais manso de todos os homens que havia na terra” (Num 12, 3). São Boaventura o chama “mansíssimo amicíssimo de Deus” (cf. “As Seis Asas do Serafim”).  Esta bondade não o impedia de indignar-se contra os que cometiam pecados contra a majestade e a dignidade divinas, e em alguns casos mandando-os executar como na ocasião do bezerro de ouro e da revolta de Natan e Abiron. Porém, no mais das vezes, Moisés intercedia pedindo a Deus pelo seu povo, como foi o episódio descrito em Números 14. Tendo Deus ameaçado castigar o povo com pestes e exterminá-lo, Moisés intercede pelo povo em tom de súplica (Num 14, 33-34).

Quando Moisés pedia pelo povo era atendido, mas em geral quando pedia para si era negado. Foi o que ocorreu quando quis ver a Terra Prometida, que por castigo Deus o tinha impedido: Deus negou atendê-lo, dizendo apenas: Basta; não falemos mais nisto, tu não irás ver a terra mas nomearás Josué em teu lugar (Deut 3, 24). Da mesma forma ocorreu de não ser atendido integralmente, por exemplo quando Maria, sua irmã, prevaricou, Moisés rogou a Deus por ela e obteve esta resposta: “Se seu pai lhe tivesse cuspido no rosto, não deveria ela estar coberta de vergonha ao menos durante sete dias? Esteja separada fora dos acampamentos durante sete dias  e depois será outra vez chamada” (Num 12, 14). Maria foi punida com a lepra e Deus só a curou após aquele período de opróbrio e penitência que o Senhor lhe impôs. Ora, Moisés tinha o poder de fazer milagres espantosos e poderia ter curado sua irmã imediatamente. Mas como a doença havia sido um castigo de Deus por causa de sua revolta, Moisés não a curou, mas pediu a Deus que a perdoasse e curasse: “Ó Deus, eu te rogo, sara-a...” Vê-se neste episódio que o taumaturgo nada faz sem estar em inteira consonância com a vontade divina.

Numa das murmurações que o povo levantava contra Deus, o Senhor irou-se e desceu um fogo do céu devastando uma parte do acampamento. “O povo, tendo chamado Moisés, Moisés orou ao Senhor e o fogo extinguiu-se” (Num 11, 1-2). Estes episódios demonstram que Deus sempre escolhe um intercessor entre Ele e os homens e só aplaca sua ira pelas orações de tais intercessores. Vê-se também o poder de regência que Deus havia lhe dado sobre a Natureza, especialmente sobre o fogo, o mesmo que haveria de conceder ao profeta Elias. Em todo o transcurso do Êxodo Deus fez com o povo eleito ganhasse a terra prometida, mas porque tinha Moisés como seu principal regente, por causa da grande mansidão que ele possuía.

 

Os graus da mansidão

No Evangelho, Nosso Senhor conta o caso de dois filhos. O pai ordenou a um deles que fosse trabalhar na vinha, e o filho concordou dizendo que ia fazê-lo e, no entanto, não foi executar o que se lhe mandou; o segundo filho ao receber a ordem disse que não ia cumpri-la, mas depois arrependeu-se e foi executar a tarefa. Jesus pergunta qual dos dois cumpriu a vontade do pai: se o primeiro que disse que sim, mas não executou a ordem, ou o segundo, que, em princípio disse que não ia, mas em seguida se arrepende e vai. É claro que o segundo filho é que cumpriu a vontade do pai. (Mt 21, 28-32)

Então, se a mansidão consiste em cumprir a vontade de um superior, e por via de conseqüência, a vontade de Deus, pratica a mansidão aquele que age e não aquele que fala. Não adianta dizer: sim, senhor! E não cumprir a vontade superior.  Bem-aventurados os mansos, pois possuirão a terra. Bem-aventurados os que cumprem a vontade dos superiores, e, por via de conseqüência, a vontade de Deus. Bem-aventurados os que agem conforme a vontade dos superiores que seguem a vontade divina. Bem-aventurados porque, por causa disso, Deus lhes dará o prêmio de possuir toda a terra, regerão o Universo juntamente com os Santos Anjos e os homens santos.

No discurso acima Nosso Senhor não fala, porem, de outros casos que podem ocorrer no cumprimento da vontade de um superior. Pode haver o caso, por exemplo, de um filho que diga “sim, senhor!” e realmente cumpra as ordens dadas; e também pode ocorrer casos raríssimos de filhos que nem precisa o pai ordenar que ele já vai executando tudo o que ele deseja. Este último é o caso do grau mais alto de mansidão, isto é, daquele que tem a vontade tão unida ao do pai que não precisa nem ele lhe transmitir alguma ordem, pois, antecipadamente ele já pressente o que o pai deseja e vai na frente executá-la sem que haja necessidade de manifestar seus desejos.

Vemos nestes exemplos onde estão os limites entre a obediência, a humildade e a mansidão.  No segundo caso, do filho que disse que não ia, mas em seguida foi cumprir as ordens paternas, houve, de início, um ato de desobediência, pelo menos verbal, ao dizer ao pai que estava disposto a desobedecê-lo. Sua obediência não foi, pois, perfeita pelo que pecou de início, pois lhe faltou humildade, embora tenha se redimido ao cumprir a tarefa depois.  A obediência está caracterizada nos casos em que se executa as ordens dos superiores e a humildade (junto com a obediência) quando se dispensa que se lhe dê ordens para cumprir a vontade do pai, ou, ao ouvi-la prometer que vai cumpri-la imediatamente. A mansidão, porém, está patente em todos os casos, pois é a virtude de quem cumpre a vontade superior. A virtude de quem cumpre a vontade divina. É por isso que Nosso Senhor disse de Si mesmo que é “manso e humilde de coração”, isto é, cumpridor das vontade e dos desejos do Pai. Diz-se que se cumpriu sua vontade ao executar suas ordens, e cumpre-se seus desejos quando se faz o que é necessário mesmo sem haver ordens.

