quarta-feira, 24 de julho de 2013

O problema da certeza



O “problema da certeza” envolve o homem desde o começo do mundo. Estar convicto de que se está de posse da verdade, de que se está no caminho certo a seguir ou de que as idéias concebidas são corretas, é um estado de espírito que, afirmamos COM CERTEZA, é mais comum em pessoas que têm Fé, porque esta é a Virtude da certeza por excelência. A certeza provém da Verdade, mas esta precisa ser aceita pacificamente; do contrário, ocorre como o episódio de Pilatos que perguntou a Nosso Senhor Jesus Cristo o que é a verdade, e Ele nada respondeu. Por quê? Porque de nada adiantaria lhe falar sobre o que é a Verdade (que é Ele mesmo), pois para um homem cheio de dúvidas, assoberbado de incertezas, naquele momento não seria uma simples resposta que lhe faria ter certezas. Era preciso algo mais.
Há pessoas que não acreditam em coisas sobrenaturais, como, por exemplo, em milagres, mas aceitam de bom grado e acreditam nas informações recebidas de um professor em sala de aula, mesmo que este seja um homem materialista, ateu, agnóstico, etc. Por quê? Porque as informações para serem mais facilmente cridas têm que partir de uma fonte que tenha credibilidade para o ouvinte. E o professor tem credibilidade perante o aluno pelo simples fato de ser seu mestre, de outro modo ele não estaria ali para aprender com ele. A partir do momento que o aluno acredita no que o professor diz passa então a ter certezas. É claro que num clima social todo cético e agnóstico como no mundo moderno, talvez nem um professor consiga fazer determinado aluno acreditar no sobrenatural, pois agora isso vai depender de muitos outros fatores.
Do mesmo modo o filho acredita em seus pais e ouve deles ensinamentos e deles tira uma série de conclusões e certezas, com as quais vai guiar os passos de sua vida. O motivo é o mesmo: a fonte de informações que lhe deu aquelas certezas, frutos da crença no que lhe disseram, tem credibilidade e merece confiança. Um outro fator que faz com que alguém acredite no outro é uma questão afetiva, uma simpatia, um pendor por aquele que lhe transmite a informação. Um ateu, por exemplo, acredita mais numa prostituta com quem convive, mesmo esporadicamente, do que num sacerdote quando ouve informações sobre prazer ou sobre um tema prosaico qualquer.
Existem, assim, fontes fidedignas de várias naturezas. As fontes históricas, por exemplo. Em primeiro lugar estas são compostas pelas testemunhas oculares dos fatos; em seguida vêm os documentos escritos, as crônicas, as cartas, etc., mas muitas destas também se reportam às testemunhas vivas que presenciaram os fatos. Em terceiro lugar, há as fontes oriundas de pesquisas dos historiadores, muitos deles vivendo numa época muito afastada das que ocorreram os fatos. Assim, numa tradição ou mesmo através de documentações pesquisadas, surgem fontes históricas fidedignas e que transmitem a quem as consulta crença e certeza de que aqueles fatos ocorreram verdadeiramente. Após estudar um filósofo grego durante um período letivo, determinado estudante vai aos poucos adquirindo simpatia e afeto por aquele personagem, embora ele tenha vivido muitos séculos atrás, e, no final, vai acreditar e ter algumas certezas sobre seus ensinamentos que os professores lhe repassam em sala de aula.
Mas, existem outras certezas. A certeza moral, por exemplo. Um juiz pode acreditar num réu porque, moralmente, ao ouvi-lo num processo, considera-o digno de fé e passa a ter certeza de que ele é inocente, mesmo que não haja provas materiais para isso.  Uma mãe que conhece bem seu filho pode concluir, por uma certeza moral, que seja inocente ou culpado perante alguma calúnia. Um político pode ter uma certeza moral quando ouve uma pesquisa e se diz que seus eleitores, porque gostam dele, vão lhe dar seus votos. Assim, a questão da certeza é muito abrangente e muitas são as ocasiões em que ela pode ou não enraizar-se no espírito de uma pessoa. E, por isso, a certeza é algo muito próprio aos que têm Fé.
Segue abaixo, uma palestra de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira, dividida em dois artigos, sobre como adquirir certezas:


Como adquirir certezas

Quase toda a filosofia moderna – inclusive os sistemas mais opostos entre si, desde o idealismo de Kant até o mais crasso materialismo -, procede de Descartas (1596-1650). Este considera que, para se conhecer com certeza alguma coisa, é preciso rejeitar o testemunho dos sentidos, duvidando-se de todas as impressões adquiridas, e começar do zero a elaboração da análise.
Na verdade, Descartes tentou transplantar a certeza matemática para todos os campos do saber, acabando por gerar um método geométrico, abstrato e apriorístico (segundo Saisset), com “raciocínios por demais generalizadores e aéreos” (segundo Leibniz).
Nada mais natural que Dr. Plínio se opusesse ao método cartesiano. Era ele adepto entusiasta da Escolástica – o ensinamento dos mestres católicos medievais aprovados pela Igreja -, aos quais Descartes tinha verdadeiro horror. A base para as cogitações filosóficas plinianas é principalmente São Tomás de Aquino, a par de outros astros do saber católico, como São Boaventura.

         "Conforme me pediram, passo a tratar a respeito da verdade e do erro, e depois falarei sobre a questão da incerteza.
No tocante ao primeiro tema, é necessário antes apontar uma doutrina que devemos repudiar completamente. É a tese de Descartes, que hoje é adotada subconscientemente por milhões de pessoas.
Descartes – famoso filósofo francês do século XVII – afirmava o seguinte: antes de alguém estudar um assunto, deve duvidar de tudo o que já aprendeu a respeito dele, e começar a raciocinar de novo.
Por exemplo, se quero estudar a natureza das velas acesas diante de uma imagem de Nossa Senhora, preciso cancelar tudo o que jáestá na minha cabeça a respeito de vela, pois não tem valor algum. Devo começar as minhas deduções prescindindo disto.
Ora, ignorar todo o conhecimento anterior gera uma conseqüência psicológica, da qual Descartes não tratou, mas que é um dos resultados do seu sistema.
Que conseqüência é essa? Como é impossível que alguém consiga estudar todas as coisas que deve conhecer utilizando o método por ele preconizado – ignorando o que já aprendeu por meio das impressões, etc. -, a solução é buscar esse conhecimento nos livros. Se alguém não pode coordenar tudo o que sabe, começa por ler. E o conhecer uma ampla bibliografia sobre o assunto é, então, o primeiro passo de um estudo. Assim, o pensamento começa pela leitura.
Não julgo isto correto. Volto ao exemplo da vela: tenho já uma idéia embrionária sobre velas, embora seja a mais rudimentar e vaga possível. Se fosse começar a pensar sobre as velas, talvez tratasse primeiro de reunir o que já sei, e ordenar um pouco essas idéias; depois, fazer algumas observações. Quando o que está na minha cabeça e o que eu poderia pensar por mim mesmo sobre velas tivesse chegado a um certo ponto, aí, sim, eu ia ler sobre o assunto em algum livro.
O livro não pode ser a pista do meu pensamento, mas uma espécie de bomba de gasolina que eu tenho à margem do caminho. E eu me abasteço tanto quanto queira, mas não é meu pensar. O livro é um servo a quem eu mando que me traga materiais para o meu pensamento. Mas vou refletir segundo minas coordenadas, meus antecedentes, meus modos de ver, etc.
Esta é a maneira de pensar característica da nossa escola. Estudamos nos livros para nos completarmos.
Quem é da outra escola, começa por procurar nas bibliotecas tudo quanto outros pensaram sobre uma matéria, para depois tirar suas conclusões. Ele faz o estudo, ou com o intuito de aprender o que outros concluíram, ou para derrubar tudo em função do que outros disseram, ou ainda para acrescentar algo às opiniões de outros.
Não sei se percebem que a finalidade do estudo se deslocou. Notem bem: não estou afirmando que Descartes recomendou isto; estou dizendo que o método dele, como é inumano, na ordem prática das coisas produz, por via de extrapolação, esse resultado.
O mais curioso é que, na concepção de Descartes, uma certeza adquirida previamente ao estudo é considerada um preconceito. A certeza, para o cartesianismo, é um fruto só do estudo: depois de ter estudado fantasticamente, ele adquirirá a certeza. Eu nego que isto seja assim.

