quinta-feira, 7 de agosto de 2025

SÃO DOMINGOS DE GUSMÃO, UM INOCENTE QUE IRRADIA LUZ ESPIRITUAL

 


 




São Domingos de Gusmão (cuja festa se celebra em agosto) e São Francisco de Assis, seu contemporâneo, foram dois luzeiros cujas vocações se interpenetram. Considera-se terem realizado o famoso sonho de Inocêncio III, no qual esse Papa viu a Basílica de São João de Latrão, que simbolizava a Cristandade, rachada e sendo sustentada, ora por São Domingos, ora por São Francisco. Dr. Plínio tinha por ambos profunda admiração, que se traduziu em numerosos comentários pervadidos de sentimentos de enlevo e veneração.

Na conferência que transcrevemos a seguir, ele analisa um afresco de Fra Angélico, no qual o insigne pintor dominicano procura retratar as perfeições morais de seu santo Fundador.

 

A Cristandade tendia já naquela época para a moleza, o relaxamento, a perda do senso do sacrifício, do sobrenatural, e se inundava dos bens materiais que o avanço da civilização proporcionava.

Foi neste contexto que, para barrar o progresso do mal, Deus suscitou as vocações de São Francisco e de São Domingos: o primeiro, pela caridade, e o segundo, pela lógica, lograram conjuntamente reerguer a Idade Média do século XIII. A Ordem dos Franciscanos devia praticar em grau exímio a humildade e a pobreza; a dos Dominicanos, combater num terreno mais intelectual o orgulho e a sensualidade.

Na conferência de hoje, pretendo voltar-me particularmente para São Domingos. Procuremos vê-lo pelos olhos de um de seus mais eminentes filhos espirituais, Fra Angélico.

Em um de seus célebres afrescos (página ao lado), ele representa São Domingos ainda muito moço, vestido de dominicano, numa atitude pensativa, meditando ao pé da Cruz.

A pintura mostra um personagem muito sereno e calmo. Mas, ao mesmo tempo, dentro da  serenidade e da calma dele, está se entregando a uma intensa atividade. Encontra-se numa pesquisa, numa interrogação. Sem tensões nem cansaços errados, a investigação de seu espírito se concentra num determinado ponto. De outro lado, nota-se nele uma atitude de enlevo e de amor.

No todo externo deste homem há algo de luminoso. Ele irradia uma luz que não é física, mas espiritual. Não se trata do viço da mocidade, também presente nele; é uma espécie de luz interior, mais ou menos indefinível, decorrente de uma extraordinária lucidez e de uma clara visão das coisas. 

Singular discernimento das almas

Tem-se a impressão de que, se um de nós olhasse o mundo de dentro dos olhos dele, veria o universo com alguns matizes completamente diferentes. Sobretudo, no que diz respeito às almas.

Examinando-as, procurando conhecer caráteres, esse homem está tão distante do lamaçal das atividades comuns, tão longe das paixões que habitualmente os homens têm, que ele, por diferença, percebe muito mais essas desordens e, por co-naturalidade, também discerne melhor o que há de bom nos homens. Ele tem uma visão muito mais penetrante do mundo das almas, do que uma pessoa comum.

Fortaleza, clareza de visão e equilíbrio

Uma objeção que se poderia fazer a esta figura é a seguinte: onde está presente dentro dela a  combatividade de espírito? Parece uma pessoa feita para concordar com tudo, e capaz apenas desse sorrisinho que esboça. E, a esse título, é uma pessoa que deve ser rejeitada por uma verdadeira formação.

Na realidade, imaginemos este homem fechando o livro e presenciando alguma cena de despudor insolente ou alguma extravagância, que se tornaram tão comuns nas ruas de hoje. Ele ficaria ou não profundamente chocado, e quereria empunhar um látego como aquele com que Nosso Senhor  expulsou os vendilhões do Templo? Certamente.

É na sua extrema inocência, na sua extrema candura que reside uma extrema clareza de visão, muita fortaleza e muito equilíbrio. Este homem é capaz de atitudes enérgicas, mas também, no intervalo  das batalhas, de sorrir e meditar sobre o Natal. Sem violências, sem choques interiores, ele passa de um estado de alma para outro.

Ele é, entretanto, um homem transparente para cada um de nós compreendê-lo. Um homem que poderíamos sondar, no mais íntimo de sua alma, para perguntarmos qual é o ponto de partida de todo esse equilíbrio que ele demonstra.

O ponto de partida é, antes de tudo, uma noção primeira da ordem. Porque esta é uma pessoa que  nunca perdeu a graça batismal. Isto está escrito na sua fisionomia. Não se poderia admitir, por exemplo, que lhe fizessem esta biografia: “Grande santo penitente. Viveu por muito tempo no meio de pessoas corrompidas e cometeu inúmeros assassinatos. Ei-lo depois de convertido”. A penitência tem aspectos mais sublimes, mas não tem o da inocência. Neste homem se discerne a graça batismal na sua candura originária, em sua beleza primaveril.

Certezas extraordinárias

A partir da fidelidade à graça batismal, há uma certa retidão por onde ele vê muito claramente que a verdade é a verdade, e o erro é o erro. E os primeiros princípios universais da lógica e do entendimento não passaram pelo menor abalo, no espírito dele. De maneira que ele possui naturalmente certezas extraordinárias.

Prestemos atenção em sua fisionomia: não há o menor grau de dúvida a respeito de nada. Ele nunca duvidou. Consideremos com que tranquilidade ele procura o seu caminho. Por quê? Porque ele anda a partir de certezas que nunca foram abaladas, e que lhe abrirão todas as portas.

De outro lado, com essa noção muito grande de todas as certezas, possui ele uma naturalidade e um modo categórico de condenar completamente o erro, e de se desfazer do mal de uma forma que não admite discussão: é, e está acabado!

Fé católica absoluta

Tomemos a fé católica deste homem, por exemplo. É uma fé total, absoluta! Ele acha evidente que a Igreja Católica seja verdadeira. Não há dúvidas para ele a esse respeito. É uma fé que nasce dessas certezas originárias, serenas e magníficas de quem nunca pecou contra a criteriologia, nunca pecou contra os próprios nervos, nunca pecou contra nada! E que progride na sua vida espiritual como o Rio Amazonas corre para o mar: caudaloso, enorme, tranquilo, arrastando tudo, empurrando o mar longe para frente. Não é um rio wagneriano com cascatas, com quedas d’água nem coisas semelhantes. Ele se dirige para o oceano em linha reta, e chega ao mar. O mar, neste caso, é o Céu!... 