OS MANSOS POSSUIRÃO A TERRA

“Há no Evangelho uma promessa de Bem-aventurança que diz o seguinte: “Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra”; bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra, bem-aventurados aqueles que não amam a rixa nem a briga, bem-aventurados aqueles que não amam a violência porque deles será a terra, deles será a terra porque eles atrairão a si o amor dos homens que realmente amam o Bem, deles será a terra porque eles saberão opor-se com uma força invencível àqueles que o queiram jugular por uma violência ilegítima;

- Oh, a força cristã do verdadeiro católico que tem a mansidão de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus;

- Oh, o verdadeiro católico que tem a força indomável de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Leão de Judá.

No momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo foi preso, alguém Lhe perguntou: “És Tu Jesus de Nazaré?”  E Ele respondeu: “Ego sum!” E todos, tomados de terror, caíram com a face na terra.  Esta é a majestade, esta é a força, esta é a dignidade daquele que tem a mansidão cristã.

Nosso país é um país cordato, um país que ama a mansidão, um país cuja história tem fugidas lutas, mas, se algum dia alguém de nós se aproximar e disser:

“És ainda tu, o Brasil cristão,  não aceitas a pressão que se quer fazer contra ti?”

Eu tenho certeza que esta nação responderá com a força que ainda ninguém lhe conhece, mas que está nascendo nos tormentos do momento atual, responderá: “Ego sum!” E os povos todos da terra e todos os ditadores serão obrigados a se prostrar, e os agitadores cairão por terra, porque conhecerão isto que existe, entre outras coisas, de autenticamente novo no Brasil novo: é a decisão de progredir fiel a si mesmo e fiel à tradição cristã, fiel à família e à propriedade, e de lutar como uma força que impressionará o mundo contra quem quer que imagine que sua mansidão é moleza e que contra ele pressões possam trazer resultados”. (Plínio Corrêa de Oliveira) [1]



[1]Extraído de conferência pronunciada no auditório da TFP na década de 70 e reproduzido no programa radiofônico “A Semana em Foco” sob o título de “A Aurora da Terra de Santa Cruz”.

sábado, 24 de maio de 2025

O PAI NOSSO E OS SETE DONS DO ESPÍRITO SANTO

 


            (O Pai Nosso em Jerusalém)


Na vertente ocidental do Monte das Oliveiras foi que, segundo a Tradição, Nosso Senhor nos ensinou a Oração Dominical, o conhecido Padre Nosso, ou Pai-Nosso. Os Cruzados construíram naquele lugar uma igreja destinada a perpetuar aquela recordação, depois arruinada. Sobre as ruínas daquele santuário, a princesa de Tour d’Auvergne mandou construir um novo, colocando no claustro que rodeia o edifício 32 quadros com o “Pater Noster”, em 32 línguas diferentes, conservado até os dias atuais.

O Pai Nosso está dividido em duas partes principais: na primeira se honra o nome de Deus  e se pede que traga Seu Reino até nós,  e na segunda pedimos que nos ajude em nossas necessidades. É bom notar que a Ave-Maria também está dividida em duas partes semelhantes: na primeira se honra a Virgem Maria e na segunda se faz as petições.  Vamos fazer uma análise sucinta da belíssima oração do Pai Nosso, considerada pelos santos como a mais perfeita:

PAI NOSSO: Por essa expressão, ou invocação, iniciamos a oração reconhecendo Deus como nosso Criador, o primeiro título de Pai, primordial que é ser o Autor de nossas vidas. Tanto é que São Cirilo de Alexandria, como veremos abaixo, diz que o principal nome como Deus deve ser chamado é o de Pai;

QUE ESTÁS NO CÉU: Em seguida vem o reconhecimento de Seu poder supremo, que é estar na eternidade e na glória: onde também está o Seu principal reino, ou reinado;

SANTIFICADO SEJA VOSSO NOME: Aqui não se trata somente de reconhecer Deus como Pai e Santo, completamente perfeito e bom, mas que essa santidade se manifeste pelo Seu nome, que é o de Pai;

VENHA A NÓS O VOSSO REINO: Parece-me que essa é a invocação principal da oração, o centro de tudo, a mais importante não só da primeira parte mas de toda ela, pois expressa o desejo de que o Reino de Deus, que está no Céu, não fique somente lá e desça até nós aqui na terra. Que a regência divina impere inteiramente em nossos corações!

SEJA FEITA A VOSSA VONTADE, ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU: Para que o Reino de Deus desça do Céu até nós aqui na terra, é necessário que Sua vontade seja cumprida tanto lá no Céu como entre nós, trazendo-nos a Paz celestial. Foi essa uma das proclamações dos Santos Anjos quando Nosso Senhor nasceu: “Paz na terra aos homens de boa vontade”. A paz, que é fruto da regência divina sobre nossos corações, só virá aos “homens de boa vontade”, quer dizer, àqueles que cumprem a vontade divina. Eis tudo para que vivamos perfeitamente em santidade;

O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAÍ HOJE: Aqui começa a segunda parte da oração, toda ela impetratória, isto é, feita de pedidos. E o primeiro pedido de filho para um Pai deve ser o do pão, o do sustento, tanto material quanto espiritual. Aqui é o nosso reconhecimento da regência divina sobre nossas necessidades. É também o reconhecimento de que, principalmente, nossas necessidades materiais, como o pão, vem do Pai, nosso Criador e sustentáculo;

E PERDOAI NOSSAS DÍVIDAS (OU OFENSAS), ASSIM COMO NÓS PERDOANOS AOS NOSSOS DEVEDORES (OU A QUEM NOS TEM OFENDIDO)(*): a segunda petição, ou a que está em segundo lugar, dirigida ao Pai deve ser de natureza moral, com isso alcançando d’Ele o perdão por nossas faltas. É sabendo perdoar que se atinge a auto-regência mais perfeita;

E NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO, MAS LIVRAI-NOS DO MAL: O terceiro pedido é de natureza moral e religiosa, mas, sobretudo é um reconhecimento de nossa impotência e fraqueza na prática das virtudes, pedindo ao Pai que não permita que caiamos no poder da regência diabólica, que é o que ocorre quando pecamos.

(*) Ver adiante um comentário sobre a diferença entre Dívidas e Ofensas, conforme documento recente da Santa Sé.

