sexta-feira, 6 de junho de 2025

MATER BONI CONSILII OU NOSSA SENHORA MÃE DO BOM CONSELHO

 





 

Nossa Senhora do Bom Conselho, aliás, mais precisamente Mãe do Bom Conselho – a invocação bem exata é essa – é Mãe considerada enquanto dando um conselho, enquanto dando uma orientação a um filho espiritual d’Ela, a um filho gerado por Ela na ordem espiritual.

O que é um bom conselho?

Todos nós já sabemos isso: o espírito humano é susceptível de erro, de perplexidades muito grandes, e muitas vezes não é capaz, por si mesmo, de atinar com a solução de um problema que tenha diante de si. Ele precisa de um conselho de uma mentalidade mais alta, que veja mais do que ele, e lhe explique uma coisa, lhe diga algo como é, e lhe trace uma diretriz para seguir.

Nesse sentido, nós podemos imaginar o conselho habitualmente como uma norma para a ação. Esse é o sentido corrente da palavra conselho.

E nesse sentido ainda nós podemos dizer que para toda espécie de ações – mesmo as ações puramente interiores, espirituais – Nossa Senhora pode dar um conselho, pode dar uma norma. Está, por exemplo, uma pessoa solitária, com uma perplexidade espiritual muito grande. Por exemplo, continuará ou não continuará a usar tal tipo de devoção, deixará ou não deixará de se abster de tal outra coisa, como fará?... É um problema puramente interior relativo a um fazer que é um mero fazer do espírito, que não se traduz, a não ser por via de consequências, numa operação externa. Mas o homem pode ter perplexidade a esse respeito e tendo perplexidade precisa de um conselho.

O conselho espiritual, o conselho para as dificuldades de apostolado, o conselho para os estudos, o conselho para o trato com os outros, o conselho para tudo. Em todas as circunstâncias o homem precisa do conselho.

 

Necessidade do conselho como norma de vida

Nós podemos mesmo dizer que um dos frutos da Idade Média, da Civilização Cristã, é ter tornado bem clara essa necessidade do conselho como uma norma de vida e até das instituições ocidentais.

Os senhores analisam a primitiva história das monarquias pagãs do Oriente, mesmo das grandes monarquias – Egito, Pérsia, China, Japão –, e os senhores notam que em geral o monarca é um monarca absoluto, que tem o poder de pôr e de dispor dos seus súbditos como entenda, e que não ouve quase conselhos. De vez em quando aparece na história um indivíduo que dá a respeito de uma situação, a um monarca, um determinado conselho. Mas os monarcas terem conselhos, habitualmente, como uma instituição, que eles consultam habitualmente como rotina a respeito das coisas, os senhores não veem. O monarca está no seu isolamento e resolve as coisas por si mesmo, e se lança. Ele de vez em quando pedirá um conselho a alguém, mas não tem aquilo que chamamos Conselho de Estado.

Nós vemos aparecer na Idade Média, pelo contrário, a instituição do Conselho. Quer dizer, o reconhecimento da falibilidade, da imperfeição do espírito dos mais poderosos monarcas, que por causa disso organizam, todos ou quase todos, habitualmente, Conselhos nomeados por eles, mas que são órgãos coletivos, aos quais costumam levar os seus problemas mais importantes, debatem com eles esses problemas em reunião e de onde sai, a solução que o rei aceita ou não aceita. Mas o rei habitualmente resolve em seu Conselho. Quer dizer, reconhecendo a precariedade, a falibilidade do espírito humano, os monarcas então instituem Conselhos para lhes ajudarem a resolver os seus problemas.

Essa ideia, essa pendência, passou da monarquia para outras formas de governo que havia na Idade Média. As repúblicas aristocráticas governavam-se por Conselhos. Por exemplo, o famoso Conselho dos Dez de Veneza, que assessorava o Doge e que tinha um poder enorme. As repúblicas burguesas, as cidades livres da Alemanha, por exemplo, eram governadas por Conselhos, nesse sentido de que o burgomestre era assessorado, e era a expressão de um Conselho eleito pela cidade.

E foi-se assim afirmando o princípio de que ter um Conselho é o complemento natural de todo governo, e que não se compreende que de um modo ou de outro um governo não seja assessorado e não tenha seus conselheiros.

Mesmo quando a forma de governo é como no Brasil, Estados Unidos, por exemplo, – regimes presidenciais em que não há um ministério que exerça o governo independentemente ou mais ou menos independentemente do chefe como é na Inglaterra, - os ministros são pessoas de confiança do Presidente da República, e é o presidente que governa.

 

Se os homens têm dificuldade de encontrar a sua própria via em circunstâncias espinhosas, então deve-se pedir a Deus o conselho

Mesmo assim, os senhores têm visto na história desses governos que as decisões importantes são tomadas pelo Presidente da República numa reunião de ministros. Habitualmente, ouve-se todos os ministros sobre coisas de ocasião e importância excepcional, pelo hábito que passou para uma segunda natureza no Ocidente, de que é em Conselho, por meio dos Conselhos que os assuntos verdadeiramente se resolvem.

Mas se isso é assim, e se os homens devem pedir conselhos uns aos outros, se os homens devem reconhecer que eles por si próprios têm dificuldade de encontrar a sua própria via em circunstâncias espinhosas, difíceis, etc., então é sobretudo verdade que o homem podendo-se comunicar com Deus por meio da oração, a Deus peça o conselho. E deve ser um dos hábitos de nossa vida espiritual, uns dos hábitos de nossa piedade pedirmos conselho a Deus. Pedirmos que Deus Nosso Senhor nos ilumine e nos faça compreender aquilo que nós devemos fazer.

Os senhores conhecem o fato, mais de uma vez mencionado por mim, de São Tomás de Aquino, que quando tinha problemas filosóficos muito delicados, muito difíceis e que não conseguia resolver, introduzia a cabeça dentro do sacrário e ficava ali rezando para o Santíssimo Sacramento, até que viesse a solução por ele desejada. Os senhores estão vendo que ele pedia portanto um conselho a respeito dos estudos a Nosso Senhor Sacramentado.

O mais alto, o mais belo conselho é evidentemente de Deus Nosso Senhor, autor de toda verdade, de todo bem, de toda luz, e a quem nós devemos pedir.

Então esta postura de alma de não só pedir conselho aos outros no campo terreno e natural, mas, sobretudo, de nesse campo natural e no campo sobrenatural pedir conselho a Deus Nosso Senhor, essa postura de alma é a postura católica por excelência.

 

Pedir conselhos deveria ser comum em todas perplexidades

Vemos tantas pessoas que se curam de tal doença, de tal outra, vão a Aparecida, deixam objetos de cera para lembrar a cura, pedem graças de toda ordem e recebem essas graças, e às vezes são graças materiais.

Deus Nosso Senhor, a fortiori, que Se encarnou para salvar as nossas almas, e não para salvar os nossos corpos que a morte vai devorar, Deus Nosso Senhor deseja a fortiori nos dirigir, nos fazer conhecer a verdade e o bem nas matérias espirituais, nas matérias que sejam a direção da vida do homem.

E portanto, essa atitude habitual de, por meio de jaculatórias, pedir conselhos, deveria ser comum, deveria ser corrente em todas perplexidades.

 

Nossa Senhora do Bom Conselho leva a Deus Nosso Senhor nossos pedidos de bons conselhos e é Ela que nos obtém tais graças

Ora, como acontece que Nossa Senhora é a intermediária de todas as graças, nós temos todo fundamento, diante de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, de fazer uma oração considerando que Ela é que leva a Deus Nosso Senhor os nossos pedidos de bons conselhos. E que Ela traz para nós a graça do bom conselho. Quer dizer, aquilo que o Espírito Santo comunica à Ela e que nós devemos saber para nossa orientação.

E então nós entendemos bem o que é a Virgem do Bom Conselho. A Virgem do Bom Conselho é a Virgem por meio da qual nós podemos obter o bom conselho nas nossas aflições, nas nossas perplexidades, nas nossas dificuldades. E este é o sentido da devoção à Nossa Senhora do Bom Conselho.

