sábado, 30 de novembro de 2024

BELEZAS E SUBLIMIDADES DA APRESENTAÇÃO DE NOSSA SENHORA NO TEMPLO

 



             No dia 21 de novembro, comemora-se a Apresentação de Nossa Senhora no Templo. Esta festa possui alguma beleza especial?

 

A realização da promessa

Maria Santíssima, eleita desde todos os séculos, a Raiz de Jessé da qual haveria de nascer Nosso Senhor Jesus Cristo, é apresentada no Templo. A instituição incumbida de guardar a promessa da vinda do Salvador recebe Aquela que dá o primeiro passo para sua realização.

Dá-se uma espécie de encontro da esperança com a realidade. Nossa Senhora entra e se consagra ao serviço de Deus, levando uma alma insondável e incomparavelmente santa. Nesse momento, apesar de toda a putrefação da nação de Israel e de o Templo ter-se transformado num covil de fariseus, como Nossa Senhor estava ligada a ele, entrou ali uma luz incomparável, que foi exatamente a santidade d’Ela. Nesse local Ela começava a sua preparação para, sem saber, vir a ser a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Na atmosfera e nas graças desse edifício sagrado, separada para servir a Deus, Ela foi aumentando de amor a Ele, até formar o desejo ardente de que o Messias viesse logo e formular o pedido de ser uma servidora daquela que seria a Mãe do Messias, pois sabia que seria Ela mesma.

Toda essa santificação preparatória da vinda de Nosso Senhor, essa inaudita e assombrosa preparação, se deu a partir do momento em que Nossa Senhora se apresentou no Templo. É essa primeira Apresentação que a Igreja celebra.

 

Nossa Senhora se dirige ao Templo

No livro de Régamey[1] Les plus beaux textes sur la Vierge, nós encontramos as seguintes reflexões baseadas em São Francisco de Sales:

“É um ato de admirável simplicidade o desta gloriosa criança que, presa ao regaço de sua mãe, não deixa, contudo, de conversar com a Divina Majestade. Ela se absteve de falar até o tempo apropriado e, ainda então, só o fazia como as outras crianças de sua idade, embora falasse sempre com muito acerto

“Ela permaneceu como um suave cordeiro junto a Santa Ana pelo espaço de três anos, após os quais foi conduzida ao Templo, para ali ser ofertada como Samuel, que também foi conduzido ao Templo, para aí ser oferecida como Samuel,  que também foi conduzido ao Templo por sua mãe e dedicado ao Senhor na mesma idade.

“Ó meu Deus, como desejaria poder representar vivamente a consolação e a suavidade dessa viagem, desde a casa de Joaquim até o Templo de Jerusalém! Que contentamento demonstrava essa criança vendo chegar a hora que tanto desejara!

“Os que iam ao Templo, para adorar e oferecer seus dons à Divina Majestade cantavam ao longo da viagem. E, para isso o real profeta David compusera expressamente um salmo, que a Santa Igreja nos faz repetir todos os dias no Ofício Divino. Ele começa pelas palavras: “Beati inmaculati in via”: “Bem-aventurados são aqueles, Senhor, que caminham na tua via sem mácula, sem mancha de pecado (Sl 118, 1).

“Na tu vida”, quer dizer na observância dos teus Mandamentos.

“Os bem-aventurados São Joaquim e Santa Ana cantaram então esse cântico ao longo do caminho, e com eles, e nossa gloriosa Senhora e Rainha com eles.

“Oh Deus, que melodia! Como Ela a entoava mil vezes mais graciosamente que os Anjos! Por isso ficaram estes de tal forma admirados que, aos grupos, vinham escutar essa celeste harmonia, e, os Céus abertos, inclinavam-se nos alpendres da Jerusalém Celeste para olhar e admirar essa  amabilíssima criança.

“Eu quis vos dizer isso, embora rapidamente, para que tenhais com que vos entreter o resto desse dia considerando a suavidade dessa Virgem; também para que fiqueis  comovidos escutando esse  cântico divino que nossa gloriosa Princesa entoa tão melodicamente, e  isso com os ouvidos de vossa devoção, porque o muito feliz São Bernardo diz que a devoção é o ouvido da alma.”

 

Uma infância comum, mas cheia de sabedoria e contemplação

O fundamento teológico de tudo quanto está dito aqui é a Imaculada Conceição de Nossa Senhora.

Como, desde o primeiro instante de seu ser, Ela foi concebida sem pecado original, não tinha as limitações inerentes a ele. E entre essas limitações está o fato da pessoa nascer sem o uso da sua inteligência. Esse uso só vem mais tarde, com o desenvolvimento do corpo.

Nossa Senhora teve, desde o primeiro instante, o uso da sua inteligência de modo altíssimo. Na infância d’Ela, como na de Nosso Senhor – e na d’Ele com uma sublimidade desconcertante -, reuniam-se, num contraste admirável, aspectos aparentemente contraditórios. De um lado, Ela tinha uma contemplação que, a meu ver, era maior do que os maiores Santos da Igreja, quando Ela estava ainda nos primeiros passos de sua vida. Mas, de outro lado, Ela mantinha toda a atitude de uma criança e não fazia uso externo disso, de sua sabedoria, querendo, por humildade, viver como uma criança qualquer.

De maneira tal que, quem tratasse com Ela, a não ser por alguma expressão de olhar ou algo semelhante, teria a sensação de estar tratando com uma criança comum, igual às demais, como Nosso Senhor Jesus Cristo que em todas as suas manifestações externas era como uma criança e, como tal, quis se nutrido, guardado, pajeado como uma criança, embora fosse Deus, soberano Senhor e Rei do Céu e da Terra; mas em todas as suas manifestações externar era como uma criança.

Podemos imaginar, então, na vida quotidiana de São José e Nossa Senhora , o momento em que era preciso dar-Lhe leite ou trocar-Lhe as roupas. Eles O pegavam, colocavam-No sobre uma mesa e vestiam-No com uma roupinha. Ver Aquele que eles sabiam ser Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade hipostaticamente unida à natureza humana, o Qual estava nos esplendores das alegras, da majestade e da grandeza da divindade e, ao mesmo tempo, era aquela criancinha que ria, não só fazendo que não entendia, mas com uma certa autenticidade nesse não entender, embora entendesse!

Pois bem, algo semelhante se dava igualmente com São Joaquim e Santa Ana. Não sei se eles sabiam que Nossa Senhora seria a Mãe do Verbo Encarnado, mas certamente sabiam ser Ela uma Menina designada a altíssimas coisas em ordem ao Messias. E essa Menina levava a vida de uma criancinha.

 

Beleza dos contrastes harmônicos

Isso nos faz compreender como se ajustam esses aspectos da benignidade extrema de Deus Nosso Senhor, da extrema afabilidade, da extrema acessibilidade, da extrema bondade de Nossa Senhora, com uma grandeza de que os maiores homens da Terra não são senão uma minúscula figura.

Por quê? Porque Nossa Senhora quis que as coisas fossem assim e, sendo Rainha incomparável, Ela era, ao mesmo tempo, Menina simplicíssima. O que, aliás, Santa Teresinha do Menino Jesus, discorrendo a respeito do modo de pregar sobre Nossa Senhora , comenta muito bem, dizendo que ela gostaria de fazer um sermão à sua maneira, ou seja, mostrando em Nossa Senhora todo esse lado de simplicidade, de acessibilidade, a ponto de comportar-se como uma criancinha obediente a seus pais, sendo a Rainha do Céu e da Terra.[2]

Esses contornos harmônicos têm uma tal beleza em si mesmos, que eu até digo que desdouramos o assunto tratando longamente dele. Porque eles têm qualquer coisa de insondável, sendo melhor mantermos silêncio do que propriamente o comentarmos.

 

Uma Menina com voz inefável caminha cantando o Salmo de Davi

Ora, segundo uma tradição muito generalizada, foi Nossa Senhora, nessas condições, aos 3 anos de idade, levada ao Templo, cantando durante o percurso, como os judeus costumavam fazer naquela época. É um fato lindíssimo!

O Templo ficava em Jerusalém. Em outros locais havia sinagogas para rezar; mas, para fazer os sacrifícios, somente o Templo de Jerusalém.

Os judeus de toda a nação, como também os da diáspora dispersos pelo mundo inteiro, iam periodicamente a Jerusalém para participar do sacrifício no Templo. E como era motivo de alegria ir aonde se manifestavam a glória e as consolações de Deus, ao lugar que representava o vínculo entre o Céu e a Terra, era bonito que fossem cantando, como tantas vezes acontecia em romarias antigas.

