sexta-feira, 6 de novembro de 2020

SÃO NUNO DE SANTA MARIA E A SOBERANIA PLENA DO ESTADO

 




Um exemplo do poder dos legistas ou juristas do direito romano podemos constatar num episódio da vida de São Nuno de Santa Maria, o famoso Condestável de Portugal Dom Nun’Álvares Pereira. Naquele tempo (século XIV) já estava bastante sedimentada a idéia de que o Estado é o senhor de tudo, superior a todos os indivíduos e organismos sociais intermediários. Essa idéia fazia parte de um princípio jurídico defendido pelos legistas do chamado direito romano e predominava em vários países. Na França, desde o tempo de “Felipe o Belo” (início do século XIV) que tal princípio predominava: foi este o motivo da afronta perpetrada por aquele rei (que, por sinal, era neto de São Luís IX) contra o Papa Bonifácio VIII, mandando esbofeteá-lo em praça pública. Para demonstrar que o Estado era superior à igreja, fez com que a autoridade papal sofresse uma humilhação pública. Quer dizer, era uma demonstração de força para comprovar a legitimidade de seu poder de regência e, de outro lado, da ilegitimidade do poder regencial dos papas, que só deveria reger as almas. Era, assim, a demonstração da regência pela força e não pelo amor filial.

Em Portugal, tais princípios demoraram a chegar. A nação encontrava-se em guerras constantes com seu antigo reino, o de Castela, e lutou bravamente para confirmar sua independência e seu reino. Nessa luta, foi de capital importância a participação do grande Condestável, Dom Nuno Álvares Pereira. Quando, finalmente, o país começou a auto-reger-se, a idéia da supremacia estatal já predominava na Europa por causa da influência dos legistas, e terminou por influenciar os assessores do rei de Portugal.

 

A generosidade cristã no desapego às riquezas

Quando a guerra acabou, o Condestável havia concentrado em suas mãos uma riqueza incalculável, formada em geral pelos despojos e pelos butins que arrebatava dos inimigos e dos presentes que recebia do rei e dos amigos. Dizia-se que lhe pertencia a metade do reino. Tinha três condados, o de Ourém, o de Barcelos e o de Arraiolos. Possuía ainda os senhorios de Braga, Guimarães, Chaves, Montalegre, Porto de Mós, Ourém, Almada, Vila Viçosa, Sousel, Alter do Chão, Montemor o Novo, Arraiolos, Évora Monte, Estremoz, Borba, Monsaraz, Portel e Loulé. Tinha também um privilégio ímpar no reino, chamado de "regalengo", que consistia no direito de cunhar moeda em vários lugares, onde também auferia as rendas de tributos que lhe eram devidos por causa das guerras que ganhara. Os invejosos chegavam a espalhar os boatos de que Dom João I resolvera dividir o reino com Nun'Álvares desde o momento em que, juntos, no ano de 1384 partiram para fundar a nova dinastia de Avis.

Muitos eram aqueles que tinham inveja de tais riquezas, e o Condestável mostrou completo desapego às mesmas, resolvendo doar tudo. As pessoas mais beneficiadas com estas dádivas foram seus próprios homens, com os quais dividiu dinheiro, propriedades, jóias e tudo o que ganhara ao longo destes dez anos. Considerava que seus soldados e cavaleiros haviam sido seus sócios naquela empresa, com os quais dividiu sacrifícios e desgostos, e por isso teria que dividir também os louros da vitória.  Sentia vergonha de se encontrar tão rico, ao lado de seus cavaleiros, soldados e peões, seus fiéis companheiros de armas, sem nada possuir ou com poucas posses.  No final, ao terminar de dividir tudo, percebeu que havia ficado apenas com o hábito de sua Ordem, que nunca largara. Tal desapego em doar todos os seus bens deveria causar assombros de admiração, mas em muitos aumentava mais a inveja ao perceberem que Dom Nuno com este ato se elevava ainda mais em magnanimidade, erguendo-o muito acima do comum dos vassalos do reino.

E o ciúme invejoso açulou alguns assessores do rei, principalmente os juristas, a verem um mal naquele ato. Alegavam que Dom Nuno não podia doar aqueles bens, pois não lhe pertenciam e sim ao reino (quer dizer, ao Estado). Aquelas doações representavam uma afirmação pura e simples de soberania aristocrática, contrária ao novo conceito jurídico que surgia na Europa em que o Estado era o único elemento soberano numa nação.  Era como se fosse uma afronta ao novo conceito de monarquia recém-nascido em Portugal com a dinastia de Avis.

Levaram a Dom João I vários argumentos jurídicos, terminando por convencê-lo a chamar o Condestável à corte a fim de rever as doações que fizera a seus homens. A oposição daqueles homens para com suas doações fizera Dom Nuno ficar muito confuso, pois não entendia porque havia ele conquistado todos aqueles bens e não os podia doar a quem quisesse. Percebeu claramente que tal oposição não passava de obra da inveja. Lutou bravamente para manter a validade de suas doações. Como ficaria ele perante seus homens? Como chegaria até eles e pedir tudo de volta para entregar ao rei (ou ao reino), que não era dono de nada daquilo?

Como Nun'Álvares se recusasse a reaver os bens doados para os entregar ao reino, Dom João foi convencido pelos juristas e assessores de que fizesse expropriação de tudo, usando simplesmente o poder da força. Seria um ato arbitrário, mas os legistas haviam preparado uma bem arrumada documentação para reforçar os argumentos do ato real. Quando Dom João I lavrou a sentença, Dom Nuno já havia partido da corte para o Alentejo.

Que pensava fazer? Mandou reunir seu exército, aquele mesmo que o acompanhara durante mais de dez anos, onde estavam os homens mais fiéis que havia, e lhes comunicou o que estava ocorrendo e qual a sua decisão. Disse-lhes que o rei queria tomar todos os bens que ele havia doado, que lhe pertenciam há muito tempo, e perante tal afronta ele havia decidido abandonar o reino e partir para o exterior a procura de outro senhor a quem pudesse servir mais dignamente. Quem quisesse poderia ir com ele, ou então ficasse porque ninguém estava obrigado a segui-lo naquela viagem.  Todos seus homens resolveram partir com seu senhor, e logo de imediato tomaram o rumo da fronteira. Vê-se, nesse ato, o que falamos acima: a plena liberdade com que os medievais serviam a seus senhores, podendo desistir da servidão a qualquer momento, assim o desejasse.

A notícia logo voou até a corte. Quando Dom João tomou conhecimento da decisão de Dom Nuno, sabendo que tipo de caráter ele possuía e do que seria capaz, mandou urgentemente um emissário procurá-lo. Quando o emissário partiu, logo partiram também na mesma direção alguns personagens de grande peso na corte. Tinham a intenção de fazer o Condestável mudar de propósito. Encontraram-no no caminho, e a todos Dom Nuno respondeu que iria pensar nas novas propostas e pedidos do rei, que era muito seu amigo.

Em pouco tempo, o caso ficou resolvido. O rei voltou atrás e anulou as expropriações feitas. As doações ficaram mantidas, mas ele pediu a Nun'Álvares que viesse na corte a fim de assinar um documento protocolar. Era um "jeitinho"  que o bom diplomata de Avis achara para contentar a ambos: aos legistas e a Dom Nuno. O Condestável assinaria um documento transferindo todos os bens para o reino, e no mesmo momento o rei assinaria outro documento doando todos aqueles bens aos atuais possuidores.  

Dentro de pouco tempo o Condestável teve a oportunidade de provar que não guardava nenhuma amargura contra o seu rei.  Tendo o rei de Castela rompido novamente as pazes e invadido algumas localidades portuguesas, Dom João I convocou alguns fidalgos de sua corte para preparar a defesa sem pensar em Dom Nuno.  Sabendo que seu Condestável estava muito magoado com os últimos acontecimentos, preferiu pedir apoio dos outros seus fidalgos mais fiéis. O rei aguardou algum tempo em Santarém pela chegada das forças para repelir os invasores, mas ficou frustrado pela completa deserção de seus melhores homens. Após longa espera, havia se decidido a voltar para Lisboa porque ninguém tinha atendido seu apelo. De repente, vê chegar um destacamento militar composto de mais de mil e duzentas lanças, comandado pelo incansável Nun'Álvares Pereira. Mesmo sem ser convocado, ao saber de que o rei precisava dele, marchou imediatamente ao seu encontro. O rei exultou de contentamento, quase chorava de alegria porque sentia naquele gesto de Dom Nuno a completa reconciliação dos dois.

Numa breve correria, o Condestável fez voltar aos homens do exército real português a antiga alegria de combater pela nova monarquia. Depois de haver vencido aqueles rápidos combates, resolveu repartir o butim de guerra ali mesmo com seus homens, pois queria evitar alguma querela com os juristas da corte. Em seguida, voltou para o seu Alentejo, onde morava com a mãe e a filha, enquanto o rei seguia para Avis.

 

(Relato extraído da obra “A Vida de Nun'Álvares - Oliveira Martins - Lello & Irmão - Editores - Porto, 1983)

 


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