(Comentários
de Dr. Plínio sobre a Santíssima Virgem
Maria – 18)
O Evangelho referente a este acontecimento é
o seguinte: São Lucas:
“E, (estando Isabel ) no sexto mês, foi
enviado por Deus o Anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma
Virgem desposada com um varão que se chamava José, da tribo, ou melhor, da casa
de David. E o nome da Virgem era Maria. E, entrando o Anjo onde ela estava
disse-lhe: Deus te Salve, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu
entre as mulheres.
E Ela, tendo ouvido estas coisas,
turbou-se com as suas palavras e discorria pensativa que saudação seria essa. E
o Anjo lhe disse: Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus; eis que
conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado o
Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David; e
reinará eternamente na casa de Jacó; e o seu reino não terá fim.
E Maria disse ao Anjo: Como se fará isso,
pois eu não conheço varão? E, respondendo o Anjo, disse-lhe: O Espírito Santo
descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. E, por
isso mesmo, o Santo que há de nascer de ti, será chamado Filho de Deus. Eis que
também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice; e este é o sexto
mês da que se diz estéril; porque a Deus nada é impossível. Então disse Maria:
Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra. E o Anjo
afastou-se d’Ela." ( Lc., I, 26-38 )
Este Evangelho é cheio de matizes que me
parecem interessantes. Em primeiro lugar, como fica demonstrado, o anonimato em
que vivia a Sagrada Família, o anonimato da cidade e de tudo. O plano é assim:
Deus, do alto do Céu, chegada a plenitude dos tempos, manda o Arcanjo Gabriel à
terra. Mas manda-o a um lugar de tal maneira desconhecido de todos que nos
impressiona: manda a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré. Fica aí entendido
que era um lugarejo. A uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa
de Davi. Uma cidade desconhecida, uma virgem desconhecida, casada com um homem
desconhecido. A única coisa de ilustre que se tem para dizer é que é da Casa de
Davi. O nome da virgem era Maria. E entrando o Anjo onde ela estava, disse: “Deus
te Salve, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres”.
Este “entrando o Anjo onde ela estava”
dá a impressão de que era um lugar recolhido, isolado; a ação de entrar insinua
muito a idéia de recolhimento, de clausura, de uma coisa que se viola.
Quer dizer, Nossa Senhora estava num lugar
inteiramente sozinha. É o cúmulo do que o mundo detesta: a pessoa sozinha,
isolada, desconhecida, decadente e, o que é pior ainda, no seu isolamento
rezando. É para essa pessoa que vem essa mensagem. Os senhores podem imaginar o
Anjo que paira dos mais altos páramos celestes, encarregado de uma enorme
missão, e que vai ao ponto que menos se poderia imaginar: um lugarejo, um
casalzinho, uma mulher que está recolhida no seu quarto, e ali ele leva a mais
importante mensagem da História. Tudo isto fica insinuado na linguagem do
texto, e é muito bonito ver como a linguagem introduz tudo isto.
Depois da saudação do Anjo, a reação.
Espera-se a reação: “compreenderam o valor que tenho e, afinal, me fazem
justiça...”. Ou imagina-se o Anjo de um modo tal, que ele desce inteiramente
tranqüilizador, inteiramente afável, pacífico.
É uma coisa curiosa: em todas as visões de
Nossa Senhora que tenho lido, repete-se essa cena. Há qualquer coisa de
terrível no aparecimento da visão, que incute medo. A idéia da afabilidade, da
bondade, etc. vem, mas a idéia que fica é a de medo. As crianças de Fátima
sentiam medo, as crianças de La
Salette também; também Santa Bernadette Soubirous. É a
desproporção de duas naturezas diferentes e de algo tão fabulosamente
majestoso, que Ela sentiu medo.
E o Evangelho diz: "E ela, tendo
ouvido estas coisas, turbou-se com as suas palavras e discorria pensativa que
saudação seria essa". Os senhores percebem que é uma manifestação de
distância psíquica maravilhosa. Perturbou-se com essas palavras, quer dizer,
Ela teve atenção suficiente para entender o conteúdo do que era dito, e isto A
perturbou. “...e discorria pensativa”: que bonita expressão para indicar
a análise ponto por ponto! Ela analisou pensativa a mensagem, perguntando para
si mesma que saudação seria essa.