Os métodos de locomoção modernos conspiram contra o canto. Não se pode imaginar uma pessoa no subúrbio, partindo para Aparecida de trem, este a toda velocidade e ela cantando dentro dele. É melhor cantar do que não cantar. Mas, como é mais bonito ir a pé, pousando de quando em quando, parando, cantando, tocando para frente! Como isso tem outra plenitude humana, outra harmonia natural que o canto dentro de uma locomotiva não tem. Pior é o canto enlatado dentro do ônibus  Eu sou pouco viajante com este veículo, mas, presumo, há uma tal conjugação de lataria contra a harmonia, que cantar ali se torna impossível..

Imaginemos a beleza, quando chegava o mês da visita ao Templo, os judeus de todos os lados irem cantando até ele. E a nação judaica se encher, nos seus caminhos, de cânticos de todos os lados.

Por isso São Francisco de Sales imagina como algo normalmente certo, que quando Nossa Senhora se dirigiu ao Templo, foi cantando com São Joaquim e Santa Ana.

Como seria o cântico da Menina, entoando com uma voz inefável o salmo que Davi, por inspiração do Espírito Santo, havia composto para esta circunstância!

Ora, com uma finura de tato extraordinária, São Francisco de Sales não fala da impressão que esse canto produziu nos homens, porque precisamente como Nossa Senhora não manifestava a sua grandeza, era possível que Ela não cantasse com toda a perfeição com que sabia cantar O cântico de Nossa Senhora teria de ser o cântico por excelência. Antes e depois d’Ela ninguém cantou melhor, exceto Nosso Senhor Jesus Cristo. E depois disso, nenhum cântico foi cântico.

Isso nos faz imaginar outra coisa: os Anjos ouvindo o cântico d’Ela, porque eles ouviam as harmonias de alma com que Ela cantava, e isso os extasiava. E, como se pode comparar o Céu a uma cidade, a Jerusalém Celeste, São Francisco diz que dos alpendres ou dos terraços da Jerusalém Celeste, os Anjos debruçavam-se para ver Nossa Senhora cantando pelos caminhos da Judeia, e era para eles, então, um gáudio inexprimível, embora os homens ignorassem aquele canto.

Eu confesso que não conheço ideia mais apropriada para essa circunstância, nem mais bonita. Um pensamento mais belo do que esse só poderia haver no momento em que imaginássemos Nossa Senhora entrando no Templo.

 

Depois da grande plenitude, veio a grande tragédia

O Templo de Jerusalém, na sua majestade sacral, na sua grandeza, ainda habitado pela glória do Padre Eterno, onde se realizavam sacrifícios, era o lugar mais sagrado da Terra.

Meditemos no estremecimento de alegria de todos os Anjos que pairavam ali no momento em que Nossa Senhora entrou pela primeira vez, como uma rainha naquilo que lhe é próprio, como a joia no escrínio onde deve ser guardada.

Os Anjos sabiam que a grande história e, ao mesmo tempo, a grande tragédia do Templo ia se realizar. O Messias entraria no Templo e este iria recusá-Lo. E o fim dessa tragédia seria aquilo que Bossuet chamou magnificamente de as pompas fúnebres de Nosso Senhor Jesus Cristo, referindo-se ao momento em que Ele morreu e o Padre Eterno começou a preparar funerais: o céu se obscureceu, o Sol se toldou, a terra tremeu e, diz Bossuet, os Anjos sacudiram o Templo com indignação .

A meu ver, os Anjos receberam ordem de entregar o Templo aos demônios, à maneira de cem mil gatos selvagens soltos dentro do lugar sagrado, ou qualquer coisa desse gênero, fazendo estremecer o edifício todo. Deu-se aí o fim da história desse lugar.

 

Primeiro passo da plenitude do Templo

Mas, antes disso, o Templo conheceu sua plenitude quando Nossa Senhora levou até ele o Menino Jesus, e Ana e Simeão, que representavam a fidelidade da nação, receberam-Nos. Aí os fieis reconheceram o Enviado e se fechou o elo entre os justos da Antiga Lei e a promessa que se cumpria.

Entretanto, Nossa Senhora, quando entrou no Templo ainda Menina, no momento da sua Apresentação, realizava o primeiro passo nessa plenitude da história do Templo de Jerusalém. O que os “Simeões” e as “Anas” que havia por lá naquele momento devem ter sentido? Quais as graças e fulgurações do Espírito Santo deve ter havido ali nessa ocasião? Ninguém poderá dizê-lo, a não ser no fim do mundo.

Sigamos o conselho do suavíssimo São Francisco de Sales e fiquemos com todas essas recordações em nossas almas; pensemos nela suave e alegremente, tanto quanto possível ao cabo de um dia de luta: Nossa Senhora cantando pelos caminhos, entrando no Templo de Jerusalém e, dos alpendres da Jerusalém Celeste, os mais altos Anjos embevecidos com a alma dessa Menina.

Esta é uma meditação muito adequada para o dia da Apresentação de Nossa Senhora. (Extraído de conferências de 20 e 21.11.1965)

 

Revista “Dr. Plínio”, n. 320, de novembro de 2024, págs. 20/24 – Observação: o mesmo tema foi objeto da revista “Dr. Plínio”, nº 20, novembro de 1999, mas sem indicar a data da conferência)

 

 



[1] RÉGAMEY, Pie, OP, Les plus beaux textes sur la Vierge Marie, Paris, La Colombe, 1941, pág. 229/230

[2] SAINTE THÉRÉSE DE L’ENFANT-JESUS ET DE LA SAINTE-FACE OEuvres completes. Les Éditions du Cert et Desclée de Brouwer, Paris, 1992, p. 1102-1103.



sábado, 23 de novembro de 2024

SOLENIDADES DE TODOS OS SANTOS, FINADOS E O PURGATÓRIO

 



 Do século IV em diante, as Igrejas do Oriente celebravam uma festa comum a todos os mártires da terra. Santo Efrém compôs, para esta circunstância, um hino em que se via que em Edessa aquela festa estava fixada no dia 13 de Maio.

Na Síria, era celebrada na sexta-feira depois da Páscoa.

Numa homilia sobre os mártires, o grande São João Crisóstomo a ela se refere colocada no primeiro domingo depois de Pentecostes.

A festa dos Mártires de Toda a Terra, com o correr dos tempos, transformou-se na de Todos os Santos, instituída em honra da Bem-aventurada Mãe de Deus, a Virgem Maria, e dos santos mártires, pelo Papa Bonifácio IV, o pontífice Gregório IV, mais tarde, decretou que a festa, já celebrada de diferentes maneiras por diversas Igrejas, seria levada a efeito, com solenidade, em honra de todos os santos, perpetuamente.

A missa de Todos os Santos foi composta acidentalmente, mas é bela: O Introito de Santa Ágata, o Gradual de São Ciríaco, o Ofertório adaptado do de São Miguel alia-se à Alleluia e à Comunhão tirada dos textos evangélicos. O Evangelho é o das Beatitudes.

Quanto à colocação da festa a 1 de novembro, pensa-se quem como em todas as religiões as solenidades eram marcadas pelo ritmo das estações, que o cristianismo não tenha escapado a esta regra.

Entre os celtas, o 1 de novembro era dia de grandes solenidades. Foi a festa de Todos os Santos instituída para cristianizar as cerimônias tão queridas dos anglo-saxões e dos francos? Roma celebrava-a aos 13 de maio e somente a adotou a 1 de novembro depois que sofreu galicanas influências.

Rapidamente, a festa tornou-se popular, mais ainda quando completada com a comemoração dos fiéis defuntos.

Que bela festa! É como se Todos os Santos e Finados fosse uma só festa. Dum lado, a Igreja militante, sobre a terra, roga à Igreja triunfante do céu, e doutro lado, roga pela Igreja sofredora e paciente do purgatório. E as três Igrejas são uma única Igreja.

A caridade, mais forte do que a morte, uniu-as do céu à terra, e da terra ao purgatório, E é pelo mesmo sacrifício que nós agradecemos a Deus, a glória com a qual cumula os santos do céu, e imploramos a misericórdia para os santos do purgatório, santos ainda não perfeitos.

Tal sacrifício é Jesus mesmo, que santifica, uns e outros, de quem esperamos a graça de nos santificar a nós mesmos. Assim, todos se reúnem em vós, ó Jesus! Somos felizes!

