segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

ORIGENS DOS EVANGELHOS E A FORMAÇÃO DAS ESCOLAS CRISTÃS

 


Segundo a Tradição o primeiro Evangelista foi São Mateus, seguido por São Lucas. No entanto, acredita-se que, efetivamente, São Marcos foi o primeiro a escrever o seu Evangelho. A respeito de dados históricos sobre as origens dos Evangelhos, vejamos o que disse sobre o assunto o padre Matos Soares em sua Bíblia Sagrada, ao comentar sobre o Evangelho de São Marcos: “A composição do segundo Evangelho deve ser colocado antes do ano 70, ou melhor, antes do ano 63, época em que já tinha sido publicado o Evangelho de Lucas, o qual, como já admitem também os críticos acatólicos, depende de S. Marcos. Ora, sabemos pela tradição, como foi dito ao falarmos do Evangelho de S. Mateus, que, em ordem cronológica, este Evangelho ocupa o primeiro lugar, e que teria sido escrito, provavelmente, entre os anos 50 e 54. Podemos, portanto, afirmar que Marcos escreveu o seu Evangelho depois do ano 54 e antes do ano 61, no período em que ele devia encontrar-se em Roma, junto com o apóstolo Pedro, como seu auxiliar na fundação da Igreja de Roma” [1] No texto sobre o Evangelho de São Mateus, a que se refere acima o padre Matos Soares, ele afirma, no entanto, que “não se pode estabelecer com certeza a data da composição do primeiro Evangelho”.

Eusébio de Cesaréia, o primeiro historiador da Igreja, narra que, estando São Pedro e São Marcos em Roma, os romanos, "não satisfeitos com o ensinamento não escrito da pregação divina (que lhes ministrava S. Pedro), importunaram a Marcos, companheiro de Pedro, com todo gênero de exortações, para que lhes deixasse um memorial escrito da doutrina que de viva voz lhes havia sido transmitida. Converteram-se, desta maneira, em causa do texto chamado Evangelho de São Marcos. O Apóstolo, quando soube sobre o que havia sido feito, alegrou-se pela boa vontade daquelas pessoas e aprovou o escrito para ser lido nas Igrejas".(História Eclesiástica, II, 15).

No entanto, é tão importante assim a data? Qual o que surgiu primeiro? O que se deve levar em consideração é que surgiram na mesma época, enquanto estavam vivos os principais Apóstolos que foram testemunhas dos fatos ali narrados e os confirmaram pela via oral. De outro lado, qual o fator que deve ser levado em consideração para se considerar a primeira impressão? Impressão? Naqueles tempos não havia impressão como hoje, mas os documentos surgiam de uma forma diferente. Eram papiros ou outros recursos. E às vezes poderiam ter sido dados ao conhecimento público em épocas diferentes de sua impressão ou redação. Um evangelista pode ter escrito seu texto num ano, mas somente após passar pela censura superior, por exemplo, de São Pedro, o documento passou a ser divulgado entre os cristãos; e isso poderia levar algum tempo.

Na sua História Eclesiástica, Eusébio narra também que foi este mesmo São Marcos o primeiro a ser enviado ao Egito para pregar o Evangelho, vindo ali a morrer mártir na qualidade de primeiro patriarca de Alexandria: "Este Marcos", diz ainda Eusébio de Cesaréia, "dizem que foi o primeiro a ter sido enviado ao Egito e que ali pregou o Evangelho que ele mesmo havia escrito e fundou igrejas, começando pela própria Igreja de Alexandria. Surgiu ali, logo de início, uma multidão de crentes, homens e mulheres, com um ascetismo ardente e conforme à sabedoria". (História Eclesiástica, II, 16). Correndo o ano oitavo do império de Nero, o primeiro que, depois de Marcos o Evangelista, recebeu em sucessão o governo da Igreja de Alexandria foi Aniano". (H. E. II, 24). Quer dizer, além de haver escrito o Evangelho, São Marcos o pregou e fundou em Alexandria uma escola de pensamento cristão.