Aí viria uma resolução prática para nossa vida espiritual: invocarmos muito a Nossa Senhora do Bom Conselho, e não fazermos habitualmente nada de importante sem pedir a Ela o conselho. Mesmo nas coisas pequenas, pedir, porque Nossa Senhora gosta de ser invocada também nas coisas pequenas, nas oportunidades aparentemente secundárias. Nós devemos pedir a Nossa Senhora tudo. Portanto, com frequência. Nós não sabemos resolver uma coisa: "Minha Mãe, aconselhai-me". Ainda que seja uma coisa pequena.

Nós somos envolvidos a todo instante pelas influências da Revolução. Se assim é, haverá conselho melhor do que pedir a Nossa Senhora que Ela nos advirta sempre, no interior da alma, contra as coisas revolucionárias? Nos aconselhe sempre: "Meu filho, aquilo é revolucionário, não aceite; aquilo é heterodoxo, não aceite; aquilo conduz ao mal, é imoral, não aceite".

É preciso tanta sagacidade para a gente se defender contra todas essas influências! Quem melhor pode nos conseguir as luzes, os conselhos, portanto, para isso, do que Nossa Senhora do Bom Conselho?

 

Pedir a Nossa Senhora que nos conceda também os conselhos que não formulamos

Nesse sentido, a invocação de Nossa Senhora do Bom Conselho é idêntica à de Nossa Senhora da fidelidade contra-revolucionária. É por meio d’Ela, por meio das orações d’Ela que nós podemos obter essa fidelidade.

E então eu aqui recomendo muito aos senhores que peçam a Nossa Senhora esse conselho, que sejam habitualmente devotos de Nossa Senhora do Bom Conselho, e que peçam a Ela o conselho interno para suas almas, que é dado pela graça do Espírito Santo, da qual São Paulo diz que é tão profunda que entra até a juntura da alma e do espírito.

E eu quereria que isso não ficasse no ar. Eu quereria que os senhores tomassem uma deliberação, que tomassem o hábito de várias vezes por dia pedir conselho à Nossa Senhora.

Os senhores vejam uma coisa curiosa: quantos dos senhores praticam – e sempre com muito resultado – essa devoção às almas do Purgatório, pela qual lhes pedem que os acordem de manhã cedo, a tantas horas. Se as almas do Purgatório por causa de uma pequena oração nos acordam, nos indicam a hora certa, quanto mais Nossa Senhora que é incomparavelmente superior a todos os santos e, portanto, também às almas do Purgatório? Ela que tem uma ciência de Deus como ninguém tem – ninguém vê a Deus como Ela – que é além do mais Mãe de Deus e Onipotência suplicante!

Quantas vezes pode acontecer que Nossa Senhora nos dê um conselho até sem nós pedirmos?

Quer dizer, podemos pedir à Nossa Senhora que Ela nos dê os conselhos que não pedimos, os conselhos que não nos lembramos de pedir, ou que não se tem vontade de receber. Dizer: "Minha Mãe, fazei-me ter o desejo do bom conselho que Vós julgais conveniente me dar, mesmo numa hora em que eu não perceba que aquele assunto é tão importante que vale a pena pedir".

Quer dizer, pedir para ser aconselhado continuamente por Nossa Senhora.

Bem entendido, bem entendido – eu nem preciso dizer isso – esse conselho no mais das vezes não se dá de modo extraordinário, Nossa Senhora não aparece para dar o conselho. Mas Ela desperta na alma certo pensamento, certa ideia, Ela desvia o espírito para um outro lado, faz notar, de repente, alguma coisa, assim como as almas do purgatório acordam as pessoas de manhã. Elas não aparecem; se aparecessem, eu creio que teriam poucos devotos, porque todo o mundo tem medo de ver – eu sou d’Eles – as almas do outro mundo. Mas elas atuam tão discretamente que a coisa passa. Nossa Senhora, a fortiori, saberá fazê-lo bem.

Por vezes vejo pessoas com perplexidades e tenho vontade de dizer: "Mas meu caro, por que você vem pedir conselho a mim? Você já pediu a Nossa Senhora do Bom Conselho? Não é uma coisa incomparável? Do que adianta eu lhe dar um conselho se Nossa Senhora não reforçar o meu conselho junto à sua alma? Simplesmente pelo valor lógico do meu conselho eu posso muito pouco. Pelo contrário, com o apoio d’Ela pode-se tudo".

Então, eu recomendo isso: peçam continuamente, e os senhores poderão ter uma renovação da sua vida espiritual, da eficácia do seu apostolado, da sagacidade dos seus métodos de ação em todos os campos. Nossa Senhora do Bom Conselho é a Conselheira por excelência, Aquela que sabe tudo, Aquela que pode tudo, e Aquela que quer tudo.

 

A graça do heroísmo tem normalmente como ponto de partida algo que poderíamos chamar de bom conselho

A graça do heroísmo tem normalmente como ponto de partida algo que nós poderíamos chamar de bom conselho. Porque o heroísmo se obtém quando uma alma tem com muita clareza o bem ou a verdade para a qual está se imolando, para a qual vai correr o risco. E não só percebe que aquela coisa é verdadeira e boa, mas percebe o pulchrum, a beleza daquela coisa.

Quando isso brilha muito diante da pessoa, ela é capaz de heroísmos de que não seria capaz quando isto tudo está embaçado. De maneira que o fazer ver isso para se ter o heroísmo necessário, isso é um conselho, porque é um avivamento de horizontes, uma abertura de horizontes, é uma linha de ação virtualmente indicada por Nossa Senhora em determinadas circunstâncias.

Eu vou ser mais terra-a-terra. O senhor imagine um cruzado que vai tomar Jerusalém. Ele está a uma certa distância de Jerusalém, está cansado, um calorão... areias, terras abandonadas, etc. Ele passa por aquilo tudo. De repente, vê Jerusalém. Ele pode ter a seguinte reação de alma: "Agora que eu cheguei, escalar essas muralhas e tomar essa cidade... que aborrecimento!... Uma viagem tão enorme e no fim da viagem uma batalha".

Mas ele pode ter também um lampejo de alma: "A cidade sagrada onde Nosso Senhor morreu! A cidade sagrada onde foi instituída a Sagrada Eucaristia, foi rezada a primeira Missa! A cidade sacrossanta onde está o Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo! Onde Ele ressuscitou! Onde Nossa Senhora morou! Onde Nossa Senhora teve, na cena da Piedade, o seu Divino Filho sobre o colo! Eu não permitirei isso!" Aparece numa maravilha, num lampejo. "Eu vou atacar!" Esse homem exausto vai, escala as muralhas e sobe.

Quer dizer, ele recebeu o quê? Uma iluminação, uma noção especialmente viva daquela magnificência, que no momento fez d’Ele um herói.

O senhor está vendo como o bom conselho pode conduzir ao heroísmo.

Às vezes é de outra maneira. É numa aridez tremenda, em que não se resolve, mas a alma sente dentro dela uma força que diz: "Você está na aridez, mas tem de lutar e lute, porque esse é o seu dever". E a alma resolve, e na aridez dá a carga de cavalaria e derruba o adversário. É um outro modo altamente meritório em que o conselho se faz no fundo da alma, de um modo que a pessoa nem percebe que foi aconselhada, mas em que recebeu uma força extraordinária para uma circunstância extraordinária. É por esta forma que Nossa Senhora do Bom Conselho nos orienta.

 

 (Plínio Corrêa de Oliveira -  "Conferência" de 16 de dezembro de 1975)

 

 

 

 

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO DE GENAZZANO

 




Neste século da confusão, rogai por nós ó Mãe do Bom Conselho

Plínio Corrêa de Oliveira 

A síntese da bela história da devoção a Nossa Senhora de Genazzano, que "Catolicismo" hoje apresenta, é esta:

Numa pequena localidade da Itália a graça faz germinar, em substituição a um velho culto pagão, uma terna devoção a Nossa Senhora sob o título do Bom Conselho.