Eu vos saúdo, ó bem-aventurados amigos de Deus, santos de todos os séculos e de todos os lugares do mundo! Regozijamo-nos, e muito, de tão inumerável multidão de santos. Regozijamo-nos da benevolência de Deus, que vos tem no purgatório, misericordioso, e na glória, os que tem no céu: unimo-nos a vós para louvá-lo e bendizê-lo por todo o sempre. Uni-vos vós a nós também: assim podereis obter-nos da misericórdia de Deus a graça de vos imitar. Sabeis, pela experiência, o que somos nós, os homens: fracos, miseráveis, levados ao mal, cercados de perigos por todos os lados. E qual é nosso maior inimigo? Ah., nosso maior inimigo somos nós mesmos! Rezai, pois, pedi por nós, bons e santos irmãos, a fim de que, logo, sejamos como sois; a fim de que, como vós sejamos doces e humildes de coração; a fim de que, como vós, nos conheçamos a nós mesmos; rezai, pedi para que saibamos carregar nossa cruz; para que sigamos o divino Mestre, até que, afinal, todos a vós nos reunamos, para amá-lo e bendizê-lo de todo o coração e para todo o sempre.

Considerai, ó almas, a grande, imensa profissão de santos que avança através dos séculos, da terra ao céu, que iremos engrossar, se Deus quiser.

O primeiro, aquele que rompe à frente, é o primeiro homem que foi morto sobre a terra - Abel. Abel, que Nosso Senhor mesmo canonizou, dando-lhe o nome de justo, no Evangelho. Foi Abel, a um só tempo, pastor, sacerdote e mártir.

Pastor de ovelhas, oferece-as, como sacerdote, em sacrifício a Deus. Ele, que imolava, foi imolado como mártir, por Caim, seu irmão. Embora morto, fala ainda pelo sangue. Símbolo de Jesus Cristo, é como o porta-cruz da grande procissão. E, do mesmo modo como se faz na procissão de domingo de Ramos, entrará na igreja do céu, quando Jesus Cristo, o sacerdote por excelência, abrir de par em par as portas da cruz, a sua cruz e, pelo sangue, o seu sangue. Símbolo de Jesus Cristo, pelo sacrifício e pela morte, ele o é ainda pelo caráter de ressurreição. Porque Eva nos ensina que Deus lhe deu Seth para ser substituto da primeira sociedade.

Depois de Abel, o primeiro justo, vem-lhe no encalço pai e mãe, nossos primeiros pais. Porque, logo que compreenderam a voz de Deus, Adão e Eva deixaram de ter duro o coração. Esperança, desde então, dos Filhos da mulher, que devia esmagar a cabeça da serpente, fizeram penitência das faltas e obtiveram o perdão. O Espírito Santo diz-nos, ele mesmo, na Escritura, que a Sabedoria, que é Jesus Cristo, que atende duma extremidade à outra com poder e a tudo com doçura dispõe, tira do pecado aquele que foi criado pelo pai do mundo e lhe dá a virtude de dominar todas as coisas.

Tais palavras, tiradas do livro da Sabedoria, são uma como canonização. Ainda hoje, as tradições orientais falam da longa penitência do primeiro homem.

Na ilha de Ceilão há uma alta montanha com o nome de Pico de Adão, onde se pretende que o primeiro homem chorou amargamente a falta através dos séculos, Uma tradição particular dos judeus quer que o velho Adão esteja sepultado em Jerusalém, no lugar mesmo onde o novo Adão reparou o mal das gentes. Afinal, no segundo século da era cristã, um espírito excessivo sustentou que Adão foi condenado, por toda a Igreja pelo erra que cometera.

A santa Escritura mesma, canonizou um dos primeiros ancestrais que vivia ainda: Henoc, pai de Matusalém. O livro dos Gênesis diz-nos: "Henoc caminhou com Deus."

O apóstolo São Judas dizia dos ímpios que blasfemavam contra o Evangelho: Henoc, o sétimo depois de Adão, dele profetizou, quando disse: Eis que vem o Senhor com os santos para exercer o julgamento de todos os homens, e tomar dentre eles todos os ímpios, ímpios de todas as impiedades e de todas as palavras duras que tais ímpios pecadores contra Ele proferiram.

São Paulo, o Doutor dos Gentios, disse, na Epístola aos hebreus: Pelo mérito da fé, Henoc foi elevado, para que não visse a morte; não mais foi visto, porque Deus o transportou alhures. Presume-se que para o paraíso, para um lugar de delícias, cheio dos frutos da arvora da vida, dos quais se alimenta.

Crê-se, geralmente, que no fim dos séculos, no fim do mundo cristão, Henoc virá como representante do mundo primitivo, com Elias, representante do mundo judaico, prestando testemunho do Cristo contra o inimigo capital.

Outro santo, do qual todos descendemos, aparece na procissão, na grande procissão: Noé, profeta e pregador do mundo antigo, pai e pontífice do mundo novo, que nos salvou do dilúvio por meio da arca, símbolo da Igreja católica. Foi canonizado. Vemo-lo no Gênesis, no livro da Sabedoria, no Eclesiástico, em São Pedro nas duas epístolas e em São Paulo na epístola aos hebreus.

São Pedro chama-o, na segunda epístola, o oitavo pregador da justiça, o que dá a entender que os outros oito ancestrais nossos, antes do dilúvio, pregaram também a justiça e a penitência.

Ao sair da arca, o segundo pai do gênero humano, como sacerdote, e pontífice, a Deus ofereceu um sacrifício - e Deus teve-o por agradável, dando a palavra de não mais amaldiçoar a terra e os homens, que deviam multiplicar-se.

Deus abençoou Noé e os três filhos: abençoou-os e, neles, todo o gênero humano e, neles, nós mesmos. Não só nos abençoou, quando os ancestrais abençoou, senão que fez conosco uma aliança, como com quem quer que eleve e da benção, dá-nos o arco-íris com as doces nuanças.

Há coisa mais consoladora ainda. Os contemporâneos de Noé perderam a vida do corpo no dilúvio: não encontraram, porém, a vida, a salvação da alma? São Pedro diz: "Com efeito, é melhor sofrer se Deus assim quiser, fazendo bem, que fazendo mal porque também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, ele, justo, pelos injustos, para nos oferecer a Deus, sendo efetivamente morto segundo a carne, mas vivificado pelo Espírito. No qual ele também foi pregar aos espíritos que estavam no cárcere, espíritos que outrora foram incrédulos, quando nos idas de Noé a paciência de Deus estava esperando a sua conversão, enquanto se fabricava a arca."

Os mais doutos e os mais célebres intérpetres entendem, de comum acordo, que os contemporâneos de Noé não acreditavam nas predições do dilúvio, estribados na paciência de Deus: quando, então, viram a realização das predições, o mar transbordando numa fúria incontida e as chuvas caindo em torrentes, creram e arrependeram-se.

O dilúvio destruiu-lhes os corpos, mas salvou-lhes as almas. Estavam todos detidos nas prisões do purgatório quando Jesus Cristo, morto na carne sobre a cruz, apareceu, no espírito - ou na alma - pregando-lhes, anunciando-lhes a boa-nova; era-lhes o Salvador. Findavam-se-lhes as penas, e, então, com os santos patriarcas, acompanhá-lo-iam na entrada triunfante no céu.

Ah! Quem não louvará a grande, imensa bondade de Deus, todo Ele votado à salvação das almas, para isto se servindo das mais terríveis calamidades, que lhe vem da justiça? Quem não votará a tão bom Pai a mais irrestrita confiança, vendo que os mesmos lhe haviam por tão longo tempo abusado da paciência, não se convertendo senão na última hora, não lhe imploraram em vão a misericórdia?

Atrás de Noé e dos Santos do primeiro mundo, vemos, na grande procissão, Abraão, Isaac, Jacó, Melquisedec, Jó, José, e os demais patriarcas: Moisés, Aarão, Josué, Eleazar, Gedeão, Samuel, Davi, Isaías, Daniel, os outros profetas, os Macabeus e todos os anciãos justos dos quais fala São Paulo aos hebreus, "que, pela fé, conquistaram reinos, consumaram os deveres da justiça e da virtude, receberam o prometido das promessas, fecharam a fauce dos leões, detiveram a violência do fogo, evitaram o fio das espadas, curaram-se de doenças, encheram-se de coragem e de força nos combates, pondo em fuga exércitos estrangeiros; mulheres houve, até, que recuperaram ressuscitados os mortos; uns foram torturados, não querendo o resgate, para alcançarem melhor ressurreição; outros sofreram ludíbrios e açoites e, além disso, cadeias e prisões; foram tentados, foram passados a fio de espada, andaram errantes, cobertos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, angustiados, aflitos; eles, de quem o mundo não era digno, tiveram de andar errando pelos desertos, pelos montes, pelas covas e pelas cavernas.