No total, o que é isso? Vejam bem o que é o
espírito de Nossa Senhora: diante de uma coisa, mesmo tão elevada e com todas
as características de vir de Deus, uma análise, e uma análise racional do
conteúdo, palavra por palavra, daquilo que lhe era dito.
Devemos ser assim também. Não perder a cabeça
mesmo diante da coisa mais pasmosa, mais inesperada, mais maravilhosa:
discorrer pensativos sobre aquilo.
Em outro episódio, depois do nascimento de
Nosso Senhor, o Evangelho nos diz que "Maria conservava todas essas
coisas, meditando-as no Seu Coração" ( Lc., II, 19 ). Eminentemente
analítica, pensativa, o que não está de acordo com as expressões das imagens sentimentais,
que nos apresentam exatamente uma pessoa não pensativa, abobada e com uma
carinha de boneca.
E aqui está o exemplo para nós. Ser uma
pessoa de discernimento. Até o que vem de Deus analisar, não desconfiada mas
refletidamente. Sei que aqui se pode fazer outro comentário sobre a humildade;
mas esse comentário já é tão conhecido, que os senhores me permitam fazer um
comentário não habitualmente feito do Evangelho.
O Anjo, que conhecia por permissão de Deus o
que n'Ela se passava - note-se que Ela não fez nenhuma pergunta ao Anjo, como
se estivesse estudando que pergunta fazer, e que não tinha formulado ainda sua
pergunta - quando o Anjo interveio: “Não temas, Maria, pois achaste graça
diante de Deus”. Quer dizer, nada tens a temer, porque Deus tem sobre ti
uma complacência plena. Certamente essas palavras do Anjo foram acompanhadas de
uma graça de paz; a paz surgiu dentro d'Ela, e uma paz enorme.
Vejam uma coisa curiosa: o respeito de Deus
pela criatura que tem discernimento e que pensa, pela criatura que analisa. Ela
tinha uma perturbação justa, e o Anjo esclareceu, como que aprovando que Ela
quisesse saber que saudação era aquela. E a razão que o Anjo dá é uma razão que
explica a dúvida d'Ela. O Anjo diz a Ela, com a autoridade de quem pode falar,
que Ela de fato encontrou graça diante de Deus. É tão santa, tão virtuosa, Deus
lhe deu tantas graças, que aquela saudação era merecida. E então Ela se
tranqüilizou.
Preparado n'Ela o terreno psicológico, e
preparada a humildade d'Ela para receber isto, entra a explicação: “eis que
conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado o
Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David; e
reinará eternamente na casa de Jacó; e o seu reino não terá fim”. O povo
judaico estava cheio de esperanças de um rei que subisse ao trono, e que
governasse toda a terra. A promessa feita a Ela era uma promessa de molde a
justificar a esperança terrena dessa natureza: era o Messias, que se sabia que
devia nascer de David e que iria nascer d'Ela, e ia ser o rei, o esperado das
nações. Mas isto do trono de David é o que todo mundo estava esperando, uma
realeza terrena, material. Sabemos depois como as coisas se passaram.
Muitas vezes Deus fala no interior de nossas
almas; e Deus acende misteriosamente numa alma uma esperança. A alma entende de
um modo o que Deus a fez esperar e Deus dá de um modo completamente diferente
do que a alma estava esperando. Por exemplo, diz: tu serás grande. Vai ser mesmo:
depois de morto vai ser canonizado e ser colocado no alto da Basílica de São
Pedro. Mas em vida vai ser lixeiro. Deus diz: “Meu filho, eu te escolhi para
exaltar o teu nome entre todas as nações; serás até o fim dos séculos lembrado
como exemplo memorável etc., e os povos vindos do oriente e do ocidente, do
meridiano e do setentrião, hão de se curvar diante de ti”.
É verdade. Na Basílica, no dia da
canonização, tem X,Y,Z e a promessa se cumpre de um modo diferente do que a
pessoa entendeu no dia em que foi feita.
Em nossa vocação, quantas vezes há algo de
semelhante com isso. Deus faz a promessa de um jeito, o indivíduo entende de
outro. E é assim que Deus trata os seus mais amados; é assim que Ele encaminha
os seus planos mais maravilhosos. Por causa disso preparemo-nos, porque a
própria Anunciação continha uma formulação que o povo judeu entendia de um modo
diferente. São os caminhos de Deus que nos importa conhecer.