Um conceito de estudo formado com base no bom senso

Parece-me chegado o momento de exprimir o nosso conceito de estudo. Ele consiste no seguinte: tenho na mente dados de bom senso – incluindo o senso lógico – que constituem um patrimônio comum de todos os homens.
Ou seja, assim como nasci nascendo mover os olhos para ver o que quero, também nasci sabendo raciocinar. Ninguém precisa de um “tratado de movimentação dos olhos” para saber como fazer. Isto poderá ser necessário para algum doente, mas não para uma pessoa normal. Toda criança mexe naturalmente os olhos, a cabeça, etc.
O senso lógico é assim também. Está na condição humana. Portanto, aprendi diretamente, no contato como mundo externo, uma série de verdades primevas que não necessitam de demonstração. Isto forma em mim um patrimônio de certezas que são inteiramente lógicas, naturais, primeiras. Considerar isto sem valor seria insensatez.
Essas certezas são os pressupostos com os quais vou analisar e pensar.
Alguém poderá me objetar:
- Não pode haver erro nessas certezas primeiras?
- Pode. Como ocorre com tudo o que é humano, é normal que haja.
- Então, rejeite-ase parta do zero.
Para mim, um conselho deste tipo equivale a dizer:
- O senhor não pode ter algum defeito na vista?
- Posso.
- Então, antes de começar a olhar qualquer coisa, arranque os olhos.
Quem age assim com suas certezas iniciais não vê mais nada. Cai na noite da incerteza.
O fundamento da certeza é, portanto, esse patrimônio primeiro, semi-explícito, semi-implícito, que são as certezas iniciais.

Relação entre as certezas e o senso do bem e do mal

Alguém pode retrucar: mas qual é o valor lógico dessa certeza? Como o senhor pode se certificar de que dentro desses dados não haja uma grande série de erros?
A minha resposta é: a imensa maioria dos erros vem de apegos. Para alguém ter confiança nas suas certezas primeiras, precisa ter possuído um senso do bem e do mal muito vivo. Porque, neste caso, seu olho é límpido para ver. As deformações “visuais” se originam, em sua quase totalidade, da vontade.
Quem, com a alma limpa, procura conhecer assim essa verdade primeira, poderá cometer erros acidentais, poderá cometer erros secundários, mas o grosso do conhecimento sobre determinada coisa, ele obtém. Ou seja, na linha-mestra não erra. É do senso natural. Isto é ainda mais verdade quando ele é batizado e assistido pela graça.
Qual é, então, o sistema de conquista da verdade? Esta começa por uma lenta explicitação do que já se sabe. E uma ordenação das coisas novas que se vai sabendo, mas em função do bom senso fundamental desses dados primeiros.

A marcha “de proche em proche” para atingir a verdade última

Sem isso, o senso da verdade não existe. Chega-se à verdade mais ou menos numa marcha de procheenproche(“da próxima à próxima”). Das verdades primeiras, não se deve saltar logo para as últimas, mas é preciso caminhar modestamente para verdades mais próximas. E assim, de uma para outra, embora já se possa ter intuído a verdade última – costuma acontecer que muita gente a intui -, é preciso construir uma demonstração de procheenproche. Construí-la sem aparato, sem espalhafato, sem agitação, mas humilde, sólida e organicamente.
A esse respeito, sustento que o nosso melhor livro somos nós mesmos. Não somos só um livro, cada um de nós é uma biblioteca que contém imensamente mais do que as bibliotecas em que estão os livros. Jamais alguém escreveu tudo o que possa haver na mente de um homem.
Por exemplo: ao repararmos, num tecido,o contraste entre o vermelho e o azul, há milhares de impressões que saltam no nosso subconsciente. Se tomarmos o trabalho de as explicitar, teremos muito mais que numa biblioteca. Este é o grande trabalho intelectual ao qual devemos nos dedicar.
Qual é, então, o papel do livro? Ele me ajuda a colher dados de que eu preciso, me transmite alguma consideração interessante de alguém, etc. Mas nunca devo “entornar” o livro na minha cabeça. Ele deve servir de depósito de material para a minha construção.