E todos esses louvados por Deus, com o testemunho prestado `sua fé, não receberam imediatamente o objeto da promessa, tendo deus disposto alguma coisa melhor para nós, a fim de que eles, sem nós, não obtivessem a perfeição da felicidade.

Por isso nós também, cercados por tão grande nuvem de testemunhas, deixando todo o peso que nos detém e o pecado que nos envolve, corramos com paciência na carreira que nos é proposta, pondo os olhos no autor e consumador da fé, Jesus, o qual, tendo-lhe sido proposto gozo, sofreu na cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está sentado à direita do trono de Deus.

Em verdade não vos aproximastes do monte palpável e do fogo ardente, do turbilhão, da obscuridade, da tempestade, do som da trombeta, e daquela voz tão retumbante, que os que ouviram suplicaram não se lhes falasse mais.

Vós, porém, aproximaste-vos do monte Sião e da cidade do Deus vivo, Da Jerusalém celeste e da multidão de muitos milhares de anjos, da igreja dos primogênitos, que estão inscritos o céu, e de Deus, juiz de todos, e dos espíritos dos justos perfeitos, e de Jesus, mediador da nova aliança, e da aspersão daquele sangue que fala melhor que o de Abel. Nestas palavras do Apóstolo vemos o conjunto da procissão, incluindo os anjos que vem atrás. A primeira parte espera que Jesus lhes abra a porta do céu, e, além num angélico cortejo, as criancinhas que por Ele morreram em Belém e nos arredores. Em seguida, lá está a santa Mãe. Ei-la, lindíssima, com os apóstolos, os mártires, as virgens, e a inumerável multidão de santos de todos os clãs, línguas, sexo, estados, de todos os séculos, de todos os países.

Não nos esqueçamos de saudar, na imensa procissão, os santos do país, de nosso tempo, de nosso família, porque não há família cristã que não tenha santos canonizados antecipadamente por Nosso Senhor. Não disse Ele aos apóstolos: Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o reino do céu? E então? Qual a família que não tem um pequenino morto, morto na graça do batismo? Lá estão todos no céu.

Perguntaram os apóstolos a Nosso Senhor: "Mestre, quem será grande no reino dos céus?" Jesus puxando para si uma criancinha, abraçou-a, terna, comovidamente, e respondeu: "Em verdade, em verdade vos digo, que se não vos converterdes nem vos fizerdes como esta criança, não entrareis no reino dos céus. Aquele que se humilhar e se fizer pequeno como uma criança, esse será grande no reino celeste". Honremos, pois, esses pequenos santos de nossas famílias, esses grandes do eterno reino. Invoquemo-los mesmo, a fim de que nos obtenham a permissão de participar da grande, imensa, procissão. E que, saídos da terra, entremos no céu, na glória de Deus. Assim seja.

  

COMEMORAÇÃO DOS FIÉIS DEFUNTOS


Vimos que a Igreja triunfante do céu, a Igreja militante da terra e a Igreja sofredora do purgatório, paciente, nada mais são que uma só e mesma Igreja; que a caridade, mais forte que a morte as uniu do céu à terra, e da terra ao purgatório. São como três partes duma só e mesma procissão de santos, procissão que avança da terra ao céu.

As almas do purgatório participarão daquela procissão um dia. Sim, porque ainda não tem, bem brancas, as vestimentas de festa, a roupa nupcial ainda guarda nódoas, aquelas nódoas que somente o sofrimento limpa.

Vimos, então, como os contemporâneos de Noé, aqueles que não fizeram penitência senão no momento do dilúvio foram encerrados em prisões subterrâneas, até que Jesus Cristo lhes aparecesse, anunciando-lhes a libertação, quando de sua descida aos infernos.

Como os fiéis da Igreja triunfante, os fiéis da Igreja militante e os fiéis da Igreja sofredora e paciente, são membros dum mesmo corpo - que é Jesus Cristo - e tanto uns como outros participam, interessam-se, condoem-se da glória, dos perigos, dos sofrimentos duns e doutros, tal qual os membros do corpo humano. Vejamos um exemplo: o pé está em perigo de saúde ou sofre dores: todos os membros do corpo jazem em comoção. Os olhos olham-no, as mãos protegem-nos, a voz chama por socorro, para afastar o mal ou o perigo. Uma vez afastado o mal, regozijam-se todos os membros.

É o que acontece com o corpo vivo da Igreja universal. E vemos os heróis da Igreja militante, os ilustres Macabeus, assistidos pelos anjos de Deus e pelos santos de Deus, especialmente pelo grande sacerdote Onias e pelo profeta Jeremias, rogar e oferecer sacrifícios por esses irmãos que estavam mortos pela causa de Deus, mas culpados desta ou daquela falta.

No dia seguinte, depois duma vitória, Judas Macabeu e os seus surgiram para retirar os mortos e depositá-los no sepulcro dos antepassados e encontraram sobre as túnicas dos que estavam mortos coisas que haviam sido consagradas aos ídolos de Jamnia, que a lei proibia aos judeus tocar. Foi, pois, manifesto a todos que era por isso que haviam sido mortos. E todos louvaram o justo julgamento do Eterno, que descobre o que está escondido, e suplicaram-lhe que fosse esquecido o pecado cometido.

Judas exortou o povo a que se preservasse do pecado, tendo diante dos olhos o que viera pelo pecado dos que haviam sucumbido. E, depois de ter feito uma coleta, enviou a Jerusalém duas mil dracmas de prata, para que fosse oferecido um sacrifício pelo pecado dos mortos, agindo muito bem, pensando que estava na ressurreição. Porque se não tivesse esperança de que os que vinham de sucumbir ressuscitassem um dia, seria supérfluo e tolo rogar pelos mortos.

Judas, porém, considerava que uma grande misericórdia estava reservada aos que estão adormecidos na piedade. Santo e piedoso pensamento! Foi por isso que ofereceu um sacrifício de expiação pelos defuntos, para que fossem livres dos pecados.

Tais são as palavras e reflexões da Escritura santa, segundo o texto grego, e as mesmas, mais ou menos, no latino.

Nosso Senhor mesmo adverte, bastante claramente, que há um purgatório, quando nos recomenda em São Mateis e São Lucas: "Conciliai-Vos com vossos inimigos (a lei de Deus e a consciência) enquanto estais em caminho para irdes ao príncipe, não seja que este inimigo vos entregue ao juiz, o juiz ao executor, e que sejais metido numa prisão. Em verdade vos digo, dela não saireis, enquanto não pagardes o último óbolo."

Segundo essas palavras, está bem claro que há uma prisão de Deus, onde se é arrojado por dívidas pras com sua justiça, e donde não se sai - senão quando tudo estiver pago.

Nosso Senhor, em São Mateus, disse-nos ainda: "Todo pecado e blasfêmia será perdoado aos homens, porém, a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada, nem neste século nem no futuro". Onde se vê que os outros pecados podem ser perdoados neste século e no futuro, como o livro dos Macabeus diz expressamente dos pecados daqueles que estavam mortos pela causa de Deus.

Do mesmo modo, no sacrifício da missa, a santa Igreja de Deus lembra os santos que com Ele reinam no céu, a fim de lhes agradecer pela glória e nos recomendar à sua intercessão. Doutro lado, suplica a deus que se lembre dos servidores e servidoras que nos precederam no outro mundo com a chancela da fé, dignando-se conceder-lhes a estadia no refrigério na luz e na paz.

A crença do purgatório e a oração pelos mortos acham-se em todos os doutores da Igreja, bem como nos ato dos mártires, notadamente nos atos de São Perpétuo, escritos por ele mesmo.

Todos os santos rogaram pelos mortos. Santo Odilon, abade de Cluny, no século XI, tinha um zelo particular pelo que dizia respeito ao refrigério das almas do purgatório. Foi movido pela compaixão, pensando no sofrimento das almas do purgatório que, adiantando-se à Igreja, ordenou se rogasse pelas almas, tendo, destinado para isso um dia especial. Eis como Santo Odilon animou tal instituição, começando pelas terras que lhes estavam afetas ao sacerdócio. (...)