Um profundo senso do divino

Outra coisa que há nele é o senso do divino, que se traduziria pouco mais ou menos num raciocínio da seguinte evidência:

“Eu existo. Contudo, é verdade também que antes de mim existiu uma quantidade enorme de seres. É verdade que, ao mesmo tempo em que eu existo, existe uma quantidade enorme de seres, e que depois de mim existirá outra quantidade enorme de seres. Há, portanto, um fluxo do existir dentro do qual, somando e subtraindo, eu sou uma gota, e não o centro dele.

“Por detrás desse fluxo de  existência há uma ordenação, uma regra, uma concatenação de fatos, uma sucessão de coisas que constituem um universo coordenado e uno. Esse universo que assim existe me dá a ideia de um Ser ainda maior do que ele e, portanto, um Ser Absoluto, Divino, que também existe. É Ele o Criador de tudo.”

É a primeira impostação da alma diante de Deus.

Este é um homem sem interesses individuais. Ele não tem vaidades, nem complexos, nem ambições. Ele tem o hábito de, no seu pensamento, nas suas reflexões, não reportar as coisas a si, mas a este absoluto que é Deus, e que é o centro para onde ele está voltado. 

Da inocência, o espírito apostólico

Então nós temos que, para este homem, rutila com clareza muito maior do que para o comum dos  homens a noção de que a verdade é a verdade, o erro é o erro, o bem é o bem, e o mal é o mal. Vamos dizer que este homem, de repente, se encontrasse com Lutero. Ele se diferenciaria do heresiarca por vários abismos sucessivos. Ele iria notando as divergências, e diria: “Não! Errado!”

E depois: “Vou pregar contra as ideias erradas de Lutero, pois não posso deixar que leve outros a seus erros! Nós não cabemos juntos no mundo!”

Donde nasceu o ímpeto desse espírito apostólico? Nasceu da candura originária, que é, em última análise, a boa ordem inicial de todo ser. Nasceu de todos os primeiros princípios da razão, de todos os primeiros impulsos dos nervos, de toda a graça do Batismo. Nasceu do senso do divino, e do respeito enorme por tudo o que existe, inclusive por si próprio, sentindo, por detrás, Deus que o envolve e que o transcende. Eis o ponto de partida desta alma inocente, que contém todo o resto.

“Paraíso originário” de todo batizado

Esse estado de alma é o “paraíso originário” que todo batizado tem, em grau maior ou menor do que São Domingos.

E aqui, ao término dos comentários sobre esta magnífica representação do Fundador dos dominicanos, parece-me apropriado ressaltar esta verdade: todos nós tivemos a inocência batismal. É ou não é verdade que todos nós, no fundo de nossas almas, sentimos saudades dos encantos do  tempo em que éramos inocentes?

Entretanto, como fomos feitos para viver dessa inocência, permanecem na alma mil cordas que ninguém vibrou, mil solicitações que não foram atendidas, mil possibilidades de expansão que de fato não foram aproveitadas, mil apetites feitos para a casa paterna que se vão saciar nas bolotas dos porcos. Resultado: mil remorsos indefinidos, não se está contente consigo mesmo, não se sente limpo diante de Deus.

Achamos que nossa existência é dura. É verdade. Porém, não agravamos nosso exílio, fechando as janelas que davam para o Céu? Há na Escritura uma lamentação de Deus, dirigida ao povo hebraico: “Vós transformastes o meu templo numa barraca para guardar frutas”. Não somos nós um templo do Espírito Santo, que transformamos em barraca para guardar frutas?

Olhando de frente nossa situação atual, lembremo-nos que tudo aquilo pode ser restaurado, desde que rezemos com confiança nesse sentido. Peçamos, pois, a Deus Nosso Senhor, por meio de Maria Santíssima, que nos limpe de nossos pecados e imperfeições, e restaure em nós aquela bondade derivada das graças que o Batismo infundiu em nossas almas.

 (Revista “Dr. Plínio”, n. 17, agosto de 1999, págs. 7/9)


sábado, 2 de agosto de 2025

SANTA PAULA DE ROMA, EXEMPLO DE MÃE QUE ABANDONA A FAMÍLIA POR AMOR A DEUS

 



Natural de Roma, nasceu em meados do século IV. Era da mais alta nobreza, pois em suas veias corria sangue dos Cipiões e dos mais antigos reis.

Após as perseguições, que foram terríveis, os cristãos relaxaram-se um pouco. Paula, embora cristã e honesta, vivia com excessivo luxo e moleza.

A Providência divina enviou-lhes amargos sofrimentos para desenganá-la do mundo. Perdeu o esposo, a quem amava-lhe entranhadamente, e ela mesma contraiu uma grave e prolongada enfermidade.

Quando recobrou a sua saúde, despojou-se de suas galas e consagrou-se por completo à oração, às obras de caridade e à educação dos filhos.

Por motivo da celebração de um concílio, convocado pelo Papa São Dâmaso, veio a Roma São Jerônimo, grande amigo do pontífice e incomparável conhecedor da Sagrada Escritura. Paula tomou-o por diretor espiritual e, seguindo seus conselhos, estudou os Livros Sagrados, especialmente os Evangelhos, e concebeu o desejo de visitar e venerar a gruta de Belém.

Após a morte de São Dâmaso, seu amigo São Jerônimo abandonou Roma, para dedicar-se de novo aos seus estudos bíblicos. Queria ultimar a sua gigantesca tarefa de traduzir toda a Bíblia para o latim.

Santa Paula não tardou a segui-lo. Confiou a uma filha casada a educação da menorzinha, e junto com Eustóquia, outra de suas filhas, embarcou rumo à Terra Santa.

Com São Jerônimo e Eustóquia, percorreu a Palestina. Ao chegar a Belém, exclamou chorando: “Eu te saúdo, ó Belém, cujo nome quer dizer Casa do Pão Celeste; eu te saúdo, antiga Efrata, cujo nome significa 'a Fértil', que tiveste por fruto e colheita o próprio Criador! É possível que eu, pecadora, beije o berço onde repousou o Menino Deus, ore na gruta, onde deu Jesus seus primeiros vagidos, onde a Virgem deu à luz o Salvador?”

Junto à gruta de Belém, ergueu um mosteiro para a comunidade de religiosas por ela fundada e dirigida; e nos arredores, outro para São Jerônimo e os seus monges. Construiu, além disso, um ótimo albergue para os peregrinos, e costumava dizer: “Se Maria e José tivessem que retornar a Belém, para o recenseamento, já não lhes faltaria lugar numa estalagem”.

