A palavra “crítica” surgiu entre os filósofos
antigos e destinava-se a criar uma discussão contrária aos princípios
enunciados por algum expositor e permitir que ele comprove sua tese contestando
os argumentos contrários. A partir do passar dos anos, porém, a palavra “crítica”
passou a ter sentido o mais diverso possível, muitas vezes significando apenas
a censura e condenação das ideias contrárias. Criticar hoje pode ser até crime.
Como deve ser o verdadeiro espirito crítico do
católico em relação ao mundo em que vive?
Reproduzimos a seguir um artigo publicado por Dr.
Plínio no jornal “Catolicismo” em que o mesmo explicita melhor essa questão:
PALMATÓRIAS DO MUNDO? OU PALMATÓRIAS DO MAL?
Há católicos que
julgam de sua obrigação manter-se em uma atitude de sistemática análise e
comentário em relação a tudo o que se encontra nos diversos ambientes em que
eles se movem.
Esta obrigação, eles
julgam dever cumpri-la não só no quarto, em momento de meditação, mas em toda
ocasião, e até na rua, onde se está geralmente para passeio ou trabalho. Se
passa um bonde, analisam-lhe a forma, a cor, dizem se acham que sua velocidade
é excessiva ou se é inferior à normal. Se passa um jovem, examinam se está vestido
com extravagância ou compostura. Se passa uma jovem, têm imediatamente a
atenção chamada para a observância do 6º Mandamento, e assim por diante. Nada
lhes escapa. E até seu espírito se manifesta surpreendentemente destro em
relacionar tudo com a moral. O bonde serve de exemplo. Se anda com velocidade
exagerada, é expressão da mania de velocidade que o Papa acaba de condenar. Se
anda com excessiva lentidão, é a modorra do Brasil inteiro que veem aflorar na
indolência do motorneiro. E, assim por diante, não há o que não analisem, não
classifiquem e não julguem.
Esta atitude que
descrevo enquanto assumida por indivíduo, também pode ser de famílias ou de
associações e de jornais. De jornais... sobretudo de um jornal: o
"Catolicismo". Tudo quanto ele publica parece ser direta ou
indiretamente calculado para pôr o leitor nesta atitude de sobreaviso
sistemático. Basta pensar na secção "Ambientes, Costumes,
Civilizações", que se me afigura feita para mostrar que na simples forma
de uma cabeça de alfinete se pode refletir todo um firmamento de convicções
artísticas, filosóficas ou até teológicas.
Confesso que tudo
isto me causa não pequena estranheza. A meu ver, a naturalidade deve ser uma
qualidade fundamental de toda mente equilibrada, e a fortiori do
católico. Ora, o ponto de partida de toda naturalidade, aquilo que lhe é como
que um pressuposto comezinho, é uma certa desprevenção de espírito, por onde
nossa atenção caminha sem preocupações policiais, por todos os campos onde
naturalmente venha a pousar, detendo-se sobre as coisas simplesmente como elas
se apresentam espontaneamente à vista, vendo num bonde apenas um bonde, e numa
cabeça de alfinete apenas uma cabeça de alfinete. Assim, fazer incursões pelas
mais altas regiões da metafísica ou da teologia para julgar da forma de um
chapéu, da velocidade de um veículo e do vôo de uma mosca, parece-me estreito,
bizantino, antipático e, por assim dizer, torcicoloso.