Quanto ao purgatório, nada de certo se sabe. Eis porém, o que se lê nas revelações de Santa Francisca de Roma, revelações que a Igreja autoriza a crer, sem, entretanto, a elas nos obrigar.

Numa visão, a santa foi conduzida do inferno ao purgatório, que, igualmente está dividido em três zonas ou esferas, uma sobre a outra.

Ao entrar, Santa Francisca leu esta inscrição:

Aqui é o purgatório, lugar de esperança, onde se faz um intervalo.

A zona inferior é toda de fogo, diferente do inferno, que é negro e tenebroso. Este do purgatório tem chamas grandes, muito grandes e vermelhas. E as almas. Ali, são iluminadas, interiormente, pela graça. Porque conhecem a verdade, assim como a determinação do tempo.

Aqueles que tem pecado grave são enviados a este fogo pelos anjos, e aí ficam conforme a qualidade dos pecados que cometeram.

A santa dizia que, por cada pecado mortal não expiado, naquele fogo ficaria a alma por sete anos.

Embora nessa zona ou esfera inferior as chamas do fogo envolvam todas as almas, atormentam, todavia, umas mais que as outras, segundo sejam mais graves ou mais leves os pecados.

Fora esse lugar do purgatório, à esquerda, ficam os demônios que fizeram com que aquelas almas cometessem os pecados que agora expiam. Censuram-nas, mas não lhes infligem quaisquer outros tormentos.

Pobres almas! Fá-las sofrer mais, muito mais, a visão desses demônios do que o próprio fogo que as envolve. E, com tal sofrimento, gritam e choram, sem que, neste mundo, consiga alguém fazer uma ideia. Fazem-no, contudo, humildemente, porque sabem que o merecem, que a justiça divina está com a razão. São gritos como que afetuosos, e que lhes trazem certa consolação. Não que sejam afastadas do fogo. Não, a misericórdia de Deus, tocada por aquela resignação, das almas sofredoras, lança-lhes um olhar favorável, olhar que lhes alivia o sofrimento e lhes deixa entrever a glória da bem-aventurança, para onde passarão.

Santa Francisca Romana viu um anjo glorioso conduzir aquele lugar a alma que lhe havia sido confiada, à guarda, e esperar do lado de fora, à direita. É que os sufrágios e as boas obras que os parentes, os amigos, ou quem quer que seja, lhes fazem especialmente por intenção da alma, movidos pela caridade, são apresentados, pelos anjos da guarda, à divina majestade. E os anjos, comunicando às almas o que por elas fazemos nós, aliviam-nas, alegram e confortam. Os sufrágios e as boas obras que fazem os amigos, por caridade, especialmente pelos amigos do purgatório, aproveita principalmente a quem os faz, por causa da caridade. E ganham as almas e ganhamos nós.

As orações, os sufrágios e as esmolas feitos caridosamente pelas almas que já estão na glória, e que já não necessitam, revertem às almas ainda necessitadas, aproveitando a nós também.

E os sufrágios que se fazem às almas que jazem no inferno? Não os aproveita nem uma nem outra - nem as do inferno, nem as do purgatório, mas unicamente a quem os faz.

A zona ou região média do purgatório está dividida em três partes: a primeira, cheia duma neve excessivamente fria; a segunda, de pez fundido, misturado a azeite em ebulição; a terceira, de certos metais fundidos, como ouro e prata, transparentes. Trinta e oito anjos aí recebem as almas que não cometeram pecados tão graves que mereçam a região inferior. Recebem-nas e transportam-nas dum lugar a outro com grande caridade: não lhe são os anjos da guarda, mas outros que, para tal, foram obrigados pela divina misericórdia.

Santa Francisca nada disse, ou não a autorizou a dizê-lo o superior, sobre a mais elevada região do purgatório.

Nos céus, os anjos fiéis tem sua hierarquia: três ordens e nove coros. As almas santas, que sobem da terra, ficam nos coros e nas ordens que Deus lhes indica, segundo os méritos. É uma festa para toda a milícia celeste, mais particularmente para o coro onde a alma santa deverá regozijar-se eternamente em Deus.

O que Santa Francisca viu na bondade de Deus a deixou profundamente impressionada, sem que pudesse falar da alegria que lhe ia no coração. Frequentemente, nos dias de festa, sobretudo depois da comunhão, quando meditava sobre o mistério do dia, o espírito, arrebatado ao céu, via o mesmo mistério celebrado pelos anjos e pelos santos.

Todas as visões que tinha, submetia-as Santa Francisca de Roma à Mãe, Santa Igreja. E, pela mesma mãe, a Igreja, foi Francisca canonizada, sem que nada de repreensível se achasse nas visões que tivera.

Nós, pois, vos saudamos, ó almas que vos purificais nas chamas do purgatório. Compartilhamos as vossas dores, os sofrimentos, principalmente daquela dor imensa e torturante de não poderdes ver a Deus.

Ai de nós! Sem dúvida que há entre vós parentes nossos e amigos: sofrerão, talvez por nossa culpa. Quem dirá que não lhes demos, nesta ou naquela ocasião, motivos de pecar? Falta-lhes pouco tempo para que se tornem inteiramente puras. Que nos acontecerá, a nós que tão pouco velamos por nós mesmos? Almas santas e sofredoras, que Deus nos livre de vos esquecer jamais! 

Todos os dias, à missa e às orações, lembrar-nos-emos de vós todas. Lembrai-vos, pois, também de nós. Lembrai-vos, principalmente, quando estiverdes no céu. Como lá vos desejamos ver! Como no céu desejamos ver-nos convosco! Assim seja.

 (Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XVIII, p.111 à 118 e 129 à 137)  

 

 

 

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

NO QUE CONSISTE A VOCAÇÃO DOS DISCÍPULOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA

 




RELAÇÃO COM A CONSAGRAÇÃO A NOSSA SENHORA SEGUNDO SÃO LUÍS GRIGNION DE MONTFORT

(Pergunta: Nós do grupo “Regina Cordium” tivemos um simpósio na sede “Acies Ordinata” onde nos foi mostrada a vocação da TFP. O nosso grupo se  prepara para fazer a consagração a Nossa Senhora, segundo o método de São Luis Grignion de Montfort. Então, pedimos que o Sr. nos mostre a relação que há entre a vocação da TFP e o “Tratado da Verdadeira Devoção” de São Luis Grignion.)

Está muito bem escolhido o tema.

A nossa vocação propriamente qual é? Este é o primeiro ponto. Depois, a relação que ela tem com Nossa Senhora.

A TFP tem uma vocação especial baseada num ponto de História.

Há duas sociedades perfeitas vivendo juntas, a bem dizer uma na outra, a segunda na primeira: a Igreja e o Estado. Por exemplo, podemos dizer: a Igreja vive no Brasil. É verdade. Ela não vive só no Brasil, mas também vive no Brasil. Graças a Deus este juízo é verdadeiro.

E se se disser: “O Brasil vive na Igreja”? A Santa Igreja Católica Apostólica Romana é imensamente mais ampla, em todos os sentidos da palavra, do que o Brasil. Todavia, o nosso País é uma nação que vive dentro da Igreja Católica, porque a grande maioria de seus membros fazem parte d'Ela. É mesmo a nação de maior população católica da Terra. Desta forma, a primeira vive na segunda, e a segunda vive dentro da primeira.

Fisicamente, não se pode compreender... Esta água está contida neste copo, mas este não está presente dentro da água. Espiritual e temporalmente falando, no caso citado em primeiro lugar (o Brasil está contido na Igreja e a Igreja vive no Brasil), a sentença é verdadeira.

Uma vez que esta nação e a Igreja Católica estão tão ligadas, é forçoso que esse embricamento se defina em termos de convívio: a Igreja convive com o Brasil; o Brasil convive com a Igreja.

Tudo aquilo que convive se co-influencia. Um ser vivo junto de outro ser vivo influenciam-se.

 

A influência recíproca inevitável: parábola do beluchistanês 

Imaginem um fato inteiramente anormal, mas que, afinal, pode ocorrer.

Num aeroporto, o tempo está ruim. Os passageiros não estão com vontade de viajar naquelas condições meteorológicas e o comandante do avião comunica que entre eles, passageiros daquele voo, há um personagem muito importante, o qual necessita viajar imediatamente; os que quiserem arriscar-se, podem embarcar e o avião decolará logo.

Verifica-se que a pessoa mencionada pelo comandante é o embaixador do Beluchistão no Brasil. Depois de alguns momentos, dirige-se ao guichê de embarque um brasileiro que - sabe-se - não vai para o Beluchistão, mas sim para uma ilha do Pacífico. Lá, o avião fará escala e o embaixador rumará até o seu destino.