Há alguns anos, fui almoçar com um grande medievalista francês, escritor de vários livros e com obras laureadas. Eu não havia lido nem a terça parte do que ele lera sobre a Idade Média. Contudo, no meio da nossa conversa, após eu ter feito alguns comentários sobre coisas medievais, ele me disse: “Caro amigo! O senhor precisa indicar-me sua bibliografia. De que livros o senhor tirou essas observações?” Quase respondi: li a minha própria cabeça...
É assim. E não é sério levantar a objeção de que em algumas mentes há mais do que noutras. Quando alguém quer saber mais do que tem na cabeça, não adianta afundar-se em leituras. Primeiro ele precisa saber aproveitar o que já possui. Um homem que saiba bem aproveitar todo o cabedal que já adquiriu é um talento, um gênio.
Dessas considerações concluo: no analisar determinado assunto, não é preciso ler tudo sobre eles, nem é o caso de dar todos os argumentos a respeito dele, Necessário mesmo é ter dele uma noção básica sólida. Pode até acontecer que não saibamos fundamentar alguns pontos numa discussão. Ora, discussão não é teste de certeza. Pensa-se home em dia que sim: “Discuti com Fulano, ele ficou sem resposta; logo, quem tem razão sou eu”. Esta dedução não se justifica.
Qual é, então, o teste da certeza? Sustento que é a verificação da consonância entre aquilo que se afirma e os dados do bom senso que todos possuem. É uma certeza inicial que, procheenproche, vai se desenvolvendo.
Contudo, ela mesma não é, no fundo, senão uma projeção do senso do bem e do mal e desse senso nativo da verdade e do erro, que se apóiam e se vão tornando mais vigorosos.

(Revista “Dr. Plínio”, nº 36, março de 2001)
  
  
O senso católico e o desabrochar das certezas

 Para cartesianos e empiristas [seguidores da doutrina da tabula rasa, de John Locke], tudo é explicável pela razão, e se houver algo para o que não se encontra uma explicação, esse algo deve ser rejeitado[1]
Há algum tempo atrás, li numa revista de história francesa, a crítica que um alemão fazia a esse método errado de raciocínio, adotado por certos historiógrafos. Com muito critério, ponderava ele o seguinte:
Um livro de história escrito por um cartesiano é uma maravilha de clareza. O leitor entende tudo perfeitamente. Mas, afinal, essa capacidade de explicar é qualidade ou defeito?  Ora, dado que a realidade tem plumas e tem brumas, o cartesiano, ao se recusar a incluir na sua narrativa o aspecto brumoso da história, e se limita a contar apenas aquilo que ele entendeu, não faz uma descrição abrangente. Ele oculta as incógnitas que não compreendeu.
Parece-me uma objeção magistral. Aliás, tratava-se de um francês que resumia a objeção do alemão, e talvez daí viesse esse punhal incisivo cravado na cultura cartesiana. O pensamento, porém, aponta de modo expressivamente germânico esse equívoco proveniente do espírito cartesiano, para o qual um fato sem explicação é como uma vergonha que precisa ser ocultada, pois, pensa ele, o cartesiano: “Só devemos fazer a história do explicável”.
Como já disse, não concordo com esses métodos. Para mim, a marcha do pensamento é comparável ao desenvolvimento de um corpo, que nasce e cresce como tudo quanto é vivo: aos poucos, célula por célula, tomando em conta as verdades e certezas primeiras, nascidas daquele bom senso que é patrimônio comum de todos os homens.