Nos comentários de São Boaventura sobre o Pai Nosso, a ênfase que ele dá é que nessa oração se pede, particularmente, os sete dons do Espírito Santo.  Na primeira parte se pede o dom do temor, quando diz: “Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o vosso nome”. Em segundo lugar se pede a piedade, quando diz: “Venha a nós o vosso reino”. Em terceiro lugar se pede o dom da ciência, quando diz: “Faça-se a vossa vontade, assim no céu como também na terra”. Em quarto lugar se pede o dom da fortaleza, ao dizer: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. O pão corrobora as forças do homem. Em quinto lugar se pede o dom do conselho, ao dizer: “E perdoai-nos nossas dívidas, assim como nós perdoamos a nossos devedores”. Em sexto lugar se pede o dom do entendimento, ao dizer: “E não nos deixeis cair em tentação”. Em sétimo lugar se pede o dom da sabedoria, ao dizer: “Mas livrai-me do mal. Amém”.

Continua São Boaventura:

Na primeira parte se pede nossa santificação, e isso pelo dom do temor, quando diz: “Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o vosso nome”. Isaías: “O Senhor dos exércitos, a Ele glorificai: Ele seja o que nos faça temer e tremer”. (“Dominum exercituum ipsum santificate; ipse pavor vestre et ipse terror vester” – Glorificai ao Senhor dos exércitos; seja Ele só o vosso temor e terror – Is 8, 13).

Na segunda se pede a consumação da salvação humana, a qual não se obtém senão pela ordem da piedade: “Aguarda um juízo sem misericórdia ao que não usou de misericórdia”. Se trata deste dom quando diz: “Venha o vosso reino”.

Na terceira parte se pede o cumprimento da lei divina pelo dom da ciência, o qual ensina a obrar o bem e evitar os males. Deste dom se trata quando diz: “”Faça-se a vossa vontade, etc.”

Na quarta parte se pede o refocilamento da eterna virtude, e por isso o dom de virtude ou de fortaleza, quando diz: “O pão nosso de cada dia nos daí hoje”. O pão corrobora as forças do homem. 

Na quinta parte se pede o perdão dos pecados pelo dom do conselho, quando diz: “E perdoai as nossas dívidas, assim como, etc”. 

Na sexta petição se pede a repulsa dos enganos do inimigo pelo dom de entendimento, quando diz: “E não nos deixes cair na tentação”.

Na sétima petição se pede subjugação da concupiscência carnal pelo dom da sabedoria, quando diz: “Mas livrai-nos de mal. Amém”. É impossível que a alma dome sua carne, ao menos que se encha do dom da sabedoria. Longo seria falar de tudo isto.

Como se viu o Reino de Deus, ou a regência divina (conforme vimos analisando), começa no coração humano, e somente se consuma com a posse dos sete dons do Espírito Santo. Sempre foi esse o entendimento dos ascetas e teólogos. O missionário português Frei Tomé de Jesus, prisioneiro dos maometanos, compôs inspiradas palavra sobre a Oração Dominical; chegando ao ponto em que se roga que desça até nós o Reino de Deus, escreveu:

“Adveniat ad Regnum tuum – Fujam de nós, como Vós. Como, Senhor, sofreis que Vos amemos e Vos não vejamos? E se cumpre estar ainda mais tempo degredados, Vós sabeis morar neste coração. Vinde, Padre e Senhor, aqui reinai, e aqui morai, e se fizerdes desta alma Vosso reino, detenha-se o celestial quanto quiserdes porque nem cá, nem lá, desejo senão que reineis Vós em mim, e tenhais plenário senhorio em todas nossas almas..[1]

 

O Padre Eterno, a primeira revelação divina no templo da alma

As manifestações de Deus Pai, no Novo Testamento, sempre mostram uma relação de afeto e veneração com o Filho e revelada aos homens. Manifestou-se no batismo de Jesus (Mt 3, 17), dizendo: “este é o meu Filho amado em quem pus minhas complacências”, frase repetida na Transfiguração sobre o Monte Tabor (Mt 17, 5), parecendo ter sido estas as únicas vezes em que Deus Pai se manifestou publicamente para dar testemunho de Jesus. Aliás, tais cenas revelam uma manifestação da Santíssima Trindade e não só do Pai Eterno.

Nosso Senhor disse que tudo o que fazemos ou o que imaginamos, tudo o que pensamos, enfim, é segredo do Pai (Mt 6, 1-4). Por isso, recomenda orar ao Pai em segredo (Mt 6,6 e 6, 18), pois não serão nossos gestos ou palavras que O farão nos ouvir (Mt 6,7-8).  O Pai perdoa a quem perdoa  (Mt 6, 14/15) e só nos concede coisas boas (Mt 7, 11).  Por fim, só entrará no reino dos céus quem faz a vontade do Pai (Mt 7, 21).

A ação de Deus Pai (que, aliás, é sempre conjunta com as outras três pessoas divinas, pois todas Elas agem ao mesmo tempo) se circunscreve sempre ao interior mais profundo das almas. E da mesma forma procede do Pai as revelações mais importantes, pois é Ele quem revela (a Sabedoria) aos pequeninos e as esconde aos “sábios”  (Mt 11,25).   Foi Deus Pai quem revelou a São Pedro o caráter divino da natureza de Jesus (Mt 16, 17): “Não foi a carne e o sangue que to revelou, mas meu Pai que está nos céus”,

De outro lado Pai e Filho têm tal união que se completam, pois “ninguém conhece mais o Pai do que o Filho” (Mt 11, 26-27) e vice-versa. Assim também como todas as coisas que são reveladas, inclusive aquela feita a São Pedro, Ele o faz através do Filho, e é o Filho quem revela o Pai (Mt 11,27).

Enfim, Deus Pai se revela no interior de seus filhos verdadeiros, trata-se da luz primeira, dos primeiros conhecimentos que o homem tem em seu interior sobre Deus. Esta imagem primeira, estes sinais mais recônditos de Deus, como Pai supremo, o homem o encontrará dentro de sua própria alma. Para tanto basta que use a “luz da razão”.

O nome de Pai é mais apropriado a Deus do que o nome de Deus, conforme escreveu São Cirilo de Alexandria:

“O Filho não manifestou o nome do Pai apenas revelando-o e dando-nos uma instrução exata sobre a Sua divindade, uma vez que  tudo isso tinha sido proclamado antes da vinda do Filho pela Escritura inspirada. O Filho também nos ensinou, não só que Ele é verdadeiramente Deus, mas que é também verdadeiramente Pai, e que é assim verdadeiramente chamado, pois tem em Si mesmo e produz para fora de Si mesmo o Filho, que é co-eterno com a Sua natureza.

