Segunda-feira, 16 de março de 2009
Rádio Vaticano - O presidente da Pontifícia Academia para a Vida, Dom Rino Fisichella, comentou no jornal da Santa Sé, L’Osservatore Romano, o caso da menina brasileira de nove anos que interrompeu a gravidez de dois gêmeos concebidos após ser violentada pelo seu padrasto em Alagoinha (PE).A seguir o texto do arcebispo Dom Rino Fisichella
"O debate sobre algumas questões freqüentemente se torna cerrado e as diferentes perspectivas nem sempre permitem considerar o quanto o acontecimento em jogo seja realmente grande. É este o momento em que se deve olhar o essencial e, por um momento, deixar de lado aquilo que não toca diretamente o problema. O caso em sua dramaticidade é simples. Uma menina de apenas nove anos, a quem chamaremos Carmen, e a quem devemos olhar fixamente nos olhos sem distrair sequer um minuto, para fazê-la entender o quanto a queremos bem. Carmen, em Alagoinha, foi violentada várias vezes pelo seu jovem padrasto, engravidou de dois gêmeos e nunca mais teve uma vida tranqüila. A ferida é profunda porque a violência a destruiu por dentro e dificilmente lhe permitirá no futuro olhar os outros com amor.
Carmen representa uma história de violência cotidiana e ganhou as páginas dos jornais somente porque o arcebispo de Olinda e Recife se apressou em excomungar os médicos que a ajudaram a interromper a gravidez. Uma história de violência que, infelizmente, teria passado despercebida, pois estamos acostumados a ver todos os dias fatos de uma gravidade sem igual, se não fossem as reações causadas pela atuação do bispo. A violência sobre uma mulher é grave, e se torna ainda mais deplorável quando perpetrada contra uma menina pobre, que vive em condição de degradação social. Não existe linguagem correspondente para condenar tais episódios, e os sentimentos que surgem são muitas vezes uma mistura de raiva e de rancor que se acalmam somente quando a justiça é feita realmente e se tem certeza de que o criminoso será punido.
Carmen deveria ter sido em primeiro lugar defendida, abraçada, acariciada com doçura para fazê-la sentir que estamos todos com ela; todos, sem exceção. Antes de pensar na excomunhão era necessário e urgente salvaguardar sua vida inocente e recolocá-la num nível de humanidade da qual nós homens de Igreja devemos ser anunciadores e mestres. Assim não foi feito e, infelizmente, a credibilidade de nosso ensinamento sofre com isso, pois aparece aos olhos de muitos como insensível, incompreensível e sem misericórdia. É verdade, Carmen trazia consigo outras vidas inocentes como a sua, não obstante fossem frutos da violência, e foram ceifadas; isso, todavia, não basta para fazer um julgamento que pesa como uma guilhotina.
No caso de Carmen se confrontaram a vida e a morte. Por causa de sua tenra idade e de suas condições de saúde precárias sua vida corria sério risco por causa da gravidez. Como agir nestes casos? Decisão árdua para o médico e para a lei moral. Escolha como esta, mesmo como uma casuística diferente, se repetem cotidianamente nas salas de tratamento intensivo e o médico se encontra só no ato de decidir o que fazer. Ninguém chega a uma decisão desse tipo com desenvoltura; é injusto e ofensivo pensá-lo.
O respeito devido ao profissionalismo do médico é uma regra que deve envolver todos e não pode consentir chegar a um julgamento negativo sem antes considerar o conflito criado em seu íntimo. O médico traz consigo sua história e sua experiência; uma escolha como essa de ter que salvar uma vida, sabendo que coloca em sério risco outra, jamais é vivida com facilidade. Certo, alguns se acostumam a tais situações que e as vivem sem sentimento; nestes casos, porém, a vocação de ser médico é reduzida apenas a uma profissão vivida sem entusiasmo e passivamente. Fazer de um caso um todo, além de incorreto seria injusto.