Passou Santa Paula o resto da sua vida meditando a Sagrada Escritura, orando e mortificando-se com severas penitências, animada pelo suave pensamento de que ali mesmo dera o Redentor admirável lição de todas as virtudes.

Morreu aos 56 anos e foi sepultada numa gruta ao lado daquela do Nascimento.

Sobre a porta dessa gruta, mandou São Jerônimo gravar em versos estas palavras: “Vês este humilde sepulcro nesta rocha cavado? Dentro está de Paula o corpo, e dos bens celestes gozando está a alma. Deixou pais e pátria e irmão e filhos e aqui repousa, junto à gruta de Belém, onde os reis Magos a Cristo adoraram como a Deus e homem”.

Sua festa é celebrada em 28 de janeiro.[1]

 

(Extraído de “Tesouro de Exemplos”, Volume I, do Padre Francisco Alves, C.SS.R – Editora Vozes Ltda, páginas 83/84).

 

 VIDA DE SANTA PAULA ROMANA NARRADA POR SÃO JERÔNIMO

 Paula foi uma nobre senhora de Roma, cuja vida foi narrada por Jerônimo.

 1. “Se todas as partes do meu corpo estivessem convertidas em línguas e cada uma delas pudesse falar, eu não poderia dizer nada que se aproximasse das virtudes da santa e venerável Paula. Nascida de estirpe nobre, foi tornada ainda mais nobre por sua santidade; foi poderosa em riqueza, mas agora é muito mais importante por ter abraçado a pobreza de Cristo. Tomo como testemunha Jesus e seus santos anjos, em especial seu anjo da guarda, companheiro dessa mulher admirável, o que não digo por lisonja ou exagero, mas por ser pura verdade, reconhecendo que tudo o que poderia dizer está aquém de seus méritos.

Vou resumidamente dizer ao leitor quais foram suas virtudes. Deixou tudo aos pobres, tornando-se ela própria a mais pobre de todos. Entre todas as pedras preciosas, ela brilha como uma pérola inestimável, e da mesma forma que o brilho do sol apaga e obscurece a luz das estrelas, ela supera as virtudes de todos por sua humildade, fazendo-se a menor para se tornar a maior. À medida que ela se rebaixava, Cristo a elevava. Ela se escondia, mas não conseguia se ocultar; ela fugiu da vanglória e mereceu a glória, porque a glória segue a virtude como uma sombra, desprezando os que a buscam e buscando os que a desprezam.

Ela teve cinco filhos: Blesilha, por cuja morte a consolei em Roma; Paulina, que nomeou seu santo e admirável marido, Pamáquio, ao qual enviei um livrinho sobre a perda da esposa, herdeiro de seus bens e executor de seu testamento; Eustóquia, que ainda hoje vive nos Lugares Santos e é, por sua virgindade, um precioso ornamento da Igreja: Rufina, que por sua morte prematura encheu de dor a alma de sua mãe; Toxócio, após cujo nascimento ela parou de ter filhos, o que atesta que ela só desejara tê-los para satisfazer seu marido, que queria filhos homens. Depois da morte do marido, ela chorou tanto que pensou que ia perder a vida e consagrou-se de tal sorte ao serviço de Deus que se poderia imaginar que tinha desejado ficar viúva.

2. Que posso dizer das grandes riquezas daquela casa tão grande e tão nobre, e que ela distribuiu aos pobres? Inflamada pelas virtudes de Paulino bispo de Antioquia, e de Epifânio, que tinham vindo a Roma, ela pensou em rapidamente deixar seu país. Mas por que me demorar naquilo que vou narrar? Ela dirigiu-se ao porto, e seu irmão, seus primos, seus próximos e, mais importantes que todo o resto, seus filhos, acompanharam-na esforçando-se por convencer sua terna mãe a mudar de ideia. O navio de velas içadas e impulsionado pelos remos começava a se afastar, mas na praia o pequeno Toxócio ainda lhe estendia as mãos. Rufina, prestes a se casar, sem proferir uma palavra pedia-lhe, através do pranto, que esperasse suas bodas. No entanto Paula, erguendo os olhos para o Céu sem derramar uma só lágrima, superava, por seu amor a Deus, o amor que tinha por seus filhos. Ela esquecia que era mãe para atestar que era escrava de Cristo. Suas entranhas estavam dilaceradas e ela combatia contra uma dor que não era menor do que sentiria se lhe tivessem arrancado o coração. Mas às leis da natureza ela opunha uma fé imensa, e com alegria sacrificava seu amor aos filhos por um amor ainda maior a Deus. Somente sua filha Eustóquia acompanhou-a na viagem.

O navio ganhava o mar e todos os tripulantes olhavam para a praia, menos ela que desviava os olhos para não enxergar o que não podia ver sem dor. Logo que chegou à Terra Santa, o procônsul da Palestina, que conhecia muito bem a família dela, enviou-lhe serviçais para lhe preparar um palácio, mas ela preferiu uma humilde cela. Ali percorreu com tanto zelo e cuidado todos os lugares em que havia vestígios da passagem de Cristo, que só conseguia deixar um daqueles locais para se dirigir a outros. Ali ela se prosternou diante da cruz, como se o Senhor ainda estivesse pregado nela. Ao entrar no Sepulcro beijou a pedra da Ressurreição que o anjo havia tirado da entrada do monumento, e colocou seus lábios sobre o lugar em que repousara o corpo do Salvador, como se estivesse sedenta das águas da fé.

Toda Jerusalém, e mesmo o Senhor, a quem orava, foi testemunha de quantas lágrimas derramou, de quantos foram seus gemidos e quanta a dor. De lá foi a Belém, e tendo entrado no estábulo do Salvador, viu a casa sagrada da Virgem, e jurava para mim que que com os olhos da fé estava vendo o menino envolto nos cueiros chorando na manjedoura, os magos adorando o Senhor, a estrela brilhando no alto, a Virgem mãe, o pai de criação todo solícito, os pastores que vinham de noite para ver o Verbo encarnado, como se recitassem o começo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo se fez carne”. Ela via as crianças degoladas, Herodes furioso, José e Maria fugindo para o Egito, e exclamava com uma alegria mesclada de lágrimas: “Salve, Belém, casa de pão, onde nasceu o pão descido do Céu[2], salve, terra de Efrata, região fértil da qual o próprio Deus é a fertilidade. Davi pôde dizer com razão: “Entraremos em seu tabernáculo, adoraremos o lugar em que ele pôs os pés”[3], e eu, miserável pecadora, fui julgada digna de beijar a manjedoura em que o Senhor chorou ao nascer. Este é o lugar do meu repouso, porque é a pátria de meu Senhor. Aqui habitarei, pois meu Senhor escolheu-a para nascer”.

