quinta-feira, 5 de novembro de 2020

SÃO NUNO DE SANTA MARIA

 



 

Hoje é festa das Santíssimas Relíquias que se conservam nas Igrejas do Brasil, e, particularmente para nós, que se conservam na nossa capela. Nós vamos ter amanhã a festa do Bem-aventurado Nuno Álvares Pereira, confessor, condestável de Portugal ... arnês de cavaleiro. Século XIV.

Sobre São Nuno Álvares, São Nuno de Santa Maria, nome que Nuno Álvares Pereira tomou em religião como religioso carmelitano, o Gal. Silveira de Mello, no livro "Os Santos Militares", diz o seguinte:

"As primeiras atividades militares de Nuno Álvares Pereira foram, no seu dizer, simples escaramuças nas fronteiras de Portugal. Jovem impetuoso, revelou-se logo exímio condutor de seus homens. Certa ocasião, os castelhanos fizeram um desembarque com cerca de 250 homens para estabelecer uma cabeça de praia que facilitasse o desembarque. Nuno, de guarda nessa hora, não possuía senão dois pelotões de 60 homens que o acompanhavam. O chefe português podia opor-se ao desembarque do escalão inimigo, mas exporia a inferioridade numérica de seus homens. Preferiu atacar os castelhanos fora da praia, mas grande parte de sua gente intimidou-se. O inimigo desembarcou sem encontrar resistência e avançou em posição de ataque.

"Nuno, ajudado de poucos cavaleiros audaciosos, fez frente à primeira leva dos inimigos. Atacou-os com fúria, acometendo-os à lança e à pata de cavalo. Quebrando a lança, puxa da espada; o cavalo que montava cai ferido e prende, na queda, a perna do cavaleiro. Os castelhanos aproveitam do incidente e atacam. Vendo o chefe em perigo, os companheiros avançam em seu socorro. Entusiasmam-se os lusos, a princípio indecisos. Nuno não se ferira, protegido que fora pela armadura e pelo escudo. Entra na luta com novo ânimo, luta essa de quatro contra um. Mas aos portugueses vale o denodo do capitão. Os inimigos perdem terreno, debandam, são perseguidos e poucos se põem a salvo.

"A 15 de agosto de 1243, Nuno foi admitido na Ordem Carmelitana com o nome de Nuno de Santa Maria. Foi grande religioso, como fora grande soldado. Encontrou no convento um sacerdote que antes da ordenação fora também soldado e o servira. À sua passagem, o monge terciário ... ia beijar-lhe o hábito em respeito à sua dignidade. Por seu lado, o sacerdote carmelita declarava que uma das grandes honras de sua vida fora ter sido pajem do Condestável.

"No último ano de sua vida, em 1431, alquebrou-se o velho guerreiro. O rei D. João foi vê-lo e ao abraçá-lo pela derradeira vez, chorou como quem se despede do melhor amigo. Quando percebeu que sua hora era chegada, Nuno pediu que lhe fosse lida a Paixão do Senhor, segundo São João. Expirou suavemente às palavras ...

"Epitáfio de Nuno de Santa Maria: Aqui repousa aquele Nuno, Condestável, fundador da Casa de Bragança, general exímio, depois monge bem-aventurado, o qual, sendo vivo, desejou tanto o Reino do Céu que mereceu, após a morte, viver eternamente na companhia dos santos. Pois, após numerosos troféus, desprezou as pompas e fazendo-se humilde de príncipe que era, fundou, ornou e dotou esse templo".

Num Canto dos Lusíadas Camões exalta a figura do grande herói português, quando este incita os fidalgos lusos à resistência:

"Atai as mãos a vosso vão receio, que eu só resistirei ao jugo alheio. Eu só com meus vassalos e com esta – Dizendo isso arranca meia espada – Deterei da força dura e infesta – A terra nunca de outrem subjugada. Em virtude do rei, da pátria... – Da lealdade já por vós negada – Deterei não só esses adversários – Mas quanto a meu rei for necessário".

A grandeza camoniana!...

Os episódios aqui narrados são todos eles de grande significação, tanto a batalha árdua de Nuno Álvares Pereira, quanto depois a sua atuação no convento, e aquela linda reciprocidade de respeito entre ele e o sacerdote.

Ele que como simples donato, quando via passar o sacerdote se levantava e o sacerdote que fora pajem dele, que se honrava em ter sido pajem dele e que sentia uma profunda emoção de respeito quando via D. Nuno Álvares Pereira passar...

O espírito católico se compraz em reconhecer a superioridade (...) e naquele tempo (...) ele se exprimia numas manifestações de mútua reverência, de mútuo respeito, de mútua admiração, que faziam crescer ainda mais os valores da Civilização Cristã.

