São Domingos de Gusmão (cuja festa se celebra em agosto) e São
Francisco de Assis, seu contemporâneo, foram dois luzeiros cujas vocações se
interpenetram. Considera-se terem realizado o famoso sonho de Inocêncio III, no
qual esse Papa viu a Basílica de São João de Latrão, que simbolizava a
Cristandade, rachada e sendo sustentada, ora por São Domingos, ora por São
Francisco. Dr. Plínio tinha por ambos profunda admiração, que se traduziu em
numerosos comentários pervadidos de sentimentos de enlevo e veneração.
Na conferência que transcrevemos a seguir, ele analisa um afresco de
Fra Angélico, no qual o insigne pintor dominicano procura retratar as perfeições
morais de seu santo Fundador.
A Cristandade tendia já
naquela época para a moleza, o relaxamento, a perda do senso do sacrifício, do
sobrenatural, e se inundava dos bens materiais que o avanço da civilização
proporcionava.
Foi neste contexto que,
para barrar o progresso do mal, Deus suscitou as vocações de São Francisco e de
São Domingos: o primeiro, pela caridade, e o segundo, pela lógica, lograram
conjuntamente reerguer a Idade Média do século XIII. A Ordem dos Franciscanos
devia praticar em grau exímio a humildade e a pobreza; a dos Dominicanos,
combater num terreno mais intelectual o orgulho e a sensualidade.
Na conferência de hoje,
pretendo voltar-me particularmente para São Domingos. Procuremos vê-lo pelos
olhos de um de seus mais eminentes filhos espirituais, Fra Angélico.
Em um de seus célebres
afrescos (página
ao lado), ele representa São Domingos ainda muito moço,
vestido de dominicano, numa atitude pensativa, meditando ao pé da Cruz.
A pintura mostra um
personagem muito sereno e calmo. Mas, ao mesmo tempo, dentro da serenidade e da calma dele, está se
entregando a uma intensa atividade. Encontra-se numa pesquisa, numa
interrogação. Sem tensões nem cansaços errados, a investigação de seu espírito
se concentra num determinado ponto. De outro lado, nota-se nele uma atitude de
enlevo e de amor.
No todo externo deste homem há algo de luminoso. Ele irradia uma luz que não é física, mas espiritual. Não se trata do viço da mocidade, também presente nele; é uma espécie de luz interior, mais ou menos indefinível, decorrente de uma extraordinária lucidez e de uma clara visão das coisas.
Singular
discernimento das almas
Tem-se a impressão de
que, se um de nós olhasse o mundo de dentro dos olhos dele, veria o universo
com alguns matizes completamente diferentes. Sobretudo, no que diz respeito às
almas.
Examinando-as, procurando conhecer caráteres, esse homem está tão distante do lamaçal das atividades comuns, tão longe das paixões que habitualmente os homens têm, que ele, por diferença, percebe muito mais essas desordens e, por co-naturalidade, também discerne melhor o que há de bom nos homens. Ele tem uma visão muito mais penetrante do mundo das almas, do que uma pessoa comum.
Fortaleza, clareza de
visão e equilíbrio
Uma objeção que se
poderia fazer a esta figura é a seguinte: onde está presente dentro dela a combatividade de espírito? Parece uma pessoa
feita para concordar com tudo, e capaz apenas desse sorrisinho que esboça. E, a
esse título, é uma pessoa que deve ser rejeitada por uma verdadeira formação.
Na realidade,
imaginemos este homem fechando o livro e presenciando alguma cena de despudor
insolente ou alguma extravagância, que se tornaram tão comuns nas ruas de hoje.
Ele ficaria ou não profundamente chocado, e quereria empunhar um látego como
aquele com que Nosso Senhor expulsou os
vendilhões do Templo? Certamente.
É na sua extrema
inocência, na sua extrema candura que reside uma extrema clareza de visão,
muita fortaleza e muito equilíbrio. Este homem é capaz de atitudes enérgicas,
mas também, no intervalo das batalhas,
de sorrir e meditar sobre o Natal. Sem violências, sem choques interiores, ele
passa de um estado de alma para outro.
Ele é, entretanto, um
homem transparente para cada um de nós compreendê-lo. Um homem que poderíamos
sondar, no mais íntimo de sua alma, para perguntarmos qual é o ponto de partida
de todo esse equilíbrio que ele demonstra.
O ponto de partida é, antes de tudo, uma noção primeira da ordem. Porque esta é uma pessoa que nunca perdeu a graça batismal. Isto está escrito na sua fisionomia. Não se poderia admitir, por exemplo, que lhe fizessem esta biografia: “Grande santo penitente. Viveu por muito tempo no meio de pessoas corrompidas e cometeu inúmeros assassinatos. Ei-lo depois de convertido”. A penitência tem aspectos mais sublimes, mas não tem o da inocência. Neste homem se discerne a graça batismal na sua candura originária, em sua beleza primaveril.
Certezas
extraordinárias
A partir da fidelidade
à graça batismal, há uma certa retidão por onde ele vê muito claramente que a
verdade é a verdade, e o erro é o erro. E os primeiros princípios universais da
lógica e do entendimento não passaram pelo menor abalo, no espírito dele. De
maneira que ele possui naturalmente certezas extraordinárias.
