Por ocasião da posse do General Eisenhower no cargo de Presidente da República dos Estados Unidos, escrevemos algumas considerações que despertaram interesse entre os leitores de CATOLICISMO. Prometemos, então, analisar igualmente as cerimônias da coroação da Rainha da Inglaterra, Elisabeth II. É deste compromisso que nos vimos desobrigar.
MONOGRAFIA SOCIAL DE PALPITANTE
INTERESSE
A esplêndida cerimônia proporcionou
uma visão de conjunto - num plano simbólico apenas, mas que precisamente por
ser simbólico traduz melhor do que qualquer outro alguns aspectos da realidade
- da Inglaterra com tudo quanto ela é, possui e pode nos dias de hoje. As
instituições inglesas, seu significado íntimo, seu passado, suas presentes
condições de existência, as tendências com que caminham para o futuro, a
situação atual da Grã Bretanha na Commonwealth e no mundo, as perspectivas
favoráveis e também as brumas espessas que se delineiam para ela nos horizontes
diplomáticos, tudo enfim se refletiu de algum modo na coroação, e nas
cerimônias que a antecederam e seguiram. Há pois em todas estas uma tal riqueza
de aspectos, capaz cada um, de despertar tantas considerações, que não seria
demais se uma equipe de especialistas, nesta época de investigações
sociológicas, consagrasse às cerimônias, manifestações e solenidades de que a
coroação foi o ponto central, um inquérito acurado, que formaria por certo
alguns grossos volumes.
Nossas aspirações, evidentemente, têm
de ser mais limitadas. Não queremos tratar de todos os aspectos das festas da
coroação, e nem sequer intentamos enumerá-los. Queremos considerar tão somente
uma faceta deste vasto assunto.
A IGUALDADE, ÍDOLO DE NOSSO SÉCULO
Em todos os domínios da vida hodierna
se manifesta a influência avassaladora do espírito de igualdade. Outrora, a
virtude, o berço, o sexo, a educação, a cultura, a idade, o gênero de
profissão, as posses, outras circunstâncias ainda, modelavam e matizavam a
sociedade humana com a variedade e a riqueza de mil relevos e coloridos,
influíam de todas as maneiras nas relações entre os homens, marcavam a fundo as
leis, as instituições, as atividades intelectuais, os costumes, a economia, e
comunicavam a toda a atmosfera da vida pública e particular uma nota de
hierarquia, de respeito, de gravidade. Nisto estava um dos traços espirituais
mais profundos e típicos da sociedade cristã. Haveria exagero em se afirmar que
hoje todos estes relevos e matizes foram abolidos. Seria entretanto impossível
não reconhecer que muitos desapareceram de todo, e que os poucos que restam vão
minguando e desbotando dia a dia.
Sem dúvida, a vida é uma transformação
constante de tudo quanto não é perene. Que muitos dos matizes de outrora
desaparecessem, e outros se formassem, seria normal. Mas em nossos dias não há
por assim dizer uma só transformação que não tenha por efeito um nivelamento,
que não favoreça direta ou indiretamente o caminhar da sociedade humana para um
estado de coisas absolutamente igualitário. E quando os de baixo relaxam a
"poussée" igualitária, são os de cima que se encarregam de a levar
por diante. Este fenômeno não está circunscrito a uma nação, nem a um
continente, e parece impelido por um vento que sopra no mundo inteiro. O tufão
nivelador retifica aqui e acolá - na Ásia, por exemplo, e em certas regiões
hipercapitalistas do Ocidente - abusos intoleráveis, impondo em outros lugares
mudanças admissíveis, destruindo em outros, enfim, direitos incontestáveis e
ferindo a fundo a própria ordem natural das coisas. Em todos estes casos,
porém, o que importa notar é que este tufão igualitário, de amplitude cósmica,
não cessa de soprar. Feita uma reforma justa, ele tende a continuar sua faina
niveladora e passar para o que é duvidosamente justo, e uma vez atingido este
ponto, entra com ímpeto crescente para o terreno do que é francamente injusto.