Eu não diria tudo, se
ficasse só nisto. Contra esse hábito de dividir longitudinalmente em quatro um
fio de cabelo, para ver se nele se esconde uma heresia, tenho outra objeção a
fazer. E é que ele conduz a um proselitismo incômodo e irritante. Como o comum
dos homens não se preocupa com tais problemas quando vê moscas, bondes ou
cabeças de alfinetes, o resultado está em que é necessário a todo momento
fazê-los reparar nos monstros que nestes objetos, ou outros congêneres, se
ocultam. Daí a toda hora o desejo de alertar o próximo. E de lhe perturbar o
sossego. – Cuidado com isto. E mais com aquilo. Quando estiver, por exemplo,
atravessando uma rua, cuidado com as mil influências ideológicas e morais que
se desprendem dos veículos e transeuntes. Assim, é preciso cortar uma rua de
intenso movimento, com a preocupação de evitar não só os atropelamentos físicos
mas também os espirituais. E de tanto cuidado, para premunir o espírito contra
uma agressão representada pelas linhas marcianas do automóvel que vem num
sentido, cai-se debaixo das rodas de um ônibus que vem em sentido oposto.
Ora, pergunto, isto é
cabível? E foi para que os homens vivessem metidos num tal formigueiro de
preocupações, que Deus lhes deu este belo sol rutilante, este firmamento azul,
esta linda natureza clara, lógica, sólida, amiga, em que eles se movem?
Francamente, não.
Não quero entrar em
discussões com o Sr. Sei que os elementos imbuídos deste estado de espírito são
esgrimistas temíveis, manejando o gládio da dialética com toda a espécie de
citações dos Papas e de São Tomás. Não os quero acompanhar nesta esgrima
fatigante, para a qual meu espírito não tem o menor pendor. Limito-me a manter
o problema nos termos simples, claros, de uma clareza despretensiosa e quase
diria caseira, em que o pus. É para viver neste dédalo de preocupações miúdas,
incessantes, enervantes, que Deus colocou o homem no mundo? Não o creio. E,
assim, a posição do tipo "Ambientes, Costumes, Civilizações" me
parece totalmente falsa. Ela transforma a vida numa luta constante, em que uns
poucos infelizes ficam na obrigação de dar com a palmatória em tudo e em todos,
para se manterem fiéis aos princípios.
Ora, eu pretendo
manter minha fidelidade aos princípios sem ser palmatória do mundo...
Um constante
leitor
Prezado leitor:
Deus é certamente o
Deus dos simples. Não porém dos simplórios. Por isto mesmo, colocou-nos Ele num
universo belo, claro, lógico, amigo, admirável pela simplicidade de suas
grandes linhas harmoniosas; mas ao mesmo tempo dispôs, por detrás destes
aspectos tão simples e graciosos, todo um insondável sistema de leis físicas ou
biológicas em cuja consideração a mente se abisma. A inteligência humana,
quando ágil, lúcida e equilibrada, ora repousa agradavelmente na contemplação
dos aspectos aparentes, ora imerge, seduzida e entusiasmada, na análise de todas
as maravilhas que esses aspectos encobrem, e na alternação entre preocupação e
repouso, na passagem do fundo para a superfície, e vice-versa, realiza o plano
de Deus, Criador infinitamente sábio e bom, tanto dos aspectos aparentes quando
das realidades profundas do universo. E que dispôs que de umas e de outras
tirasse o homem seu proveito.
Este princípio,
prezado leitor, o Sr. o admite sem dúvida quanto ao universo material... Pois,
do contrário, sua argumentação seria a glorificação do atraso e da ignorância.
O que diria o Sr., com efeito, se um analfabeto lhe viesse falar contra os
cientistas que, olhando para um aprazível panorama, longe de se contentarem com
apreciar despreocupadamente a formosura da natureza, se perdessem em
ponderações sobre a composição geológica do terreno, refletissem sobre os mil
mistérios da vida vegetal e animal, e por fim se detivessem na análise de todo
o microfirmamento de energias, equilíbrio e beleza que cabe em um grão de areia
que um deles tivesse retirado com o dedo, da ponta do sapato, e considerassem
os mistérios riquíssimos da vida microbiana que na superfície do grão de areia
pode existir? Com o entusiasmo que sem dúvida tem pelas ciências, o Sr. teria
redarguido a esse analfabeto que esses cientistas são admiráveis, precisamente
porque sabem ir além das aparências acessíveis ao olho nu e à inteligência
medíocre ou indolente. Sua indignação sagrada teria feito aflorar a seus
lábios, numa desordem eloquente, os exemplos de pequenas realidades que,
analisadas por gênios, revelaram leis naturais estupendas e utilíssimas ao
homem. Por certo, o Sr. se teria lembrado das historietas ou das legendas
pitorescas de Galileu que, vendo balançar uma lamparina, daí deduziu seu
sistema; e de Newton que, vendo cair uma maçã ao solo, tomou este fato
comezinho como ponto de partida para o estudo da gravidade. O Sr. teria
terminado dizendo que não estaríamos na era atômica se os homens tivessem
julgado ridículo estudar o que existe, não no grão de areia ou na cabeça de
alfinete, mas no átomo, que é tão menor...