Nós tivemos oportunidade de comentar, há algum tempo atrás, o encontro de Santo Ângelo, carmelita, com São Francisco de Assis e São Domingos, em Roma. E a tradição segundo a qual os três santos teriam caído de joelhos uns diante dos outros. É essa efusão de mútua veneração que não se resolve em igualdade, mas se resolve em profunda humildade.

Aqui os senhores têm a mesma coisa que se repete.

Eu estava dizendo que é aqui que se vê bem o esplendor da Civilização Cristã. Para os senhores verem como essas coisas espirituais penetram a sociedade temporal, os senhores tomem até uma manifestação desaconselhada da civilização passada, e que era a dança.

Os senhores se lembram daquele conceito de São Francisco de Sales a respeito da dança do tempo dele: as danças eram como os cogumelos, os melhores não prestavam. Está bem. Porém na dança, por exemplo na pavana ou no minueto, nós vemos reaparecer o mesmo espírito das profundas reverências antigas, dando numa espécie de tributar recíproco de respeito, que faz a civilização do respeito que é a Civilização Cristã. Enquanto a civilização [moderna] é neopagã, é a civilização da igualdade, é a civilização do desrespeito.

Os senhores vêem no ardor da luta de Nuno Álvares como deve lutar o verdadeiro católico. O verdadeiro católico não é o [sentimental] que não tem o senso da guerra, mas, pelo contrário, Nuno Álvares lutava como os senhores acabam de ver, empenhando-se inteiramente e comunicando a coragem dos outros.

Os senhores imaginem o que é que diria o público do seguinte noticiário: "Numa guerra, houve uma batalha e os soldados estavam fugindo, mas de repente apareceu um sacristão, e como se sabe que um sacristão é um leão, ele infundiu ânimo a todos os guerreiros e os guerreiros voltaram à batalha". Caía-se na gargalhada, porque nem era possível uma coisa assim.

Era uma dessas coisas... Eu creio que os linotipos se tornariam duros ... viraria em sentido contrário na hora de irem à imprensa. Não seria possível - não é verdade? - de tal maneira a idéia de certo estilo de católico se identificou com a idéia do manho, do poltrão, do indivíduo sem coragem. Porque, para muita gente o sacristão é a personificação do católico e para muito católico o sacristão é mesmo a personificação do católico. Os senhores vejam o verdadeiro católico como é: como era o venerável Nuno Álvares.

Do ponto de vista "ambientes, costumes", e no fundo pela revelação que contém da santidade da coisa, muito bonita também é a despedida do rei. Naquele tempo as pessoas não tinham medo de morrer e embora não houvesse o diagnóstico inexorável de certas radiografias de hoje, as pessoas muitas vezes pressentiam a morte. Quando pressentiam a sua morte, iam se despedir. E as pessoas que recebiam a visita de despedida achavam aquilo natural: entrava, conversava, tomava chá, depois, na hora de sair, despedia mesmo. Também depois não se viam mais antes de morrer.

Nosso Padre José de Anchieta foi assim. A horas tantas ou quantas ele soube, por alguma advertência interna da graça, que ia morrer. Ele visitou todo o pessoal do pequeno burgo de São Paulo, de quem ele queria se despedir. Ele dirigiu-se a cada um e disse:

— "Olha, eu vou morrer. Então, vim aqui para agradecer as gentilezas, para dizer que eu vou rezar no céu".

— "Oh, não diga. Mas Padre Anchieta vai morrer, está bom, então recomende a Nossa Senhora tal coisa assim"

É assim. Ao pé da letra é assim...

— "Recomende a Nossa Senhora, quando estiver no céu, e veja com minha padroeira tal coisa assim".

— "Não tem dúvida, eu faço".

... coisa e tal, se abraçam e se despedem. Depois, vão se ver só na hora do enterro ou no juízo final...

Era a época da cortesia, em que as pessoas até para morrer, morriam com polidez, com elegância. Pois, quando se trata de sair da terra — a gente fazendo uma visita para despedir porque vai viajar —, por que não vai fazer uma visita para despedir quando vai morrer, quando essa é a grande viagem? E depois é preciso dar um bom conselho para um, para outro, por justiça, se deve um agradecimento. Então, a gente vai fazer o agradecimento. Para outro é porque a gente estima e quer rever mais uma vez antes de morrer.

E então o rei e ele se reviram. O rei chorou, abraçaram-se, depois cada um seguiu o seu destino. E naturalmente São Nuno de Santa Maria morreu e no céu rezou pelo rei. É a época da elegância. Os senhores vejam a elegância das maneiras, a polidez das maneiras como se interpenetrava com a piedade e dava à piedade uma excelência própria, porque foi um costume de alta elegância que foi embebido de piedade, e dava à piedade uma beleza especial essa forma de separação antes de morrer, com essa nobreza, com essa tranqüilidade e com esses olhos postos no céu.