Prestemos atenção em
sua fisionomia: não há o menor grau de dúvida a respeito de nada. Ele nunca
duvidou. Consideremos com que tranquilidade ele procura o seu caminho. Por quê?
Porque ele anda a partir de certezas que nunca foram abaladas, e que lhe abrirão
todas as portas.
De outro lado, com essa noção muito grande de todas as certezas, possui ele uma naturalidade e um modo categórico de condenar completamente o erro, e de se desfazer do mal de uma forma que não admite discussão: é, e está acabado!
Fé católica absoluta
Tomemos a fé católica
deste homem, por exemplo. É uma fé total, absoluta! Ele acha evidente que a
Igreja Católica seja verdadeira. Não há dúvidas para ele a esse respeito. É uma
fé que nasce dessas certezas originárias, serenas e magníficas de quem nunca
pecou contra a criteriologia, nunca pecou contra os próprios nervos, nunca
pecou contra nada! E que progride na sua vida espiritual como o Rio Amazonas
corre para o mar: caudaloso, enorme, tranquilo, arrastando tudo, empurrando o
mar longe para frente. Não é um rio wagneriano com cascatas, com quedas d’água
nem coisas semelhantes. Ele se dirige para o oceano em linha reta, e chega ao
mar. O mar, neste caso, é o Céu!...
Um profundo senso do
divino
Outra coisa que há nele
é o senso do divino, que se traduziria pouco mais ou menos num raciocínio da
seguinte evidência:
“Eu existo. Contudo, é
verdade também que antes de mim existiu uma quantidade enorme de seres. É
verdade que, ao mesmo tempo em que eu existo, existe uma quantidade enorme de
seres, e que depois de mim existirá outra quantidade enorme de seres. Há,
portanto, um fluxo do existir dentro do qual, somando e subtraindo, eu sou uma
gota, e não o centro dele.
“Por detrás desse fluxo
de existência há uma ordenação, uma
regra, uma concatenação de fatos, uma sucessão de coisas que constituem um
universo coordenado e uno. Esse universo que assim existe me dá a ideia de um
Ser ainda maior do que ele e, portanto, um Ser Absoluto, Divino, que também
existe. É Ele o Criador de tudo.”
É a primeira impostação
da alma diante de Deus.
Este é um homem sem interesses individuais. Ele não tem vaidades, nem complexos, nem ambições. Ele tem o hábito de, no seu pensamento, nas suas reflexões, não reportar as coisas a si, mas a este absoluto que é Deus, e que é o centro para onde ele está voltado.
Da inocência, o
espírito apostólico
Então nós temos que,
para este homem, rutila com clareza muito maior do que para o comum dos homens a noção de que a verdade é a verdade,
o erro é o erro, o bem é o bem, e o mal é o mal. Vamos dizer que este homem, de
repente, se encontrasse com Lutero. Ele se diferenciaria do heresiarca por
vários abismos sucessivos. Ele iria notando as divergências, e diria: “Não!
Errado!”
E depois: “Vou pregar
contra as ideias erradas de Lutero, pois não posso deixar que leve outros a
seus erros! Nós não cabemos juntos no mundo!”
Donde nasceu o ímpeto desse espírito apostólico? Nasceu da candura originária, que é, em última análise, a boa ordem inicial de todo ser. Nasceu de todos os primeiros princípios da razão, de todos os primeiros impulsos dos nervos, de toda a graça do Batismo. Nasceu do senso do divino, e do respeito enorme por tudo o que existe, inclusive por si próprio, sentindo, por detrás, Deus que o envolve e que o transcende. Eis o ponto de partida desta alma inocente, que contém todo o resto.
“Paraíso originário”
de todo batizado
Esse estado de alma é o
“paraíso originário” que todo batizado tem, em grau maior ou menor do que São
Domingos.
E aqui, ao término dos
comentários sobre esta magnífica representação do Fundador dos dominicanos,
parece-me apropriado ressaltar esta verdade: todos nós tivemos a inocência
batismal. É ou não é verdade que todos nós, no fundo de nossas almas, sentimos
saudades dos encantos do tempo em que
éramos inocentes?
Entretanto, como fomos
feitos para viver dessa inocência, permanecem na alma mil cordas que ninguém
vibrou, mil solicitações que não foram atendidas, mil possibilidades de
expansão que de fato não foram aproveitadas, mil apetites feitos para a casa
paterna que se vão saciar nas bolotas dos porcos. Resultado: mil remorsos
indefinidos, não se está contente consigo mesmo, não se sente limpo diante de
Deus.
Achamos que nossa
existência é dura. É verdade. Porém, não agravamos nosso exílio, fechando as
janelas que davam para o Céu? Há na Escritura uma lamentação de Deus, dirigida
ao povo hebraico: “Vós transformastes o meu templo numa barraca para guardar
frutas”. Não somos nós um templo do Espírito Santo, que transformamos em
barraca para guardar frutas?
Olhando de frente nossa
situação atual, lembremo-nos que tudo aquilo pode ser restaurado, desde que
rezemos com confiança nesse sentido. Peçamos, pois, a Deus Nosso Senhor, por
meio de Maria Santíssima, que nos limpe de nossos pecados e imperfeições, e
restaure em nós aquela bondade derivada das graças que o Batismo infundiu em
nossas almas.
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