O nome de Pai é mais apropriado a Deus do que o nome de Deus: este é um nome de dignidade, aquele significa uma propriedade substancial. Porque quem diz Deus diz o Senhor do universo. Mas quem nomeia o Pai específica a característica da pessoa: mostra que é Ele que gera. Que o nome de Pai é mais verdadeiro e mais apropriado que o de Deus mostra-no-lo o próprio Filho pelo modo como o usa. Pois Ele não dizia: «Eu e Deus», mas: «Eu e o Pai somos um» (Jo 10, 30). E dizia também: «Foi a Ele, ao Filho, que Deus marcou com o Seu selo» (Jo 6, 27).

Mas, quando mandou os seus discípulos batizarem todos os povos, ordenou expressamente que o fizessem, não em nome de Deus, mas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28, 19)”..[2]

 

O Reino de Deus se inicia nas moradas interiores do homem

O que significa a expressão “Casa do meu Pai?”. Trata-se do Templo de Deus. Foi assim que Ele se expressou ao expulsar os vendilhões do Templo de Jerusalém: “Está escrito: a minha casa é uma casa de oração e vós fizestes dela um covil de ladrões” (Lc 19, 45-46). A Casa de Deus, o Templo de Deus e as moradas celestes são a mesma coisa, embora o Templo citado acima diga respeito ao edifício de Jerusalém. E, no entanto, diz-se que o Templo de Deus encontra-se no interior do homem; à semelhança de como está Ele também no céu, encontra-se no coração e na alma do homem. Vale a mesma afirmação para o coração, este interior profundo do homem, que sendo templo de Deus deve ser antes de tudo “casa” de oração.

E o que é o coração do homem segundo a ascética? Aqui não se refere ao órgão propulsor da vida, mas sim ao centro das cogitações, o cerne de suas afeições, o ponto central para onde ele dirige suas preferências, ideias, simpatias, etc. A Sagrada Escritura está recheada de referências ao coração do homem e o sentido é sempre esse.

Já o termo “morada” foi mais referido por Nosso Senhor Jesus Cristo. O que quis dizer Ele com a palavra “morada”? A morada pode ser entendida como um lugar, o qual é destinado a acolher pessoas. Assim como as moradas celestes são destinadas a acolher os bem-aventurados, as moradas de Deus no nosso interior são destinadas a acolhê-Lo com o fim de adorá-Lo, reverenciá-Lo, obedecê-Lo, prestar-Lhe culto, etc. Desta forma, as moradas celestes, a que se referia Nosso Senhor, queria dizer os lugares destinados aos bem-aventurados na outra vida. São os tronos celestes. Mas não quer dizer somente isso: há também as moradas interiores do homem.

Da mesma forma, o fato de Nosso Senhor dizer que são muitas as moradas, quer também significar a grande diversidade de vida  espiritual que cada um pode ter para se chegar até Deus, ou, como são diversas as batalhas para conquistá-las até chegar a Ele. Nesse sentido, existem tanto as moradas celestes quanto as de Deus no interior de nossa alma. Nosso interior pode ter, neste sentido, dois grandes castelos senhoriais: um destinado a ser templo de Deus e outro destinado à Sua morada. Melhor ainda, a mesma morada pode servir ela mesma de templo. Aliás, uma só, não, várias moradas, como disse o próprio Nosso Senhor. Assim, mesmo tendo Deus Pai em nosso interior como luz primeira de nossa existência, precisamos preparar uma morada para Deus Filho e o Espírito Santo. São Paulo disse: “Por essa causa dobro os meus joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família, quer nos céus, quer na terra, toma o nome, para que, segundo as riquezas de sua glória, vos conceda que sejais corroborados em virtude, segundo o homem interior, pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé nos vossos corações, de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possais compreender, com todos os santos, qual seja a largura e o comprimento, a altura e a profundidade; e conhecer também o amor de Cristo, que excede toda a ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus”  (Ef 3, 14-19)

Qual a finalidade das moradas celestes? Dar descanso, gozo e paz (descanso não só como fim de nossas tribulações, mas como êxtase nas coisas de Deus; gozo dos bens eternos e paz que é fruto da tranqüilidade da ordem), pois esta é a finalidade de toda morada. E permitir à contemplação do Eterno sem qualquer obscuridade do  espírito humano.

 Por causa disso, as moradas celestes devem ser compostas de substâncias espirituais e corporais próprias do Empíreo (destinadas a acolher também as propriedades do corpo ressurrecto: translucidez, sutileza, agilidade, ubiqüidade etc.), além de dons, virtudes e graças para sustentar, alimentar e engrandecer corpo e alma.  Os quais foram necessários à ascese na terra de uma forma imperfeita quanto ao nosso uso, mas perfeitíssimos no céu por causa de estarmos imersos em Deus.

Quanto ao interior de nossa alma, temos lá os reflexos das celestes moradas de Deus, os quais se tornam realidade com a vinda da Santíssima Trindade para morar em nós.  Assim, Deus pode morar em nosso interior de uma forma natural,  como reflexo de Suas perfeições (somos imagem e semelhança de Deus) e também de uma forma completa através da ascese. Nós somos também uma morada de Deus no verdadeiro sentido da palavra: “Se alguém me ama, guardará as minhas palavras, meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos nele morada”  (Jo 14, 23).