Os dois passageiros olham-se com fisionomias meio arrevesadas: "Quem será esse homem do Beluchistão com quem vou viajar? Onde fica tal país? Que negócios terá? Em que encrenca vou me meter, num avião que irá corcoveando por ares pouco conhecidos? Pode haver de tudo!"

O beluchistanês, um diplomata – um pouco mais habituado a dominar-se – olha de soslaio para o seu companheiro de viagem, e acha que é necessário trocar um cumprimento. O brasileiro mostra-se um tanto ou quanto assustado. E sentam-se em pontos extremos do avião. Até a hora deste último descer na ilha do Pacífico, os dois estarão dentro do avião.

Quando o avião fizer escala na ilha, o brasileiro descerá, a porta será batida atrás dele, e os dois viajantes nunca mais se verão. O brasileiro nunca mais pensará no Beluchistão; o beluchistanês irá com a sua cabeça cheia de seus próprios negócios, e não pensará mais naquele brasileiro. Um fato ficou consumado: apenas dormiram uma noite naquele avião, cada um numa ponta; não trocaram uma palavra, não se olharam mais.

Vamos dizer que estejam ambos acordados, quando raia a manhã. Ouve-se um blim-blim! nos alto-falantes de bordo, e uma voz diz: "Bom dia, senhores passageiros... São 7 horas da manhã. Sobrevoamos o Oceano Pacífico. Estamos a 10 mil metros de altitude! Daqui a pouco passaremos ao largo do famoso quadrilátero das voragens. Qualquer aeronave que nele penetre, fica sujeita a um rodopio e ser deglutida pelo mar. Tenhamos alegria, porque a alegria evita as desgraças – nada de oração. Façamos cara de contentes! Vamos ouvir a última música do conjunto tal..." E se desata uma canção imbecil pelo avião...

Durante todo o tempo da viagem, sem se aperceberem disso, um passageiro influenciou o outro. Por que? Porque o convívio influencia. De um modo ou de outro influencia, ainda que seja pela reação. Ao encontrar um tipo muito esquisito, no avião, embora não trocando uma palavra com ele, um pensa: "Mas que tipo arrevesado este"... E o outro pensará o mesmo do primeiro. Assim, vão-se elaborando antipatias ou simpatias recíprocas, que serão a marca que o convívio deixará nos viajantes.

 

Influência recíproca Igreja-Estado 

Logo, a Igreja, cumprindo a Sua divina missão, influencia a sociedade civil. Não se pode negar isso. Também é verdade que a sociedade civil, cumprindo a sua missão natural, por ricochete, influencia a Igreja. É próprio à sociedade civil, no plano terreno (portanto mais baixo), proporcionar por exemplo cultura, instrução, um linguajar próprio, um modo de ser aos que habitam em um país. Tanto é assim que cada país tem uma linguagem própria, um feitio psicológico peculiar que lhe é comunicado pela sociedade civil.

As pessoas embebidas dessas circunstâncias, comunicadas pela sociedade civil, viverão de um certo modo que, em si, pode ou não ter algo de bom: é neutro. A Igreja vai alterar esse modo de ser? Não. Ela aceita tal como  está, mas instila nesse modo de ser a graça de Deus.

Para falar em termos brasileiros: considerem um nordestino loquaz. Ou  um mineiro sagaz que acha que conversa com mais de dois é comício: é preciso falar pouco porque – de repente – sai o que não se quer; ao falar, mais vale fazê-lo no ouvido outro, porque quem sabe um outro escuta a conversa...  Ou então um paulista, com jeito de superioridade e de organizar a vida com uma certa grandeza. Ou um carioca cheio de charme, graça, amável etc. E daí em diante... Podem ir até o Rio Grande do Sul com seus heroicos cavaleiros dos pampas. Cada um tem um modo de ser que é próprio. Isto não tem nada de mau ou de bom, em si. A influência da Igreja se exerce sobre aquele local, indivíduo, ou conjunto de indivíduos que constituem um Estado, para que aquele modo de ser seja bem exercido, de acordo com os Mandamentos da Lei de Deus, da Igreja e da moral católica etc. A Igreja pega o fato consumado e torneia-o assim.

O lazer. Quantos povos têm lazeres diferentes! Não vou entrar aqui em pormenores também. Lembro-me de um povo que é tão silencioso que lhe apraz, aos Domingos, trancar-se no quarto com uma garrafa de uma bebida alcoólica qualquer, beber e dormir. Não garanto que seja sempre conforme a virtude da temperança, e que não entre o pecado da gula pelo meio... Enfim... Beber e dormir, sem ter amolação com ninguém, porque o que se gosta é ficar quieto.

Não é o feitio do brasileiro. Se alguém lhe for propor ficar o domingo no quarto deitado, com ou sem garrafa, ele não gosta. Precisa de conversar...

Poderíamos dar exemplos sem conta. Mas tanto o brasileiro quanto o da tal nação silenciosa – assim como outros povos – entram na Igreja. O conjunto dos povos, num certo sentido da palavra, influenciam a Igreja. Ou seja, Ela vai dizer e ensinar como uma boa mãe. E sendo Ela continuamente uma boa mãe,  adapta o seu modo de tratar de acordo com cada filho. Assim faz a Igreja com cada nação.

Então, a sociedade civil exerce sua influência também sobre a Igreja. São influências exercidas de maneiras diferentes, de naturezas diversas, mas são exercidas.

No passado, antes da Idade Média em geral, as lutas contra a Igreja – heresias, cismas e perseguições – partiam de uma reação da sociedade civil, que não queria aceitar a Igreja como era; ou partiam de uma luta, dentro da Igreja, de gente que não desejava sair d'Ela, mas pretendia professar uma doutrina diferente, sobretudo praticar uma moral relaxada, quando a Moral da Igreja é ilibada, perfeita e não comporta nenhuma espécie de relaxamento.

 

A crise atual na Igreja 

Na crise contemporânea, como nós estamos? A crise começou na sociedade civil e desta última penetrou na Igreja? Ou foi o contrário? Foram hereges e cismáticos, dentro d'Ela, que influenciaram a sociedade civil?

 A resposta é a seguinte: no caso da sociedade contemporânea, a crise veio da sociedade civil e entrou na Igreja, porque não encontrou da parte dos católicos, que deveriam ter resistido, a reação necessária. Não encontrou  vigilância, de maneira que os erros se expandiram dentro d'Ela, sem que muitos percebessem que estavam entrando... Nem percebiam claramente que eram erros. Assim se espalhou. Depois, quando foram reagir, já era tarde. Aí estralou uma heresia e uma revolução.

No caso concreto, a crise atual da Igreja, como a crise das três  Revoluçõesda qual a crise contemporânea na Igreja é uma parte ou uma ramificação delasnasceram com o Humanismo, a Renascença e todas elas são oriundas da sociedade civil. Tais erros contaminaram a Igreja, donde brotou o Protestantismo, que é um erro religioso. E daí todo o resto emanou.

Aliás, o livro Como ruiu a cristandade medieval?[1] é muito documentado. Vale a pena os senhores o lerem. Fica provado que houve um começo de erro na sociedade civil, de onde proveio a desordem.

 

Nossa vocação consiste em agir no foco de onde partiu o erro 

Nossa vocação qual é? É agir no foco de onde partiu o erro. Ou seja ficar na sociedade civil e, dentro dela, enfrentar a fera onde estiver. Outros têm uma vocação mais elevada do que a nossa, como –  por exemplo – o clero. Porém, nossa vocação é de agir dentro da sociedade civil, e aí combater os seus erros, para evitar que eles – uma vez mais – pulem para dentro da Igreja. Fica aqui uma primeira noção.

Agora entra uma segunda noção: o Reino de Cristo e o Reino de Maria no mundo o que são?

O Reino de Cristo e o de Maria são um só e mesmo Reino, quer dizer, onde Cristo é Rei, Nossa Senhora é Rainha. Reciprocamente, onde Nossa Senhora é Rainha, Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei. São dois aspectos de uma situação.

O que significa na sociedade civil esse Reino? E na Igreja? A Igreja é muito mais forte e ricamente o Reino de Cristo e de Maria, do que a sociedade civil, porque Ela não está condicionada a certas circunstâncias que há na primeira. A sociedade civil tem problemas econômicos, sociais e de toda a ordem dos quais é preciso cuidar, que tomam o tempo, atravancam e caceteiam. A Igreja, normalmente, tem todas as condições para estar organizada segundo a vontade de Deus. Quando a Igreja se encontra no fervor em que deve estar, Ela é – no sentido pleno da palavra – o Reino de Cristo e de Maria.