3. Ela viveu com tal humildade, que quem a tivesse conhecido e então a visse não a teria reconhecido, e sim tomado pela última das criadas daquele grupo de virgens, devido a seus trajes, suas palavras, sua postura. Desde a morte do marido até seu último dia, ela não comeu na companhia de homem algum, por mais santo que fosse e mesmo que tivesse sido elevado à dignidade episcopal. Ela só se banhava se estivesse doente, só dormia em cama macia quando era acometida por fortes febres, senão repousava num cilício estendido na terra dura, se é que se pode chamar de repouso unir as noites aos dias para passa-las em orações quase contínuas. Chorava tanto por pequenas faltas, que alguém imaginaria que tinha cometido os maiores crimes. Quando lhe dizíamos que devia poupar sua vista e conservá-la para ler o Evangelho, respondia: “É preciso desfigurar este rosto que tantas vezes pintei de vermelho, branco e negro contra o mandamento de Deus. É preciso afligir este corpo que conheceu tantas delícias, é preciso compensar os risos e alegrias de tanto tempo por lágrimas contínuas, a delicadeza da roupa branca e a magnificência de ricos tecidos de seda pela aspereza do cilício. Do mesmo modo que agradei a meu marido e ao mundo, agora desejo agradar a Cristo”.

Entre tantas e tão grandes virtudes, parece-me supérfluo louvar sua castidade que, mesmo quando ela estava no século, serviu de exemplo a todas as damas de Roma, tendo sua conduta sido tal que nem mesmo os mais maledicentes ousaram inventar o que quer que fosse para criticá-la. Confesso que errei quando, vendo-a ser pródiga nas esmolas, eu a repreendi alegando a passagem do apóstolo: “Não se deve dar esmolas em tal quantidade que alivie os outros mas provoque dificuldades a vocês mesmos; é necessário guardar um pouco, para que a abundância que supre as necessidades dos outros não se esgote e impossibilite continuar a praticar a caridade”. [4] Ela me respondia em pouquíssimas palavras e com grande modéstia, invocando o Senhor como testemunha, dizendo que fazia tudo aquilo unicamente pelo amor que sentia por Ele, que desejava morrer pedindo esmola de forma a não deixar um único óbolo à filha a ser sepultada num lençol que não lhe pertencesse. Ela acrescentava, como último argumento: “Se ficar na completa miséria, encontrarei várias pessoas que me ajudarão, mas se um pobre morrer de fome por não receber de mim o que lhe posso facilmente dar, a quem se cobrará por sua vida?”

Ela não queria empregar dinheiro em pedras que desaparecerão com a terra e com o século, mas naquelas pedras vivas que caminham sobre a terra e com as quais, diz o Apocalipse de João, é construída a cidade do grande rei. Como ela pouco comia azeite, salvo nos dias de festa, é fácil adivinhar qual era seu sentimento no que concerne ao vinho, a outros delicados licores, ao peixe, ao leite, ao mel, aos ovos e coisas semelhantes que são agradáveis ao paladar e de cujo uso algumas pessoas que se consideram bastante sóbrias creem poder se fartar sem temer que isso prejudique sua honestidade.

Conheci um homem mau, um desses invejosos disfarçados que são a pior espécie de gente, que pretextando boa intenção foi lhe dizer que o extraordinário fervor que ela demonstrava fazia muitos a considerarem louca, e que ela devia se moderar e fortalecer o cérebro. E ela respondeu: “Estamos como num teatro, à vista do mundo, dos anjos e dos homens; alguns destes podem nos tomar por loucos de Cristo, mas a loucura de Cristo supera toda a sabedoria humana”.

Depois de ter construído um mosteiro para homens, cuja direção confiou a homens, reuniu em três outros mosteiros virgens procedentes de diferentes províncias, tanto mulheres nobres quanto de média e baixa condição. Ela organizou de tal maneira esses três mosteiros, que mesmo estando separados quanto aos trabalhos e às refeições, as religiosas salmodiavam e rezavam todas juntas. Se algumas delas se desentendiam, ela as reconciliava com a extrema candura de suas palavras. Através de jejuns frequentes e redobrados, ela debilitava os corpos dessas jovens, que tinham necessidade de mortificação, pois dizia: “É preferível a saúde do espírito do que a do estômago, a limpeza excessiva do corpo e da roupa é a sujeira da alma, e aquilo que é visto como falta leve pelas pessoas do século pode ser um enorme pecado num mosteiro”.

Embora desse todas as coisas em abundância às que estavam enfermas e até as fizesse comer carne, se ela própria adoecia não tinha a mesma indulgência e pecava contra a igualdade, sendo tão dura consigo quanto era cheia de clemência para com as outras. Contarei aqui um fato de que fui testemunha. Durante um verão muito quente, ficou doente no mês de julho, com febre fortíssima. Já se temia por sua vida, quando começou a sentir alguma melhora. Os médicos exortaram-na a tomar um pouco de vinho, pois consideravam necessário fortalece-la e impedir que se tornasse hidrópica por beber água. Eu, de meu lado, pedi em segredo ao bem-aventurado bispo Epifânio que a persuadisse e até a obrigasse a tomar o vinho. Como ela era clarividente e tinha um espirito muito agudo, logo suspeitou da artimanha que eu havia empregado e disse-me sorrindo que o discurso que o bispo lhe fizera vinha de mim. Quando o bem-aventurado bispo saiu, após ter tentado convencê-la por um bom tempo, eu lhe perguntei o que tinha conseguido e ele me respondeu: “Foi ela que quase persuadiu um homem de minha idade, a não mais tomar vinho”.

