Hoje é festa das
Santíssimas Relíquias que se conservam nas Igrejas do Brasil, e,
particularmente para nós, que se conservam na nossa capela. Nós vamos ter
amanhã a festa do Bem-aventurado Nuno Álvares Pereira, confessor, condestável
de Portugal ... arnês de cavaleiro. Século XIV.
Sobre São Nuno
Álvares, São Nuno de Santa Maria, nome que Nuno Álvares Pereira tomou em
religião como religioso carmelitano, o Gal. Silveira de Mello, no livro
"Os Santos Militares", diz o seguinte:
"As primeiras
atividades militares de Nuno Álvares Pereira foram, no seu dizer, simples
escaramuças nas fronteiras de Portugal. Jovem impetuoso, revelou-se logo exímio
condutor de seus homens. Certa ocasião, os castelhanos fizeram um desembarque
com cerca de 250 homens para estabelecer uma cabeça de praia que facilitasse o
desembarque. Nuno, de guarda nessa hora, não possuía senão dois pelotões de 60
homens que o acompanhavam. O chefe português podia opor-se ao desembarque do
escalão inimigo, mas exporia a inferioridade numérica de seus homens. Preferiu
atacar os castelhanos fora da praia, mas grande parte de sua gente
intimidou-se. O inimigo desembarcou sem encontrar resistência e avançou em
posição de ataque.
"Nuno, ajudado
de poucos cavaleiros audaciosos, fez frente à primeira leva dos inimigos.
Atacou-os com fúria, acometendo-os à lança e à pata de cavalo. Quebrando a
lança, puxa da espada; o cavalo que montava cai ferido e prende, na queda, a
perna do cavaleiro. Os castelhanos aproveitam do incidente e atacam. Vendo o
chefe em perigo, os companheiros avançam em seu socorro. Entusiasmam-se os
lusos, a princípio indecisos. Nuno não se ferira, protegido que fora pela
armadura e pelo escudo. Entra na luta com novo ânimo, luta essa de quatro
contra um. Mas aos portugueses vale o denodo do capitão. Os inimigos perdem
terreno, debandam, são perseguidos e poucos se põem a salvo.
"A 15 de
agosto de 1243, Nuno foi admitido na Ordem Carmelitana com o nome de Nuno de
Santa Maria. Foi grande religioso, como fora grande soldado. Encontrou no
convento um sacerdote que antes da ordenação fora também soldado e o servira. À
sua passagem, o monge terciário ... ia beijar-lhe o hábito em respeito à sua
dignidade. Por seu lado, o sacerdote carmelita declarava que uma das grandes
honras de sua vida fora ter sido pajem do Condestável.
"No último ano
de sua vida, em 1431, alquebrou-se o velho guerreiro. O rei D. João foi vê-lo e
ao abraçá-lo pela derradeira vez, chorou como quem se despede do melhor amigo.
Quando percebeu que sua hora era chegada, Nuno pediu que lhe fosse lida a
Paixão do Senhor, segundo São João. Expirou suavemente às palavras ...
"Epitáfio de
Nuno de Santa Maria: Aqui repousa aquele Nuno, Condestável, fundador da Casa de
Bragança, general exímio, depois monge bem-aventurado, o qual, sendo vivo,
desejou tanto o Reino do Céu que mereceu, após a morte, viver eternamente na
companhia dos santos. Pois, após numerosos troféus, desprezou as pompas e
fazendo-se humilde de príncipe que era, fundou, ornou e dotou esse
templo".
Num Canto dos
Lusíadas Camões exalta a figura do grande herói português, quando este incita
os fidalgos lusos à resistência:
"Atai as mãos
a vosso vão receio, que eu só resistirei ao jugo alheio. Eu só com meus
vassalos e com esta – Dizendo isso arranca meia espada – Deterei da força dura
e infesta – A terra nunca de outrem subjugada. Em virtude do rei, da pátria...
– Da lealdade já por vós negada – Deterei não só esses adversários – Mas quanto
a meu rei for necessário".
A grandeza
camoniana!...
Os episódios aqui
narrados são todos eles de grande significação, tanto a batalha árdua de Nuno
Álvares Pereira, quanto depois a sua atuação no convento, e aquela linda
reciprocidade de respeito entre ele e o sacerdote.
Ele que como
simples donato, quando via passar o sacerdote se levantava e o sacerdote que
fora pajem dele, que se honrava em ter sido pajem dele e que sentia uma
profunda emoção de respeito quando via D. Nuno Álvares Pereira passar...
O espírito católico
se compraz em reconhecer a superioridade (...) e naquele tempo (...) ele se
exprimia numas manifestações de mútua reverência, de mútuo respeito, de mútua
admiração, que faziam crescer ainda mais os valores da Civilização Cristã.
Nós tivemos
oportunidade de comentar, há algum tempo atrás, o encontro de Santo Ângelo,
carmelita, com São Francisco de Assis e São Domingos, em Roma. E a tradição
segundo a qual os três santos teriam caído de joelhos uns diante dos outros. É
essa efusão de mútua veneração que não se resolve em igualdade, mas se resolve
em profunda humildade.
Aqui os senhores
têm a mesma coisa que se repete.
Eu estava dizendo
que é aqui que se vê bem o esplendor da Civilização Cristã. Para os senhores
verem como essas coisas espirituais penetram a sociedade temporal, os senhores
tomem até uma manifestação desaconselhada da civilização passada, e que era a
dança.
Os senhores se
lembram daquele conceito de São Francisco de Sales a respeito da dança do tempo
dele: as danças eram como os cogumelos, os melhores não prestavam. Está bem.
Porém na dança, por exemplo na pavana ou no minueto, nós vemos reaparecer o
mesmo espírito das profundas reverências antigas, dando numa espécie de
tributar recíproco de respeito, que faz a civilização do respeito que é a
Civilização Cristã. Enquanto a civilização [moderna] é neopagã, é a civilização
da igualdade, é a civilização do desrespeito.
Os senhores vêem no
ardor da luta de Nuno Álvares como deve lutar o verdadeiro católico. O verdadeiro
católico não é o [sentimental] que não tem o senso da guerra, mas, pelo
contrário, Nuno Álvares lutava como os senhores acabam de ver, empenhando-se
inteiramente e comunicando a coragem dos outros.
Os senhores
imaginem o que é que diria o público do seguinte noticiário: "Numa guerra,
houve uma batalha e os soldados estavam fugindo, mas de repente apareceu um
sacristão, e como se sabe que um sacristão é um leão, ele infundiu ânimo a
todos os guerreiros e os guerreiros voltaram à batalha". Caía-se na gargalhada,
porque nem era possível uma coisa assim.
Era uma dessas
coisas... Eu creio que os linotipos se tornariam duros ... viraria em sentido
contrário na hora de irem à imprensa. Não seria possível - não é verdade? - de
tal maneira a idéia de certo estilo de católico se identificou com a idéia do
manho, do poltrão, do indivíduo sem coragem. Porque, para muita gente o
sacristão é a personificação do católico e para muito católico o sacristão é
mesmo a personificação do católico. Os senhores vejam o verdadeiro católico
como é: como era o venerável Nuno Álvares.
Do ponto de vista
"ambientes, costumes", e no fundo pela revelação que contém da
santidade da coisa, muito bonita também é a despedida do rei. Naquele tempo as
pessoas não tinham medo de morrer e embora não houvesse o diagnóstico
inexorável de certas radiografias de hoje, as pessoas muitas vezes pressentiam
a morte. Quando pressentiam a sua morte, iam se despedir. E as pessoas que
recebiam a visita de despedida achavam aquilo natural: entrava, conversava,
tomava chá, depois, na hora de sair, despedia mesmo. Também depois não se viam
mais antes de morrer.
Nosso Padre José de
Anchieta foi assim. A horas tantas ou quantas ele soube, por alguma advertência
interna da graça, que ia morrer. Ele visitou todo o pessoal do pequeno burgo de
São Paulo, de quem ele queria se despedir. Ele dirigiu-se a cada um e disse:
— "Olha, eu
vou morrer. Então, vim aqui para agradecer as gentilezas, para dizer que eu vou
rezar no céu".
— "Oh, não
diga. Mas Padre Anchieta vai morrer, está bom, então recomende a Nossa Senhora
tal coisa assim"
É assim. Ao pé da
letra é assim...
— "Recomende a
Nossa Senhora, quando estiver no céu, e veja com minha padroeira tal coisa
assim".
— "Não tem
dúvida, eu faço".
... coisa e tal, se
abraçam e se despedem. Depois, vão se ver só na hora do enterro ou no juízo
final...
Era a época da
cortesia, em que as pessoas até para morrer, morriam com polidez, com
elegância. Pois, quando se trata de sair da terra — a gente fazendo uma visita
para despedir porque vai viajar —, por que não vai fazer uma visita para
despedir quando vai morrer, quando essa é a grande viagem? E depois é preciso
dar um bom conselho para um, para outro, por justiça, se deve um agradecimento.
Então, a gente vai fazer o agradecimento. Para outro é porque a gente estima e
quer rever mais uma vez antes de morrer.
E então o rei e ele
se reviram. O rei chorou, abraçaram-se, depois cada um seguiu o seu destino. E
naturalmente São Nuno de Santa Maria morreu e no céu rezou pelo rei. É a época
da elegância. Os senhores vejam a elegância das maneiras, a polidez das
maneiras como se interpenetrava com a piedade e dava à piedade uma excelência
própria, porque foi um costume de alta elegância que foi embebido de piedade, e
dava à piedade uma beleza especial essa forma de separação antes de morrer, com
essa nobreza, com essa tranqüilidade e com esses olhos postos no céu.
Uma civilização
igualitária não poderia de nenhum modo ver desenvolver-se um costume dessa
forma. Lembra-me uma outra despedida tão diferente dessa, mas para os senhores
verem como são as coisas.
Os senhores todos
ouviram falar do grande Felipe II, Rei da Espanha, e ouviram falar também do
Duque de Alba. Seja como for, o Duque de Alba, a horas tantas ou quantas, entra
em agonia e manda chamar várias vezes Felipe II - porque ele nunca mandaria
chamar o rei, a não ser para morrer.
Mas a morte tem uma
majestade própria, da qual nós nos ocupávamos outro dia, e que é uma majestade
inconfundível. Às portas da morte, alguém que seja o Duque de Alba pode mandar
chamar o rei. Ele manda chamar o rei várias vezes, mas o rei não vai. Quando
afinal o rei aparece, o Duque de Alba está nas últimas. Entra no quarto do
Duque de Alba, o duque o olha e diz: - "Agora é tarde". Vira-se para
a parede e não dá confiança ao rei.
São esses tais
cristãos atrevimentos que são paralelos com esses profundos efeitos dessas
profundas reverências, e que dão aos senhores a idéia quase inebriante da
harmonia desses grandes respeitos e dessas grandes independências que
caracterizam o cavalheiro antigo. Ninguém mais humilde do que ele na hora de
ser humilde; ninguém de mais altaneiro do que ele na hora de ser altaneiro.
E aí os senhores
têm uma visão dos esplendores da Civilização Cristã, a propósito da vida de São
Nuno de Santa Maria.
Agora, não é sem
interesse... Eu li muito mal os versos de Camões, porque eu não sei fazer verso
e nem sequer sei ler os versos. Mas, enfim, o verso dele é muito bonito. E não
é sem interesse fazermos uma adaptação desse modo de combater - que Camões
atribui a São Nuno de Santa Maria com fundamento histórico - ao modo pelo qual
o católico deve defender, não só a sua pátria e a sua terra mas, sobretudo, a
causa católica, porque a Igreja é a pátria das almas.
Eu estou me
demorando um pouco, mas termino logo - é porque a coisa convida a algumas
exemplificações de modo quase traiçoeiro.
Mas vejam os senhores
as lindas expressões de Camões: o quê é um poeta para dizer as coisas, quando é
um verdadeiro poeta. Vejam como ele descreve a cena de São Nuno de Santa Maria
comunicando vigor aos fidalgos portugueses diante da superioridade de forças
dos castelhanos: "Atai as mãos a vosso vão receio".
Os senhores querem
uma imagem do medo mais bonita do que essa? Um medo vão que tem mãos e que
segura o sujeito na hora da luta. Essa expressão, essa figura das mãos do medo,
mãos brancas, frias, de dedos compridos que seguram como garras, que deixam o
sujeito inibido.
Pode haver melhor
imagem do que essas duas mãos sem cor, enquanto um mau espírito vem por
detrás... mãos do medo? Pode haver uma coisa mais bonita para indicar a luta do
medo contra o homem e do homem contra o medo? As mãos do medo agarram o homem;
o homem ata as mãos do medo pela sua resolução e coragem. Francamente se isso
não é bonito, eu não sei o que é bonito!
Ele continua: "Que
eu só resistirei ao jugo alheio". Quer dizer, se vós não dominardes o
medo, eu continuo a lutar sozinho. Como seria bonito dizermos isso a amigos que
estivessem intimidados no momento em que a causa de Nossa Senhora estivesse
ameaçada: Atai as mãos a vosso vão receio, eu só resistirei ao jugo alheio.
E ele continua: "Eu
só com meus vassalos" e dizendo isso ele arranca a espada e diz "defenderei
da força dura e infesta, a terra nunca de outrem subjugada". Nós não
poderíamos dizer: "eu só com os meus amigos, eu só com os membros do
Catolicismo, defenderei da força dura e de infestação" – pode haver duas
palavras melhores para indicar a força da impiedade ou a força da injustiça, do
que a força dura e infestante?
Pois bem: eu só
defenderei da força dura e infesta, com os meus vassalos"... Quem? Não a
"terra nunca de outrem subjugada", mas a rainha nunca por outrem
derrotada. Essa é a Rainha que nunca foi derrotada.
E continua: "E
em virtude do rei (mas que rei!) – da pátria (ou seja, da Igreja mesma) – da
lealdade já por vós negada" (em virtude da lealdade que vocês já negaram,
em virtude disso) - "deterei não só esses adversários" (mas quantos à
minha rainha forem contrários). Mais bonito não pode haver.
De maneira que aqui
fica uma oração: Que Nossa Senhora e o Bem-aventurado Nuno Álvares nos obtenha
precisamente essa coragem de que ele deu o exemplo e que Camões tão bem soube
cantar.
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