Bom senso versus cartesianismo em face da Religião Católica

Essa diferença de procedimentos intelectuais se torna mais viva quando o assunto é religião. Por exemplo, diante da necessidade de demonstrar que a Religião Católica é verdadeira. Segundo o método do cartesianismo e afins, um estudo para provar essa veracidade deve partir do zero e incluir etapas como estas:
Primeiro, a verificação da autenticidade e inautenticidade dos livros, historicidade das revelações havidas, críticas dos testemunhos, etc., em todas as religiões.
Segundo, confronto das doutrinas de todas as religiões.
Terceiro, qualquer conclusão sobre o assunto: tal religião é verdadeira; nenhuma é verdadeira; todas são verdadeiras, etc.
Quarto, respostas a objeções. Poder-se-ia dizer que só esta etapa já ocuparia vinte vidas de vinte homens que iniciarem o primeiro balbucio sobre a matéria.
Os adeptos do sistema cartesiano e de tudo o que se baseou nele consideram pura idiotice um estudo baseado em métodos diferentes. Se, na discussão com um deles, para justificarmos nossa adesão à Igreja Católica, não fornecemos essa batelada de análises, comparações, gráficos, etc., acharão a demonstração insuficiente. Dirão tratar-se de uma religiosidade rotineira, supersticiosa, derivada da indolência e de atavismos.
Ora, nós temos uma idéia, ainda que sumária, das várias religiões. Temos, também, um bom senso nutrido pelo Batismo, com o qual a Religião Católica se harmoniza inteiramente. A esse respeito, lembro-me das minhas meditações enlevadas no meu tempo de menino: “Como a Religião Católica satisfaz por completo a necessidade da alma humana! Que maravilha! Pode-se dizer que, de algum modo, é a religião do homem! Porque, se a Religião Católica não existisse, e quiséssemos imaginar aquilo capaz de fazer com que o homem fosse o melhor possível, era preciso inventá-la!”
O que mais me chamava a atenção era a sensatez de tudo o que havia no catolicismo: como as verdades aparentemente mais opostas se fundiam numa síntese equilibrada superior, sem nunca a Igreja tremer com esses contrastes, mas guardando toda a serenidade, e tirando daí uma verdade líquida, límpida, extraordinária.
Recordo-me, por exemplo, do meu entusiasmo de criança tanto com o luxo do Papa, quanto com a pobreza dos religiosos. Eu pensava: “Caramba! Essas coisas devem chocar-se. Entretanto, os católicos que conheço acham a coexistência desses contrastes a coisa mais natural do mundo. Aceitam isso, porque há uma superior posição onde tudo se ordena. Como isso é humano! Como a vida não seria vida se não fosse assim! Como tudo seria inexplicável se a Religião Católica não fosse verdadeira!”
Devo dizer que nunca me interessei por provar que a Religião Católica e autêntica. Trata-se de uma preocupação que jamais me passou pela mente. Não condeno que se façam pesquisas e estudos aprofundados sobre a questão. Pelo contrário, louvo que assim procedam, mas considero que o objetivo não deve ser provar a veracidade da Religião Católica, e sim acrescentar novos testemunhos de que ela o é.[2] Essa convicção parte da minha certeza nativa,,do meu bom senso calmo, planturoso [abundante, copioso], embrionário, do meu gosto pelas coisas como elas devem ser, e também da minha rejeição a tudo quanto seja atitude ou doutrina que não se coaduna com a natureza humana, e assim faz pressão sobre meus nervos.
Com efeito, todas as verdades têm de ser coerentes com os nervos do homem. Aquilo que os abala é errado, do mesmo modo que não pode ser verdade o que é contrário à boa ordem da natureza humana.
Temos assim, a propósito da Igreja, uma visão do modo pelo qual, do senso do bem e do mal, acrescido do bom senso e do senso católico, nasce uma flor, alva, calma, perfumada, de vida longa, resistente a insetos e ao mesmo tempo muito delicada: a certeza.

 Bom senso e método científico devem andar juntos

Eu pergunto: alguém pode adquirir a Fé católica pelo processo científico?
Se um homem passasse a vida inteira estudando, creio que chegaria alogicamente á Fé.Mas, com quantas possibilidades de se enganar ao longo dessa vida? Por aí podemos perceber que esse processo é inidôneo para a aquisição da certeza.
Alguém poderia me objetar:
- O senhor então condena a pesquisa e o método de dedução científica?
Não! Longe de mim condená-los! Aceito-os. Contudo, não começando com a dúvida metódica de Descartes nem com a tabula rasa do empirismo, nem tampouco afirmando que só por esses métodos se alcançam as grandes certezas. Digo mais. A convicção da própria certeza científica se adquire por causa dessas certezas anteriores que se depreendem do bom senso e iluminam o método científico.
Eu condeno, sim, a ruptura entre o bom senso e o processo científico.
Para uma demonstração ter validade, é preciso que suas grandes linhas, as linhas capitais, estejam de acordo e em consonância com as grandes linhas do bom senso. Essa consonância e esse acordo é que têm importância; o resto são pormenores que, se em algo são falhos, não comprometem a visão correta o raciocínio. Poe exemplo, se estou apresentando a visão correta de um fato histórico, mas me equivoco a respeito do nome de um personagem (digamos, de um rei), e alguém me corrige: “Não, não é tal rei assim, é tal outro”, eu não fico esmagado por causa do meu engano. Agradeço a retificação e digo: “Ah, meu bom secretário, é tal rei? Vou tomar uma nota, porque já tinha me esquecido desse pormenor”. Está acabado.