Carmen repropôs um caso moral entre os mais delicados; tratá-lo de forma rápida não faria justiça nem à sua frágil pessoa nem aos que estão envolvidos no caso. Como todo caso singular e concreto, merece ser analisado de forma peculiar, sem generalizações. A moral católica possui princípios dos quais não pode prescindir, mesmo se o quisesse. A defesa de uma vida humana desde a sua concepção pertence a um destes princípios e se justifica pela sacralidade da existência. Todo ser humano, de fato, desde o primeiro instante de vida traz consigo a imagem do Criador, e por isto estamos convictos de que devem ser reconhecidos os direitos e a dignidade de toda pessoa, primeiro entre todos o de sua intangibilidade e inviolabilidade.
O aborto não espontâneo sempre foi condenado pela lei moral como um ato intrinsecamente mau e este ensinamento permanece imutável em nossos dias desde os primórdios da Igreja. O Concílio Vaticano II na Gaudium es spes - documento de grande abertura e perspicácia em relação ao mundo contemporâneo - usa de forma inesperada palavras inequívocas e duríssimas contra o aborto direto. A colaboração formal constitui uma culpa grave que, quando realizada, exclui automaticamente da comunidade cristã. Tecnicamente, o código de Direito Canônico usa a expressão latae sententiae para indicar que a excomunhão se atua automaticamente no momento em que o fato acontece.
Não era preciso tanta urgência e publicidade ao declarar um fato que se realiza de maneira automática. O que se sente maior necessidade neste momento é o sinal de um testemunho de proximidade a quem sofre, um ato de misericórdia que, mesmo mantendo firme o princípio, é capaz de olhar além da esfera jurídica para atingir aquilo que o direito prevê como objetivo de sua existência: o bem e a salvação daqueles que crêem no amor do Pai e daqueles que acolhem o Evangelho de Cristo como as crianças, que Jesus chamava para junto de si e as abraçava dizendo que o reino dos céus pertence a quem é como elas.
Carmen, estamos do seu lado. Partilhamos o sofrimento pelo qual passou, queremos fazer de tudo para lhe restituir a dignidade que lhe foi tirada e o amor de que você precisa ainda mais. São outros que merecem a excomunhão e o nosso perdão, não os que lhe permitiram viver e ajudam a recuperar a esperança e a confiança, não obstante a presença do mal e a maldade de muitos".
L'Osservatore Romano - 11 de julho de 2009 - Esclarecimento da Congregação para Doutrina da Fé
Sobre o aborto provocado.
Recentemente foram recebidas pela Santa Sé diversas cartas, inclusive da parte de altas personalidades da vida política e eclesial, que informaram sobre a confusão criada em vários países, sobretudo na América Latina, após a manipulação e instrumentalização de um artigo de Sua Excelência Monsenhor Rino Fisichella, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, sobre a triste história da “menina brasileira”.
Em tal artigo, publicado no “L’Osservatore Romano” de 15 de março de 2009, era proposta a doutrina da Igreja, também tendo em conta a situação dramática da supracitada menina, que – como se pôde notar mais tarde – foi acompanhada com toda sensibilidade pastoral, em particular pelo então Arcebispo de Olinda e Recife, Sua Excelência Monsenhor José Cardoso Sobrinho. A respeito, a Congregação para a Doutrina da Fé reitera que a doutrina da Igreja sobre o aborto provocado não mudou nem poderia mudar.