Esta sede de igualdade só se sacia no nivelamento completo, total, absoluto. A
igualdade é a meta para a qual tendem as aspirações da massa, a mística que
governa a ação de quase todos os homens, o ídolo sob cuja égide a humanidade
espera encontrar a idade de ouro.
UM FATO DESCONCERTANTE: A POPULARIDADE
DA COROAÇÃO
Ora, enquanto este tufão sopra com uma
força sem precedentes, em pleno desenvolvimento deste imenso processus
mundial, uma Rainha é coroada segundo ritos inspirados por uma mentalidade
absolutamente anti-igualitária. Este fato não irrita, não provoca protestos, e
pelo contrário é recebido com uma imensa onda de simpatia popular. O mundo
inteiro festejou a coroação da jovem soberana inglesa, quase como se as
tradições que ela representa fossem um valor comum a todos os povos. De toda a
parte afluíram para Londres pessoas desejosas de se embevecer com espetáculo
tão anti-moderno. Diante de todos os aparelhos de televisão, se aglomeraram
ávidos, sedentos de ver a cerimônia, homens, mulheres, crianças de todas as
nações, falando todas as línguas, exercendo as mais variadas profissões, e, o
que é mais extraordinário, professando as mais diversas opiniões. Neste imenso
movimento de alma da humanidade contemporânea, há algo de surpreendente, de
contraditório, de desconcertante talvez, que exige uma análise detida. E é este
o objeto do nosso estudo.
ALGUMAS EXPLICAÇÕES
Este fato chamou a atenção de diversos
comentaristas, que propuseram algumas explicações. Uns lembraram que, à medida
que a igualitarização se alastra e os reis se vão fazendo raros, uma coroação
também se vai tornando mais singular, mais estranha, mais interessante. Outros,
mal satisfeitos com estas razões, procuraram motivo diverso. A beleza das
cerimônias, consideradas em seu aspecto meramente estético, atrairia a atenção
dos amadores do gênero. A debilidade destas explicações é óbvia. Tudo, no
noticiário da coroação, demonstrou que as massas se comoveram com ela, não por
um simples impulso de curiosidade, para ver a reconstituição de uma cena
histórica ou o desenrolar de um espetáculo artístico, mas por um imenso
movimento de admiração quase religiosa, de simpatia, de ternura mesmo, que
envolveu não só a jovem Rainha, mas tudo aquilo que ela e a instituição
monárquica da Inglaterra simbolizam. Se a coroação tivesse sido para os que a
viram um simples espetáculo histórico, uma mera curiosidade artística, que tão
bem ou melhor poderia ter sido apresentada por atores profissionais, como
explicar o frêmito de alegria, o renovar de esperanças de um porvir melhor, as
manifestações apoteóticas, as aclamações sem fim, dos dias da coroação ?
O Sr. Menotti del Picchia aventou
outra explicação. O homem mostrou em todos os tempos, em todos os lugares, uma
fraqueza: o gosto pelas honrarias, pelas distinções, pela gala. Ora, o
igualitarismo racional e austero de nossos dias não alimenta em nada esta
fraqueza. E, assim, quando uma oportunidade como a coroação a isto dá ensejo, o
homem sente todo o deleite que a satisfação de suas fraquezas costuma
proporcionar-lhe.
A nosso ver, há muita ganga nesta
opinião, mas há também um filão de ouro. O filão está em reconhecer que há na
natureza humana uma tendência profunda, permanente, vigorosa, para o que é
gala, honraria, distinção, e que o igualitarismo hodierno comprime esta
tendência, gerando uma nostalgia profunda que explode sempre que para isto
encontra uma ocasião. A ganga está em considerar esta tendência uma fraqueza.
Que o gosto pelas honrarias e pelas distinções dê origem a muitas manifestações
da pequenez humana, não há quem o negue. Deduzir daí que este gosto seja em si
mesmo uma fraqueza, que erro! Como se a fome, a sede, o desejo de repouso, e
tantas outras tendências naturais ao homem, e em si muito legítimas, devessem
ser consideradas más, errôneas, ridículas, pelo simples fato de que dão ocasião
a excessos e mesmo a crimes sem conta! Até os sentimentos mais nobres do homem
podem levá-lo a fraquezas. Não há sentimento mais respeitável do que o amor
materno. Entretanto, a quantos erros pode conduzir, a quantos já tem conduzido,
a quantos ainda, conduzirá de futuro...