Trata-se de um reino espiritual, pois Nosso Senhor Jesus Cristo não foi um Rei temporal. Ele descendia dos reis de Israel, mas não foi Rei temporal. Quando Pilatos Lhe perguntou: "Tu és rei?" Ele respondeu que era Rei, mas não deste mundo. É o Rei espiritual que dirige, encaminha e governa as almas, e quer receber a adoração, a obediência e a homenagem das almas. A relação d'Ele com os homens é toda ela espiritual.

Na sociedade temporal – no Estado –, Ele não tem nenhuma forma de reinado? Um Estado também não se pode dizer Reino de Cristo? Não pode dizer-se também Reino de Maria?

 

A consagração de Estados 

Por exemplo, vários Estados têm-se consagrado ao Sagrado Coração de Jesus. O Rei Afonso XIII, de Espanha, no Cerro de Los Angeles, também aclamou a nação espanhola como reino de Cristo. Em Portugal, o primeiro rei da dinastia dos Braganças consagrou a Nossa Senhora o reino de Portugal, constituindo-A sua Rainha. A coroa dos reis de Portugal nunca mais foi usada em Lisboa, e está depositada, desde 1640, aos pés da imagem de Nossa Senhora, em Vila Viçosa, para atestar ou certificar que Nossa Senhora é a Detentora do poder – a coroa é o símbolo do poder – em Portugal.

 O que significa Nossa Senhora Rainha de Portugal? Nosso Senhor Jesus Cristo Rei da Colômbia? Do Equador? O que significa concretamente? Quer dizer o seguinte:

1) a grande maioria dos membros dessa nação são católicos; 2) conhecem a Lei de Deus, a Lei da Igreja, a Moral católica e obedecem aos conselhos evangélicos, na medida em que toca a cada cidadão etc., de tal maneira que, pela obediência à voz da Igreja, pela obediência aos Seus ensinamentos, essa nação torna-se Reino de Jesus Cristo. Por que? Porque é Rei aquele cuja vontade é reconhecida como sendo de direito e de fato, a vontade à qual todos têm que se sujeitar. Esse é um Rei!

Nosso Senhor Jesus Cristo reconhecido como sendo o Homem-Deus, Nossa Senhora como sendo a Virgem-Mãe de Deus, todos os homens devem obedecer à vontade d’Eles. Quando todos os homens obedecem à vontade d’Eles, ali está uma terra que se chama Reino de Cristo ou Reino de Maria.

 

Nossa vocação é trabalhar na sociedade civil para que as almas não amoleçam 

Qual é a nossa vocação? É trabalhar dentro da sociedade civil para fazer com que não amoleçam dentro dela as resistências à vontade e ao ensinamento da Santa Igreja, para que cresça a apetência, a admiração por aquilo que Ela manda; que haja uma vontade ardente de que todas as coisas sejam conformes o espírito da Igreja. Ou seja, para a implantação do Reino de Cristo e de Maria naquela sociedade civil.

O que vem a ser, nisto, uma consagração? Entro aqui no tema que me foi pedido.

A consagração é o ato pelo qual uma pessoa (reconhecendo que Nosso Senhor Jesus Cristo é quem Ele é, reconhecendo que Nossa Senhora é quem Ela é) toma a seguinte atitude: dá-se-Lhe por inteiro, e torna-O inteiramente Senhor de quanto essa nação tem, e de tudo quanto essa nação é. Assim dá-se um passo a mais, do que a simples condição de uma pessoa.

Dou um outro exemplo: imaginem uma pessoa que foi batizada. Ela é membro da Igreja Católica Apostólica Romana. Contudo, não fez uma especial consagração, depois de adulta, de sua pessoa e do que ela tem a Nosso Senhor. Se ela fizesse a consagração, tudo o que ela tem oferece a Nosso Senhor, para que Ele disponha como quiser. Está disposta a aceitar de Nosso Senhor o que Ele quiser dela. Em compensação, Ele a toma debaixo de uma proteção especial, concede-lhe graças especiais e, por assim dizer, tudo quanto Ele tem fica da pessoa consagrada. É uma permuta de dons: nós ficamos pertencentes inteiramente a Ele; mas em um certo sentido da palavra, Ele fica pertencente a nós. Esta é a consagração.

 

Relação entre a Consagração a Nossa Senhora e a vocação da TFP 

Então, que relação há entre essa consagração e nossa vocação?

É extremamente árduo derrubar a Revolução gnóstica e igualitária. Os senhores estão vendo o seu poder, notam como é esmagador e como vai – de um modo ou de outro – avançando. Os senhores veem como somos poucos numerosos em comparação com a Revolução. E, sobretudo, como não temos os meios que ela tem para dominar.

Temos uma tarefa enorme a realizar: trabalhar para que as mentalidades manuseadas pela Revolução digam “não” cada vez que ela diz “sim”. E cada vez que a Revolução diga “não”, elas digam “sim”. Devemos querer fazer o contrário da Revolução.

A nossa vida e luta são duras. Todos nós somos convidados continuamente pela Revolução a trair Nosso Senhor, Nossa Senhora e a Igreja, e a abraçar a vida mole.

O Canon da Missa tem um trecho que trata dos ímpios, ao dizer: "in quorum manibus iniquitates sunt dextera eorum repleta est muneribus – eles têm a infâmia nas mãos, a direita deles está cheia de subornos (Salmos 25, 10).

Toda pessoa tem maus momentos, dificuldades, crises em que pode tender a trair. Então, a primeira dificuldade de nosso caminho é a perseverança.

Mas não basta a perseverança, temos que nos santificar. Quer dizer, devemos visar a perfeição moral, pela qual fiquemos, nesta batalha dos espíritos, das almas – as boas contra as más – gigantes. E para o alcançarmos não há outro meio senão cada vez mais ter piedade, devoção, ser exímio no amor de Deus, no amor a Nossa Senhora, à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, etc.

A primeira etapa de nosso combate espiritual não é o enfrentamento com os defeitos alheios, mas calcar aos pés os nossos defeitos e melhorarmos a nós mesmos. Nosso Senhor é um Deus onipotente, de uma misericórdia infinita. À Sua Mãe constituiu-A como advogada junto a Si.

Imaginem um juiz que tem um réu que precisa de uma advogado. O juiz diz: "Bem, vou indicar para advogar esta causa a minha mãe"... É sinal de que o réu já tem o coração do juiz ganho a seu favor. Antes de julgar, ao indicar o advogado, ele já capitulou. Ele não capitula diante da injustiça, não irá absolver um homem impenitente, que não quer abandonar o seu pecado. Mas  dará todas as graças necessárias para que a pessoa abandone o pecado e se santifique. É por esta forma que se estabelece o vínculo entre o consagrado e Aquele a quem se consagrou.

Alguém se consagra a Nosso Senhor. Nosso Senhor diz: "Minha Mãe, Vós sois advogada dele". Ela dirá: "Meu Filho, muito bem. Mas, sem Vossas graças, o que poderei? Dai-lhe tais graças, tais outras e outras..." As mães são assim...! Eu me lembro da minha: era afetuosamente insaciável de graças para si mesma, pois a primeira obrigação de cada um é para com a sua própria santificação. Em seguida, para com os dela: o esposo, o filho, a filha e os demais parentes. Depois, para todo o mundo. A mãe terrena é um exemplo do que é Nossa Senhora de um modo inefavelmente superior.

Nossa Senhora pedirá para nós uma graça, outra e outra, sem parar... Este fato é resultado de nós sermos batizados e filhos da Igreja. Depois também, a título especial, devido ao fato de nos termos consagrado a Ela. E, enquanto tais, pertencermos especialmente a Ela. E assim também Ela, de algum modo, nos pertencer. E pede, pede e pede... Deus Lhe concede generosamente as graças pedidas.

Ele nunca obriga pela graça uma pessoa a seguir os Mandamentos. O homem continua livre, mas Deus exerce tantos atrativos sobre nossa alma, que facilita enormemente o caminhar bem. Se não fossem essas graças, nenhuma pessoa andaria bem. Se não fosse a graça, a Revolução há muito tempo teria tomado conta do mundo, o demônio estaria sendo adorado por toda humanidade etc. É por causa da graça que a Revolução ainda não tomou conta do mundo.