Alexandria tornou-se, assim, um “cento propulsor de estudos e divulgação da doutrina cristã”. No entanto, a localidade já era conhecida como centro de estudos merecedor de credibilidade, como ocorreu nos séculos anteriores ao Cristianismo (cerca de II ou III a.C), quando ali foi feita a famosa tradução da Sagrada Escritura pelos “setenta” sábios. Uma obra coletiva feita por doutores hebraicos que vieram à Alexandria com esta finalidade a pedido de Ptolomeu Filadelfo (rei do Egito que governou de 285 a 247 a.C). Até hoje essa tradução para o grego de textos de idiomas diferentes do Antigo Testamento é tida como certa e inspirada por Deus,

Em Alexandria surgiram estudiosos famosos pela filosofia e pela teologia cristãs nascentes, os quais foram denominados “Padres Alexandrinos” pelo fato de terem estudado na escola desta cidade. Destacaram-se nesta escola Panteno (200 dC), Clemente de Alexandria (220 dC), Orígenes (250 dC), etc deixando a toda Cristandade um legado de doutrina e catequese.

 

Uma escola de formação de catequistas

A catequese foi o método de doutrinação primordial para o Cristianismo, tendo sido o mais usado por Nosso Senhor Jesus Cristo em sua vida pública. Ensinar e doutrinar é a parte principal da atividade apostólica. E somente após surgir os primeiros Evangelhos foi possível se estabelecer um critério didático de funcionamento destas escolas. Nos primeiros séculos, a Igreja só tinha mestres semelhantes aos Apóstolos, especialmente nas primeiras décadas tudo era passado de uns para os outros através da tradição oral, dando-se credibilidade às palavra daqueles que foram testemunhas dos fatos. Aos poucos foram surgindo os catequistas, que eram seus “doutores”. Esta função divina de ensinar, de maneira simples e familiar, a Doutrina Cristã era a mesma que os bispos herdaram de Jesus Cristo; consideravam-na peculiar à sua qualidade de pais e pastores. Quando, com o aumento do número de fiéis, viram-se constrangidos pela força das circunstâncias a passar essa tarefa a outros, tiveram o cuidado de escolher, para tão nobre missão, os homens mais capacitados e virtuosos de sua igreja. E nessa oportunidade sentiram a necessidade de ter algo escrito, como os Evangelhos, conforme narra Eusébio de Cesaréia sobre o de São Marcos.

Os mais destacados doutores dos primeiros séculos da Igreja ufanaram-se da função de catequista e da preparação dos catecúmenos para o batismo.  São Cirilo, bispo de Jerusalém, Santo Ambrósio, arcebispo de Milão, São Gregório de Nissa e Santo Agostinho até compuseram livros, que ainda conservamos, para orientar os catequistas e ensinar-lhes o método de transmitirem os princípios da fé  às crianças e aos adultos que se preparavam para o batismo. Todas estas obras catequéticas, é claro, se baseavam nos Evangelhos e formaram um corpo de doutrina para as gerações futuras.

Na igreja de Alexandria funcionava uma célebre escola de catequistas para instruir os catecúmenos. Panteno, São Clemente de Alexandria e Orígenes, que sucessivamente a dirigiram, deram à escola tanta fama, que para ela acorriam pessoas das mais longínquas regiões.  Nela, São Gregório Taumaturgo aprendeu os rudimentos da fé e fez progressos tais, que o tornaram célebre pelos séculos afora.

Entre as honrarias da Igreja de Constantinopla, o registro dos serviçais menciona a de catequista, cujas funções eram instruir o povo e todos os que abandonavam a heresia para retornar ao seio da Igreja Católica. Orígenes foi encarregado da doutrina aos catecúmenos já aos dezoito anos quando ainda era leigo.  Em Cartago, São Cipriano nomeou para o mesmo serviço um mestre de retórica chamado Optato.  Declara-o nestes termos: “Nomeamos Optato, um dos leitores, mestre dos catecúmenos”. Duzentos anos depois, o diácono Deogratias exercia idêntica função na mesma igreja, e foi a seu pedido que Santo Agostinho compôs o belo livro intitulado: “De catequizandis rudibus”[2]. Tudo isso comprova que se confiava essa tarefa ora a um diácono, ora a um sacerdote e, às vezes, até a um simples leigo e que, na seleção de catequistas, olhava-se menos a posição social da pessoas do que seus talentos, virtudes e dons particulares.