Ela sofria muito com a perca dos que amava, em particular de seus filhos, e nessas ocasiões, da mesma forma quando da morte do marido, quase morria de desgosto. Ela enfrentava a dor fazendo o sinal-da-cruz sobre a boca e o peito, enquanto suas entranhas eram dilaceradas pelo choque entre sua fé e seus sentimentos pessoais. Ela sabia de cor a Santa Escritura, e muito embora amasse as histórias nela contadas, que considerava o fundamento da verdade, apegava-se de preferência ao sentido espiritual delas, usando-o para construir o edifício de sua alma. Direi também uma coisa que talvez deixe incrédulos os que a invejam. Como desde jovem estudei a língua hebraica, e continuo a estudar com medo de esquecê-la. Paula também quis aprender aquele idioma. Logrou seu objetivo a tal ponto que que cantava os salmos em hebraico e falava essa língua sem recorrer a palavras latinas, o que sua santa filha Eustóquia ainda faz.

Naveguei até aqui com vento favorável e meu barco varou as ondas do mar sem dificuldades, mas esta narrativa vai agora encontrar obstáculos, porque quem poderia contar a morte de Paula sem derramar lágrimas? Ela soçobrou a uma grande doença, melhor dizendo, ela obteve o que desejava, que era nos deixar para se unir perfeitamente a Deus. Mas por que me detenho e prolongo assim minha dor, demorando a contar o fato? Aquela mulher tão prudente sentia ter apenas mais um momento de vida. Seu corpo já estava tomado pelo frio da morte, e restava-lhe apenas um pouco de calor que permitia que seu coração ainda palpitasse no seu sagrado e santo peito. Apesar disso, como se não houvesse ninguém perto dela, sussurrava os versículos: “Senhor, amei a beleza de sua casa e o lugar em que reside sua glória, achei diletos seus tabernáculos. Senhor, por isso procurei ser a última de todos na casa de meu Deus”. [5] Quando lhe perguntei porque ela se calava e não queria responder e se sentia alguma dor, disse-me em grego que nada lhe doía e que não via nada além de calma e tranquilidade. Depois disso se calou, e tendo fechado os olhos, já desprezando todas as coisas humanas, repetiu até o derradeiro suspiro os mesmos versículos, mas tão baixo que mal podíamos ouvir.

Ao seu funeral compareceram habitantes de todas as cidades da Palestina. Não houve cela capaz de reter os monges escondidos no deserto, nem cela capaz de impedir as virgens, porque todos pensavam que cometeriam sacrilégio caso deixassem de render tributo a uma mulher tão extraordinária, até que seu corpo estivesse enterrado no solo da igreja ao lado da gruta em que nascera o Senhor. Sua venerável filha, a virgem Eustóquia, abraçada à mãe, não podia suportar que a separassem dela, e beijava-lhe os olhos, colava-se a seu rosto, cobria-a de carícias e desejou ser sepultada com ela. Jesus é testemunha que aquela mulher não deixou uma só moeda para a filha, e sim o encargo de cuidar dos pobres e de um grande numero de monges e de virgens que ela achava impiedade abandonar.

Adeus, Paula, ajude com suas preces este ancião que te reverencia”

 (“Legenda Áurea – Vidas de Santos” – Jacopo de Varazze – Companhia das Letras, págs. 209/214)

 


[1] Na realidade, a sua festa cai no dia 26 de janeiro.

[2] São Jerônimo refere-se ao fato de o nome da cidade natal de Jesus significar em hebraico “casa do pão” (betlehem, designação talvez derivada de um antigo culto local cananeu a uma divindade agrária), e ao fato de Jesus ser “o pão que desce do Céu e dá vida ao mundo”, “ser o pão da vida” (Jo 6, 33-35).

[3] Salmo 131, 7

[4] II Cor 8, 13-14

[5] Salmos 26,8 e 84,1

terça-feira, 29 de julho de 2025

UMA DECLARAÇÃO DE FÉ E CONFIANÇA NA MÃE DO BOM CONSELHO

 


(Revista "Madre del Buon Consiglio", editada pelos padres Agostinianos de Genazzano (Itália),  julho-agosto de 1985, p. 28)

 Há tempos estávamos surpresos e admirados por ver, com frequência, jovens estrangeiros recolhidos em profunda oração na capela de Nossa Senhora. Um belo dia quisemos conhecê-los, perguntando porque vinham com tanta assiduidade a nosso Santuário. Disseram-nos sentir-se muito atraídos pela belíssima Imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, que se manifestara com especiais favores ao fundador de sua Associação: Plinio Corrêa de Oliveira. Exprimindo-lhes nosso desejo de ter em mãos um atestado do fato, o Senhor Plinio teve a amabilidade de nos enviar, do Brasil, a seguinte «Declaração»:

 

Declaração

 

“Em dezembro de 1967, tendo eu 59 anos de idade, fui acometido de violenta crise de diabetes. Daí resultou uma gangrena no meu pé direito, o que levou o cirurgião incumbido de meu caso a fazer a amputação dos quatro artelhos menores.

Tal medida não foi tomada sem hesitação, pois receava ele fundadamente que essa gangrena se propagasse pelo pé, tornando então necessária uma amputação bem mais ampla.

Em tal caso, não seria preferível proceder de vez a essa amputação maior?

Continuei hospitalizado, sob inspeção médica.

Ora, sucedera que, algum tempo antes desses fatos, eu me pusera a ler incidentemente o livro "La Vierge Mère du Bon Conseil", de Mons. Georges F. Dillon (Desclée de Brouwer, Bruges, 1885). E, durante a leitura, experimentava em minha alma uma sensível consolação.

Tendo viajado para a Itália antes que eu adoecesse, meu amigo, Dr. Vicente Ferreira, teve este a gentileza de me trazer de Genazzano uma estampa representando o venerando quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho. Essa estampa me chegava no momento de uma provação espiritual que me fazia sofrer muito mais do que a enfermidade física.

Desde 1960, era eu Presidente do Conselho Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Circunstâncias que não vêm a propósito mencionar, davam-me a certeza de estar nos desígnios da Providência que essa entidade realizasse uma larga ação no Brasil e em toda a América do Sul, e ainda nos demais continentes, em prol da Cristandade.

De outro lado, estava eu certo de que meu falecimento naquela conjuntura acarretaria ruína do esforço que começava a vicejar com vigor. E que eu desejava ardentemente levar a cabo para a maior glória de Nossa Senhora, antes de morrer. Daí um estado de verdadeira ansiedade a propósito das incertezas de minha situação clínica e cirúrgica.

No dia 16 de dezembro, outro amigo, Dr. Martim Afonso Xavier da Silveira Jr., fez-me a entrega da aludida estampa, em nome do Dr. Vicente Ferreira.

Quando a fitei, tive a inesperada impressão de que a figura de Nossa Senhora, sem mudar embora em nada, exprimia para comigo inefável e maternal doçura, que Ela me confortava e me incutia na alma — não sei como — a convicção de que a Santíssima Virgem me prometia que eu não morreria sem ter realizado a obra desejada. O que me invadiu de suavidade a alma.