Realidades inesgotáveis, equilíbrio e nervosismo

Concluo acrescentando mais um dado.
Um dos pressupostos dos sistemas derivados do cartesianismo é que uma realidade pode ser conhecida e esgotada por inteiro. Daí ouvirmos perguntas deste tipo (feitas, aliás, de modo excitado):
- Você já leu tudo sobre tal coisa?
Ou seja, para um adepto de tais sistemas a realidade sobre um determinado ponto é completamente esgotável pelo estudo. Por causa disso, fazendo-se duzentos estudos, esgotando-se duzentas realidades, chega-se a tal certeza. Esse modo de pensar revela uma limitação e uma falta de aristocracia de espírito a toda prova.  Pois toda realidade é inesgotável,o que se traduz até por uma atitude física: em vez de olhar para uma realidade de perto, a fim de devorá-la, preciso considerá-la meio de longe, com recuo e panorama.
Dou-lhes um exemplo. Imaginemos que, em determinada universidade norte-americana, alguém com uma mentalidade como essa que descrevemos se interesse em pesquisar as algas marinhas. Começa, então, por formar um pequeno departamento de algas no Instituto de Botânica Oceanográfica adstrito ao Setor de Geografia da Faculdade de Ciências, etc. (porque, é claro, tudo ali já é ultra-especializado).
Depois, trata-se de conseguir do Governo uma verba de tantos bilhões de dólares para fundar uma própria Universidade de Algas,, a qual, por sua vez, se divide em diversas Faculdades e em várias seções.
Pois bem: ao cabo de dois mil anos desse sistema, o desdobramento ainda não teria terminado, nem a pesquisa terá chegado a seu fim. Porque, em última análise, cada alga é uma realidade inesgotável, e para se estudar um minúsculo pedaço de alga, uma universidade não basta.
Então não se deve estudar as algas? Sim, deve-se pesquisá-las, não com o objetivo de esgotar a análise, mas para se descobrirem os aspectos dominantes dessa realidade chamada alga. Esse é o modo de procedermais ordenativo, mais calmo e mais nobre da mente humana.
Claro que se alguém quiser dar a um de nós um pormenor sobre a alga, devemos aceitar gratamente essa contribuição. Mas com a condição de a nova informação não dominar a nossa visão. E de, com nossas linhas gerais, sermos donos do assunto, e não uns eruditos.
Um espírito equilibrado possui não apenas os três sensos já mencionados (o senso do bem e do mal, obom senso e o senso católico), mas ainda o senso do metafísico, o do orgânico, enfim, todos os sensos inerentes a uma reta inteligência.
Ora, os cartesianos e os empiristas querem esgotar o inesgotável, e desejam que isso caiba na mente do homem. É o erro deles, que acaba originando problemas nervosos, pois, sem a ordenação e a serenidade interiores, a pessoa acaba se jogando num precipício de gagueiras. Por isso sou da opinião de que muitos dos distúrbios psiquiátricos verificados hoje em dia vêm do fato de que a formação em certos ambientes modernos já falseia na criança esse equilíbrio interior primeiro. E uma vez falseado, o indivíduo fica lesado em sua paz de alma e não vive bem.