UMA VIRTUDE ESSENCIAL: O BRIO
O gosto do homem pelas honrarias,
pelas distinções, pela solenidade, não é senão a manifestação do instinto de
sociabilidade, tão inerente à nossa natureza, tão justo em si mesmo, tão sábio
quanto qualquer outro dos instintos com que Deus nos dotou.
Nossa natureza nos leva a viver em
sociedade com outros homens. Mas ela não se contenta com um convívio qualquer.
Para as pessoas de uma estrutura de espírito reta, e portanto feita exceção dos
excêntricos, dos atrabiliários, dos neuropatas, o convívio humano só realiza
perfeitamente seus objetivos naturais quando baseado no conhecimento e na
compreensão recíproca, e quando desse conhecimento e compreensão nasce a
estima, a amizade. Em outros termos, o instinto de sociabilidade pede, não um
convívio humano baseado em equívocos, eriçado de incompreensões e de atritos,
mas uma contextura de relações pacíficas, harmoniosas e amenas.
Antes de tudo, queremos ser conhecidos
pelo que efetivamente somos. Um homem que tenha qualidades tende naturalmente a
manifestá-las, e deseja que essas qualidades lhe granjeiem a estima e a
consideração do meio em que vive. Um cantor, por exemplo, tende a fazer-se
ouvir, e a despertar no auditório o gosto que as qualidades de sua voz merecem.
Pela mesma razão, tende um pintor a expor suas telas, um escritor a publicar
seus trabalhos, um homem culto a comunicar o que sabe, etc. E por motivo
análogo enfim o homem virtuoso se preza em ser havido por tal. A indiferença
omnímoda em relação ao conceito que tem de nós o próximo, não é virtude mas
falta de brio.
Claro está que o reto e comedido
desejo de boa reputação pode facilmente corromper-se, como tudo quanto é
inerente ao homem. É uma conseqüência do pecado original. Assim também o
instinto de conservação pode facilmente degenerar em medo, o razoável desejo de
alimento em gula, etc. No caso concreto da sociabilidade, é muito fácil que
cheguemos ao excesso de considerar o aplauso de nossos semelhantes um
verdadeiro ídolo, o objetivo de todos os nossos atos, o motivo de nosso
procedimento virtuoso; que para alcançar este aplauso simulemos predicados que
não temos ou reneguemos nossos princípios mais sagrados ( quem saberá jamais
quantas almas o respeito humano arrasta ao inferno! ); que levados por esta
sede cometamos crimes para galgar postos e situações eminentes; que fascinados
por este objetivo damos uma importância ridícula aos menores fatores capazes de
nos pôr em relevo; que sintamos ódios violentos, exercitemos vinganças atrozes
contra quem não reconheceu em toda a sua pretensa amplitude os méritos que
imaginamos ter. A História pulula literalmente de tristes exemplos de tudo
isto. Mas, insistimos, se com este argumento devassemos concluir que é
intrinsecamente mau o desejo do homem de ser conhecido e estimado pelos seus
semelhantes pelo que verdadeiramente é, deveríamos condenar todos os instintos,
a nossa própria natureza.
É certo também que Deus exige que em
relação ao nosso bom conceito junto ao próximo, sejamos desapegados
interiormente, como em relação a todos os outros bens da terra, a inteligência,
a cultura, a carreira, a formosura, a fartura, a saúde, a própria vida. A
alguns Deus pede um desapego não só interior, mas exterior da consideração
social, como a outros pede não só a pobreza de espírito mas a pobreza material
efetiva. É preciso então obedecer. E daí o fato de regurgitarem as hagiografias
de exemplos de Santos que fogem das mais justas manifestações de apreço de seus
semelhantes. Tudo não obstante, é legitimo em si mesmo que o homem deseje ser
estimado por aqueles com quem convive.