Tal doutrina foi exposta nos números 2270-2273 do Catecismo da Igreja Católica nestes termos:
“A vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento da sua existência, devem ser reconhecidos a todo o ser humano os direitos da pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida. «Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi: antes que saísses do seio da tua mãe, Eu te consagrei» (Jr 1, 5). «Vós conhecíeis já a minha alma e nada do meu ser Vos era oculto, quando secretamente era formado, modelado nas profundidades da terra» (Sl 139, 15). A Igreja afirmou, desde o século I, a malícia moral de todo o aborto provocado. E esta doutrina não mudou. Continua invariável. O aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, é gravemente contrário à lei moral: «Não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o recém-nascido» (Didaché, 2, 2). «Deus [...], Senhor da vida, confiou aos homens, para que estes desempenhassem dum modo digno dos mesmos homens, o nobre encargo de conservar a vida. Esta deve, pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis» (Concilio Vaticano II, Gaudium et spes, 51). A colaboração formal num aborto constitui falta grave. A Igreja pune com a pena canônica da excomunhão este delito contra a vida humana. «Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito («effectu secuto») incorre em excomunhão latae sententiae (Cic, can. 1398), isto é, «pelo fato mesmo de se cometer o delito» (Cic, can. 1314) e nas condições previstas pelo Direito (cfr. Cic, cann. 1323-1324). A Igreja não pretende, deste modo, restringir o campo da misericórdia. Simplesmente, manifesta a gravidade do crime cometido, o prejuízo irreparável causado ao inocente que foi morto, aos seus pais e a toda a sociedade. O inalienável direito à vida, por parte de todo o indivíduo humano inocente, é um elemento constitutivo da sociedade civil e da sua legislação: «Os direitos inalienáveis da pessoa deverão ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil e pela autoridade política. Os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, nem mesmo representam uma concessão da sociedade e do Estado. Pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa, em razão do ato criador que lhe deu origem. Entre estes direitos fundamentais deve aplicar-se o direito à vida e à integridade física de todo ser humano, desde a concepção até à morte»… «Desde o momento em que uma lei positiva priva determinada categoria de seres humanos da proteção que a legislação civil deve conceder-lhes, o Estado acaba por negar a igualdade de todos perante a lei. Quando o Estado não põe a sua força ao serviço dos direitos de todos os cidadãos, em particular dos mais fracos, encontram-se ameaçados os próprios fundamentos dum «Estado de direito» [...]. Como consequência do respeito e da protecção que devem ser garantidos ao nascituro, desde o momento da sua concepção, a lei deve prever sanções penais apropriadas para toda a violação deliberada dos seus direitos » ” (Congregazione per la Dottrina della Fede, Istruzione Donum vitae, III).
Na encíclica Evangelium Vitae, o Papa João Paulo II reafirmou esta doutrina com a autoridade de Supremo Pastor da Igreja: “com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.” (n. 62).
No que diz respeito ao aborto provocado em determinadas situações difíceis e complexas, vale o ensinamento claro e preciso do Papa João Paulo II: “É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, teme-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente” (Encíclica Evangelium Vitae, n. 58)
Quanto à problemática de determinados tratamentos médicos a fim de preservar a saúde da mãe, é necessário distinguir bem entre dois casos diversos: de um lado, uma ação que diretamente provoca a morte do feto, por vezes impropriamente chamado aborto “terapêutico”, que não nunca pode ser lícito enquanto é o assassinato direto de um ser humano inocente; de outro lado uma intervenção em si não abortiva que pode ter, como consequência colateral, a morte do filho: “Se, por exemplo, a salvação da vida da futura mãe, independentemente de seu estado de gravidez, requerer urgentemente um ato cirúrgico ou outra aplicação terapêutica que teria como conseqüência acessória, de nenhum modo desejada nem intencionada, mas inevitável, a morte do feto, um tal ato não pode ser dito um direto atentado à vida inocente. Nestas condições, a operação pode ser considerada lícita, como outras intervenções médicas similares, sempre que se trata de um bem de alto valor, isto é, a vida, e não seja possível restituí-la após o nascimento da criança, nem para utilizar outro remédio eficaz “(Pio XII, Discorso al “Fronte della Famiglia” e all’Associazione Famiglie numerose, 27 novembre 1951).
Quanto à responsabilidade dos profissionais de saúde, é preciso lembrar as palavras do Papa João Paulo II: “A sua profissão pede-lhes que sejam guardiães e servidores da vida humana. No atual contexto cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o risco de extraviar-se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes fortemente tentados a transformarem-se em fautores de manipulação da vida, ou mesmo até em agentes de morte. Perante tal tentação, a sua responsabilidade é hoje muito maior e encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais forte precisamente na intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão clínica, como já reconhecia o antigo e sempre atual juramento de Hipócrates, segundo o qual é pedido a cada médico que se comprometa no respeito absoluto da vida humana e da sua sacralidade (Encíclica Evangelium Vitae, n. 89)
Nenhum comentário:
Postar um comentário