Um inevitável círculo vicioso

Em resumo, eu afirmo que da nossa escola sai a certeza. Das outras escolas saem apenas afirmações categóricas, aliás, temporárias, pois só serão válidas até nova descoberta.
Imaginemos que vem dar uma conferência um professor universitário, especialista em algas do Baixo-Mediterrâneo. Informadíssimo, mas não e homem de certezas. Ora, alguém que seja muito bem informado, mas não possua certezas, pode até ser muito inteligente – presto homenagem à inteligência dele – mas é um pobre coitado.
A um sábio desse gênero, eu gostaria de propor esta questão:
- O senhor deseja, naturalmente, construir seu raciocínio sobre umas primeiras noções. Mas que certeza o senhor tem de que o raciocínio humano conduz à verdade? Se o senhor afirmar isto sem prova, estará formando um preconceito. Não seria melhor partir de um estudo sobre esse problema criteriológico?
O sábio me responderá:
- Perfeito. Então eu vou começar por aí...
- Não, não, devagar! Há uma dificuldade. O senhor vai provar por meio de raciocínios que o raciocínio conduz à verdade. Ora, existe aí uma petição de princípio, porque o senhor vai usar o raciocínio para justificar a si próprio. Para provar que o raciocínio conduz à verdade, é preciso haver um elemento anterior a ele. O senhor quer me dizer em que sua certeza se funda? Qual é o início?
Ora, se for considerada como certa a tabula rasa do empirismo, não há uma base para o começo! É o mesmo problema da dúvida metódica cartesiana, que ignora tudo o que é adquirido anteriormente ao raciocínio abstrato[3].
Na realidade, há verdades primeiras[4] – São Tomás de Aquino o demonstra muito bem – que são evidentes por si mesmas, e sem as quais não há como adquirir a certeza".

(Revista “Dr. Plínio”, nº 37, abril de 2001).


Descartes é considerado o primeiro filósofo moderno. A sua contribuição à epistemologia é essencial, assim como às ciências naturais por ter estabelecido um método que ajudou no seu desenvolvimento. Descartes criou, em suas obras "Discurso sobre o método" e "Meditações" - a primeira escrita em francês, a segunda escrita em latim, língua tradicionalmente utilizada nos textos eruditos de sua época - as bases da ciência contemporânea.
O método cartesiano consiste no Ceticismo Metodológico - que nada tem a ver com a atitude cética: duvida-se de cada idéia que não seja clara e distinta. Ao contrário dos gregos antigos e dos escolásticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque precisam existir, ou porque assim deve ser etc., Descartes instituiu a dúvida: só se pode dizer que existe aquilo que puder ser provado, sendo o ato de duvidar indubitável. Baseado nisso, Descartes busca provar a existência do próprio eu (que duvida, portanto, é sujeito de algo - ego cogito ergo sum- eu que penso, logo existo) e de Deus.
Também consiste o método de quatro regras básicas:
  • verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou coisa estudada;
  • analisar, ou seja, dividir ao máximo as coisas, em suas unidades mais simples e estudar essas coisas mais simples;
  • sintetizar, ou seja, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro;
  • enumerar todas as conclusões e princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento.
Observação: Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein, ainda quando judia) avançou nos estudos da chamada “Fenomenologia” ao afirmar que há a certeza de que as coisas existem porque estas se manifestam pelos fenômenos de suas naturezas intrínsecas, não dependendo, portanto, de nosso conhecimento. Isso derruba tanto o cartesianismo (a dúvida como ponto de partida) como o empirismo (pelo qual, todo conhecimento só se comprova com as experimentações empíricas). A certeza da existência de seres espirituais, como os Anjos, não provém de experiências empíricas nem de puros raciocínios, mas porque há manifestações deles através de fenômenos percebidos e testemunhados pelos homens.



[1] Uma esclarecedora amostra do empirismo é encontrada no seguinte trecho de Hume: “Se tomarmos nas mãos qualquer volume de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: ‘Contém ele algum raciocínio abstrato a respeito da quantidade ou número?’ Não. ‘Contém algum raciocínio experimental a respeito de assuntos de fato e existência?’ Não. Entregue-o então às chamas, pois não poderá conter nada senão sofistaria e ilusão. (Peter Gay, “A ilha da razão”, in Folha de São Paulo, caderno Mais!, 15/4/2001).
[2]Claro está que Dr. Plínio excetua aqui as necessidades apologéticas, das quais era entusiasta.
[3] Foi para tentar sanar essa fatal lacuna de seu sistema que Descartes imaginou a tese da existência deidéias inatas, considerada absurda pela sã filosofia.
[4] A primeira e básica de todas as verdades é a Revelação divina. Todo o conhecimento humano é, assim, oriundo de alguma revelação, ou de Deus ou de um Anjo,ou de um outro homem. A certeza, muitas vezes, se origina da credibilidade que se da à fonte de onde provém a revelação. O aluno adquire a certeza porque confia no professor... e é este quem “revela” ao aluno as verdades por ele antes desconhecidas.

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