Nossa Senhora tem uma hora marcada em que o mundo, se não se converter antes disso, terá pecado tanto, mas também será tão castigado que o perdão chegará. Nessa hora do perdão, aqueles que são d'Ela, sê-lo-ão inteiramente. Ao aproximar-se dos seus adversários, terão tais palavras de fogo, tais palavras de censura, de recriminação, que eles não ousarão enfrentar nem o olhar, nem a palavra, nem a presença dos filhos d'Ela. Será a hora em que Nossa Senhora terá resolvido mostrar a Sua onipotência.

O primeiro passo para tal é que estejamos, portanto, o mais possível dentro de Seus planos, isto é, repletos e saturados da graça que Ela nos destinou. E é um passo excelente para essa graça o fato de nos termos consagrados. Este é o sentido da consagração.

Se alguém deseja vencer nessa batalha espiritual, consagre-se a Nosso Senhor pela intercessão de Nossa Senhora! Porque o fato de se ter consagrado e, portanto, pertencer especialmente a Nossa Senhora, isto é uma couraça, um elmo, um escudo, uma lança, uma espada não mão daquele que estiver combatendo.

Os senhores estão vendo como eu promovo campanhas de esclarecimento da opinião pública e outros atos que entram na luta de todos os dias. E devo fazê-lo! Mas tudo isto só é bom na medida em que, realmente, estivermos unidos a Nossa Senhora, dependentes d'Ela, vivendo nossa consagração a Ela. E, por Ela, ao Sagrado Coração de Jesus, cujo mês de junho Lhe é consagrado.

 

Estado de espírito durante a campanha 

Quando os senhores saem para a campanha nas ruas, eu gostaria muito  que se perguntassem a si mesmos: “Estou bem consciente de que esta minha ação – ainda que seja a de ser membro da fanfarra – é feita todo o tempo por amor de Deus? Se for feita inteira e constantemente por amor de Deus, de Maria Santíssima e da Santa Igreja, conseguirei "n" vezes mais do que em caso contrário”.

A fanfarra é uma arte. E toda arte praticada com amor de Deus e por amor de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e da Santa Igreja, toca os corações.

 Querendo fazer uma experiência disso, vão amanhã ou qualquer dia que possam à Sede do Reino de Maria, e entrem na Sala do Reino de Maria. Considerem ali um nicho onde está uma imagem de madeira de Nossa Senhora de Paris. Em torno desse nicho há umas pinturas sobre fundo dourado representando Anjos. São elas cópias bem feitas e de muito boa qualidade de anjos pintados pelo Beato Angélico. Esses anjos têm uma coisa qualquer que, quem olha, fica com o coração tocado por aquilo. Os Anjos angelizam...

Não se trata de tomar ares de quem está cheio de graça. Não faça assim. Não seja ator de qualquer espécie de comédia em matéria sagrada! Seja como é e que, se a graça quiser, transparecerá. “Seja como é”, não. Seja como deve ser e a graça transparecerá.

Alguém objetará: "Dr. Plínio, tudo isso é muito bonito. O Sr. está pintando essa luta de um fator imponderável, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus – ou seja, a graça – tocando as almas e passando por cima de tudo quanto é material. O Sr. faz desta batalha de alma a alma o essencial de uma luta. É muito bonito... Mas o Sr. já pensou como é difícil fazer isso?"

Respondo: "Meu filho, é. Nesta sala não há ninguém, neste mundo não houve ninguém – exceto Nossa Senhora que foi concebida sem pecado original e, naturalmente Nosso Senhor Jesus Cristo – sem tendência para o pecado. Em muitas ocasiões da vida é difícil não pecar. Vemos isso na hagiografia. Em toda  vida de santos há momentos em que foram muito duramente tentados, rezaram, resistiram à tentação e subiram na vida espiritual. Peça! Peça! Reze! Reze! Seja piedoso que tudo se resolverá”.

Contra isto se poderia objetar – e com isto estou terminando – uma anedota ou casinho, que se conta, acontecido algures por algum país da Europa.

Havia, numa diocese, uma paróquia desorganizada, inculta e menos arranjada do que as outras paróquias, uma parte era mato... O bispo mandou, então, para lá um padre piedoso e bom, mas ao mesmo tempo muito espirituoso. Como o padre tivera um belo sucesso na ordenação da paróquia, o bispo receava que o padre ficasse vaidoso ao lhe mostrar os resultados obtidos. Então, na visita episcopal, o padre ia mostrando e dizendo: "Sr. Bispo, aqui está a matriz!" – “Muito bem, muito bem – comentava o bispo. Não há dúvida nenhuma. Graças a Deus". E esse comentário era um modo de lembrar ao padre que o fator principal era Deus, e tinha toda a razão.

E assim o sacerdote foi-lhe mostrando tudo, ao que o bispo sempre dizia: "Graças a Deus!" Então o padre, voltando-se para o bispo, disse: "Se V. Excia. soubesse como estava esta paróquia, quando aqui só estava Deus...!" Isto era um modo de dizer que Deus age por meio dos homens, e que estes são livres de agir bem ou mal. Entra, portanto, um mérito humano subordinado à ação de Deus. Sem a ação de Deus, não faria nada. Deus quer que os homens façam. Muitas vezes, as coisas não saem, porque os homens não fizeram. Deus deu as graças, mas os homens não as aproveitaram ou não corresponderam, dormiram sobre as graças recebidas, foram ingratos e sem-vergonhas. Então, não se correspondeu à graça.

 

Se não houvesse a campanha da TFP em favor da independência da Lituânia...

 Nessa perspectiva, é confortador pensar, por exemplo, o seguinte sobre a campanha em favor da independência da Lituânia: já estamos caminhando para dois milhões de assinaturas! Os senhores estão vendo o governo da Lituânia que se move, que nos manda agradecer, reconhecendo que é uma das mais importantes ajudas que já recebeu do Ocidente etc.

Se nós não fizéssemos essa campanha, como estaria a opinião pública face o caso da Lituânia?...

Agora está um fogo lavrando a favor da Lituânia, porque as TFPs se dedicaram a isso. Por que as TFPs empreenderam essa campanha? Porque Nossa Senhora chamou, pela voz da graça, aos que estão colaborando com tais esforços.  Em concreto, chamou a todos os que estão dentro desta sala. Chamou-os pela graça e esta produziu este resultado.

Então, como Ela nos chamou e dissemos “sim”, o resto foi uma consequência. Deus quis que assim fosse: chamasse e ficasse dependendo de nós. Se não tivéssemos feito o que fizemos, haveria o sério risco de se ficar  dormindo e babando enquanto uma nação estava perecendo por falta de auxílio.

O fator primeiro foi a graça que nos chamou. Foi a graça que nos acompanhou, e para obtenção da qual devemos rezar continuamente. Só podemos obtê-la – com uma amplitude única – se rezarmos a Nossa Senhora, e Ela for a nossa medianeira. E Ela, por sua vez, rezar ao Seu Divino Filho, alcançando-nos tudo.

Então, primeiro passo: consagrar-se a Nossa Senhora e pedir a graça. Segundo passo: receber a graça. Terceiro passo: corresponder à graça, apesar de ser difícil, de haver sacrifícios dizer sempre: "Minha Mãe, eu arco com esse sacrifício por Vossa causa", e ficar um membro da TFP. Quarto ponto: não é só difícil ficar um membro da TFP, mas é difícil continuar. Então, ir continuando... Mas meu gesto foi errado quando indiquei, com um gesto de mão,  continuando horizontalmente. Porque na TFP nós continuamos assim: subindo!  E à medida que formos subindo, seremos “mutatis mutandis” semelhantes (nas nossas devidas proporções, obviamente) à Nossa Senhora da Qual as Sagradas Escrituras se referem como sendo “terribilis ut castrorum acies ordinata – terrível como um exército em ordem de batalha” (Ct 6, 4). A Igreja diz que Ela é como “um exército em ordem de batalha”. Por efeito da consagração a Nossa Senhora, iremos sendo cada vez mais vitoriosos. Se todos fizermos isto, a Revolução estará com os dias contados.

Esta batalha é travada no exterior, mas na realidade profunda, é principalmente no interior de nós.

 
(Plínio Corrêa de Oliveira - Santo do Dia – 23 de junho de 1990 – Sábado)

 

 

 



[1] “HUMANISMO, RENASCENÇA E PROTESTANTISMO - Como Ruiu a Cristandade Medieval?” – João S. Clá Dias – Artpress – Indústria Gráfica e Editora ltda