UMA CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA DA
SOCIEDADE: A JUSTIÇA
Esta tendência natural está em
consonância aliás com um dos princípios mais essenciais da vida social, que é a
justiça, segundo a qual se deve dar a cada qual, não só em bens materiais, mas
também em honra, distinção, estima, afeto, aquilo a que faz jús. Uma sociedade
baseada sobre o desconhecimento total deste princípio seria absolutamente
injusta. "Pagai a todos o que lhes é devido: a quem imposto, imposto; a
quem tributo, tributo; a quem temor, temor; a quem honra, honra", diz-nos
S. Paulo ( Rom. 13,7 ).
Acrescentemos que estas manifestações
se devem rigorosamente não só aos méritos pessoais, mas também à função, cargo
ou situação que uma pessoa possui. Assim o filho deve respeitar seu pai ainda
que mau, o fiel deve reverenciar o Sacerdote ainda que indigno, o súdito deve
venerar seu soberano ainda que corrupto. São Pedro manda aos escravos que
acatem seus senhores ainda que díscolos ( 1 Ped. 2, 18 ).
E de outro lado é preciso também saber
honrar num homem a estirpe ilustre de que descenda.
Este ponto é particularmente doloroso
para o homem igualitário de hoje. É entretanto assim que pensa a Igreja.
Leiamos o ensinamento profundo e brilhante de Pio XII:
"As desigualdades sociais,
inclusive as que são ligadas ao nascimento, são inevitáveis; a natureza benigna
e a benção de Deus à humanidade, iluminam e protegem os berços, beijam-nos,
porém não os nivelam. Atendei mesmo para as sociedades mais inexoravelmente
niveladas. Nenhum artifício logrou jamais ser bastante eficaz a ponto de fazer
com que o filho de um grande chefe, de um grande condutor de multidões,
permanecesse em tudo no mesmo estado que um obscuro cidadão perdido no povo.
Mas se tais disparidades podem, quando vistas de maneira pagã, parecer uma inflexível
conseqüência do conflito das forças sociais e da supremacia conseguida por uns
sobre os outros segundo as leis cegas que se supõe regerem a atividade humana,
e consumar o triunfo de alguns, bem como o sacrifício de outros; pelo
contrário, tais desigualdades não podem ser consideradas por uma alma
cristãmente instruída e educada, senão como disposição desejada por Deus pelas
mesmas razões que explicam as desigualdades no interior da família, e portanto
com o fim de unir mais os homens entre si, na viagem da vida presente para a
pátria do céu, ajudando-se uns aos outros, da mesma forma que um pai ajuda a
mãe e os filhos"
( Alocução ao patriciado e nobreza romana, "Osservatore Romano", 5-6
de janeiro de 1942 ).
O BRIO E A JUSTIÇA IMPÕEM A FORMAÇÃO
DO PROTOCOLO
Vimos até aqui, que a própria natureza
exige que no convívio social sejam tomados na devida consideração todos os
valores humanos, que se diferenciam uns dos outros quase ao infinito.
Como aplicar na prática este
princípio? Como conseguir que um valor seja visto e reconhecido por todos os
homens, e que cada qual sinta exatamente em que medida esse valor deve ser
reverenciado? Mais concretamente, como ensinar a todos que a virtude, a idade,
o talento, a estirpe ilustre, o cargo, a função, devem ser honrados? Como
indicar a medida exata de respeito e de amor que a cada qual se deve? Em todos
os tempos, em todos os lugares, a própria ordem natural das coisas foi
resolvendo o problema com o auxílio do único meio plenamente eficaz: o costume.
SABEDORIA PROFUNDA DO PROTOCOLO DA
COROAÇÃO
Assim, usando os mesmos modos de
tratar, para as pessoas de situação idêntica, o bom senso, o equilíbrio, o
tacto das sociedades humanas foi criando ponto por ponto, em cada país ou em
cada zona de cultura, as regras de polidez, as fórmulas, os gestos, quase
diríamos os ritos adequados para definir, ensinar, simbolizar e exprimir o que
a cada pessoa se deve, segundo sua situação, em matéria de veneração e estima.
Sob o bafejo da Igreja, a Civilização
Cristã levou ao apogeu esta bela arte dos costumes e dos símbolos sociais. Veio
daí a maravilhosa distinção e afabilidade de maneiras do europeu, e por
extensão dos povos americanos nascidos da Europa; os princípios da Revolução de
1789 se incumbiram de a golpear fundamente.