Séculos mais tarde, um reino valoroso se encontra em triste declínio. Declínio político e militar, por certo, mas também e principalmente declínio religioso. Os católicos albaneses oferecem ao Islã a resistência ineficaz de um povo tornado tíbio. Com isto, a vitória das hostes de Mafoma resulta inevitável. Dois homens fiéis à Virgem se sentem perplexos, e vão ao santuário nacional da Albânia, em Scútari, a fim de implorar à imagem d’Ela que ali se venera um bom conselho: o que fazer, permanecer na nação dominada pelos turcos, a fim de ali servir à Santíssima Virgem, ou deixar a pátria rumo a plagas em que possam viver sem grave perigo para a fé?

O bom conselho implorado lhes foi concedido sob a forma mais estupenda e inesperada. A imagem deixa Scútari, e em pós d’Ela partem os nossos dois albaneses.

A confirmar a autenticidade e o acerto deste conselho, a sagrada Efígie baixa maravilhosamente no local de Genazzano onde se cultuava a Mãe do Bom Conselho.

Daí para diante, a história da Madona transladada de Scútari não foi senão uma sucessão de triunfos. Quer em Genazzano, quer em outras cidades onde reproduções do quadro albanês foram expostas à veneração dos fiéis, as graças de toda ordem se multiplicaram incontáveis. E entre elas o atendimento freqüente das pessoas que, desejosas de um bom conselho, acorrem à Virgem, implorando a graça de uma luz para sua perplexidade.

Entre essas imagens, importa lembrar a que se encontra na cidade de São Paulo, na imponente Capela do Colégio São Luís, dos RR. PP. Jesuítas, pois o modo pelo qual chegou a nosso País - como se narra em outro local desta edição - é verdadeiramente digno de especial atenção.

Antes de prosseguir convém salientar uma peculiaridade da devoção a Nossa Senhora de Genazzano.

Não é possível, com efeito, tratar d’Ela sem pôr em realce uma de suas peculiaridades mais importantes. Muitas das pessoas que recorrem à Virgem diante da Imagem de Genazzano ou de réplicas desta, têm afirmado que o semblante da Senhora lhes "responde" às orações. Não que o faça falando ou movendo-se, o que constituiria manifesto milagre. Mas, sem nenhuma alteração propriamente miraculosa, algo do olhar e da expressão da Divina Mãe toma caráter particularmente vivo e impregnado de maternal alegria quando o fiel é atendido. E é à multiplicação deste favor que em boa parte se deve a expansão universal da devoção a Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano.

Qual a atualidade desta devoção? Sem dúvida, em nossa época tão aflita e conturbada, incontáveis são as almas que precisam, a este ou aquele título, de um bom conselho. Nada de melhor podem elas fazer do que implorar o auxílio d’Aquela que a Santa Igreja, na Ladainha lauretana, invoca como Mater Boni Consilii.

Entretanto, cumpre ponderar que um conselho é de tanto maior valia quanto maior for a importância do assunto sobre o qual versa.

Por isto, supremamente importantes são para cada um os conselhos necessários para conhecer a respeito de si mesmo - dentro da tempestade de trevas do século XX - os desígnios de Nossa Senhora e os meios aptos para os realizar.

Aqui está um primeiro título para se afirmar a particular atualidade da devoção a Nossa Senhora de Genazzano neste século que poderá passar para a História como o século da confusão.

Todavia, se alargarmos nossos horizontes para além da esfera individual, e considerarmos numa perspectiva histórica a crise pela qual hoje passa a Igreja de Deus, não poderemos deixar de ponderar que ainda aqui a humanidade precisa como nunca de um bom conselho da Virgem das Virgens.

Encontramo-nos no ápice de um processo histórico oriundo, na Idade Média, de uma explosão de orgulho e de sensualidade. Desta explosão nasceram nos séculos XV e XVI o Humanismo, a Renascença e a Pseudo-Reforma protestante.

Os vagalhões produzidos por esses movimentos se projetaram da esfera filosófica, cultural e religiosa para a esfera política e social, ocasionando, no século XVIII, a Revolução Francesa ímpia e igualitária. Esta por sua vez se desdobrou ao longo do século XIX em movimentos de índole atéia, laicista e revolucionária, que culminaram na eclosão do comunismo, revolução social e econômica que por sua vez ameaça tragar o mundo inteiro.

No vértice deste processo, a alternativa se impõe: ou sucumbimos ao comunismo como outrora a Albânia ao islamismo, ou renunciamos inteiramente ao orgulho e à sensualidade, extirpando-lhes todos os efeitos quer na vida religiosa, quer na vida temporal, efeitos estes dos quais o comunismo não é senão a conseqüência supremamente lógica e supremamente maligna. Mas a rejeição efetiva e completa de um imenso pecado supõe uma imensa contrição. E uma imensa contrição supõe uma imensa apetência da perfeição na virtude contra a qual se pecou.

Assim, a opção para o mundo moderno é entre um porvir tenebroso, feito das últimas capitulações ante os extremos do erro e do mal, e o abraçar entusiástico da plenitude da verdade e do bem.

Como mover a humanidade - de tal maneira atolada no processo histórico que a vem impelindo há tantos séculos - a empreender a trajetória do filho pródigo rumo à casa paterna?

Sem um possante auxílio da graça, a falar no interior de incontáveis almas, isto não se pode conseguir. Esse bom conselho a ser proferido no íntimo de cada coração para a salvação da humanidade, que melhor modo há de obtê-lo senão implorando à Mãe do Bom Conselho para que, por uma graça nova, converta o bárbaro super-civilizado do século XX? Só assim poderá este, à maneira do bárbaro sub-civilizado do século V, "queimar o que adorou e adorar o que queimou". E só assim poderá ter origem uma nova e ainda mais esplendorosa era de fé.

Esse é o bom conselho por excelência que os devotos de Maria devem pedir para si e para todos os homens nos dias que correm.

Parecerá talvez excessivo, a alguns leitores, que afirmemos ser este o século mais confuso da História. No entanto, entre as múltiplas provas que a asserção comporta, é mister sobrelevar uma, a qual por si só justifica nossa afirmação.

Com efeito, seria difícil contestar que em algum tempo a confusão tenha sido maior nos meios católicos, do que no nosso.

Por certo, houve épocas em que a Igreja pareceu afetada por uma confusão mais grave. Assim, as crises ao longo das quais os antipapas dilaceravam o Corpo Místico de Cristo, ou a luta das Investiduras que cindiu durante muito tempo o Ocidente cristão, lançando o Sacro Império contra o Papado. Mas essas crises, ou eram mais de rivalidades pessoais que de princípios, ou punham em jogo apenas alguns princípios, se bem que básicos, da doutrina católica.

Presentemente, pelo contrário, não há erro, por mais crasso e rotundo, que não procure revestir-se de uma roupagem mais ou menos nova para obter livre trânsito nos ambientes católicos. Pode-se dizer que assistimos em nosso próprio meio ao desfile de todos os erros, faceiramente disfarçados com pele de ovelha, a solicitar a adesão de católicos incautos, superficiais, ou pouco amorosos de nossa Fé.

E, ante essas manobras quantas concessões, quanta falsa prudência, quanto criminoso namoriscar com a heterodoxia! Nesta atmosfera, que já sugeriu a Paulo VI algumas graves advertências, a confusão é tão grande, que em não poucos círculos os católicos zelosos da ortodoxia são mal vistos e suspeitos, enquanto a turbamulta das vítimas dos erros embuçados se porta com a desenvoltura de quem fosse dono da casa! Traçado este quadro, pensamos com afeto e com apreensão nas muitas almas modestas a quem as circunstâncias da vida não permitem maiores estudos religiosos. Quão necessário lhes é o bom conselho de Nossa Senhora, para vencer a confusão! A Igreja pode dizer de Si, analogicamente, as palavras de Nosso Senhor: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo.14,6). Se nos ambientes católicos sopra a confusão, é inevitável que esta se estenda por todos os outros domínios da existência. E na Igreja não pode haver confusão pior do que a dos princípios.