Hoje em dia conservo intacta essa convicção. E, pelo favor de Nossa Senhora, essa obra tem prosperado admiravelmente, autorizando a esperança de que alcance sua meta.

Quando fui agraciado com o sorriso-promessa de Nossa Senhora de Genazzano, nada disse aos circunstantes. Só muito mais tarde falei disto a amigos. Dois destes, que me faziam companhia no hospital quando recebera a estampa, ao ouvirem minha narração, disseram que haviam notado que a figura da Mãe do Bom Conselho me fitava com muito comprazimento, o que lhes chamara muito a atenção. Eles não haviam notado, porém, o sorriso promessa a que aludi.

Assinam eles comigo a presente declaração.

Graças também à Santíssima Virgem, minha saúde se recompôs então de modo a surpreender o cirurgião. E a segunda operação se tornou desnecessária.

É com o coração transbordante de amor e de gratidão à Mãe do Bom Conselho de Genazzano que escrevo a presente declaração”.

                            Plínio Corrêa de Oliveira – São Paulo, 10 de maio de 1985

 


quinta-feira, 17 de julho de 2025

Bem-aventurado Inácio de Azevedo e seus companheiros 40 mártires

 


Com as aventuras além-mar empreendidas pelos portugueses e espanhóis, a Fé Católica expandia-se dia a dia. Entusiasmado pela conquista de novas almas, Inácio de Azevedo empenhou-se na conversão dos indígenas brasileiros. Porém, mais do que seu labor de evangelização, Deus queria dele um sacrifício total: o derramamento de seu sangue em favor da nação que viria a ter a maior população católica da Terra.

Baseando-me no livro “Inácio de Azevedo, o homem e sua época”, de Gonçalves Costa(1), farei comentários sobre alguns aspectos puramente sociológicos, e outros hagiográficos, que dizem respeito ao Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

 

Nome tão belo quanto a prataria portuguesa

Ele era membro de uma família muito distinta. E, em todos os lugares onde há certa estratificação social, os nomes das famílias mais tradicionais acabam tomando uma certa sonoridade, em que se tem a impressão de ver a pessoa portadora de um desses nomes, com o estilo da nação a que pertence.

Este é o caso do Bem-aventurado Inácio. Ele se chamava Inácio de Azevedo de Atayde de Abreu e Malafaia. É um nome tradicional, bonito e muito português; sua sonoridade é linda, e dá a impressão da prataria portuguesa, cujos objetos são tendentes ao nobremente bojudo e seguro de si. De fato, esse nome é um pouco de prataria.

 

Sociedade impregnada pela Igreja

Ingressou na Companhia de Jesus em 1548, sendo anotado a seu respeito no livro da Ordem os seguintes dizeres: “Tem pais vivos. O pai possui benefícios eclesiásticos e suficiência de bens. A mãe é freira num convento do Porto”.

Estamos no século XVI; a Renascença já arrebentou, a Revolução está em curso. Mas como a Igreja ainda estava entranhada na sociedade! É uma família nobre, não de grande nobreza: o pai vivia de rendas eclesiásticas e tinha dado licença à sua esposa para ser freira, e o filho fez-se membro da Companhia de Jesus, a qual, naquele tempo, era a ponta de lança da Contra-Revolução; e tornou-se Bem-aventurado, hoje um dos padroeiros do Brasil.

Como é bonito ver a impregnação da vida eclesiástica na sociedade dessa época.

 

Desejo de ser herói

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo havia sido pajem do Rei D. João III; e, pelo lado materno, descendia de Santa Isabel, Rainha de Portugal.

É bonito haver nele a descendência de Santa Isabel, Rainha de Portugal. Sendo pajem do Rei, ele frequentou o que a corte tinha de melhor.

Em carta ao Padre Geral, Inácio pediu para ser enviado a pontos remotos, pois não queria ficar no mesmo ambiente onde viviam seus pais.

Esse homem foi mandado da corte do Rei de Portugal – naquele tempo marcadamente um potentado, pelo tamanho do império colonial português – para o Brasil, onde havia índios com argolas atravessadas no nariz, canibais, com hálito cheirando a álcool mascado de cana fermentada, uma coisa horrorosa. Podemos imaginar a diferença! Era o que ele queria. Vemos o heroísmo que está presente em seu pedido.

 

Zelo da Companhia de Jesus pelos novos missionários

Do Brasil chegavam cartas dos Padres Nóbrega e Anchieta, relatando as esperanças e as dificuldades das missões. Dois noviços jesuítas haviam sido repatriados para Portugal, por não se adaptarem às novas terras.

Vê-se como era duro aguentar…

São Francisco de Borja, recém-eleito Geral da Companhia, conhecia as especiais virtudes do Padre Inácio e o indicou para visitador apostólico nas terras do Brasil.

Quão cuidadosa era a Companhia de Jesus. Mesmo sendo poucos os jesuítas no Brasil, mandava-se um visitador apostólico incumbido de visitar a nascente Igreja daquelas terras. Percebemos o rigor da ortodoxia, da disciplina e do método.

Por outro lado, vemos como os santos se encontram nessa história: São Francisco de Borja – Geral da Companhia de Jesus, portanto, o homem que tem nas mãos o leme da Contra-Revolução – escolhe um futuro mártir para vir ao Brasil, o qual, por sua vez, descende da Rainha Santa Isabel. Que beleza!

Ao percorrer o litoral do País, acompanhou a expulsão dos calvinistas do Rio de Janeiro.

Em julho de 1566, o colégio jesuíta de Salvador na Bahia, tendo à frente o Padre José de Anchieta e o Padre Manoel da Nóbrega, recebeu festivamente o emissário de São Francisco de Borja, numa visita que se estenderia por dois anos, e ao longo da qual o Bem-aventurado Inácio de Azevedo percorreria as principais vilas nascentes do litoral brasileiro.

Dois anos visitando o Brasil! É preciso dizer que as distâncias enormes se percorriam devagar.

Em 1567, acompanhou no Rio de Janeiro a expulsão dos calvinistas.

Que bonita nota deveria ser acrescentada nas narrações dessas nossas Histórias do Brasil, nesses manuaizinhos, quando tratam da expulsão dos franceses: Nesta verdadeira vitória de Cruzada, esteve presente, com seu ardor, um futuro mártir, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo. Daria outro conteúdo à narração.