Isso continuou até que, tendo a maioria dos homens abraçado o cristianismo, a falta de catecúmenos fez desaparecer aos poucos a função de catequista. Em tal situação, os pais e as mães e, na falta deles, os padrinhos e as madrinhas assumiram o encargo de ensinar a doutrina às crianças. Ao mesmo tempo, os bispos fundaram escolas para instruir a juventude na religião e nas ciências humanas. A criação, nas igrejas catedrais, do título de “écolâtre”, ou chanceler, remonta àquela época. Os que eram investidos dessa dignidade deviam supervisionar as escolas primárias e tinham o direito de: nomear os mestres e as mestras de primeiras letras e dar-lhes posse; resolver e julgar eventuais divergências; e, elaborar estatutos e regulamentos para as escolas primárias e exigir-lhes exata observância.

 

Catequese e o surgimento da Escolástica

Foi daí que surgiu a “Escolástica”. O termo “Escolástico” vem do latim “Scholasticus”, que designava o clérigo dirigente da escola vinculada à igreja catedral.  Na França medieval, a palavra latina foi deformada para “scolastre”, gerando o termo francês “Écolâtre”.  No início do Cristianismo era muito comum se determinar que alguém ensinasse o Catecismo, sendo depois regulamentada aquela função com a designação de um clérigo que, futuramente, ficou dirigindo a escola vinculada à igreja principal, ou catedral.  No decorrer dos anos, o termo foi evoluindo até tomar o significado que tem hoje: nome de um método de ensino utilizado nas escolas e universidades medievais a partir do século XI. Várias etapas compõem esse método. A primeira consiste em comentar e explicar os autores, isto é, os escritores considerados autoridades na matéria tratada. A isso chama-se “lectio”, na verdade uma exposição que começa com a análise do texto, de sua correção e significação. A seguir, uma discussão (“disputatio”), onde se estabelece a sentença, isto é, o ensinamento que se pode tirar do texto. A partir do momento em que esse texto é posto em questão, surge a terceira fase do método (‘questio”) na qual alunos e mestres apresentam a conclusão do que examinaram (“determinatio”), sempre dirigida pelo professor. Então, “lectio”, “disputatio”, “questio”, e “determinatio” formam o caminho percorrido pela Escolástica para se chegar á Verdade, que seria a “conclusio”.  Duas vezes por ano, os professores organizavam uma reunião chamada “quodlibet”, em que propunham o debate de um tema sugerido por qualquer pessoa presente. A Escolástica tornou-se, com o tempo, o nome que sintetiza as doutrinas teológicas e filosóficas dominantes na Idade Média, cujo cume foi atingido com o Tomismo.

A maioria dos concílios medievais, notadamente os de Châlons-sur-Saône (813), Aix-la-Chapelle (816), Paris (829), Meaux (845), Troflé (909), e Latrão (1179 a 1198), recomendavam encarecidamente a fundação de escolas e obrigaram os párocos a ensinarem o catecismo ao povo.

Apesar do empenho da Igreja, ainda havia muita ignorância religiosa.  Jean Charlier, conhecido como Jean de Gerson, ou simplesmente como Gerson, (1363-1429) famoso reitor da Universidade de Paris e teólogo notável, teve que escrever um livro , “Traité du zèle pour attirer les petits enfants à Jésus-Christ” (Tratado do zelo para levar as criancinhas à Jesus Cristo), com objetivo de catequizar as crianças.  Ele próprio, reitor e teólogo de fama, exerceu as funções de catequista em Lion, tendo por isto sido julgado como pessoa de mente fraca.

Anos depois, o Concílio de Trento promulgava vários decretos cujos objetivos eram a catequese.  Num deles cada vigário era obrigado a dar o catecismo às crianças, aos domingos e dias de festa. Numerosos concílios provinciais confirmaram e publicaram os decretos do Concílio de Trento, obrigando por sua vez seus pastores a serem catequistas de suas paróquias. Na Itália, São Carlos Borromeu foi o primeiro a apoiar a medida, ordenando inclusive que as crianças fossem chamadas ao catecismo pelo toque do sino.

Nos dias atuais a catequese (dar aulas de catecismo) é função quase exclusiva dos leigos, havendo pouquíssima (ou quase nula) participação de sacerdotes ou religiosos de modo geral nesta sublime missão. Da mesma forma, o catecismo dedicado às crianças não sofreu substanciais modificações didáticas, sendo que a última data ainda do tempo de São Pio X. João Paulo II autorizou a atualização do Catecismo da Doutrina Cristã, mas não é voltado inteiramente para crianças e sim para pessoas já instruídas e adultas.

 

 



[1] Bíblia Sagrada – Pe. Matos  Soares – Edições Paulinas, 1989 –pág. 1097

[2] Catequese para o povo simples

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