Talvez não se tenha certeza, a estas alturas da situação moral de nosso povo, se permanece ainda no coração do povo brasileiro aquela bondade tão famosa em tempos idos. Para uma análise, seria interessante ver qual o verdadeiro sentido de "bom coração" ou de bondade. Para tanto, expomos abaixo um artigo do Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre o tema:
“Uma
deformação romântica da caridade: “o bom coração”.
Odiar
é pecado? Sim, não? Por que? Se alguém se encarregasse de fazer entre os nossos
católicos um inquérito a este respeito, recolheria respostas muito curiosas,
revelando em geral uma pavorosa confusão de idéias, um ilogismo fundamental.
Para
muita gente, ainda intoxicada por restos do romantismo herdado do século XIX, o
ódio não é apenas um pecado, mas o pecado por excelência. A definição romântica
do homem mau é o que tem ódio no coração. A contrário sensu, a virtude
por excelência é a bondade, e por isto todos os pecados têm sua atenuante se
cometidos por uma pessoa de "bom coração". É freqüente ouvirem-se
frases como esta: "pobre X, teve a fraqueza de se ‘casar’ no Uruguai, mas
no fundo é muito boa pessoa, tem ótimo coração". Ou então: "pobre Y,
deixou roubar em sua repartição, mas foi por excesso de bondade: ele não sabe
dizer não, a ninguém".
O
que vem a ser "um bom coração"? Evidentemente, começa por não ser um
coração propriamente dito, mas um estado de espírito. Tem "bom
coração" quem experimenta em si, muito vivamente, o que sofrem os outros.
E que, por isto mesmo, nunca faz sofrer a ninguém. É por "bom
coração" que uma pessoa pode deixar sistematicamente impunes as más ações
de seus filhos, permitir que a anarquia invada a aula em que leciona, ou os
operários que dirige. Uma reprimenda faria sofrer, e a isto não se resolve o
homem de "bom coração", que sofre ele mesmo demais, em fazer os
outros sofrer. O "bom coração" sacrifica tudo a este objetivo
essencial, de poupar sofrimento. Se vê alguém queixar-se do rigor do Decálogo,
pensa imediatamente em reformas, abrandamentos, interpretações acomodatícias.
Se vê alguém sofrer de inveja por não ser nobre, ou milionário, pensa logo em democratização. Juiz ,
sua "bondade" o levará a sofismar com a lei para deixar impunes
certos crimes. Delegado, fechará os olhos a fatos que seu dever funcional lhe
imporia que reprimisse. Diretor de prisão, quererá tratar o sentenciado como
uma vítima inocente dos defeitos da época e do ambiente; e, em conseqüência,
instaurará um regime penal que transformará a casa de correção em ponto de
encontro de todos os vícios, em que a livre comunicação entre sentenciados
exporá cada um ao contágio de todos os vírus que ainda não tem. Professor,
aprovará sonolenta e bonacheironamente alunos que no máximo mereceriam 2 ou 3.
Legislador, será sistematicamente propenso a todas as reduções de horas de
trabalho, e a todos os aumentos de salário. Na política internacional, será a favor
de todos os "Munique" de todas as capitulações imprevidentes,
preguiçosas, imediatistas desde que sem dispêndio de energia salvem a paz por
mais alguns dias.
Subjacente
a todas estas atitudes, está a idéia de que no mundo só há um mal, que é a dor
física ou moral: em conseqüência, bem é tudo quanto tende a evitar ou a
suprimir sofrimento, e mal é o que tende produzi-lo ou agrava-lo. O "bom
coração" tem uma forma especial de sensibilidade, pela qual se emociona à
vista de qualquer sofrimento, e defende todo e qualquer indivíduo que sofre,
como se ele fosse vítima de uma injusta agressão. Dentro desta concepção,
"amar ao próximo" é não querer que ele sofra. Fazer sofrer o próximo
é sempre e necessariamente ter-lhe ódio.
Daí
advém para o homem de "bom coração" uma psicologia muito especial.
Todos os que têm zelo pela ordem, pela hierarquia, pela integridade dos
princípios, pela defesa dos bons contra as investidas do mal, são desalmados,
pois "fazem sofrer" com sua energia os "pobres coitados"
que "tiveram a fraqueza" de cair em algum deslize.
E
se em relação a todos os pecadores da terra o homem de "bom coração"
tem tolerância, é muito explicável que odeie o homem de "mau coração"
que "faz sofrer os outros".
Estas
são as linhas gerais em que se pode sintetizar um estado de espírito muito
freqüente. Claro está que apontamos um caso em tese. Graças a Deus,
só um número relativamente pequeno de pessoas é que em todos os campos chega a
estes extremos. Mas é freqüente encontrar gente que em diversos pontos age inteiramente
assim.
E
constituem multidão aqueles em que se encontram pelo menos laivos deste estado
de espírito.
Ainda
aqui, alguns exemplos são esclarecedores. Para mostrar quanto este mal está
entranhado no brasileiro, escolhamos esses exemplos em maneiras de falar e de
sentir comuns entre católicos.