Vejam agora que, depois de uma coisa
estupenda dessas, vem uma objeção. E uma objeção de caráter moral. Porque Ela
podia intuir: afinal de contas, Deus tudo resolve, não preciso perguntar. Mas
vem uma objeção. Notem a firmeza de personalidade, que lembra os Exercícios de
Santo Inácio de Loyola bem pregados e não adocicados. Maria disse ao Anjo: “Como
se fará isso, pois eu não conheço varão?”. E respondendo o Anjo lhe disse:
“O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com
a sua sombra. E, por isso mesmo, o Santo que há de nascer de ti, será chamado
Filho de Deus".
Aí vem então, como prêmio da pergunta d'Ela,
aprovando que Ela tenha sido tão exigente, que tenha perguntado, a realidade da
mensagem que vai se desdobrando. É como se Deus quisesse que Ela perguntasse
para a mensagem ser desenvolvida. Aí a maravilha da mensagem se completa:
primeiro é a maternidade divina, depois, a maternidade virginal e por isso
mesmo é que Ele será Filho de Deus. Está aí toda a explicação da maravilha que
se vai realizar.
E vem uma espécie de ratificação apologética.
Como para Deus tudo é possível e para explicar também o plano, o Anjo diz: "Eis
que também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice; e este é o
sexto mês da que se diz estéril; porque a Deus nada é impossível". É
como que uma indicação dizendo que, afinal de contas, ali Ela veria com fatos
externos a inteira confirmação do fato interno que n’Ela se estava operando.
Tudo isto explicado - não que houvesse
dúvida, mas porque o homem age racionalmente - entra a aceitação de Nossa
Senhora. E então disse Maria: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra”. Aqui há uma atitude inteiramente conseqüente. O
comentário d'Ela foi de quem entendeu a lição em sua essência: se Deus
comunicou-me isto, é porque quer minha adesão. Então, dou o que Deus mandou
pedir. Vê-se uma profundidade, uma lógica, uma força de alma que eu nunca vi
pregador nenhum acentuar.
Deixo os comentários comuns e volto-me a
essas considerações que nos fazem ver a alma insondavelmente santa de Nossa
Senhora. E então compreender esse espírito lógico, cheio de fé, de obediência,
mas coerente e que quer ver claro dentro das coisas, não por dúvida, nem por
desconfiança, mas porque a lógica é verdade.
O Anjo afastou-se d’Ela. Segundo os melhores
teólogos, imediatamente deu-se a concepção. Uma insondável operação do Divino
Espírito Santo operada em
Nossa Senhora ; o Anjo afastou-se, mas a profecia cumpriu-se
imediatamente. É um mistério que só saberemos na eternidade. Esse aspecto vago
que fica depois e onde se pode conjeturar tudo, só nos deixa uma idéia: o fato
é tão grande que, haja o que tenha havido, ultrapassa toda intelecção humana.
Há uma pausa cheia de vazio. O resto não se fala. É o silêncio absoluto que o
Evangelho deixa passar sobre as coisas, e que é o ambiente próprio ao recolhimento,
para a meditação, própria às coisas sagradas e litúrgicas.
Por causa disso, em alguns ritos do oriente,
na hora da consagração, corria-se um véu em torno do sacerdote, tão sagrada e
misteriosa era a ação.
Vê-se então aqui que o senso religioso pede um
certo senso do mistério, e que as coisas de Deus ao mesmo tempo dizem e calam
muito; e não se sabe pelo que dizem mais: se pelo que falam ou pelo que calam.
Compreende-se então que fazer tudo simplesinho, explicadinho, acompanhadinho,
certinho é diferente das alturas dessas missões sublimes.
Façamos disso uma reserva para nossa alma
para podermos amar assim essas grandezas imensas dentro de uma lógica
inflexível. Aí está o verdadeiro senso da dignidade das coisas de Deus. Peçamos
a Nossa Senhora que nos cubra com o manto de seu espírito nessa linha e nesses
termos: espírito virginal, termos a clareza e a coerência de espírito. A
castidade é uma grande coerência e a coerência uma grande castidade. Peçamos
esse dom na noite de hoje.
("Conferência"
– 25 de março 1965)
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