Como, então, poderemos chegar às moradas divinas existentes no interior de nossa alma? Deve-se travar verdadeiras batalhas para o mister. Devemos seguir não somente o Decálogo, mas os conselhos evangélicos e andar nos passos de Nosso Senhor, que carregou Sua Cruz até o Calvário. Naqueles conselhos evangélicos vamos encontrar a fórmula que fará com que o próprio Nosso Senhor venha fazer em nós a Sua morada e nos leve para a Morada d’Ele:

“Depois que eu tiver ido e vos tiver preparado o lugar, virei novamente e tomar-vos-ei comigo para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós conheceis o caminho para ir onde vou” (Jo 14, 3-4):

Pelo que se viu acima, somente iremos depois que Nosso Senhor foi, e somente iremos para o lugar que Ele nos preparou juntamente com Ele mesmo. Da mesma forma, só iremos com Ele depois de “conhecer o caminho” que Ele também já trilhou (quer dizer, o da Cruz e da santificação);

Como é este caminho? Ele mesmo o responde: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vai ao Pai senão por mim”  (Jo 14, 6). Para se ir ao Pai (portanto, para as moradas celestes) tem-se primeiro que seguir o caminho (que é a Cruz), a verdade (que é a Fé) e a vida (que é o amor a Deus, a caridade), e tudo isto ninguém o fará se não for por intermédio de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Como Deus “habita” ou reina em nós

A) de forma “natural”

Segundo São Tomás de Aquino, Deus está em nós, naturalmente falando, de três maneiras diferentes: por potência  (todas as criaturas estão sujeitas a seu império), por presença (por causa de sua onipresença) e por essência (porque opera em toda parte e em toda parte Ele é a plenitude do ser e causa primeira de tudo). Estas três maneiras são as mesmas com que Deus também está em toda a criatura e não só nos homens.

B) pela lei da Graça

A Santíssima Trindade faz-se presente na alma humana, transmitindo-lhe a vida divina: o Pai vem a nós e continua em nós a gerar o Filho; com o Pai recebemos o Filho em nosso interior, e como fruto do amor de ambos recebemos o Espírito Santo. Fazem as três pessoas divinas sua morada em nossa alma e nos adotam como filho: se acolhemos, pois, em nossa morada o nosso Criador, Redentor e Santificador, transmitem-nos assim participação na vida divina.

Como, então, estando Deus em nosso interior precisamos nos dirigir a Ele? É que Deus não se satisfaz em morar em nosso interior apenas da forma natural, como fomos criados (a primeira acima), mas principalmente de uma maneira sobrenatural. Então esta segunda forma de morada não é sempre predominante nas almas, podendo estar ausente por causa dos pecados.  Além do mais, Deus pede que façamos uma ascese em Sua busca para sermos perfeitos como Ele.

Segundo São Boaventura, o sumo bem consiste na busca da felicidade, e estando o sumo bem em Deus, acima, pois, de nós, ninguém pode tornar-se feliz  se não subir acima de si mesmo, não por ascensão corporal, mas de coração. “Ora, não podemos elevar-nos acima de nós senão por uma força superior que nos eleve. Por mais que se disponham os degraus interiores, se o auxílio divina não nos acompanha, nada se consegue” [3] Essa ascensão só se dará por via de aceitação da completa regência divina sobre nós, nossa inteira submissão à vontade de Deus.

 

 “Perdoai nossas dívidas...”

E tudo pode começar com o perdão de nossas dívidas. O que é uma dívida? Trata-se de uma obrigação contraída, decorrente de uma falta cometida ou de um benefício recebido. A dívida é reconhecida pelo devedor pela promessa feita no ato em que é contraída. Promete-se cumprir alguma coisa, como por exemplo a obrigação de restaurar ou repor um bem. Deve quem faz a promessa. 

Neste sentido, o homem tem muitas dívidas para com Deus. Primeiramente vêm as dívidas pelos benefícios recebidos. Pelo fato de haver sido criado, deve obrigações a Deus Pai Criador; pelo fato de haver sido remido pelo Salvador, deve também obrigações ao Redentor; e por causa das graças atuais que recebe da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo, o homem deve igualmente obrigações a cumprir na santificação de sua alma.

Em segundo lugar vêm as dívidas decorrentes da justiça, pois quando o homem peca, desobedecendo a Lei de Deus, tem obrigação de reparar o mal cometido. Por tratar-se de danos espirituais o homem só pode reparar os pecados mortais com os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo.  Isso significa que, arrependendo-se de seus pecados (dívida contraída por infração da Lei) procure emendar-se de vida e tentar de alguma forma reparar o mal que fez. E só pode fazê-lo no chamado Tribunal da Penitência, isto é, na Confissão. No entanto, muitos pecados ocasionam danos irreparáveis na ordem natural, como por exemplo um assassínio, mas reparáveis na ordem sobrenatural com o arrependimento, a Confissão e a promessa de emenda de vida. Neste caso, a dívida é reconhecida quando o pecador promete emenda de vida, após arrepender-se, mas só será reparada no plano espiritual após a Confissão. .

Ficam ainda pendentes de remissão e reparação as penas temporais, isto é, as conseqüências das dívidas assumidas.  Estas para serem remidas ou pagas pelo homem são necessárias duas coisas:  o tempo e a intensidade e valor dos méritos.  Neste último caso, os méritos serão medidos pela intensidade do amor a Deus: quanto maior este amor, tanto mais intensa a vontade de remir a dívida, tanto menor será o tempo. È por causa disso que muitos não conseguem remir suas dívidas temporais no decorrer de sua vida: o tempo não é suficiente porque não se ama a Deus com tanta intensidade.

Como se viu acima, o homem, por si mesmo, às vezes não consegue remir suas próprias penas temporais enquanto vive, pois além de não as pagar com grande intensidade de amor a Deus, de forma a resgatá-las em pouco espaço de tempo, contrae novas dívidas e acumula sempre mais débitos enquanto vive. Daí a necessidade do purgatório na outra vida, a fim de resgatar no outro mundo aquilo que não conseguimos pagar neste.

 

Porque Nosso Senhor disse “Perdoai nossas dívidas”...

A expressão foi contestada no período do Concílio Vaticano II por duas razôes: a primeira por referir-se a problemas financeiros, a conotação da palavra “dívida” nos leva sempre aos problemas com o dinheiro; a segunda porque julgavam que São Mateus escreveu a palavra “dívidas” movido pelo hábito de sua profissão, já que era cobrador de impostos. Julgou-se, assim, que Nosso Senhor não chegou a pronunciar essa palavra e o mais adequado seria “ofensas”.