É natural, pois, que afirmemos ser nosso século o século da confusão, e que de nossos lábios se evole para a Mãe de Deus uma súplica: Nossa Senhora do Bom Conselho, rogai por nós, e ajudai-nos a permanecer fiéis ao Caminho, à Verdade e à Vida, em meio a tanto extravio, a tanto embuste e a tanta morte.

("Catolicismo" Nº 208-209 - Abril-Maio de 1968)

 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O HEROÍSMO DE SANTA JOANA D'ARC POR SER INOCENTE, CASTA E VIRGEM

 




            A impressionante história de Santa Joana D’Arc comprova a extraordinária intervenção divina em prol da Cristandade. Há anos que França e Inglaterra estavam em guerra, a famosa “guerra dos cem anos”. Em 1422 morre o rei de França, Carlos VI, mas de tal forma a nobreza francesa estava decadente que, nas exéquias reais, compareceu apenas o duque de Bedford, regente da França em nome do rei inglês. Era uma usurpação do trono francês, uma pretensão descabida. O herdeiro do trono, que na França se chamava Delfim, levantou-se contra tal injustiça e a guerra se reiniciou.

Haviam dois partidos na França, os Armagnacs e os Borgonheses. A facção dos Armagnacs era aristocrática, representando a nobreza feudal e o patriciado urbano. Os Borgonheses, à frente dos quais estava João Sem Medo, aliaram-se aos ingleses, enquanto os Armagnacs eram fiéis ao legítimo sucessor do trono, o delfim Carlos VII. Com o assassinato do Duque de Órleans, em 1407, por adeptos do Duque de Borgonha, a violência atingiu seu auge e a França ficou temporariamente sem rei. Jean Plantagenêt, duque de Bedford, foi nomeado regente do trono francês pelo rei da Inglaterra e foi um dos responsáveis pela execução de Santa Joana D'Arc, juntamente com o bispo Couchon, adepto da tese de "dois reinos e uma só coroa" defendida na Universidade de Paris. Aos poucos os Borgonheses foram pendendo mais e mais para o lado dos ingleses, até que João Sem Medo, vencendo a batalha de Azincourt, oficializou a adesão. Com suborno conseguiu fazer inspirar na Universidade de Paris a tese de uma só coroa para os dois reinos, favorecendo desta forma o rei da Inglaterra. A paz entre as duas facções só ocorreu com o Tratado de Arras, em 1435, entre Felipe o Bom, Duque de Borgonha, e Carlos VII, então já rei da França.

Enquanto a nobreza se enfraquecia e se mostrava impotente para defender o trono, nas camadas mais humildes havia um arraigado e profundo sentimento de amor à dinastia, tão firme como a piedade cristã havia ali se instalado ao longo dos séculos. Principalmente entre os camponeses, a fidelidade ao trono era como se fosse um instinto natural, uma paixão vibrante e pura.

A única legitimidade pertencia a Carlos VII, que deveria ser sagrado, como mandava a tradição, em Reims. Estava o povo francês envolvido por estas convulsas conturbações, agravadas pela guerra, quando nasceu numa pequena aldeia Armagnac do Barrois, Domrémy, a heroína que veio a salvar a nação da catástrofe.

Joana D’Arc era filha do casal camponês Tiago d’Arc e Isabel de Romée, uma autêntica filha do legitimismo mais puro que se arraigara no povo francês, uma camponesa acostumada com a vida dura e cheia de sacrifícios. Fora educada no mais rigoroso espírito católico daquele rústico povo, onde acima de tudo devia imperar a honestidade, o bom senso e, sobretudo, a castidade.

Tinha apenas treze anos de idade quando ouviu pela primeira vez a voz do Arcanjo São Miguel. Ela mesma narra como ocorreu:

“Quando eu tinha mais ou menos 13 anos, ouvi a voz de Deus que veio para ajudar-me a me governar. Na primeira vez, tive medo. E veio essa voz, no verão, no jardim de meu pai, por volta do meio-dia (...). (...) Depois que eu ouvi essa voz três vezes, percebi que era a voz de um Anjo (...). “...Na primeira vez, tive dúvidas se era São Miguel que vinha a mim, e nessa primeira vez tive muito medo. E eu o vi, depois, muitas vezes, até saber que era São Miguel... Antes de tudo, ele me dizia que era uma boa menina e que Deus me ajudaria. Entre outras coisas, disse-me para eu vir em socorro do rei da França... O Anjo me falava da piedade que existia no reino da França”

A partir daquele dia, o Arcanjo fazia-se ouvir à jovem donzela e para ela transmitia suas instruções de como proceder, terminando por convencer os nobres e o rei e, finalmente, vencer os inimigos externos.

Muitas pessoas se equivocam sobre a forma como Santa Joana D’Arc se comportava. Imaginam que ela tinha o temperamento másculo e que, graças a isto, mantinha sua superioridade sobre os homens. Nada disto, Santa Joana D’Arc continuava tão feminina como qualquer donzela de seu tempo. A diferença é que ela estava sendo orientada pelo Arcanjo São Miguel, devido sua pureza e santidade, a intervir nos acontecimentos e fazer mudar o curso da história.

Inicialmente, ela pediu para ser levada à presença do Delfim, pois tinha coisas muito importantes a lhe dizer. A jovem donzela deveria ter pouco mais que 16 anos. Tanto insistiu com os homens que rodeavam o herdeiro que, finalmente, lhe deram crédito e foi recebida. São Miguel a orientava e dizia sempre o que fazer ou o que dizer nas horas apropriadas. Para ser enganada, colocaram o Delfim vestido da forma mais simples e puseram no lugar dele um outro. Santa Joana D’Arc não se enganou, orientada por São Miguel dirigiu-se diretamente ao Príncipe, futuro Carlos VII, embora nunca o tenha visto antes. Isto causou pasmo a todos, e a partir daí tudo o que ela dizia passou a ser acatado pelos nobres que rodeavam o Delfim, e às vezes por ele mesmo.

Quando a Santa conseguiu convencer os franceses de que com “bonnes buffes et bons torchons” e somente “pour la pointe de le lance” – bons talhos e bons golpes, e pela ponta da lança – se poderia vencer o inimigo, a moral das tropas se elevou e as levou à vitória. Sua colaboração foi aceita pela corte de Burgos (sede provisória do reino francês), e aí então deram-lhe uma casa onde pudesse ficar reservada, isolada dos demais, um escudeiro e dois pajens para lhe armar, um confessor, um capelão e dois arautos. Era o seu “staff”.

Pouco usou Santa Joana D’Arc das armas, se é que alguma vez fez uso delas. Há historiadores que falam de seu ímpeto guerreiro, tendo usado da espada para defender-se e para atacar, chegando a matar inimigos. É possível. Mas o que ela mais se utilizou foi de seu profetismo, dom dado por Deus para comandar as tropas, e as orientações dadas pelas vozes de São Miguel. Transmitia ela tal entusiasmo aos soldados, que eles partiam para a guerra motivados e alegres.

Para alguns pode ser difícil imaginar como é que uma mulher, acima de tudo uma inexperiente donzela que nunca pegou em armas, poderia comandar um exército. Vejamos como se deu sua primeira vitória militar, narrada (com abreviações nossas) por um escritor moderno:

 

O cerco de Órleans

“O cerco de Orleães se processava. Aumentando a confiança inglesa, em 12 de fevereiro de 1429 ocorria a “jornada dos arenques”. Compreensivelmente, uma correspondente inquietação se espalhava entre os assediados, com os efeitos habituais do cerco se fazendo sentir pouco a pouco, traduzidos sobretudo por uma intensificação progressiva da penúria. Quando Joana d’Arc conseguiu, em 29 de abril de 1429, com víveres e um reforço considerável em homens de armas, furar o bloqueio, já os habitantes da cidade estavam ao corrente de sua aparição”...

