Um exemplo do poder dos legistas ou juristas
do direito romano podemos constatar num episódio da vida de São Nuno de Santa
Maria, o famoso Condestável de Portugal Dom Nun’Álvares Pereira. Naquele tempo
(século XIV) já estava bastante sedimentada a idéia de que o Estado é o senhor
de tudo, superior a todos os indivíduos e organismos sociais intermediários.
Essa idéia fazia parte de um princípio jurídico defendido pelos legistas do chamado
direito romano e predominava em vários países. Na França, desde o tempo de
“Felipe o Belo” (início do século XIV) que tal princípio predominava: foi este
o motivo da afronta perpetrada por aquele rei (que, por sinal, era neto de São
Luís IX) contra o Papa Bonifácio VIII, mandando esbofeteá-lo em praça pública.
Para demonstrar que o Estado era superior à igreja, fez com que a autoridade
papal sofresse uma humilhação pública. Quer dizer, era uma demonstração de
força para comprovar a legitimidade de seu poder de regência e, de outro lado,
da ilegitimidade do poder regencial dos papas, que só deveria reger as almas.
Era, assim, a demonstração da regência pela força e não pelo amor filial.
Em Portugal, tais princípios demoraram a
chegar. A nação encontrava-se em guerras constantes com seu antigo reino, o de
Castela, e lutou bravamente para confirmar sua independência e seu reino. Nessa
luta, foi de capital importância a participação do grande Condestável, Dom Nuno
Álvares Pereira. Quando, finalmente, o país começou a auto-reger-se, a idéia da
supremacia estatal já predominava na Europa por causa da influência dos
legistas, e terminou por influenciar os assessores do rei de Portugal.
A generosidade cristã
no desapego às riquezas
Quando a guerra acabou, o Condestável havia
concentrado em suas mãos uma riqueza incalculável, formada em geral pelos
despojos e pelos butins que arrebatava dos inimigos e dos presentes que recebia
do rei e dos amigos. Dizia-se que lhe pertencia a metade do reino. Tinha três
condados, o de Ourém, o de Barcelos e o de Arraiolos. Possuía ainda os
senhorios de Braga, Guimarães, Chaves, Montalegre, Porto de Mós, Ourém, Almada,
Vila Viçosa, Sousel, Alter do Chão, Montemor o Novo, Arraiolos, Évora Monte,
Estremoz, Borba, Monsaraz, Portel e Loulé. Tinha também um privilégio ímpar no
reino, chamado de "regalengo", que consistia no direito de cunhar
moeda em vários lugares, onde também auferia as rendas de tributos que lhe eram
devidos por causa das guerras que ganhara. Os invejosos chegavam a espalhar os
boatos de que Dom João I resolvera dividir o reino com Nun'Álvares desde o
momento em que, juntos, no ano de 1384 partiram para fundar a nova dinastia de
Avis.
Muitos eram aqueles que tinham inveja de tais
riquezas, e o Condestável mostrou completo desapego às mesmas, resolvendo doar
tudo. As pessoas mais beneficiadas com estas dádivas foram seus próprios
homens, com os quais dividiu dinheiro, propriedades, jóias e tudo o que ganhara
ao longo destes dez anos. Considerava que seus soldados e cavaleiros haviam
sido seus sócios naquela empresa, com os quais dividiu sacrifícios e desgostos,
e por isso teria que dividir também os louros da vitória. Sentia vergonha de se encontrar tão rico, ao
lado de seus cavaleiros, soldados e peões, seus fiéis companheiros de armas,
sem nada possuir ou com poucas posses.
No final, ao terminar de dividir tudo, percebeu que havia ficado apenas
com o hábito de sua Ordem, que nunca largara. Tal desapego em doar todos os
seus bens deveria causar assombros de admiração, mas em muitos aumentava mais a
inveja ao perceberem que Dom Nuno com este ato se elevava ainda mais em magnanimidade,
erguendo-o muito acima do comum dos vassalos do reino.
E o ciúme invejoso açulou alguns assessores
do rei, principalmente os juristas, a verem um mal naquele ato. Alegavam que
Dom Nuno não podia doar aqueles bens, pois não lhe pertenciam e sim ao reino
(quer dizer, ao Estado). Aquelas doações representavam uma afirmação pura e
simples de soberania aristocrática, contrária ao novo conceito jurídico que
surgia na Europa em que o Estado era o único elemento soberano numa nação. Era como se fosse uma afronta ao novo
conceito de monarquia recém-nascido em Portugal com a dinastia de Avis.
Levaram a Dom João I vários argumentos
jurídicos, terminando por convencê-lo a chamar o Condestável à corte a fim de
rever as doações que fizera a seus homens. A oposição daqueles homens para com
suas doações fizera Dom Nuno ficar muito confuso, pois não entendia porque
havia ele conquistado todos aqueles bens e não os podia doar a quem quisesse.
Percebeu claramente que tal oposição não passava de obra da inveja. Lutou
bravamente para manter a validade de suas doações. Como ficaria ele perante
seus homens? Como chegaria até eles e pedir tudo de volta para entregar ao rei
(ou ao reino), que não era dono de nada daquilo?
Como Nun'Álvares se recusasse a reaver os
bens doados para os entregar ao reino, Dom João foi convencido pelos juristas e
assessores de que fizesse expropriação de tudo, usando simplesmente o poder da
força. Seria um ato arbitrário, mas os legistas haviam preparado uma bem
arrumada documentação para reforçar os argumentos do ato real. Quando Dom João
I lavrou a sentença, Dom Nuno já havia partido da corte para o Alentejo.
Que pensava fazer? Mandou reunir seu
exército, aquele mesmo que o acompanhara durante mais de dez anos, onde estavam
os homens mais fiéis que havia, e lhes comunicou o que estava ocorrendo e qual
a sua decisão. Disse-lhes que o rei queria tomar todos os bens que ele havia
doado, que lhe pertenciam há muito tempo, e perante tal afronta ele havia
decidido abandonar o reino e partir para o exterior a procura de outro senhor a
quem pudesse servir mais dignamente. Quem quisesse poderia ir com ele, ou então
ficasse porque ninguém estava obrigado a segui-lo naquela viagem. Todos seus homens resolveram partir com seu
senhor, e logo de imediato tomaram o rumo da fronteira. Vê-se, nesse ato, o que
falamos acima: a plena liberdade com que os medievais serviam a seus senhores,
podendo desistir da servidão a qualquer momento, assim o desejasse.
A notícia logo voou até a corte. Quando Dom
João tomou conhecimento da decisão de Dom Nuno, sabendo que tipo de caráter ele
possuía e do que seria capaz, mandou urgentemente um emissário procurá-lo.
Quando o emissário partiu, logo partiram também na mesma direção alguns
personagens de grande peso na corte. Tinham a intenção de fazer o Condestável
mudar de propósito. Encontraram-no no caminho, e a todos Dom Nuno respondeu que
iria pensar nas novas propostas e pedidos do rei, que era muito seu amigo.
Em pouco tempo, o caso ficou resolvido. O rei
voltou atrás e anulou as expropriações feitas. As doações ficaram mantidas, mas
ele pediu a Nun'Álvares que viesse na corte a fim de assinar um documento
protocolar. Era um "jeitinho"
que o bom diplomata de Avis achara para contentar a ambos: aos legistas
e a Dom Nuno. O Condestável assinaria um documento transferindo todos os bens
para o reino, e no mesmo momento o rei assinaria outro documento doando todos
aqueles bens aos atuais possuidores.
Dentro de pouco tempo o Condestável teve a
oportunidade de provar que não guardava nenhuma amargura contra o seu rei. Tendo o rei de Castela rompido novamente as
pazes e invadido algumas localidades portuguesas, Dom João I convocou alguns
fidalgos de sua corte para preparar a defesa sem pensar em Dom Nuno. Sabendo que seu Condestável estava muito
magoado com os últimos acontecimentos, preferiu pedir apoio dos outros seus
fidalgos mais fiéis. O rei aguardou algum tempo em Santarém pela chegada das
forças para repelir os invasores, mas ficou frustrado pela completa deserção de
seus melhores homens. Após longa espera, havia se decidido a voltar para Lisboa
porque ninguém tinha atendido seu apelo. De repente, vê chegar um destacamento
militar composto de mais de mil e duzentas lanças, comandado pelo incansável
Nun'Álvares Pereira. Mesmo sem ser convocado, ao saber de que o rei precisava
dele, marchou imediatamente ao seu encontro. O rei exultou de contentamento,
quase chorava de alegria porque sentia naquele gesto de Dom Nuno a completa
reconciliação dos dois.
Numa breve correria, o Condestável fez voltar
aos homens do exército real português a antiga alegria de combater pela nova
monarquia. Depois de haver vencido aqueles rápidos combates, resolveu repartir
o butim de guerra ali mesmo com seus homens, pois queria evitar alguma querela
com os juristas da corte. Em seguida, voltou para o seu Alentejo, onde morava
com a mãe e a filha, enquanto o rei seguia para Avis.
(Relato extraído da obra “A Vida de Nun'Álvares - Oliveira Martins - Lello & Irmão -
Editores - Porto, 1983)
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