Mas, não; a palavra “dívidas” constante no Evangelho é de significação inteiramente teológica, e foi ela que realmente Nosso Senhor pronunciou ao nos ensinar o Pai Nosso. Suas raízes estão, assim, no Antigo Testamento. Vejamos um comentário extraído de um documento do Vaticano, em que fala sobre a necessidade de pedirmos perdão de “nossas dívidas”, tanto para com Deus como para com os demais homens:

 

“O Jubileu bíblico

 

Um importante precedente bíblico para a reconciliação e a superação de situações passadas é uma celebração do Jubileu, como ela é regulada no livro do Levítico (capítulo 25). Em uma estrutura social composta de tribos, clãs e famílias foram inevitavelmente criadas situações confusas quando os indivíduos ou famílias em condições precárias devem "resgatar" a si mesmos a partir de suas dificuldades, dando a posse de suas terras ou casa, servos ou filhos aos que estavam em melhores condições que a dele. Esse sistema teve o efeito de alguns israelitas vindo a sofrer intolerável dívida, pobreza e escravidão, para o benefício dos outros filhos de Israel, na mesma terra que havia sido dada por Deus. Isso poderia trazer que em períodos mais ou menos longo de tempo, um território ou um clã cair nas mãos de poucos ricos, enquanto o resto das famílias do clã chegou a estar em forma de dívida ou a escravidão; eles foram forçados a viver em total dependência dos mais ricos.

As leis de Levítico 25 é uma tentativa de reverter esta (ao ponto de dúvida pode sempre colocar em um caminho cheio!) Convocada a celebração do jubileu a cada cinqüenta anos, a fim de preservar a tecido social do povo de Deus e restaurar a independência também menor país da família. Lv 25 é decisiva para a repetição regular da confissão de fé no Deus de Israel que libertou o seu povo através do êxodo: "Eu sou o Senhor teu Deus que te tirei da terra do Egito para dar ao Canaã e ser o vosso Deus "(Lv 25,38, cf. vv.42.45). A celebração do Jubileu era uma implícita admissão de culpa e uma tentativa de restabelecer uma ordem justa. Qualquer sistema afastaria qualquer escravos israelitas no passado, mas agora liberado pelo braço poderoso de

Deus, veio de fato para negar a ação salvífica de Deus no Êxodo e do Êxodo. A libertação das vítimas e o sofrimento se torna parte do maior dos profetas. O Deutero-Isaías, nos poemas do Servo Sofredor (42,1-9; 49,1-6, 50,13-53,12), desenvolve estas alusões à prática do Jubileu com os temas de redenção e retorno, a liberdade e a redenção. Isaías 58 é um atentado à observância ritual que não leva em conta a justiça social, uma chamada para a libertação dos oprimidos (Is 58,6), centrando-se especificamente sobre as obrigações de parentesco (v.7). Mais claramente, Isaías 61 usa as imagens do Jubileu para representar o Messias como o arauto de Deus enviado para "evangelizar" os pobres, para proclamar a libertação aos cativos, e proclamar o ano do Senhor. Significativamente é o mesmo texto, com uma alusão a Isaías 58:6, que Jesus usou para apresentar o propósito de sua vida e seu ministério em Lucas 4:17-21.[4]

Quer dizer, a cada 50 anos o povo eleito comemorava um jubileu, oportunidade em que todas as dívidas eram perdoadas, a ponto de se tirar da escravidão aqueles que eram escravos por causa de dívidas, fato corriqueiro naquele tempo. Assim, ficou entendido que o perdão das nossas dívidas humanas tinha uma correlação, uma semelhança, com as divinas. E, na realidade, conforme vimos acima, quando temos obrigações a cumprir com Deus ou lhe prometemos vida recatada, temos aí dívidas a cumprir. O mesmo ocorrendo entre os homens.

Não justifica, assim, discriminar a palavra, julgando-a inadequada ou não apropriada para ser rezada no Pai Nosso, colocando em seu lugar “ofensas”, que não é uma palavra que exige remissão e correção, embora tenha um sentido de perdão para aquele que não as leva em consideração ou esquece após o arrependimento do ofensor.

Em outro trecho do mesmo documento: “A seus discípulos Jesus lhes pede estar sempre dispostos a perdoar a quantos os tenha ofendido, assim como Deus oferece sempre seu perdão”. Aqui o texto fala do termo “ofensa”, mas logo em seguida cita dessa forma a frase tirada de São Mateus: “Perdoa nossas dívidas assim como nós perdoamos a nossos devedores (Mt 6, 12.12-15). Quem se encontra em grau de perdoar o próximo demonstra haver compreendido a necessidade que pessoalmente tem do perdão de Deus. O discípulo está convidado a perdoar “até setenta vezes sete” a quem o ofende, inclusive àquele que não pedisse perdão (Mt 18, 21-22).

Quer dizer, o importante é estar sempre disposto a perdoar: ou nossas dívidas ou as ofensas sofridas. Mas, dívidas não se resumem somente às questões financeiras, como vimos acima, embora estas sirvam de parâmetro para as outras.

 

As dívidas herdadas de nossos pais

É constante na Sagrada Escritura aquela afirmação de Jó: “Deus reservará para os filhos a pena do pai”. Vejamos alguns exemplos.

Após o dilúvio universal, Noé fez o cultivo da uva e dela tirou vinho, que, ao bebê-lo pela primeira vez, embriagou-se e tirou a roupa perante os filhos. Como Cam, ao contrário dos outros, não cobriu sua nudez, Noé amaldiçoou sua descendência, dizendo: "Maldito seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja seu escravo. Dilate Deus a Jafet, e habite Jafet nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo" (Gn 9, 25-27). A escravidão é imposta como uma maldição, trata-se portanto de um castigo por causa do ato indigno que o filho praticara, porém não recai sobre ele, Cam, mas sobre a sua descendência, representada por seu filho Canaã. Tornou-se este, pois, escravo de seus tios. Seria uma espécie de maldição ou condição imposta por Deus ao filho para reparar o erro praticado pelo pai. Será que nós também não temos, muitas vezes, que fazer este tipo de reparação a Deus por causa dos pecados de nossos pais? 