Se o objetante lhe
tivesse afirmado que havia risco para um médico, de cair sob as rodas de um
automóvel, se ele atravessasse uma rua pensando nos inconvenientes dos gases
tóxicos e por isto suspendendo ligeiramente a respiração para não inalar a
fumaça de um ônibus, o Sr. teria cortado a discussão, retrucando que só
conversa com gente séria. E isto porque o Sr. sabe perfeitamente que o próprio
de um homem culto está em poder fazer equilibradamente ações comuns, vendo
nelas não apenas o que qualquer um vê, senão mais do que isto, e considerando
com um mesmo olhar lúcido, os aspectos superficiais e profundos das coisas.
Assim, um geógrafo, para guiar bem seu automóvel numa estrada, não está
proibido de ver com olhos de técnico o panorama, e um artista pode estar num
trem olhando a beleza da paisagem, sem por isto se jogar pela janela do vagão.
Tudo isto é tão banal
que, enfarado, o Sr. deixaria de lado seu mofino e analfabeto interlocutor, e
cuidaria de outra coisa.
Mas se tudo isto é tão banal, e se tudo isto o Sr. o sabe tão bem, porque não se lembrou de transpor estas considerações para o mundo das coisas espirituais?
É bem certo que este,
por ser mais nobre que o da matéria, tem uma riqueza muito maior. E que num
corpo pequeno como uma cabeça de alfinete – um cristal, por exemplo – o artista
pode, tanto ou mais que o cientista, encontrar campo para considerações
fecundas.
É certo, ainda, que o
moralista pode descobrir em tudo uma significação moral importante, e que é
para ele uma excelência o ser capaz de o fazer em tudo.
Então, se o Sr. acha
ridículo imaginar um médico que atravessa a rua desvairado por reflexões
técnicas, pois sabe que essa caricatura não corresponde à realidade, porque se
compraz em pintar com estas cores ridículas o moralista?
Na verdade, caro
leitor, ser o Sr. se maravilha vendo um cientista esmiuçar as coisas da
matéria, e se enerva com um pensador que esmiúça as coisas do espírito,
reconheça que é porque o Sr. tem compreensão para com as primeiras, sente por
elas afinidade e simpatia, enquanto é infenso às outras, que não compreende
porque nelas se perde como num dédalo.
Em uma palavra, o Sr.
é filho ideológico do materialismo, embora provavelmente creia na
espiritualidade da alma.
Por aí se vê como é difícil
a alguém resistir às mil influências sub-reptícias, não só dos erros moderados
e velados, mas até do mais crasso dos erros, que é o materialismo.
E o moralista que,
dotado de um fino discernimento, aponta os sintomas dessas infiltrações
ideológicas impalpáveis e ativas, deve parecer ao Sr. um amigo e não um
carrasco. Pelo menos se realmente o Sr. preza a sua alma e tem o propósito de a
manter livre de todo mal.
E mais uma vez o
paralelo entre as coisas da alma e do corpo se impõe. Um médico de apurado
senso clínico, que desvendasse todos os sintomas iniciais dos males que
acometem seus doentes, não poderia ser visto por estes como inimigo. Só as
crianças é que veem os médicos com prevenção, porque não gostam de remédios
amargos.