Os títulos de nobreza, os sinais da
heráldica, as condecorações, as regras do protocolo, não foram outra coisa
senão meios admiráveis, cheios de tacto, de precisão e de significado, para
definir, graduar e modelar as relações humanas dentro dos quadros políticos e
sociais então existentes. A ninguém ocorreria ver nisto mera vaidade. A própria
Igreja, que é mestra de todas as virtudes e combate todos os vícios, instituiu
títulos de nobreza, distribuiu e distribui condecorações, elaborou para si todo
um cerimonial de uma admirável precisão no definir todas as diferenças
hierárquicas - que a lei divina e a sabedoria dos Papas foi criando em seu
grêmio ao longo dos séculos. Sobre as condecorações, disse o Bem-aventurado Pio
X:
"As recompensas
concedidas ao valor contribuem poderosamente para suscitar nos corações o
desejo de ações relevantes, porque glorificam os homens notáveis que bem
mereceram da Igreja ou da sociedade, e, com isso, arrastam os outros pelo
exemplo a percorrer o mesmo caminho de glória e de honra. Com esta sábia
intenção, os Pontífices Romanos, Nossos Predecessores, cercaram de um amor
especial as Ordens eqüestres, como estimulantes de glória" ( Breve
sobre as Ordens eqüestres, pontifícias, de 7 de fevereiro de 1905 )
Que haja pois uma insígnia para o
cargo supremo do Estado, insígnias próprias para as pessoas de estirpes mais
ilustres, trajes de gala para os dignitários incumbidos das funções de maior
importância política, que todo o aparato destes símbolos seja utilizado na
cerimônia de posse do Chefe do Estado, em tudo isto não há mascarada, nem
concessões a fraquezas. Há apenas a observância de regras de procedimento
inteiramente conformes com a ordem natural das coisas.
MODERNIZAÇÃO ESTÚRDIA
Mas, dirá alguém, não seria
conveniente modernizar todos estes símbolos, atualizar todas estas cerimônias?
Por que conservar ritos, fórmulas, trajes do mais remoto passado?
A pergunta é de um simplismo primário.
Os ritos, as fórmulas, os trajes, para exprimirem situações, estados de
espírito, circunstâncias realmente existentes, não podem ser criados ou
reformados bruscamente e por decreto, mas sim gradualmente, lentamente, em
geral imperceptivelmente, pela ação do costume. Ora, este processus de
transformação, a Revolução Francesa com toda a sua seqüela de acontecimentos o
tornou impossível. Pois a humanidade se deixou fascinar pela miragem de um
igualitarismo absoluto, votou desprezo e até ódio a tudo quanto, no terreno dos
costumes, exprime desigualdade, e instituiu uma ordem de coisas nova, baseada sobre
a tendência para o nivelamento inteiro, a abolição de todas as etiquetas e
todas as pragmáticas. Imbuída deste espírito, ela perdeu a capacidade de tocar
nas coisas do passado para outro fim, senão para as destruir. Se o homem
contemporâneo fosse reformar ritos e instituir símbolos, como a Revolução
Francesa criou nele a adoração da lei e o desprezo do costume, ele procuraria,
ademais, fazê-lo por decreto. E ainda uma vez, nada é mais irreal, mais
caricato, em muitos casos mais perigoso, do que as realidades sociais que se
imagina poder criar por lei. A corte de opereta, rutilante, farfalhante, e
profundamente vulgar de Napoleão o demonstrou bem.