 

Pelas mãos dos jesuítas o Brasil vai sendo modelado

Em carta que dirigiu de Salvador ao Geral da Companhia, ele pondera: “Também servirão, além dos padres solicitados, os irmãos oficiais, como pedreiros e todos os demais, porque há na terra muita falta deles, e custa muito fazer as coisas. Por esse motivo, em todas as partes onde residem os homens, ouço dizer que há falta de edifícios e abundância de materiais com que se pode construí-los”.

É dessas frases do Português antigo que tem um especial sabor: “há falta de edifícios, mas abundância de material”. Quase dá para ver as pequeninas cidades implorando que as florestas e as pedras sejam utilizadas para serem transformadas em edifícios. É uma coisa épica.

“Muito me consolo nestas partes, e consolar-me-ia nelas toda a minha vida, ainda que importasse ir a Portugal para ajudá-la mais, trazendo gente e oficiais”.

Ir a Portugal buscar gente e oficiais, eis o plano do Padre Inácio de Azevedo.

Quer dizer, ele esteve no Brasil e viu que era preciso trazer para cá padres, irmãos coadjutores, pedreiros, carpinteiros, etc.

É muito bonito ver a Igreja Católica, por mãos dos jesuítas, tomando a primeira argamassa da sociedade temporal e modelando-a. Quase como Deus que fez primeiro o boneco de barro, para depois criar o homem.

Assim, para poder fundar aqui uma realidade eclesiástica grande, a Igreja ia modelando a realidade civil na qual ela deveria ser insuflada. Ou seja, cuidando das construções e do progresso temporal, a Igreja empreenderia também o progresso espiritual.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo não sabia disso, mas trabalhava com ânimo.

 

A fim de recrutar novos missionários, o Bem-aventurado Inácio de Azevedo volta a Portugal

Ele então viajou para Portugal a fim de pedir, pessoalmente, que fossem mandados jesuítas para o Brasil.

Compreende-se bem sua atitude. Certamente todos tinham medo de vir ao Brasil, tão distante, remoto, vago e ameaçador. Afinal, deixar o aconchegado, bonito e saboroso Portugal, a duras penas conquistado aos árabes, e vir para o Brasil misterioso… Que diferença!

Ademais, sabe-se como o temperamento português é cauto. Ele é capaz de dar passos arriscados, mas depois de saber bem como são as coisas. Por isso eles queriam conversar com a pessoa que vinha do lugar, para depois resolver se viajariam ou não.

Então se entende o passo do Padre Inácio de Azevedo, chegando a Portugal e procurando pessoas a fim de convidá-las para vir ao Brasil.

 

O encontro com o Rei

De volta a Portugal, em 1568, Padre Inácio dirigiu-se para Almeirim, a fim de encontrar-se com o Rei D. Sebastião. Este ouviu com interesse as notícias que o missionário trazia do Brasil, dando todo o apoio à campanha de recrutamento proposta.

Vemos que ele ia direto ao ponto fundamental. Foi falar com o Rei porque de um impulso do monarca dependia o andamento das coisas.

Por sua vez, os reis eram muito desejosos de receberem notícias diretas das pessoas que tinham estado nas terras recém-descobertas, porque não havia os meios de comunicação que existem hoje.

O Padre Inácio deu logo início à empresa, através de sermões e visitas, exímio como era na arte de conversar.

Aqui fica consignado um traço curioso. Eu o imagino procurando as pessoas e dizendo:

– Homem, fui eu que estive lá, é assim…

– Mas deveras, estivestes lá? Contai-me…

Padre Inácio fazia a narração e pegava a ganchos os que deveriam vir. Parece-me que tudo isso faz sentir a respiração da antiga História do Brasil, de um modo pitoresco e muito honroso para a Igreja.

 

Dois personagens tecem a grandeza de Portugal

Seu contemporâneo, Padre Maurício Cerpe, contou a esse respeito: “Tanto que chegou a este reino, foi coisa para dar graças a Deus ver quanta gente se mover para ir ao Brasil. Não falo já de nós da Companhia, porque esses todos queriam ir com ele, mas os de fora. Onde quer que chegasse, logo se moviam de maneira que se alvoroçava a terra e uns se moviam a ir com ele, outros falavam isso como grande novidade muito para ser desejada”.

Quer dizer, ele produzia um alvoroço geral. Vejamos o que custa a grandeza de um povo. Dom Sebastião e o Bem-aventurado Inácio de Azevedo conversam; o futuro de um era morrer no mistério e na tragédia da África, e do outro, morrer na tragédia e no martírio em pleno mar. Conversando, os dois estão tecendo a grandeza de Portugal.

Mas com que homens essa grandeza se tece! Eles tinham conhecimento dos riscos que a vida quotidiana traz. Eram membros de uma nação que estava no seu apogeu.

 

São Pio V abençoa o apostolado no Brasil

De Portugal seguiu para Roma, a fim de pedir ao Papa São Pio V sua bênção para a empresa do Brasil. O Pontífice quis ouvir uma descrição minuciosa desse novo mundo, onde a Fé cristã começava a iluminar a noite indefinida do paganismo. E, além dos privilégios pontifícios para o Brasil, e mão livre para arregimentar pessoal seleto, o santo Pontífice concedeu indulgência plenária a todos os que acompanhassem, e muitas relíquias, terços, Agnus Dei, e outros objetos devotos.

Não consta que ele tenha ido visitar banqueiros; visitou o Pontífice e o Rei. Não consta que tenha trazido dinheiro; trouxe Agnus Dei, bênçãos, relíquias, e com isso esperava fazer o seu caminho.

 

Trajetória de preparativos para a viagem

São Francisco de Borja, entrementes, desejava agradecer a Dona Catarina, Rainha de Portugal, a valiosa ajuda que ela concedera ao Colégio Romano, e quis enviar-lhe uma reprodução da célebre imagem de Nossa Senhora, conhecida como pintada por São Lucas, venerada na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, e incumbiu o Padre Inácio de ser o portador do quadro.

Como Geral da Companhia, São Francisco de Borja morava em Roma. Sabendo que o Bem-aventurado Inácio ia para Portugal, quis que este fosse portador do quadro.

A partir de então, a devoção ao quadro de Nossa Senhora, de São Lucas, ficaria intimamente associada ao missionário.

Em julho de 1569, o Padre Inácio partiu para Portugal, passando por Madri. Em Madri, João de Mayorca foi um dos primeiros espanhóis a aderir. E, como era pintor, esse novo missionário aproveitou para fazer várias reproduções do quadro da Virgem, destinando um deles ao Colégio da Bahia.