A descendência de Abraão é prometida profeticamente como numerosa, mas que “será reduzida à escravidão” (Gn 15, 13) por mais de 400 anos. Então, Deus desejava que houvesse uma escravidão que fosse exercida sobre todo um povo, e o seu Povo Eleito, como meio de fazê-lo perfeito. Aqui não se trata propriamente de uma maldição, mas algo parecido, pois Deus assim condena a descendência de Abraão, depois que "um horror grande e tenebroso o acometeu": "Sabe, desde agora, que a tua descendência será peregrina numa terra não sua, será reduzida à escravidão, e afligida durante quatrocentos anos". Logo depois, Deus estabelece o prêmio: "Mas eu exercerei os meus juízos sobre o povo ao qual estiverem sujeitos; e sairão depois (desse país) com grandes riquezas"  (Gn 15, 13-14).

Um outro episódio mostra outro aspecto da questão: trata-se da reprimenda que a mulher de David, Micol, lhe fez, aparentemente com boas intenções, mas podendo revelar fraqueza ou respeito humano, talvez espírito vaidoso por ver o seu esposo e rei dançar com o povo e se expor à cenas humilhantes, sendo por isso castigada com a esterilidade. Assim narra o fato a Sagrada Escritura:

“Retirou-se também Davi à sua casa, para a abençoar; e Micol, filha de Saul, tendo saído ao encontro de Davi, disse: Que bela figura fez hoje o rei de Israel, despindo-se diante das escravas e de seus vassalos, e desnudando-se como faria um chocarreiro. Davi disse a Micol: Diante do Senhor, que me escolheu preferindo-me a teu pai e a toda a sua família, e que me mandou que fosse eu o condutor do povo do Senhor em Israel, não só dançarei, mas também me farei mais vil do que me tenho feito, serei humilde os meus olhos, e com isto aparecerei com mais glória diante das escravas, de que falaste. Por esta razão Micol, filha de Saul, não teve filhos até ao dia da sua morte”  (II Sam 6, 20-23).

O texto não dá a entender a causa de Micol não ter tido filhos, se por ter ficado estéril ou porque Davi a rejeitou. Em todo o caso, de uma forma ou de outra, naqueles tempos o fato de não ter filhos era motivo de opróbrio para a mulher e o fato era sempre uma  pena severa. E parece que a reprimenda que ela deu ao rei não era tão má assim, pois o censurava por se expor perante as escravas, dançando na frente delas. De outro lado, esta esposa de Davi foi preservada na castidade pelo varão Falti, ao qual Saul havia entregue a filha quando Davi foi para a guerra mas a devolveu intacta. Comenta Caetano que a Sagrada Escritura mudou o nome de Falti para Faltiel quando este devolveu a mulher de Davi sem tocá-la, pois a partícula “el”  em hebraico quer dizer Deus, era como se Falti tivesse adquirido com isto um dom divino. (II Sam 3, 14-16), passando a ser chamado “Falti-el’, ou, “Falti de Deus”.. 

Portanto, nesta linha de pensamento, não foi permitido a Micol ter filhos porque ela mesma poderia pagar em vida a pena de seu pecado.

 

O resgate das dívidas dos antepassados às vezes exige martírio dos filhos

Dois episódios da história de Davi mostram a afirmação acima. O primeiro é relatado em II Samuel 21, 1-6: Primeiramente um castigo de Deus aos filhos de Saul (por que “matou os gabaonitas”), com uma fome que durou 3 anos. Dirigindo-se aos gabaonitas, Davi pergunta o que fazer para reparar o erro de Saul e aí vem o segundo castigo com o martírio exigido pelos ofendidos: “Sejam-nos dado sete de seus filhos, para os crucificarmos diante do Senhor em Gaaba de Saul, que foi noutro tempo o escolhido do Senhor”. E Davi concordou e deu os sete filhos para o sacrifício. Pagaram os filhos com suas próprias vidas o pecado do pai.

No outro episódio é o próprio Davi que peca, mandando fazer um censo que Deus não autorizara. Deus então castigou o povo com uma peste: “Mandou, pois, o Senhor a peste a Israel, desde aquela manhã até o tempo assinalado, e morreram do povo, desde Dan até Bersbéia, setenta mil homens. E, tendo estendido o anjo do Senhor a sua mão sobre Jerusalém para a destruir, o Senhor compadeceu-se da sua aflição, e disse ao anjo exterminador do povo: Basta, detém agora a tua mão. O anjo do Senhor estava junto da eira de Areuna, jebuseu. Davi, logo que viu o anjo ferindo o povo, disse ao Senhor: Eu sou o que pequei, eu fui o que procedi mal; que fizeram estes, que são as ovelhas? Volte-te, te peço, a tua mão contra mim, e contra a casa de meu pai  (II Sam 24, 15-17). Interessante notar que tais castigos sempre vêm de elementos que não participam do ciclo dos amigos de Deus: no caso concreto, o anjo exterminador estava junto a um local pertencente a rei pagão, Areuna, da raça dos jebuseus, cujo local Davi comprou depois para ali construir um altar a Deus.

Com o arrependimento de Davi e sua expiação através de holocaustos, Deus suspendeu o castigo, inclusive o que o rei pedira para si, mas apenas das penas temporais que eram as que o antigo sacrifício remia.

 

Tobias, pagou as “dívidas”  do pai enquanto vivia, e por isso teve fim feliz

Diferente foi o que ocorreu com os Patriarcas Tobias, pai e filho.

A grande virtude de Tobias pai era a prática da caridade para com os mortos, o que lhe tinha valido a perseguição do rei. Mesmo tratando-se de um homem fiel a Deus foi submetido a terrível prova, ficando completamente cego. A Sagrada Escritura compara sua provação com a de Jó: “O Senhor permitiu que lhe acontecesse esta prova, para que sua paciência servisse assim de exemplo aos vindouros, como a do santo Jó. Porque, tendo sempre temido a Deus desde a sua infância, e tendo guardado os seus mandamentos, não se entristeceu contra Deus, por lhe ter acontecido a desgraça da cegueira, mas permaneceu firme no temor de Deus, dando graças a Deus todos os dias da sua vida”  (Tob 2, 12-14). Vê-se que, por suas virtudes, Tobias pai não era merecedor de tal castigo, mas Deus pode ter escolhido ele para remir dívidas temporais de seus ancestrais e assim se santificar, sendo também exemplo para os filhos.