“...Na verdade, o assédio inglês não tinha conseguido se constituir num bloqueio total... Ele consistia essencialmente no controle das bastilhas situadas na parte externa das pontes que conduziam às diferentes portas da cidade e situadas sobre o fosso de proteção que a rodeava, formado com as águas do próprio rio. Os efetivos previstos para a operação, dado o seu vulto, já não era dos mais numerosos, algo na ordem de 4.300 homens, cifra que nunca chegou a ser atingida. A sua dispersão em vários pontos representava, portanto, um ponto a favor dos franceses em caso de investida...”

Incentivando os soldados, indo na frente com bravura e audácia, Santa Joana d’Arc conseguiu elevar a moral da tropa e motivar os comandantes a partir para o ataque, de surpresa, apanhando os ingleses desprevenidos. Temeroso por ela, o comandante La Hire não permitiu que a mesma fosse na vanguarda e sim na retaguarda. Mas tudo ocorreu como a Providência desejava, pois logo a retaguarda se transformou em vanguarda, já que os ingleses, refeitos da surpresa, resolveram atacar por aí. Vendo-se em situação difícil, os ingleses recuaram e se concentraram na fortaleza de “La Tourelle”. A situação se inverte e os franceses é que passam a assediar os ingleses na fortaleza. Os comandantes, ainda meio moles e indecisos, querem suspender o cerco, mas Santa Joana d’Arc insiste. O conde de Dunois declarou em depoimento, 25 anos após, que só não suspendeu o assédio por insistência de Santa Joana d’Arc.

Durante a noite, o comandante inglês, lord Talbot, retira suas forças e levanta definitivamente o cerco de Órleans. Como se vê, não há um só relato de choques guerreiros de Santa Joana d’Arc com soldados inimigos, parece que ela não chegou sequer a manejar a espada, pelo menos neste episódio, embora o fizesse se fosse necessário, talvez auxiliada pela destreza e pela força de São Miguel. No entanto, sua presença, seu entusiasmo, sua insistência em partir para a luta, era o ponto forte, era a alma viva do exército francês. Fala-se de um episódio em que ela, de espada levantada, avançou sozinha gritando ordem de “atacar”. A tropa, atônita, não teve outro recurso senão segui-la, e vencer. No entanto, não se comenta se ela deu um só golpe de espada, apenas foi na frente para animar as tropas que logo a seguiram.

Outro depoente, o duque de Alençon, se mostra categoricamente convencido da capacidade militar de Joana d’Arc, realça sua habilidade em dispor as tropas no terreno da luta, encorajando-as a batalhar com denodo, e sublinha particularmente a sua habilidade na utilização das peças de artilharia. Como é que a donzela de Domrémy havia conseguido em pouco espaço de tempo adquirir tais qualidades e experiências? Evidentemente que tudo ela fazia por inspiração e orientação direta do Arcanjo São Miguel. Não há outra explicação para o fenômeno.

 

O confronto de Patay

Procuremos, mais uma vez, ouvir o relato categorizado do historiador que detalhou os fatos posteriores ao cerco de Órleans:

“Levantado o cerco de Órleães, mais uma vez por inspiração da Donzela, resolveu o comando encarregado de sua defesa prosseguir suas ações com uma operação de limpeza do Loire, desembaraçando-o das guarnições inglesas que ocupavam fortalezas situadas em suas numerosas pontes. Todavia, em seu transcorrer, transformou-se essa atividade numa perseguição pródiga em miúdos incidentes, em cujos detalhes não podemos entrar, das forças inglesas que, comandadas por Talbot, se retiravam de Orleães e que esperavam a junção de importantes reforços sob o comando do vencedor da “jornada dos arenques”, Sir John Fastolff. Na liderança francesa se destacavam o duque de Alençon; o “marechal de campo”, sire de Boussac; o “bastardo de Orleães”; o condestável, sire de Richemont, então em desgraça e cuja adesão só foi aceita depois de muita hesitação; o sire La Hire, além da própria Joana d’Arc. Como todos comandavam companhias mais ou menos numerosas, conclui-se que se tratava da mobilização do grosso dos recursos em combatentes dos partidários do Delfim”.

“A notícia de que as tropas de Talbot já tinham recebido a junção das de Fastolf provocou reações de hesitação dos chefes franceses quanto à conveniência de procurar um confronto, cabendo mais uma vez a Joana d’Arc convencê-los de que os ingleses absolutamente não eram imbatíveis. Decidida a busca do choque direto, organizou-se então uma vanguarda sob o comando de La Hire, composta de uns 1.500 homens a cavalo para tentar alcançar a força inimiga em retirada para fustigá-la e obrigá-la à formação de combate, entretendo-a até a chegada do grosso das tropas. Apesar de seus veementes protestos, foi a donzela mantida na retaguarda, reservada para a ação principal, que acabou praticamente por não ocorrer, frustrando a sua participação mais ativa do único combate de envergadura do período de sua atuação. Do lado dos adversários, os dois comandantes não se entendiam, com Talbot mostrando-se ansioso por uma desforra imediata do insucesso de Orleães, enquanto Fastolf propugnava a continuidade da retirada, até a junção com novos e importantes reforços então sendo levantados, mais consideráveis do que os representados pelo contingente que o acompanhava. Prevaleceu o último de ponto de vista e seu defensor foi encarregado de comandar a vanguarda, constituída pela maior parte dos efetivos, enquanto seu colega, na retaguarda, supervisionava a retirada com um grupo menor de combatentes”.

“O choque entre a “vanguarda La Hire”, como ela passou a ser designada após seu inesperado sucesso, e a retaguarda de Talbot se deu quando as forças ingleses se embrenhavam por um bosque situado nas proximidades de Patay e uma série de fatores beneficiou os perseguidores. Ao contrário do ocorrido em Crecy e Poitiers, o terreno apresentava-se para eles como uma descida, mas os arbustos que proliferavam na área impediam que divisassem os retirantes. Foi então que, providencialmente, surgiu um cervo entre as duas tropas. Perseguido pelos franceses, ele foi se chocar com a retaguarda inglesa, cujos gritos advertiram da proximidade dos inimigos, os quais, sentindo-se descobertos, procuraram ás pressas abrigar-se atrás dos arbustos, com os arqueiros preparando-se para lá fincar suas já tradicionais estacas protetoras. Mas não lhes foi dado tempo para alinhar-se convenientemente pois, percebendo o quando lhes eram favoráveis as condições de luta, comandou La Hire uma investida fulminante. Enquanto Talbot procurava desesperadamente organizar uma disposição defensiva eficaz, o pânico tomou conta do outro grupo que, na circunstância, de vanguarda, transformou-se em retaguarda. Constatando a impossibilidade de controlar seus homens e instado por seus imediatos, Fastolf não tardou a aderir ao movimento de fuga que se alastrava, decisão que lhe valeu – além de punições imediatas e de uma desgraça transitória – a transformação, junto à posteridade, em personagem central, como um poço de vícios e fraquezas, com o nome alterado para Falstaff, de numerosas farsas e óperas bufas”.

Embora a maioria dos cronistas não falem explicitamente de lances em que a Santa se envolveu nos episódios violentos da guerra, o entusiasmo dos franceses cresceu porque ela estava lá presente. Se assim agiram os soldados e comandantes, indo de encontro valorosamente aos ingleses, é porque a Santa havia insistentemente proclamado a necessidade de sempre atacar sem dar oportunidade ao inimigo de se organizar. La Hire terminou a batalha matando mais de 2 mil ingleses e fazendo mais de 200 prisioneiros.

Após triunfo tão glorioso, cumpria agora sagrar e coroar o rei de França, Carlos VII. A campanha pela sagração do rei durou poucos dias, de 29 de junho a 16 de julho, quatro meses após a aparição de Joana d’Arc na corte de Burges. Estava cumprida sua missão.

O restante da vida da Donzela de Domrémy foi marcado pela intervenção da Divina Providência que lhe preparou o martírio e a santificação. Aos poucos foi sendo abandonada pelos seus amigos, pelo rei, até ser virtualmente entregue e presa pelos inimigos da França. Levaram-na a um iníquo julgamento, sob o pretexto inquisitorial de combate à bruxaria, e consumiram sua vida numa fogueira. Estávamos a 30 de maio de 1429.

Oitenta anos depois, em 1509, Henrique VIII subia ao trono na Inglaterra e arrastava aquela Nação para as garras odiosas do Protestantismo. Se a França estivesse sob o poder daquele indigno e infiel monarca, talvez não estivesse permanecido católica até hoje, ou talvez se tivesse reacendido uma guerra tão tremenda que teria arrasado o país.

A reabilitação de Santa Joana D'Arc durou séculos. No decorrer de todo o restante do século XV, era lembrada apenas entre o povo mais humilde da França, de modo especial por devotos do interior e poetas populares. O fervor católico em torno da heroína nacional ficou retratado, nesse tempo, apenas por uma poetisa, Cristina de Pisan. Cem anos depois, surgiu um poema épico de Chapelain, o qual serviu (no século seguinte à sua publicação) de inspiração ao ímpio Voltaire em suas sátiras malditas contra a Igreja. Essas injúrias de Voltaire, publicadas em 1762 já quase no fim de sua vida, mostra a que ponto chegou a impiedade, que tinha o visível intuito de ridicularizar a sociedade sacral do Ancien Regime. E foi exatamente durante o período da Revolução Francesa, quando precisaram reacender no povo o “patriotismo” contra as supostas invasões estrangeiras, que se realizou sério estudo por Clément de l’Averdy para se divulgar a história verdadeira de Santa Joana D’Arc. A partir daí foi crescendo entre o povo francês a veneração pela Santa, embora já houvesse forte devoção por ela em várias partes do interior do país.

Auscultando o sentimento de devoção popular, surgiram depois vários resumos históricos, poemas, e até romances históricos, como do alemão Schiller, dando universalidade à devoção que antes era apenas francesa. Finalmente, Santa Joana D’Arc foi canonizada no início do século XX no pontificado de São Pio X.

 

quinta-feira, 29 de maio de 2025

UM MEDIEVAL VISITA O SÉCULO XXI

 




 

O pequeno Rivière era muito meditativo, e por amar muito a Religião e a Pátria sonhava frequentemente com as duas. Consternava-lhe ver quão decadentes viviam as pessoas: sua época, o século XIII, já era profuso em costumes e ideias revolucionárias. Na cidade em que morava as pessoas muito comumente procuravam deleitar-se com os prazeres da vida, e tudo faziam para evitar qualquer sacrifício, dureza, cruz, sofrimento. E assim, muitos riam folgadamente, passeavam despreocupadamente, viajavam a procura de aventuras e novidades e, sobretudo os jovens, tinham como objetivo de suas vidas não mais o heroísmo e sim o romantismo amoroso.

E o jovem pensava: aonde vai dar tudo isto? “Se continuarem assim – dizia -, abandonando o dever pela busca do prazer, que restará de nossa juventude? Que será de nosso futuro?”

O sacrifício, antes tido como decorrência natural do pecado original, agora passa a ser desprezado a qualquer custo: deste modo, as roupas, as modas, os costumes, as preferências de todos, tudo enfim, tendia a caminhar para a gostosura da vida. E o garoto franzia o seu semblante, dia e noite, presenciando cenas, ouvindo conversas, vendo fatos que contradiziam, embora com pouca ênfase em alguns casos, todos os princípios cristãos para os quais houvera nascido e criado.

E foi assim que, certa noite, Rivière sonhou. Era um sonho bem diferente dos que costumava ter. Foi algo muito inusitado para ele. Em seu sonho ele se encontrava num mundo completamente diferente. Achava-se num futuro bem distante de seu tempo, quase oito séculos após. Em sua época já se falava que haveria um futuro cheio de paz e tranquilidade. Mas, na realidade, o que ele presenciava de paz em seu sonho era completamente diferente do que as pessoas imaginavam em sua época. Ele ficou muito chocado com o que viu:

- Que lugar estranho! – pensava. Para que tanto rebuliço? E quantas pessoas juntas! Quanta multidão a caminhar de um lado para o outro! Por que será que estão assim reunidos andando ao léu sem destino? Não vejo ninguém chamando-os para alguma batalha, nem tampouco para alguma peregrinação religiosa, e no entanto eles andam com pressa, embora sem rumo e sem um objetivo definido...

Repentinamente foi abordado por alguém que o observava:

- Olá, rapaz! Não está sentindo calor? Ou está vindo do frio?

- Calor? Que calor? Nós geralmente sentimos muito calor quando estamos empenhados numa batalha – sentimos o calor da luta. A que calor está se referindo?

- O calor do tempo, ora essa! Não ver que o sol está a pino? Por que não tira estas roupas pesadas? Refresque-se!

- Refrescar-me? Em minha terra nós nos refrescamos quando estamos cansados após dura batalha ou renhido trabalho, mas neste caso entramos em casa e nos recostamos a um leito.

- Não me diga que em sua terra as pessoas usam estas roupas pesadonas em pleno verão, suando deste jeito... é verdade? Se for assim, de que terra você veio?

- Olhe, amigo, antes do desconforto do meu corpo está a paz de minha alma, e porque a prezo muito é que procuro vestir-me dignamente; quanto ao corpo, porém, não é verdade que estou suando mais do que o senhor, nem tampouco sentindo mais calor...

- Pode chamar-me de você mesmo, pois eu não sou senhor. Quero ver você provar o que disse: como posso estar suando ou sentindo mais calor que você se uso roupa leve e fina?

- É simples: o calor não vem diretamente para o meu corpo, pois o mesmo está protegido pela roupa. Quanto ao senhor, verifique que nos lugares onde a roupa não cobre, ou protege menos, o suor é mais intenso. Se quer um exemplo melhor, veja aquele palacete quadrado ali defronte, onde várias pessoas estão vestidas apenas com alguns trapos e sendo servidas por alguns lacaios muito bem vestidos. Veja... ali em frente, senhor.

- Já disse que não sou nenhum senhor. Chame-me apenas de você. Estava se referindo àquele hotel quando mencionou “palacete quadrado”? As pessoas ali que você diz usarem trapos nós chamamos de turistas e o que denomina de “lacaios” nada mais são do que os garçons que os estão servindo.

- Turistas? Garçons? O que vem a ser isso?

- Ah, que ignorância! Turistas são estas pessoas que vivem viajando e se hospedando em hotéis, isto é, hospedarias, com piscinas e outras diversões. E garçons são estes homens que lhe servem bebidas e comidas enquanto se divertem. Vamos lá, que quer dizer sobre o calor que estão passando ali?

- Não importa como são chamados, pois, na realidade trata-se de lacaios servindo a seus senhores. Veja que os chamados “garçons” estão todos bem vestidos, com roupas “pesadas” como falou, alguns até de gravatas, enquanto que os “turistas” estão vestidos apenas com alguns trapos de panos. No entanto, não se vê um só garçom com calor e suando, enquanto entre os turistas há alguns que até estão se abanando de tanto calor.

- Nunca tinha notado isso. Como se explica?

- É que o calor vem direto para o corpo dos mal vestidos, que estão sem a proteção das roupas, enquanto que os garçons têm o corpo protegido pela roupa e sofrem menos os efeitos do tempo. Afinal, como se chama o senhor?

- Por que teima em chamar-me de senhor?  Veja que não sou tão velho assim. Para nós o termo senhor significa velhice, decadência, enquanto “você” é um tratamento mais igualitário e denota juventude. Deixemos isso de lado. Diga-me de onde veio e seu nome.

- Meu nome é Rivière: como vê sou jovem ainda, mas mesmo assim já estou me preparando para ser armado cavaleiro pelo meu senhor, o grande duque de Lyon. Venho sendo adestrado há bastante tempo pelo duque. Por enquanto estou sendo apenas seu pajem, mas ele me prometeu...