Não gostar do
moralista porque ele faz bem à alma mas nem sempre é cômodo, não é mostrar-se
infantil?
Que se procure
alertar os católicos contra as mil influências nefastas a que estão expostos
hoje em dia, e especialmente contra as influências mais despercebidas, mais
indiretas, mais sinuosas, nada melhor.
Por certo, isto não
degenerará em psicose nem em mania, senão quando se tratar de maníacos e de
psicóticos tão frequentes nesta era de almas "coca-cola", de uma
simplicidade simplória...
Mas um espírito
equilibrado sempre saberá praticar equilibradamente a virtude, e não será a
virtude que o desequilibrará.
Que virtude? No caso,
especialmente a da circunspeção, isto é, a de saber, do alto, olhar, ver,
discernir em torno de si. Virtude de que nos deram exemplo todos os Santos, e
que a Igreja preza tão alto que por assim dizer com ela identificou a missão do
Bispo: episkopos, - de epi, sobre e spokein,
inspecionar – é aquele que, de cima e com vigilância, olha em torno de si.
Vivemos em uma época
que, sob muitíssimos aspectos, é para o neopaganismo o que para a Religião
Católica foi o século XIII. Tudo hoje está embebido de neopaganismo, ele nos
entra até pelos poros. Pio XII disse que em nossos dias a simples perseverança
no estado de graça exige de inúmeras pessoas uma virtude heroica.
Viver nesta época com
uma desprevenção absoluta, no culto da irreflexão e da espontaneidade (
eufemismo para designar o descontrole ), é ou não é entregar-se a essa mil
influências?
E alertar alguém, com
amenidade, com lucidez, com afetuosa insistência, sobre a necessidade dessa
habitual vigilância, é ou não é apostolado?
Palmatória do mundo?
Fórmula vaga e infeliz. Palmatória do erro, palmatória do mal, para o bem do
próximo, porque não?
Em resumo, caro
leitor, aqui está nossa justificação. Que acontecerá no dia em que o mal não
tiver palmatórias no mundo? O que já em larguíssima medida ocorre em torno de
nós. Solto, triunfante, insolente, ele perseguirá pelo silêncio, pelo
ostracismo, pelo escárnio, mais tarde pelo ferro e pelo fogo, todos os bons.
Para chegar a este
resultado, o que o mal mais deseja é não ter palmatórias.
Quer o Sr. arcar com
a responsabilidade de reduzir à inação as palmatórias do erro e do vício, para
que o mundo inteiro fique sujeito à palmatória do demônio?
Outrora, quando
alguém atacava o mal com vigor, denodo, insistência, chamavam-no, não de
palmatória, mas de martelo, o que é muito mais forte. Mas o apelido era uma
honra. Carlos Martelo foi amado em toda a Cristandade por ter sido o martelo da
França sobre a cerviz dos maometanos. E Santo Antônio de Pádua, porque abatia
sobre os cátaros os golpes terríveis de sua dialética, era aclamado por todos
os católicos como martelo dos hereges.
Hoje as coisas
mudaram, e quem maneja, já não o rude martelo de outrora, mas a inofensiva
palmatória, sente levantar-se contra si um clamor até em meios católicos.
Quando numa cidade
sitiada há uma corrente que geme a cada tiro que se dispara contra o sitiante,
o que se pode esperar?
É bem o caso de
aplicar aqui, ligeiramente modificadas, as palavras de Voltaire: Deus me livre
de tais amigos, mais ainda do que de meus próprios inimigos...
O
Redator
Ambas estas cartas
foram escritas pela mesma mão.
Procuram elas
condensar os vários aspectos do debate da superficialidade, da moleza e da
tibieza, com o zelo, a coerência e a santa intransigência; do entreguismo do
gênero "terceira força", com a vontade de lutar. Dos troianos que
amam Tróia, com os que sorriem ao cavalo de madeira...
(Jornal “Catolicismo” Nº 92
– Agosto de 1958)
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