Os dois Tobias, pai e filho, viveram no tempo da apostasia do rei Jeroboão (que deu origem ao cisma judaico) ao primeiro cativeiro que sofreu os hebreus.  Como ele (o pai) praticava tanta caridade para com seus irmãos de raça e de fé, era insultado até mesmo pelos parentes a amigos: “E, assim como os reis (ou poderosos) insultavam o bem-aventurado Jó assim os parentes e amigos de Tobias escarneciam do seu modo de vida, dizendo: Onde está a tua esperança, pela qual davas esmolas e sepultava os mortos? Mas Tobias os repreendia, dizendo: Não faleis assim; porque nós somos filhos dos santos e esperamos aquela vida que Deus há de dar aos que nunca afastam dele a sua fé”  (Tob 2, 15-18). Tamanha esperança mostra a quanto levava sua fidelidade a Deus, mas vê-se que a virtude da esperança requer paciência para se conseguir um bem muito grande mas a ser efetivo numa data longínqua, como veremos adiante.

A exemplo de Jó, a própria esposa de Tobias o insultava, dizendo: “Bem se vê como as tuas esperanças são vãs e agora se fizeram ver as tuas esmolas”. Era a pior das provações e dos tormentos: sofrer o desprezo e escárnio, explorando o respeito humano, por causa da prática das virtudes e do amor a Deus. Era necessário esperar confiante, mas, acima de tudo, sofrendo opróbrios.

 

Após pagar as “dívidas”  de seus pais nesta vida, tem um fim ditoso e feliz

Assim conclui a Bíblia sobre o fim de Tobias filho:

“Sucedeu que Tobias, depois da morte de sua mãe, saiu de Nínive com sua mulher, os filhos, e os filhos de seus filhos e voltou para casa de seus sogros. Encontrou-os ainda com saúde numa ditosa velhice, tomou cuidado deles, ele mesmo lhes fechou seus olhos e tomou posse de toda a herança da casa de Raguel.  Viu os filhos de seus filhos até a quinta geração.

“Tendo vivido noventa e nove anos no temor do Senhor, sepultaram-no com alegria. Toda a sua parentela e toda a sua geração perseverou no bem viver, no santo procedimento, de modo que foram amados tanto por Deus como pelos homens e por todos os habitantes do país”   (Tob 14, 14-17).

 

Haverá um tempo em que Deus abolirá esta lei

 

Isto ocorrerá quando a humanidade estiver no fim, isto é, próximo do fim do mundo. No final dos tempos esta lei de que os filhos podem pagar aqui na terra pelos pecados dos pais se extinguirá. Isto por uma causa muito simples: não haverá mais tempo para cumprimento das penas temporais aqui na terra, sendo que a intensidade dos sofrimentos dos fins dos tempos suprirá o fator tempo.

A extinção desta lei está em Jeremias: “Naqueles dias não se ouvirá mais dizer: os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos são os que ficaram botos” (Jer 31, 29). Aquele que “comer uva verde”, isto é, pecar contra a lei de Deus “...cada um morrerá na sua iniqüidade; todo o homem que comer uvas verdes, a esse é que ficarão botos os dentes”  (Jer 31, 30).  Isto é,  não mais serão os filhos que pagarão as penas temporais dos pais, e sim, eles mesmos.

Para tanto, todos receberão de Deus graças especiais, num reino messiânico universal, onde impere completamente as graças divinas. Será a época em que a regência divina será completa sobre a Humanidade. Chegado aqueles tempos, diz Jeremias, Deus imprimirá sua lei nas entranhas dos homens, escrevê-la-ás nos seus corações, ninguém ensinará mais a seu próximo,  nem a seu irmão, porque Deus dará um grande perdão, já que chegou o fim dos tempos. 

No mesmo sentido assim falou o Profeta Ezequiel: “Por que é que convertestes em provérbio esta parábola na terra de Israel, dizendo: Os pais comeram as uvas em agraço, e os dentes dos filhos é que se acham botos? Juro, diz o Senhor Deus, que esta parábola não passará mais entre vós por um provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como é minha a alma do pai, assim o é também a alma do filho; a alma que pecar, essa morrerá”  (Ez 18, 2-4). Mas há uma condição para que estas almas pertençam a Deus, ei-la: “Se um homem for justo e proceder conforme e equidade e a justiça; se não comer nos montes e não levantar os seus olhos para os ídolos da casa de Israel;  se não ofender a mulher do seu próximo e não se juntar com a menstruada; se não entristecer ninguém, se der o penhor ao seu devedor, se não tirar nada do alheio por violência, se der do seu pão a quem tem fome e ao nu cobrir com vestido; se não emprestar com usura e não receber mais do que o que emprestou; se afastar a sua mão da iniqüidade e sentenciar com justiça entre homem e homem; se andar nos meus preceitos e guardar os meus mandamentos, para proceder segundo a verdade; este tal é justo, viverá certissimamente, diz o senhor Deus”  (Ez 18, 5-9).

O mesmo Profeta dirá, adiante, que os filhos de maus pais morrerão se praticarem as mesmas iniqüidades, enquanto que os bons filhos viverão (Ez 18, 10-18). O termo morrer, no caso, significa perder a posse da graça divina. Foi com base nesse pressuposto que os judeus interrogaram Nosso Senhor sobre de quem havia a culpa pela morte dos 18 homens como conseqüência da queda da torre de Siloé. O Divino Mestre respondeu dando a entender  que a morte não é o pagamento de dívidas (e sim a penitência), quando disse: “Assim como também aqueles dezoito homens sobre os quais caiu a torre de Siloé, e os matou, julgais que eles também foram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém. Não, eu vo-lo digo; mas, se não fizerdes penitência, todos perecereis do mesmo modo” (Lc 13, 4-5).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              



[1] “Trabalhos de Jesus” – Frei Tomé de Jesus – Lello & Irmão, 1951, pp. 295/299

[2] São Cirilo de Alexandria (380-444), bispo e Doutor da Igreja Comentário ao evangelho de João, 11, 7; Pg 74, 497-499 (a partir da trad. Delhougne, Les Pères

[3] Itinerário da Mente para Deus – Cap. I

[4] Documento da Comissão Tional, “Memória e Reconbiliação – a Igreja e as culpas do passado” – publicado  por  Joseph Ratzinger, por ocasião do Jubileu do ano 2000 - item 3.