Rivière foi interrompido por uma estrepitosa gargalhada. Após breve silêncio, o estranho falou:

- Pois meu nome é Estrofe do Pé Quadrado e tudo o que você está dizendo bem demonstra sua insanidade mental. É pena, tão jovem e já um tanto desmiolado...

- Ah,é? Pois fale-me um pouco do senhor: quem é, de onde veio, o que faz aqui e o que pretende na vida em seu futuro.

- Apesar de não gostar que me chame de senhor, pois isto me aborrece, vou lhe falar um pouco de minha pessoa. Como disse, meu nome é Estrofe do Pé Quadrado, um nome estranho realmente mas muito do agrado de meu pai, que era poeta: como nasci aleijado deste pé esquerdo, ele por ironia e irreverência colocou-me tal nome. Hoje em dia, é bom que saiba, as pessoas usam muito de ironia e irreverência.

- Que horror! Ironia e irreverência – que absurdo!

- Por que se espanta? Saiba que vivemos numa época em que tudo caminha para a irreverência. E a ironia também está muito em voga. Como é lá na sua terra?

- Pois em minha terra, ou em meu tempo, os nomes das pessoas são postos conforme determinadas tradições religiosas ou de família, geralmente em homenagem a santos nossos protetores. Ao contrário, nós primamos pela reverência e respeito ás pessoas. Respeitamos muito a dignidade da pessoa humana. Por isso o tenho chamado de senhor.

- Pelo que vejo você não é deste mundo: onde nasceu? Em que época?

- Como já disse, sou de Lyon, França. Nasci em 1294, portanto, no final da Idade Média.

- Vou acreditar no que diz, somente para ver até onde quer chegar. Sendo assim, encontramo-nos, eu e você, nesta movimentadíssima avenida de Nova Yorque, conversando sobre nossas terras ou nossas eras históricas, sendo eu deste século XXI e você da Idade Média – uma diferença de quase oito séculos. Na realidade, estou aqui de passagem.

- Turista também?

- Um pouco de turista, mas muito mais de comerciante, pois venho sempre aqui fazer compras.

- Nasceu em que país?

- Sou brasileiro, nasci em São Paulo. Aqui estou a negócios, e você?

- Não sei como cheguei até aqui. Tudo é muito estranho, estou confuso e perplexo. Não entendo certas coisas que estou presenciando. Por exemplo, o que são aqueles bólides luminosos andando sobre caminhos negros lá embaixo?

- São veículos, espécie de carruagens de seu tempo, mas movidos por si mesmo, que chamamos de automóveis. As estradas negras chamamos de auto-estradas, e a cor escura é devida ao breu ou asfalto de que são feitas.

- E naquelas ruas,  para que tantas cordas esticadas naqueles postes?

- São fios elétricos. Através deles corre energia elétrica para acender as luzes e mover as máquinas e aparelhos elétricos em geral.

- E por que as pessoas andam assim tão confusamente pelas ruas? Veja quanta multidão andando ao léu sem destino... quanta balbúrdia, e como se vestem de maneira ridícula!

- As pessoas que você vê estão andando pelas calçadas, pois se andarem pelas ruas podem ser atropeladas pelos carros. Quanto às roupas,  não vejo nada de ridículo nas que as pessoas estão vestidas hoje em dia: ridículo está você aí com este jaquetão grosseiro!  As roupas modernas são leves, alegres, poucas pra não fazer calor, a fim de que as pessoas se sintam mais á vontade e livres, acabando com aquela ideia de sufoco que havia antigamente. O importante é a liberdade, que começa pelos movimentos do corpo.

- Mesmo que esta liberdade leve a pessoa para a imoralidade?

- Imoralidade? Nós não sabemos mais o que é isso: há muito tempo que não existe mais moral em nosso mundo.

- Não sei como pode haver uma sociedade onde não haja respeito pela moral. Como é, então, o relacionamento entre as pessoas? Há dignidade? Existem leis superiores para serem cumpridas e manter a paz? Há também alguns costumes que levem as pessoas a um mútuo respeito? Tanta liberdade não acaba suprimindo alguns direitos como, por exemplo, o da privacidade?

- Chega de tanta pergunta. Estou gostando agora mais da conversa porque esqueceu-se de chamar-me de senhor. Vamos em frente. Nós baseamos nossa convivência social, meu rapaz, apenas na luta pela sobrevivência. Ou então, pelo dinheiro, ou pela posição social. Somente isto faz com que as pessoas andem se respeitando uns aos outros. Por causa da posição social respeita-se o delegado, o juiz, o prefeito, o governador; por causa do dinheiro respeita-se o gerente de banco, o financista e o homem de negócios, como o comerciante ou o industrial. A dignidade só existe para quem tem dinheiro e posição social. E todos assim gozam de liberdade, vivendo somente para este fim: a luta pela sobrevivência.

- Ah! Agora entendo porque não quer que o chame de senhor. Neste seu mundo quem não possui dinheiro e posição social torna-se um pária. Não há respeito pelos pobres. Onde está a dignidade do homem como filho de Deus? Meu Deus, que horror!

- É o século XXI, meu chapa! Nós vivemos hoje a lei da selva: não a selva da floresta, mas a selva de pedra das grandes cidades, onde tudo converge para esta luta de que lhe falei. Quem não vencer neste mundo fará parte da escória e para este nossa sociedade tem reservado apenas alguns. cortiços, certas favelas, um submundo terrível, pois não há outra saída. Quanto aos demais, os que conseguirem se superar e vencer na vida, gozarão felizes a doçura do “bom viver”, com automóveis e aviões de luxo, viagens turísticas, luxuosos hotéis de veraneio e clubes com piscinas super-confortáveis. É a vida, meu caro! Alguns têm que penar para outros gozar!

- Como é triste teu mundo.

- Triste? Você está louco! Dê uma olhada nestas ruas e veja quantas casas de diversões e entretenimento irá encontrar. Aposto em que em sua terra, ou em seu tempo, nada disso havia.

- Não vejo tais diversões como fruto de uma verdadeira alegria. Não acredito que depois de tanto frenesi as pessoas não se sintam com a consciência pesada.

- Como é que a consciência pode ficar pesada?

- Pode ficar pesada e doer, sabendo-se que o resto do mundo pena muitas misérias e  há muita injustiças a corrigir, enquanto se diverte e se goza a vida de uma forma assim tão despreocupadamente.

- Não, meu caro, nós não temos problemas de consciência. Encontramos na vida moderna vários recursos com que possamos abafar a consciência. Procuramos sempre a fuga da dor, principalmente disso que se chama “dor da consciência”.

- Como é feito isso?

- Simplesmente não nos preocupamos com os outros! É cada um por si. E agindo assim não há como a consciência possa doer, ela parece nem sequer estar viva.

- Entendo. Gostaria de deixar patente, no entanto, que isto não lhes traz uma autêntica alegria. Não pode ser autêntica uma alegria que procura abafar a consciência ao ponto de deixá-la quase morta. A verdadeira alegria está no interior de cada um, onde deve morar com toda a força nossa consciência. Só pode ser verdadeira e autêntica esta alegria quando, ao nos divertirmos, a justiça, a paz e a união campearem ao nosso redor. Se o homem se diverte e goza, mas seus irmãos tudo sofrem, esta alegria é falsa. Mais ainda se a consciência não desperta e não lhe chama a atenção para a realidade que o cerca.

De repente, ambos percebem que há uma grande discussão numa rua onde se aglomerava pequena multidão. Perguntaram a um transeunte, tendo o mesmo dito que se tratava de um problema corriqueiro, uma briga por causa do lugar na fila.

- Como é isso? – pergunta Rivière – uma briga por causa de lugar na fila?

- Sim, isso ocorre com frequência hoje em dia. O sujeito está numa fila qualquer, ou para fazer uma compra, ou para ser atendido num banco, ou mesmo para embarcar num transporte, e de repente alguém “fura” a fila, isto é, passa na frente do outro. E daí surge a briga, pois o que está na frente não suporta ver o outro lhe passar na frente. É assim também na sociedade, de um modo geral, pois ninguém suporta ver outro passar na sua frente, e muita gente briga por causa disso.