Quer dizer, esse pintor tirou várias cópias do quadro que era para a Rainha. E uma dessas cópias vai ter importante papel na vida do Bem-aventurado Inácio de Azevedo.

Afonso Fernandes Cançado associou-se à empresa em Portugal, e fez questão de substituir o sobrenome, pois, segundo explicava, para tal tarefa o nome Cançado não lhe caía bem.

Francisco Perez de Godói, canonista formado em Salamanca, também se juntou ao Padre Inácio. Perez de Godói era primo de Santa Teresa de Jesus que, ao tomar conhecimento de sua adesão, ficou muito alegre.

Santa Teresa, a Grande, soube, portanto, que havia um Brasil! E que um primo dela vinha para esse país, tendo ficado muito alegre com isso. Veremos daqui a pouco o papel de Santa Teresa nessa história.

Ferreiros, marceneiros, pedreiros e tecelões também acertavam detalhes para sua viagem ao Brasil. No total, entre religiosos e artesãos, haviam sido reunidos noventa elementos, que foram conduzidos para uma chácara da Companhia no Vale do Rosal a fim de aguardar a partida dos navios para a América. Porém, foram cinco meses de espera.

É preciso recordar que não havia ainda companhia de navegação regular para o Brasil. Isso apareceu apenas no século XIX. De vez em quando havia um navio que vinha para o Brasil: o Rei, a Companhia das Índias mandavam levar alguma coisa; mas era raro. Por isso transcorreram cinco meses de espera.

Durante esse período, é claro que foi feito um vasto simpósio, à la Companhia de Jesus, preparando a ida para o Brasil: direção espiritual, trabalhos, enfim, uma adaptação completa, muito bem feita!

Tendo sido o navio assaltado por calvinistas, o Bem-aventurado Inácio cai no mar agarrado ao quadro de Nossa Senhora

Em maio de 1570, partiram os religiosos na esquadra do Governador Geral, D. Luiz de Vasconcelos. O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, com mais 39 companheiros, viajava na nau Santiago. Fizeram escala na Ilha da Madeira, onde o Governador, muito vagaroso, quis prolongar a estadia, enquanto o Comandante da nau Santiago trazia a bordo mercadorias, cuja entrega nas ilhas de Las Palmas era urgente.

Esse homem tem responsabilidade no martírio que se seguiu, porque foi por causa desse atraso que eles cruzaram no caminho com a nau calvinista francesa, que agrediu o navio português e causou as mortes.

Sujeitando-se ao risco de ficar à mercê dos ataques dos piratas, esta nau poderia partir sozinha até Las Palmas, aguardando ali o restante da esquadra. A proposta foi levada a D. Luiz, tendo a ela dado seu assentimento o Padre Inácio de Azevedo.

A nau Santiago seguia avante. Em 15 de julho, já próxima da ilha de Las Palmas, defrontou-se com navio dos terríveis calvinistas franceses.

Efetivamente, esses abalroaram a nau Santiago com forte impacto. Os atacantes atingem a corveia, há tinir de espadas, brados de fidelidade a Cristo e à Igreja, mesclados aos berros e blasfêmias dos hereges; as primeiras gotas de sangue começam a tingir o chão.

O Bem-aventurado Inácio de Azevedo, que se encontrava junto ao mastro central, segurando nas mãos o quadro da Virgem de São Lucas, recebeu na cabeça o primeiro golpe, sendo jogado no mar, agonizante e segurando o quadro que ninguém lhe conseguira tirar das mãos.

Por isso ele é representado, habitualmente, flutuando já meio agonizante nas águas, mas segurando o quadro. É muito digno de nota que, estando agonizante e com a gesticulação de quem naufraga e procura mover os braços para não afundar, já não tendo provavelmente consciência de si, apesar disso ele segurasse o quadro.

É claro que a quem de tal maneira segura uma imagem de Maria Santíssima, Nossa Senhora, do Céu, está segurando a alma dele.

 

O sangue dos mártires foi derramado para que o Brasil viesse a ser católico

O olhar marcado dos tripulantes portugueses continuava a fixar-se nos vultos, e eles foram em seguida jogados também ao mar, entre os quais, sobressaía a figura imóvel de Azevedo.

Na Espanha, Santa Teresa de Jesus teve revelação do fato, e afirmou que vira os quarenta mártires, de coroas na cabeça, subindo triunfantes ao Céu.

Vemos que lindo fato da História do Brasil. É evidente que esse sangue foi derramado para que o Brasil fosse católico; era a razão pela qual eles estavam dando as suas vidas.

Somente o irmão João Sanchez não foi morto pelos piratas. Era cozinheiro, e esses resolveram tirar proveito de seus serviços. Foi ele que, retornando depois à Espanha, contou com pormenores todo o ocorrido. Infelizmente, abandonou a Companhia de Jesus.

Essa é a criatura humana! Esse homem tinha obrigação de ser bem-aventurado também. Depois se desligou da Companhia de Jesus e voltou ao estado original.

O culto dos quarenta mártires foi autorizado em 1854, pelo Papa Pio IX.

Na atual Catedral de Salvador, na Bahia, conserva-se um quadro pintado, que se diz ter sido do Beato Inácio.

Não há nenhuma prova de que o quadro tenha escapado das mãos do Bem-aventurado Inácio de Azevedo e chegado à Bahia. Se houvesse, eu piamente creria, e teria um gosto enorme de que isto tivesse ocorrido.

Mas o não ter sido assim, não tolda em nada o verdadeiramente essencial. Na previsão do muito batalhar a favor da ortodoxia, que haveria numa nação a qual, em certo momento da História da Igreja, seria a de maior população católica do mundo, logo no início, para irrigar isso, a Providência dispôs que houvesse quarenta mártires que nem conseguiram chegar até o Brasil – Inácio de Azevedo esteve durante dois anos aqui. O sangue deles não foi vertido no Brasil, o mar dispersou; mas foi derramado com a intenção de servir à causa católica no Brasil.

Esse sangue subiu ao Céu como suave odor, e eles rezam continuamente por nós. No Brasil ficava o Bem-aventurado Anchieta, esperando, rezando e realizando seus feitos para que algum dia o Brasil fosse uma grande nação católica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1981)

 

1) Costa, Manuel Gonçalvez da. Inácio de Azevedo, o homem e sua época. Braga: Livraria Cruz, 1957.