Uma civilização igualitária não poderia de nenhum modo ver desenvolver-se um costume dessa forma. Lembra-me uma outra despedida tão diferente dessa, mas para os senhores verem como são as coisas.

Os senhores todos ouviram falar do grande Felipe II, Rei da Espanha, e ouviram falar também do Duque de Alba. Seja como for, o Duque de Alba, a horas tantas ou quantas, entra em agonia e manda chamar várias vezes Felipe II - porque ele nunca mandaria chamar o rei, a não ser para morrer.

Mas a morte tem uma majestade própria, da qual nós nos ocupávamos outro dia, e que é uma majestade inconfundível. Às portas da morte, alguém que seja o Duque de Alba pode mandar chamar o rei. Ele manda chamar o rei várias vezes, mas o rei não vai. Quando afinal o rei aparece, o Duque de Alba está nas últimas. Entra no quarto do Duque de Alba, o duque o olha e diz: - "Agora é tarde". Vira-se para a parede e não dá confiança ao rei.

São esses tais cristãos atrevimentos que são paralelos com esses profundos efeitos dessas profundas reverências, e que dão aos senhores a idéia quase inebriante da harmonia desses grandes respeitos e dessas grandes independências que caracterizam o cavalheiro antigo. Ninguém mais humilde do que ele na hora de ser humilde; ninguém de mais altaneiro do que ele na hora de ser altaneiro.

E aí os senhores têm uma visão dos esplendores da Civilização Cristã, a propósito da vida de São Nuno de Santa Maria.

Agora, não é sem interesse... Eu li muito mal os versos de Camões, porque eu não sei fazer verso e nem sequer sei ler os versos. Mas, enfim, o verso dele é muito bonito. E não é sem interesse fazermos uma adaptação desse modo de combater - que Camões atribui a São Nuno de Santa Maria com fundamento histórico - ao modo pelo qual o católico deve defender, não só a sua pátria e a sua terra mas, sobretudo, a causa católica, porque a Igreja é a pátria das almas.

Eu estou me demorando um pouco, mas termino logo - é porque a coisa convida a algumas exemplificações de modo quase traiçoeiro.

Mas vejam os senhores as lindas expressões de Camões: o quê é um poeta para dizer as coisas, quando é um verdadeiro poeta. Vejam como ele descreve a cena de São Nuno de Santa Maria comunicando vigor aos fidalgos portugueses diante da superioridade de forças dos castelhanos: "Atai as mãos a vosso vão receio".

Os senhores querem uma imagem do medo mais bonita do que essa? Um medo vão que tem mãos e que segura o sujeito na hora da luta. Essa expressão, essa figura das mãos do medo, mãos brancas, frias, de dedos compridos que seguram como garras, que deixam o sujeito inibido.

Pode haver melhor imagem do que essas duas mãos sem cor, enquanto um mau espírito vem por detrás... mãos do medo? Pode haver uma coisa mais bonita para indicar a luta do medo contra o homem e do homem contra o medo? As mãos do medo agarram o homem; o homem ata as mãos do medo pela sua resolução e coragem. Francamente se isso não é bonito, eu não sei o que é bonito!

Ele continua: "Que eu só resistirei ao jugo alheio". Quer dizer, se vós não dominardes o medo, eu continuo a lutar sozinho. Como seria bonito dizermos isso a amigos que estivessem intimidados no momento em que a causa de Nossa Senhora estivesse ameaçada: Atai as mãos a vosso vão receio, eu só resistirei ao jugo alheio.

E ele continua: "Eu só com meus vassalos" e dizendo isso ele arranca a espada e diz "defenderei da força dura e infesta, a terra nunca de outrem subjugada". Nós não poderíamos dizer: "eu só com os meus amigos, eu só com os membros do Catolicismo, defenderei da força dura e de infestação" – pode haver duas palavras melhores para indicar a força da impiedade ou a força da injustiça, do que a força dura e infestante?

Pois bem: eu só defenderei da força dura e infesta, com os meus vassalos"... Quem? Não a "terra nunca de outrem subjugada", mas a rainha nunca por outrem derrotada. Essa é a Rainha que nunca foi derrotada.

E continua: "E em virtude do rei (mas que rei!) – da pátria (ou seja, da Igreja mesma) – da lealdade já por vós negada" (em virtude da lealdade que vocês já negaram, em virtude disso) - "deterei não só esses adversários" (mas quantos à minha rainha forem contrários). Mais bonito não pode haver.

De maneira que aqui fica uma oração: Que Nossa Senhora e o Bem-aventurado Nuno Álvares nos obtenha precisamente essa coragem de que ele deu o exemplo e que Camões tão bem soube cantar.

 (Plínio Corrêa de Oliveira - Conferência de 5 de novembro de 1966)

 

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