DESTRUIR POR DESTRUIR
Mas, é preciso acrescentar que o
simples fato de um rito ou símbolo ser muito antigo, não é motivo para o
abolir, mas antes para o conservar. O verdadeiro espírito tradicional não
destrói por destruir. Pelo contrário, ele conserva tudo, e só destrói aquilo
que há motivos reais e sérios para destruir. Pois a verdadeira tradição, se não
é uma esclerosação, uma fixação hirta no passado, ainda muito menos é uma
negação constante deste. A este propósito, permita-se-nos citar mais uma página
magistral de Pio XII. Dirigindo-se à Nobreza e ao Patriciado Romano (
"Osservatore Romano" de 19 de Janeiro de 1944 ), e referindo-se à
tradição que a aristocracia da Cidade Eterna ali representava, disse o
Pontífice:
"Muitos espíritos, mesmo
sinceros, imaginam e crêem que tal tradição não seja mais do que a lembrança, o
polido vestígio de um passado que não existe mais, que não pode voltar, e que
quando muito é relegado, com veneração se tanto e com reconhecimento, à
conservação de um museu, que poucos amadores ou amigos visitam. Se nisto
consistisse e a isto se reduzisse a tradição, e se importasse em recusa ou
desprezo do caminho do porvir, seria razoável negar-lhe respeito e honra, e
seria para se olharem com compaixão os sonhadores do passado, retardatários
face ao presente e ao futuro, e com maior severidade aqueles que, movidos por
menos respeitáveis e puras intenções, mais não são do que desertores dos
deveres da hora que se mostra tão lutuosa.
"Mas a tradição é coisa muito
diferente de simples apego a um passado desaparecido, é justamente o contrário
de uma reação que desconfie de todo são progresso. O próprio vocábulo,
etimologicamente, é símbolo de caminho e marcha para a frente; sinonímia, e não
identidade. Com efeito, enquanto o progresso indica somente o fato de caminhar
para a frente, passo a passo, procurando com o olhar um incerto porvir, a tradição
indica também um caminho para a frente, mas um caminho contínuo, que se
desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz de acordo com as leis da vida,
escapando à angustiosa alternativa: "si jeunesse savait, si vieillesse
pouvait", semelhante àquele Senhor de Turenne do qual foi dito: "il a
eu dans sa jeunesse toute la prudence d'un age avancé, et dans un age avancé
toute la vigueur de la jeunesse" ( Fléchier, Oração Fúnebre, 1676 )
"Por força da tradição, a
juventude, iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo
mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiantemente o arado a mãos
mais vigorosas, que continuam o sulco já iniciado. Como indica com seu nome, a
tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a
cada revezamento põe na mão e confia a outro corredor, sem que a corrida pare
ou arrefeça de velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com
tanta harmonia que, assim como a tradição sem progresso se contradiria a si
mesma, assim também o progresso sem tradição seria um empreendimento temerário,
um salto no escuro.
"Não, não se trata de subir
contra a correnteza, de retroceder para formas de vida e de ação de idades já
passadas, mas sim de, aceitando e seguindo o que o passado tem de melhor,
caminhar ao encontro do futuro com o vigor de imutável juventude".
NOSTALGIA DE UMA SÃ ORDEM NATURAL
Ora, foi precisamente com esta
tradição que o mundo contemporâneo rompeu, para adotar um progresso nascido,
não do desenvolvimento harmônico do passado, mas dos tumultos e dos abismos da
Revolução Francesa. Num mundo nivelado, paupérrimo em símbolos, regras,
maneiras, compostura, em tudo que signifique ordem e distinção no convívio
humano, e que a todo momento continua a destruir o pouquíssimo que disto lhe
resta, enquanto a sede de igualdade se vai saciando, a natureza humana, em suas
fibras profundas, vai sentindo cada vez mais a falta daquilo com que tão
loucamente rompeu. Alguma coisa de muito interior e forte dentro dela me faz
sentir um desequilíbrio, uma incerteza, uma insipidez, uma pavorosa
trivialidade de vida, que tanto mais se acentua quanto mais o homem se enche
dos tóxicos da igualdade.
A natureza tem reações súbitas. O
homem contemporâneo, ferido e maltratado em sua natureza por todo um teor de
vida construído sobre abstrações, quimeras, teorias vácuas, nos dias da
coroação se voltou embevecido, instantaneamente rejuvenescido e repousado, para
a miragem deste passado tão diferente do terrível dia de hoje. Não tanto por
nostalgia do passado, quanto de certos princípios da ordem natural que o
passado respeitava, e que o presente viola a todo momento. Eis a nosso ver a
explicação mais profunda e mais real do entusiasmo que empolgou o mundo durante
as festas da coroação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário