sábado, 14 de novembro de 2020

ONDE ESTÁ A VERDADEIRA BONDADE

 


Para que posamos entender melhor o que é a Bondade, que foi praticada pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo como exemplo para todos nós, vejamos como um grande e santo teólogo, São Boaventura, classifica a bondade humana:

“Tanto será alguém reputado por bom, quanto abomina o mal; pois tanto se ama um objeto, quanto se lastima a sua destruição. Seguindo esta norma, encontraremos na religião e na Igreja quatro classes de homens que costumamos qualificar de bons.

“Os primeiros são os que não praticam o mal, mas que, todavia, com pouco cuidado se exercem em boas obras. Convivem pacifica e quietamente com seus semelhantes, não ofendem a ninguém e não provocam escândalo por más obras. Diz o primeiro dos Reis, vinte e cinco (I Reis 25, 15): Estes homens têm sido muito bons para conosco, e nunca nos foram molestos.  Porquanto costumamos qualificar de bons aqueles que são afáveis em seu modo de viver e sociais para com todos, embora, por outro lado, sejam assaz desidiosos quanto à prática das virtudes. Crianças batizadas também são qualificadas de boas

A respeito destes, assim falou o Profeta Ezequiel:

“Se um homem for justo e proceder conforme e equidade e a justiça; se não comer nos montes e não levantar os seus olhos para os ídolos da casa de Israel;  se não ofender a mulher do seu próximo e não se juntar com a menstruada; se não entristecer ninguém, se der o penhor ao seu devedor, se não tirar nada do alheio por violência, se der do seu pão a quem tem fome e ao nu cobrir com vestido; se não emprestar com usura e não receber mais do que o que emprestou; se afastar a sua mão da iniqüidade e sentenciar com justiça entre homem e homem; se andar nos meus preceitos e guardar os meus mandamentos, para proceder segundo a verdade; este tal é justo, viverá certissimamente, diz o senhor Deus”  (Ez 18, 5-9).

Está este na categoria dos justos, pois cumpre fielmente a lei de Deus, mas para ser perfeito ele teria que dar mais alguns passos. Assim, continua São Boaventura:

“Melhores são os segundos que, além de não praticarem más ações, se exercem freqüentemente em boas obras: na sobriedade, na castidade, na humildade, na caridade fraterna, na assiduidade de oração, e outras similares que entendem por boas. Esses, entretanto, têm o seguinte particular: assim como nada descuidam daquilo que podem e conhecem, assim também lhes parece bastar o bem que praticam, e não se abrasam em aspirações mais altas e mais perfeitas de santidade. Basta-lhes exclusivamente velar, rezar, dar esmolas, jejuar, trabalhar por Deus e outras coisas semelhantes; e, contentes com isso, descansam, abandonando aos outros as coisas mais altas. Diz o Eclesiastes, três (Ecl 3, 12): Reconheci que nada havia melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, e que esta era a parte que lhe cabia.

“Melhores que esses são os terceiros, porque abominam e evitam o mal e praticam assiduamente o bem ao seu alcance, e, depois de haverem feito todo o possível, julgam ter feito pouco, em comparação com o que desejavam, sabendo que, no dizer da primeira a Timóteo, quatro (I Tim 4, 8): o exercício corporal pouco aproveita. Por isso anelam ansiosamente possuir as virtudes da alma e o sabor da devoção interior, o familiar conhecimento de Deus, a percepção do seu amor, julgando que não são nada e nada têm. Não querem aceitar nenhum consolo das coisas temporais ou espirituais, enquanto não gozarem, conforme desejam, dos preditos exercícios de virtudes e da doçura da devoção.  Todavia, seu zelo não se inflama contra os vícios dos demais e contra os perigos dos pecados; desejam apenas que todos sejam felizes; porém, quando não encontram isso, não sentem nenhuma dor, atentos unicamente a si e a Deus. Esses tais, incumbidos do governo de outrem, não são de todo idôneos para semelhante cargo, porque pospõem o desvelo pelos outros à sua própria quietude, conforme o livro dos Juízes, nove (Juízes 9, 7-11): Porventura, posso eu deixar a minha doçura, e suavíssimos frutos, para ir ser superior entre outras árvores.

“Os da quarta categoria, finalmente, são os melhores. Junto com os anteriores se inflamam no zelo das almas e da observância, pelos bens da inocência e das virtudes. Todavia, não se consolam com o progresso na própria santificação, enquanto, juntamente consigo, não atraem ao mesmo tempo mais outras almas a Deus, a exemplo do Senhor que, embora abarcando em si a plenitude do gozo, não se dava por satisfeito em desfrutando sozinho aquela glória; e, tomando a forma de servo, saiu para conduzir muitos filhos à glória por meio de suas obras e de sua doutrina. O zelo pela justiça, qual um escarlate tingido duas vezes, rutila na dupla cor de caridade: do amor de Deus e do próximo. O amor de Deus não deseja unicamente fluir da sua doçura e unir-se com ele, mas também anseia que se cumpra o seu beneplácito, que se dilate o seu culto, e seja sublimada a sua honra. Quer que ele seja conhecido por todos, amado por todos, servido por todos e honrado acima de todas as coisas. O amor do próximo não se cinge ao seu bem-estar corporal e à sua prosperidade temporal, mas muito se interessa pela sua salvação eterna. Por conseguinte, onde esta caridade se encontrar mais perfeita, ali há um desejo mais ardente e um esforço mais intensivo de promover estas coisas, e a alegria mais pura onde se encontram realizadas. A caridade não busca os seus interesses, senão os de Deus. À medida que amares a Deus e mais puramente desejares a sua glória, doer-te-ás  pelas ofensas de Deus, ao ver que não é conhecido e, em conseqüência, não é honrado; quando vês que não é amado e, por isso, desobedecido; que se desleixa o seu culto e se multiplicam e se alegram os seus inimigos. Quanto mais amares a salvação do próximo, tanto mais te afligirás por sua perdição e pelo dano que sofre no seu adiantamento.

“Posto que esta caridade se requeira de todos os amigos de Deus, todavia, requerer-se-á particularmente dos ministros de Deus que devem ser conforme ao coração de Deus e impregnar-se do amor da observância e do ódio à maldade. Amaste a justiça e aborreceste a maldade, diz o salmo. Por justiça pode entender-se aqui a observância de todas as coisas que são necessárias à salvação e ao progresso das almas”   [1]

 



[1] Obras de San Buenaventura – BAC-  – Tomo I – pág. 525

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