Para
que se entenda bem o que há de errado nos exemplos que vamos dar, comecemos por
lembrar rapidamente qual é neste assunto a autêntica doutrina católica.
Para
a Igreja, o grande mal neste mundo não é o sofrimento, mas o pecado. E o grande
bem não consiste em ter boa saúde, mesa farta, sono tranqüilo, em gozar honras,
em trabalhar pouco, mas em fazer a vontade de Deus. O sofrimento é certamente
um mal. Mas este mal pode em muitos casos transformar-se em bem, em meio de
expiação, de formação, de progresso espiritual. A Igreja é Mãe, a mais terna, a
mais solícita, a mais carinhosa das mães. Dela se pode dizer, como de Nossa
Senhora, que é Mater Amabilis, Mater Admirabilis, Mater Misericordiae. Assim,
ela procurou sempre, procura hoje, até o fim dos séculos procurará quanto possa
afastar de seus filhos, e de todos os homens, qualquer dor inútil. Mas nunca
deixará de lhes impor a dor, na medida em que a glória de Deus e a salvação das
almas o peçam. Ela exigiu dos mártires de todos os séculos que aceitassem os
tormentos mais atrozes, ela pediu aos cruzados que abandonassem o conforto do
lar para arrostar mil fadigas, combates sem conta, a própria morte em terra
estranha. E ainda em nossos dias ela pede aos missionários que se exponham a
todos os riscos, a todas as fadigas, nos rincões mais inóspitos e longínquos. A
todos os fiéis, pede ela uma luta incessante contra as paixões, um esforço
interior contínuo para reprimir tudo quanto é mau. Ora, tudo isto supõe sofrimentos
de tal monta, que a Igreja os considera insuportáveis para a fraqueza humana, a
ponto de ensinar que, sem a graça de Deus, ninguém pode praticar na sua
totalidade, e duravelmente, os Mandamentos.
Todos
estes sofrimentos, a Igreja os impõe com prudência e bondade, é certo, mas sem
vacilação, nem remorso, nem fraqueza. E isto, não apesar de ser boa mãe, mas
precisamente porque o é. A mãe que sentisse remorso, vacilasse, fraquejasse ao
obrigar seu filho a estudar, a se submeter a tratamentos médicos penosos mas
necessários, a aceitar punições merecidas, não seria boa mãe.
Este
procedimento, a Igreja o espera também de seus filhos, não só em relação a si
mesmos, mas ao próximo. É justo que nos dispensemos de dores inúteis e
evitáveis. Devemos ter para com o próximo entranhas de misericórdia,
condoendo-nos com seus padecimentos, e não poupando esforços para os aliviar.
Entretanto, devemos amar a mortificação, devemos castigar corajosamente nosso
corpo e, principalmente, combater com afinco, clarividência, meticulosidade os
defeitos de nossa alma. E como o amor do próximo nos leva a desejar para ele o
mesmo que para nós, não devemos hesitar em fazê-lo sofrer, desde que necessário
para sua santificação.
* * *
Ora,
na aplicação destes princípios é fácil apontar muitos desvios ocasionados pela
concepção romântica do "bom coração".
É
"bom coração" ter certa condescendência para com formas veladas de
divórcio, por pena dos cônjuges, ser pela abolição dos votos religiosos e do
celibato sacerdotal, por pena das pessoas consagradas a Deus, considerar com
laxismo os problemas ligados à limitação da prole por pena da mãe, etc. Em
outros campos, o "bom coração" consiste em ser contra as polêmicas
ainda que justas e temperantes, contra o Index, contra o Santo Ofício, contra a
Inquisição ( ainda que sem os abusos a que deu ocasião em alguns lugares ),
contra as Cruzadas, porque tudo isto faz sofrer. Em outros campos ainda, o
"bom coração" consiste em não falar de demônio, nem de inferno ou de
purgatório, em não avisar aos doentes que a morte está próxima, em não dizer
aos pecadores a gravidade de seu estado moral, em não lhes falar de
mortificação, nem de penitência, nem de emenda, porque também isto faz sofrer.
Já vimos um educador católico se manifestar contra os prêmios escolares porque
fazem sofrer os alunos vadios! Como já vimos também associações religiosas
tolerando em seu grêmio elementos perigosos para os associados e desedificantes
para o público, porque a expulsão desses elementos os faria sofrer. Falar
contra as modas e danças imorais, preconizar uma censura cinematográfica sem
laxismo tudo isto em última análise parece descaridoso, porque "faz
sofrer". Soubemos a este respeito de alguém que desaconselhava uma
campanha contra os jornais imorais porque isto "faz sofrer" os
editores cujas almas cumpre salvar!
* * *
Fizemos
esta longa digressão para focalizar melhor o problema que de início
formulávamos. Para o "bom coração", todo ódio é necessariamente um
pecado. Dir-se-á o mesmo à luz da doutrina católica?
Pensando
no perigoso furor da avalanche de "bons corações" de que o Brasil
está cheio, quase não ousamos formular a pergunta. E certamente não
responderemos por nós. Mas falaremos pela grande e autorizada voz de S. Tomás.
É
o que faremos em próximo artigo”.
( “Catolicismo”,
edição n.34, de outubro de 1953):
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