- Mas, brigar por causa de um lugar numa fila?

- Sim, é um direito de quem estar na fila ter seu lugar respeitado – se alguém entra na frente está ferindo um direito...

- Oh mas que direito mais bobo? Como é que se briga por causa de uma coisa tão banal?

- No seu tempo ninguém brigava na fila?

- Não era costume haver filas no meu tempo, a não ser para se receber a Sagrada Comunhão, na Santa Missa. E aí, o normal é o contrário: as pessoas fazem questão de ceder seu lugar a outras.  Trata-se de um direito tão secundário, tão pequeno, que a gente pode ceder a outro sem qualquer dificuldade. Aliás, aprendemos que ser educado consiste exatamente em ceder alguns pequenos direitos nossos a outras pessoas. Se causam incômodos é para que nos acostumemos com eles.

- Já vi que você é um filósofo. Mas nosso mundo não vive mais de filosofia. Voltando ao assunto anterior, diga-me, como é que as pessoas se divertiam em seu tempo?

- Era algo muito diferente do que chamam hoje de diversão. Tínhamos naquele tempo cavalgadas, caçadas, jogos de armas, todo e qualquer passatempo era feito para aperfeiçoar o caráter das pessoas. Tudo era muito honesto e tão natural que a alegria se externava espontaneamente.

- Dir-lhe-ei o mesmo: como poderia ser verdadeira esta alegria em seu tempo se haviam guerras, injustiças praticadas pelos nobres, violência contra os pobres, etc?

- Era verdadeira nossa alegria porque a paz campeava em toda a sociedade e a justiça era aplicada em todo o corpo social. Haviam temporários rompimentos de paz, haviam alguns princípios de justiça feridos, mas logo, logo, eram corrigidos e reparados, pois haviam mecanismos sociais para reparar todos estes males, que sempre ocorrem entre os homens. Enquanto seu mundo é voltado para dentro de cada um, completamente egoísta, sem pensar senão no gozo e no prazer pessoal, o nosso, pelo contrário, tinha filosofia de vida completamente contrária: praticamos a caridade, amamos ao próximo como a nós mesmos e por amor a Deus, vivemos da abnegação e do sacrifício, temos cavaleiros que vivem para a proteção dos mais fracos, os pobres, os órfãos e as viúvas, nos preocupamos mais com a felicidade dos outros do que com a nossa. E isto nos torna mais felizes ainda.

- Pode ser verdade, mas não acredito no que diz. Não acreditamos, homens do século XXI, mais em ninguém. Para nós todos os homens são egoístas, interesseiros e ladrões. Todos são filhos do pecado e aqui pecam, alguns secretamente, os hipócritas, e outros abertamente, os sinceros. Não acreditamos mais em honestidade, em abnegação desinteressada, coisas do tipo amor ao próximo, não acreditamos mais em virgindade, etc. Pergunte por aí e não vai encontrar mais nenhum rapaz ou moça que saiba o que é castidade.

- Volto a repetir: como é triste o teu mundo! Nunca imaginaríamos que a busca desenfreada do prazer levasse o homem a tal decadência.

- Pois é: assim como não acreditamos no homem de nosso tempo, também não acreditamos no do seu. Acho que não é verdade que as pessoas de sua época eram abnegadas, desinteressadas, como dissestes. Pelo contrário, acho que eram todas interesseiras, egoístas e exploradoras umas das outras. Foi por causa delas que chegamos ao grau de miséria humana ainda existente no mundo atual.

- Seria impossível a construção da Civilização Cristã, palpitante na época medieval, sem que houvessem homens assim como lhe falei. Veja as catedrais góticas: quais interesses egoístas levariam os homens a construí-las? Veja as cruzadas à Terra Santa: que interesses pessoais e egoísticos levariam os homens a enfrentar uma guerra tão longínqua, sem qualquer objetivo expansionista ou de riquezas? Veja também os mosteiros, construídos em quantidade imensa: quais interesses egoístas em construir locais de oração, onde alguns se enclausuravam durante toda a vida, no mais completo recolhimento? E isto foi, meu caro senhor, o ponto alto da Idade Média.

- Já ouvi falar de algo assim, mas acho que tudo não passa de lendas.

- Então leia os compêndios de História, pesquise, procure conhecer o  período histórico de que falamos. O senhor precisa vencer sua descrença, e acreditar pelo menos na História de seus antepassados, que não são lendas, mas fatos que ocorreram em locais determinados com pessoas reais, e estão devidamente documentados. Além do mais, tanto as catedrais como os mosteiros e outros monumentos estão ainda de pé para atestar perante as gerações futuras  o que foi a Idade Média na alma de nosso povo.

- Por que continua me chamando de senhor?

- Porque assim o manda o respeito que tenho por sua dignidade, de ser dono de si, de deter o livre arbítrio e ser livre como deve ser todo filho de Deus. Nós nos chamamos de senhor por causa disso, e o senhor por que me chama de você o tempo todo?

- Porque somos todos iguais e este tratamento nos nivela, não dar a ideia de diferença e desigualdade. Nele não há destaque, não há distinção. Você é qualquer um, é igual a outro qualquer...

- Mas, não é verdade. Nós não somos qualquer um: somos filhos de Deus e detentores da dignidade própria desta condição. Além do mais, não somos iguais, somos completamente diferente e desiguais uns dos outros. Por isso, é necessário que sejamos tratados de forma diferente.

 

·                     *                      *                      *                      *                       *

 

 

 

Os sinos tocam pausadamente. As badaladas vão se sucedendo harmoniosamente, alternando sons graves e agudos de diversas igrejas. “Não, não pode ser – pensa Rivière – estes sinos não podem estar tocando no meio desta babilônica cidade. Estes toques me fazem lembrar meu mundo, minha cidade, minha querida Idade Média do século XIII e não no inferno desta babel”.

Sim, era verdade, os sinos da catedral e das outras igrejas de Lyon estavam tangendo. Logo, Rivière percebeu que seu sonho era um pesadelo. Levantou-se lépido da cama, pois não queria chegar atrasado à Santa Missa. Além do mais, o duque o estava esperando como sempre, e dormira além do normal. Ao sair, porém, na rua, ouviu certo murmúrio na praça. Eram comuns desde algum tempo aquelas azáfamas de vendedores que vinham de outras cidades. Um deles oferecia livros romanescos da cavalaria decadente: “O cavaleiro que salvou a princesa da prisão do castelo!” – gritava oferecendo seus cordéis. Era o título da obra. Alguns compravam, embora poucos soubessem ler.

Rivière vendo tudo isso, considerou pensativo:

- E pensar que tudo começou por aí. Estou presenciando o início do processo revolucionário em tudo o que se passa na minha cidade, cujo apogeu acabo de contemplar num terrível sonho que tive.

Soube de notícias do movimento renascentista que já se iniciara, uma tentativa de restaurar o mundo pagão depois que os grandes santos e doutores da Igreja haviam sepultado no pó da História aquelas velhas filosofias de vida que tantas misérias haviam produzido na humanidade antiga. Depois que a Igreja havia extirpado a escravidão, depois que as ciências, as artes, a cultura de modo geral começavam a tomar um impulso cristão e sadio, depois, principalmente, que predominava na sociedade católica um salutar convívio social e surgiam estudos para equacionar problemas seculares, os homens então começaram a querer retornar ao mundo romano-helênico e outros já decaídos.

E, aproveitando a ocasião, rezou algumas ladainhas e rosários pelo homem do século XXI. Pois, que solução poderia dar para problemas de tais magnitudes? Será que eles acreditariam, se lhes dissesse que estavam caminhando para aquela confusão vista em sonhos em época tão distante?

E o homem do século XXI? Seria ele capaz de sonhar como seria o futuro da humanidade, sete ou oito séculos após tanta decadência?

 (Extraído de "Choque de Mentalidades" - págs. 136/142 - séries de contos inéditos de minha autoria sob temas contrarrevolucionários)